"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/05/2024

Jurisprudência 2023 (168)


"Factos conclusivos";
delimitação; thema decidendum*

I. O sumário de RP 25/9/2023 (13265/18.2T8PRT-A.P1) é o seguinte:

I - Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 01/09/2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos, razão pela qual a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado devendo, assim, eliminar-se da fundamentação factual os pontos que neles se contenham meras conclusões.

II - Do regime legal de citação decorre: a)- ser equiparada à citação pessoal a efetuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do ato; b)- que, em tal situação presume-se, salvo prova em contrário, ter tido o citando oportuno conhecimento do conteúdo da mesma; c) que no caso de citação de pessoa singular, através de carta registada com aviso de receção, esta pode ser entregue a qualquer pessoa (terceiro) que se encontre na residência ou local de trabalho do citando, desde que declare encontrar-se em condições de lha entregar prontamente; d)- nesta situação, a citação considera-se efetuada na própria pessoa do citando, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta de citação foi oportunamente entregue àquele.

III - A presunção de entrega ao destinatário, de natureza ilidível, prevista no n.º 1 do artigo 238.º do (presentemente, artº. 230.º) e no nº. 4, do artº. 233º (presentemente 225.º), ambos do CPCivil de 1961 (na redação à data vigente), apenas funciona caso se cumpram todos os pressupostos de tal entrega, nomeadamente, e no que ora importa, a sua feitura ou ocorrência, no lugar próprio (residência ou local de trabalho), legalmente enunciado.

IV - Todavia, não sendo operatória tal presunção, caso em que a carta foi recebida por terceiro, em local que já não correspondia à sua residência (nem local de trabalho), não se pode considerar que o citando tenha ficado onerado com qualquer ónus, nomeadamente o prescrito na alínea e), do artº. 195.º (presentemente, artº. 188.º), do Cód. de Processo Civil (na redação à data vigente).

V - Os poderes de representação “perante a justiça portuguesa em geral” constantes de procuração não contemplam o poder de receber citações.

VI - Estando controvertido que o citando não residia no local para onde foi expedida a carta para citação, nem esse era o seu local de trabalho, foi prematuro o conhecimento de mérito no despacho saneador dos embargos deduzidos que apenas deve ter lugar quando o processo fornecer, já em tal fase processual, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:

a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.

Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões o apelante abrange, com o recurso interposto, a impugnam a decisão da matéria de facto, não concordando com a resenha dos factos provados.

Vejamos, então, se lhe assiste razão.

O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.

Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição. [---]

Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”. [Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.]

De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).

Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. [Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.]

Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”. [Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.]

Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados. [Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt]

Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao embargante/apelante neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.

Impugna, desde logo o recorrente o ponto 2. dos factos provados, alegando que o mesmo encerra matéria conclusiva.

Este ponto tem a seguinte redação:

Nesses autos a exequente figurou como Autora e o Réu como executados, tendo este último sido citado, na pessoa de BB, por carta registada com aviso de receção, na data de 20.01.2009, na morada constante do contrato em crise na ação declarativa, Rua ..., ..., Matosinhos (cfr. aviso de receção junto aos autos)”.

Tem, de facto, razão o apelante.

Na verdade, sendo a validade da citação o thema decidendum e fundamento dos embargos deduzidos, torna-se evidente que a redação do citado ponto não pode subsistir com aquele conteúdo já que, contém ele próprio, a resposta à questão jurídica colocada.

Importa não esquecer que o artigo 607.º, nº 4 do CPCivil [---] dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.

Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.

Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.

Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).

Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência“ [José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui pinto Código de Processo Civil–Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 606.].

Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito“ [Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda., 1985, pag. 648.].

Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.

Diante do exposto altera-se a redação do citado ponto factual pela seguinte forma:

Nesses autos, a Exequente figurou como Autora e o Executado como Réu, tendo o Juízo Local de Matosinhos remetido a carta de citação dirigida ao então réu por correio registado com aviso de receção, endereçada para a Rua ..., ... Matosinhos, a qual foi recebida em 20/03/2009 por BB, conforme aviso de receção junto aos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido”.


*3. [Comentário] a) O acórdão debate-se com o problema dos "factos conclusivos". No caso concreto, a RP não aceita, porque conclusivo, o ponto 2. dos factos provados, assim redigido:

Nesses autos a exequente figurou como Autora e o Réu como executados, tendo este último sido citado, na pessoa de BB, por carta registada com aviso de receção, na data de 20.01.2009, na morada constante do contrato em crise na ação declarativa, Rua ..., ..., Matosinhos (cfr. aviso de receção junto aos autos)”.

O argumento invocado pela Relação é o de que a validade da citação constitui o thema decidendum. Nesta parte, há que concordar com a RP: só podem ser considerados provados factos que respeitem à previsão de uma regra jurídica, ainda que -- supõe-se que ao contrário do entendimento da RP -- esses factos sejam factos jurídicos, isto é, sejam "factos conclusivos". Consequências ou efeitos jurídicos não podem ser considerados provados.

b) Como se tem vindo a tornar comum em acórdãos que rejeitam os chamados "factos conclusivos", a RP afirma o seguinte:

"No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.

Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito."

Neste ponto, já não se pode acompanhar a RP. O que cabe perguntar é o seguinte: por que motivo, em vez de procurar "ressuscitar" uma regra que foi revogada, não se trabalha com o regime que está efectivamente em vigor?

c) Sobre a problemática relativa aos factos conclusivos, cf. MTS, CPC online, Art. 410.º a 422.º (vs. 2024.04), Art. 410.º, 10 ss.

MTS