Princípio da cooperação;
âmbito
I - O princípio da cooperação, mesmo em termos amplos como aqueles que estão pressupostos no art. 7º do CPC, reconduz-se às obrigações intraprocessuais, em ordem à realização dos fins do processo, fazendo com que este seja uma ferramenta para a realização do direito em tempo útil, mas não às questões inerentes à consolidação da posição substantiva de qualquer das partes.
II - A existência de licença de utilização de um imóvel é condição essencial para a identificação do direito à execução específica de um contrato-promessa, isto é, do direito a que, prescindindo da declaração contratual de uma das partes, o tribunal se substitua à parte faltosa e enuncie ele próprio a declaração em falta.
III - Inexiste disposição processual, designadamente em sede de direito probatório, que determine que o tribunal deva providenciar junto de uma Câmara Municipal em ordem a que uma parte possa vir a obter a licença de utilização de um imóvel, que declaradamente não foi emitida e que seria condição do seu direito à execução específica de um contrato-promessa para a aquisição de um prédio urbano.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
Assim, importará decidir sobre se o tribunal a quo deveria ter providenciado junto da Câmara Municipal ..., segundo o pedido pelos autores, para que estes pudessem obter a licença de utilização do imóvel em causa; bem como se a situação sub judice apresentava os pressupostos necessários à execução específica do contrato-promessa invocado.
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Em razão da declaração de confissão dos factos alegados pelos autores, subsequente à ausência de contestação da ré, acabou o tribunal recorrido por não elencar expressamente os factos em que alicerçou a sua decisão. [...]
Em qualquer caso, a primeira questão do recurso reporta-se à decisão no tribunal nos termos da qual indeferiu o requerimento dos autores para que oficiasse ao Município ..., para que lhes fosse permitido, em substituição da Ré, prosseguir com as diligências devidas de forma a obterem a licença de utilização, com disponibilidade para suportar todas as despesas relacionadas, pretendendo que o valor fosse descontado no preço final a pagar pelo imóvel.
Os autores fundam a impugnação desta decisão no incumprimento, pelo tribunal, de um dever de promover diligências necessárias à justa composição do litígio, bem como do dever de providenciar pela remoção do obstáculo constituído pela ausência de licença de utilização, invocando ainda o regime para a obtenção de documentos em poder de terceiro.
Aponta, assim, a ocorrência de uma nulidade, por omissão de um acto que deveria ter sido praticado e que redundou em prejuízo da decisão da causa, determinando a nulidade da própria sentença.
Constata-se, porém, ser dispersa, quase errática, a argumentação dos apelantes a este propósito, ora invocando a sujeição do tribunal a ditames de cooperação, ora qualificando implicitamente a licença de utilização do prédio como um pressuposto processual por cuja materialização o tribunal deveria providenciar, ora invocando o regime processual probatório, designadamente quanto ao tratamento das situações de necessidade de utilização de documentos em poder de terceiro.
É, porém, óbvia a ausência da sua razão.
Com efeito, como referiu o tribunal a quo, na questão em apreço, a existência de licença de utilização de um imóvel é condição essencial para o reconhecimento do direito à execução específica de um contrato-promessa, isto é, do direito a que, prescindindo da declaração contratual de uma das partes, o tribunal se substitua à parte faltosa e enuncie ele próprio a declaração em falta, isto é, como se da própria parte se tratasse e produzindo os mesmos efeitos.
Ora, para que uma tal solução possa ser decretada, a parte requerente tem de estar munida de todos os pressupostos (substantivos) do seu direito, o que, sendo reconhecido pelo tribunal, determina que se ultrapasse a ausência da declaração de vontade da parte contrária. É o que resulta do art. 830º, nº 1 do C.Civil.
No caso de o objecto a transmitir ser um imóvel destinado a habitação, impõe o art. 1º do D.L Decreto-Lei n.º 281/99, de 26 de Julho1” Não podem ser realizados actos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça prova da existência da correspondente autorização de utilização, perante a entidade que celebrar a escritura ou autenticar o documento particular.”
Significa isto que, para que se reconheça como digno de tutela um direito à execução específica de um contrato-promessa tendo por objecto um prédio urbano, esse prédio – que é o objecto mediato do contrato-promessa – tem de estar habilitado com uma licença de utilização, sob pena de não poder ser alvo de um acto translativo da respectiva propriedade, designadamente aquele que é pretendido do tribunal.
Numa vertente negativa, poderá afirmar-se que, desprovido de licença de utilização, não poderá um tal prédio urbano ser objecto de um acto translativo de propriedade, seja ele um acto de venda em que o vendedor declara uma tal vontade, seja ele um acto judiciário que, suprindo essa declaração, se lhe substitua.
