"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/05/2024

Jurisprudência 2023 (180)


Processo de insolvência;
legitimidade para recorrer; MP


1. O sumário de STJ 17/10/2023 (1892/19.5T8AVR-L.P1.S1) é o seguinte: 

I- O Ministério Público, ao abrigo do art. 4º, n.º 1, alínea m) do Estatuto do Ministério Público, quer na qualidade de representante do credor Estado com créditos graduados no processo de insolvência, quer enquanto defensor do interesse público, nos termos do art.325º, n.º 3 do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE) tem legitimidade para recorrer contra a decisão que fixa a remuneração do administrador da insolvência.

II- No cálculo da majoração da remuneração do administrador de insolvência, o valor de 5% referido no n.º 7 do art.23º do EAJ, com a redação dada pela Lei n.9/2022, não tem como objeto o montante total apurado para satisfação dos créditos (ou seja, o apurado depois de extraída a parcela correspondente à percentagem da remuneração variável prevista nos números 4 e 6 do art.23º). Essa percentagem de 5% incide sobre o resultado de uma operação aritmética prévia destinada a apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. Admissibilidade e objeto do recurso

1.1. Ao presente recurso, porque interposto em processo de insolvência, tem aplicação o regime previsto no art.14º do CIRE, o qual assenta na demonstração da existência de oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito.

Dispõe esta norma:

«No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme

O recorrente alega que o acórdão recorrido está em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.01.2023 (relator Rodrigues Pires), proferido no Proc. n.º 1910/17.1T8STS-F.P1, transitado em julgado (cuja certidão junta), que indica como acórdão fundamento.

Confrontando essas decisões, facilmente se constata que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento adotaram diferentes critérios quanto à interpretação do n.º 7 do art.º 23º do EAJ (na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11.01), no que respeita ao modo de cálculo da remuneração variável do administrador de insolvência. E sobre esta questão jurídica não existe acórdão de uniformização de jurisprudência.

Encontram-se, assim, preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista exigidos pelo artigo 14º do CIRE.

1.2. Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (art.635º, n.4 do CPC), no caso concreto concluiu-se que a questão normativa em revista é a de saber se o acórdão recorrido fez a correta interpretação e aplicação do regime previsto no n.º 7 do art.º 23º do EAJ.

Porém, o recorrido, nas suas contra-alegações, suscitou a questão de saber se o MP tinha legitimidade para interpor o presente recurso de revista. Tal problema assume, assim, a natureza de questão prévia, por ser suscetível de condicionar a análise da supra enunciada questão do mérito na aplicação do direito substantivo.

*

[...] 3. O direito aplicável:

3.1. Entende o Ministério Público, enquanto recorrente, que o acórdão recorrido fez errada aplicação do n.7 do art.23º do EAJ, em prejuízo da massa insolvente e dos credores, pelo que deve ser revogado.

O recorrido, por sua vez, entende que o Ministério Público não teria legitimidade para interpor o presente recurso de revista. E ainda que assim não se entendesse, o acórdão recorrido deveria manter-se, pois teria feito a correta aplicação da lei ao revogar a decisão da primeira instância que havia fixado a majoração da sua remuneração.

3.2. A questão da legitimidade do MP:

3.2.1. O Ministério Público interpôs o recurso de revista ao abrigo do art.4º, n.1, alínea m) do Estatuto do Ministério Público e do art. 14º, n.1 do CIRE.

Estabelece o art.4º, n.1, alínea m) do EMP (Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, alterada pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março) que cabe, especialmente, ao MP:

«Intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público».

Entende o recorrido que esta norma não confere ao MP legitimidade para recorrer quando o que está em causa é a divergência interpretativa acerca do n.7 do art.23.º do Estatuto do Administrador Judicial.

Em resposta a essa objeção o recorrente veio densificar os fundamentos da sua legitimidade, afirmando que:

«No âmbito do processo de insolvência, e para além do exercício da ação penal que possa justificar-se, o Ministério Público desenvolve várias outras competências, como a defesa de certos interesses, em representação de certas entidades cujos interesses lhe estão confiados (art.ºs 13.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, do CIRE) e a defesa da legalidade no curso do processo, em conformidade com o citado art.º 219.º, n.º 1, da CRP, e art.ºs 2.º e 4.º, n.º1, do Estatuto do MP.

De facto, o CIRE contém normas que atribuem funções variadas ao Ministério Público, desde o seu poder de ação (legitimidade ativa) enquanto representante de entidades cujos interesses lhe estão confiados (art.º 20.º, n.º 1, do CIRE), à faculdade de participar na assembleia de credores (art.º 72.º, n.º 6, do CIRE) e ao ónus de reclamação de créditos de entidades a que deve representação (art.º 128.º, n.º 1 CIRE), defendendo os interesses patrimoniais destas. Mas, noutros casos, o Ministério Público intervém no processo noutra qualidade que não a de representante de credores públicos, e para defesa de outros interesses, que não os de natureza patrimonial.

Como garante da legalidade democrática (art.º 219.º, n.1, CRP, e 2.º e 4.º, n.1, al. a) do Estatuto), o Ministério Público também é chamado a pronunciar-se e emitir parecer sobre as contas apresentadas pelo administrador da insolvência (art.º 64.º, n.ºs 1 e 2 CIRE), participa no incidente de qualificação da insolvência (art.º 188.º, n.º 3 do CIRE), é autorizado a estar presente na assembleia de credores (art.º 72.º, n.º 2, do CIRE) e é notificado da sentença declaratória da insolvência (art.º 37.º, n.º 2, do CIRE). Portanto, o Ministério Público não é uma entidade estranha ao processo de insolvência, mesmo quando atua em nome próprio, como defensor da legalidade democrática e na sua veste de representação do chamado “Estado-Coletividade”.

Ora, seria até incompreensível que o Ministério Público seja chamado a pronunciar-se e emitir parecer sobre as contas apresentadas pelo administrador da insolvência (art.º 64.º, n.ºs 1 e 2 CIRE, e depois não poder reagir – designadamente pela via do recurso – se o seu parecer não for acatado, ou for tomada decisão ilegal sobre contas apresentadas

3.2.2. No que respeita ao pressuposto da legitimidade para recorrer das decisões proferidas em processos de natureza insolvencial, o disposto no art.631º do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE) deve ser interpretado tendo em conta as especificidades deste tipo de processos, que são processos de natureza e estrutura complexa, nos quais se polarizam interesses de vários sujeitos para além do insolvente e dos credores reclamantes de créditos, como são os interesses de terceiros que celebraram negócios com o insolvente ou os interesses do próprio administrador da insolvência.

Os processos de insolvência apresentam uma sui generis variabilidade de potenciais configurações processuais, dependendo do número de apensos ao processo principal e ainda das diferentes pretensões que podem ser formuladas (com relativa autonomia) no próprio processo principal (como o incidente de exoneração do passivo restante), que os afastam, em vários aspetos, da generalidade dos processos de natureza civil, exigindo ao interprete uma adequada compreensão das regras processuais e do património doutrinal que têm por referente quadros processuais tradicionalmente padronizados (e não as especificidades dos processos de insolvência) [---].

Nos presentes autos, nos quais está em causa uma pretensão remuneratória do administrador da insolvência, a pagar pela Massa Insolvente, não se pode afirmar que, em rigor, exista uma “contraparte” principal, nos termos em que o art.631º, n.1 do CPC concebe a parte principal, enquanto sinónimo de sujeito demandado e, consequentemente, vencido.

O interesse remuneratório do administrador da insolvência não tem como imediato “contra-polo” o interesse direto de um outro sujeito processual que possa assumir a posição de vencido ou de vencedor, ou seja, enquanto parte principal (com inerente poder para dispor da relação processual). Aliás, usando apenas esse critério de natureza formal, concluir-se-ia que dificilmente alguém poderia recorrer de uma decisão como aquela que é objeto do presente recurso.

Todavia, sendo a remuneração do administrador judicial paga pela Massa Insolvente, os credores cujos créditos foram reconhecidos e graduados poderão ser prejudicados pela consequente redução do montante disponível para satisfação dos seus créditos (nomeadamente quando, como frequentemente acontece, a massa não é suficiente para o pagamento de todos os créditos).

Nesta medida, o MP, ao assumir a tutela dos créditos do Estado, constitui-se como representante de um credor que poderá ser diretamente prejudicado pela insuficiência da Massa Insolvente. Acresce que, sendo a Massa responsável pelo pagamento de custas do processo (art.304º do CIRE), cabe ainda ao MP a tutela do interesse no respetivo pagamento.

Por outro lado, para além de representante dos créditos do Estado, cabe ao MP nos processos de insolvência uma multiplicidade de funções que lhe conferem uma posição processual sui generis, assumindo intervenções que se identificam com as de uma parte acessória (art.631º, n.2 do CPC) e, essencialmente, com a defesa do interesse público, no sentido em que o 325º, n.3 do CPC prevê essa intervenção.

Dispõe o art.325º, n.3 do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE) que:

«O Ministério Público é notificado para todos os atos e diligências, bem como de todas as decisões proferidas no processo, nos mesmos termos em que o devam ser as partes na causa, tendo legitimidade para recorrer quando o considere necessário à defesa do interesse público ou dos interesses da parte assistida

A legitimidade do MP para interpor recursos em nome da defesa do interesse público assume particular expressão no art. 691º do CPC, que lhe confere legitimidade para interpor recurso de uniformização de jurisprudência, mesmo não sendo parte na causa, tendo em vista, precisamente, a tutela dos interesses de certeza e segurança na administração da justiça.

Estes interesses podem ver-se espelhados também, em certa medida, no regime previsto no art.14º do CIRE. Este regime especial pressupõe a existência de oposição de acórdãos como pressuposto da intervenção do STJ no processo de insolvência, tendo em vista a orientação da jurisprudência, dando expressão aos valores de certeza e segurança na administração da justiça. Em certa medida, no caso concreto, ao interpor o recurso previsto no art.14º do CIRE, o MP atua também na defesa desses valores e na inerente promoção do interesse público respeitante à previsibilidade das decisões judiciais.

Conclui-se, assim, que nos termos dos diversos fundamentos legais referidos, o Ministério Público tem legitimidade para interpor o presente recurso de revista."

[MTS]