É neste quadro legal que cumpre afirmar que não é ao abrigo de um princípio de cooperação, tal como o definido 7º, nº 1 do CPC, que poderá interpelar-se o tribunal para que, não apenas suprindo a declaração da parte faltosa, tal como previsto no art. 830º, nº 1 do C. Civil, intervenha na própria aquisição dos pressupostos necessários à aquisição do direito à execução específica, ou seja, muito a montante da superação de qualquer impedimento processual que possa estar a obstar ao exercício do próprio direito.
Com efeito, o princípio da cooperação, mesmo em termos amplos como aqueles que estão pressupostos no art. 7º do CPC, reconduz-se às obrigações intraprocessuais, em ordem à realização dos fins do processo, fazendo com que este seja uma ferramenta para a realização do direito em tempo útil, mas não às questões inerentes à consolidação da posição substantiva de qualquer das partes.
Assim, por exemplo, a dificuldade na obtenção de um documento ou informação que condicione o exercício de uma faculdade ou ónus processual, que o tribunal deve ajudar a superar, tal como previsto no nº 4 do art. 7º, não leva a que se transcenda a dinâmica do processo para se poder sediar na própria relação substantiva entre as partes. Em suma, por exemplo, o tribunal deve contribuir para a superação de uma dificuldade tendente à verificação de todos os pressupostos processuais (ex., em sede de legitimidade) ou à habilitação da parte com os meios instrutórios existentes (ex, fazendo produzir meios de prova que a parte não consegue alcançar); mas não haverá de actuar no sentido de dotar a parte dos pressupostos substantivos de um direito que a mesma se apresta a exercer.
Isso conduziria a uma intervenção em associação com a própria parte, inadmissível ao tribunal. Assim, por exemplo, num caso de incumprimento de um contrato em que seja pedida em juízo a sua resolução, mas em que a mora não tenha sido convertida em incumprimento definitivo, não poderá pretender-se que o tribunal, à luz de um dever de cooperação, providencie pela interpelação do devedor e pela conversão da mora em incumprimento definitivo, por isso ser essencial à realização do direito que o autor se apresente a exercer.
No caso sub judice, por exemplo e diferentemente do que os apelantes chegam a alegar, a obtenção de uma licença de utilização para o prédio que querem adquirir não consubstancia a aquisição de um meio de prova (documental) vocacionado para a demonstração da existência dessa licença. Se assim fosse, até poderia ter sentido a invocação a que recorrem, do art. 432º do CPC (documentos em poder de terceiro). Porém, o que está em causa não é a obtenção de um documento tendente a provar a prévia autorização de utilização do prédio: o que os apelantes pretendem é que o tribunal determine à Câmara Municipal que admita os apelantes a adoptarem a conduta necessária à produção do próprio acto administrativo que ainda não foi produzido: a emissão da licença de utilização.
Ora, como bem referiu o tribunal recorrido, o fim do presente processo não inclui uma tal actuação, reconduzindo-se tão só à verificação da presença dos pressupostos que poderiam habilitar a que, sem intervenção da promitente-vendedora, o tribunal proferisse declaração substitutiva, operando-se por consequência dela a transferência da propriedade sobre o imóvel em causa.
Assim, não estamos perante qualquer défice processual que o tribunal pudesse contribuir para colmatar. Não se trata nem da reunião de necessários pressupostos processuais, nem da intervenção em ordem à aquisição de quaisquer elementos probatórios do direito dos autores, pois eles próprios admitem que inexiste a necessária licença de utilização, não estando em falta tão só a sua demonstração.
Causa, assim, alguma perplexidade que, no recurso, se confundam as diferentes esferas consubstanciadas ora pela invocada titularidade do direito em exercício, ora pela mera demonstração, em sede processual, da reunião dos pressupostos desse direito.
Assim, ao caso são totalmente impertinentes as regras constantes dos arts. 411º, 417º, 429º, 436º do CPC.
Complementarmente, com idêntica frontalidade, se rejeita que, em favor do direito que os ora apelantes falham em demonstrar, possam invocar – de resto tão abstracta e gratuitamente como o fazem - o direito à habitação, tal como previsto no art. 65º da CRP, e como se uma tal tutela constitucional fosse pertinente na resolução do litígio ocorrido em sede de uma relação contratual entre as partes em presença.
Com efeito, a inviabilidade de transmissão da propriedade sobre um prédio urbano, por não estar dotado de licença de utilização, não viola o direito à habitação, tal como este se mostra constitucionalmente previsto, no art. 65º da CRP. Esse direito é um direito fundamental de natureza social, que não confere um direito subjectivo de ordem contratual como aquele que os AA. se apresentam a exercer nesta acção."
[MTS]