"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/05/2025

Jurisprudência 2024 (160)


Autoridade de caso julgado;
requisitos*


1. O sumário de RC 10/9/2024 (494/23.6T8MGR.C1) é o seguinte:

I – Instaurada ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, ocorre vinculação à autoridade do caso julgado em relação a uma anterior decisão, proferida em processo de insolvência da ré, pela qual foi julgada demonstrada a existência do respetivo crédito (o peticionado na ação de cumprimento).

II – Em tal caso, é de ter como assentes na ação de cumprimento os factos dados por provados naqueles autos de insolvência.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se se verifica a autoridade de caso julgado, relativamente à matéria em discussão nos presentes autos, em virtude do decidido nos autos de insolvência que correu termos no Juízo de Comércio ..., com o n.º 1561/23...., designadamente se aqui se devem ter por assentes os factos ali dados por provados.

A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório que antecede.

Se se verifica a autoridade de caso julgado, relativamente à matéria em discussão nos presentes autos, em virtude do decidido nos autos de insolvência que correu termos no Juízo de Comércio ..., com o n.º 1561/23...., designadamente se aqui se devem ter por assentes os factos ali dados por provados.

Como resulta do relatório que antecede, a recorrente insurge-se contra o teor da decisão recorrida, com o fundamento em que a causa de pedir e o pedido não são os mesmos, porquanto na acção de insolvência estava em causa apurar a solvabilidade da ali requerida e estando insolvente que tal se reconhecesse, ao passo que nos presentes autos se trata de apurar se a autora detém sobre a ré o invocado crédito, proveniente dos alegados fornecimentos de combustível que lhe efectuou e que não foram pagos.

Como referido, na decisão recorrida considerou-se que se verifica a autoridade de caso julgado, quanto à existência de tal crédito, que resulta demonstrado na anterior acção de insolvência, em face da factualidade que ali foi tida por assente e não provada.

Como sabido, visa a “exceção de caso julgado” evitar que o órgão jurisdicional contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior; garantindo assim aos particulares o mínimo de certeza e de segurança jurídicas indispensáveis à vida de relação, razão pela qual o que essencialmente se exige, em nome do caso julgado, é que os tribunais respeitem a decisão já proferida, não julgando a questão de novo.

Garante-se, portanto, a impossibilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira diferente e a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira idêntica, uma vez que a finalidade dum processo não se esgota na definição do direito/justiça do caso concreto, tendo também em vista conferir certeza/segurança jurídicas e paz social, essenciais à vida em sociedade; certeza/segurança jurídicas e paz social que nunca aconteceriam se, proferida uma decisão, esgotada a possibilidade de interpor recurso de tal decisão, a parte vencida pudesse suscitar nova e sucessivamente a questão antes decidida.

Há pois caso julgado quando se repete uma causa, sendo que há a “repetição da causa” quando há identidade de sujeitos, identidade do pedido e também da causa de pedir (cfr. art. 581.º/1 do CPC).

Identidade de sujeitos que reside no facto de as partes serem as mesmas nas duas ações sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

Identidade da causa de pedir que existe quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico, identidade que tem de ser procurada não relativamente às demandas formuladas, mas na questão fundamental levantada nas duas ações; pelo que, tendo a nossa lei adotado a chamada teoria da substanciação, se exige sempre a indicação do título ou facto jurídico em que se baseia o direito do autor.

Identidade do pedido que tem de ser apreciada não só em relação ao que se pede nas duas ações mas também em relação ao que se alega a respeito da questão fundamental que comanda o pedido das ações.

E se, quanto à identidade de sujeitos, nenhumas especiais dificuldades normalmente se suscitam, não é sempre com a mesma facilidade que se percebe a identidade nos elementos objetivos (causa de pedir e pedido).

Assim, a propósito dos limites objetivos do caso julgado, não será demais referir que desde há muito que a conceção/sistema restrito do caso julgado se foi impondo quer na doutrina quer na jurisprudência, ou seja, hoje, não é sustentável dizer que qualquer fundamento fica pelo trânsito em julgado indiscutível (sistema amplo do caso julgado), devendo antes ser dito, como regra, que só a decisão tem foros de indiscutibilidade, sendo tudo o mais (todos os seus fundamentos) discutível (sistema restrito).

Porém, o que se diz como regra (só ter a sentença força de caso julgado na parte decisória e não nos motivos) é algo que não tem uma rigidez absoluta, distinguindo-se, tendo como ponto de partida tal regra (própria dum sistema restritivo puro), hipóteses em que os fundamentos têm força de caso julgado e hipóteses em que não têm [A dificuldade – como refere o Prof. Castro Mendes, in Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, pág. 121 e ss. – está “em estabelecer a distinção em bases científicas sem empurrar a questão para uma casuísmo necessariamente arbitrário”.].

Verdadeiramente, hoje, em termos de limites objetivos do caso julgado, impera a ideia pragmática do “in medio virtus” [Efetivamente, a conceção/sistema restrito (da sentença só ter força de caso julgado na parte decisiva e não nos fundamentos) leva a conclusões duvidosas e em última análise insatisfatórias (como resulta dos inúmeros exemplos citados por Castro Mendes, obra citada, pág. 143).]: o sistema restritivo adotado acaba por ser apenas “pseudo-restritivo” ou, mais exatamente, um sistema intermédio [Como observou – há mais de 50 anos, mas com inteira atualidade – o Prof. Castro Mendes (obra citada, pág. 133), mesmo aqueles (Dias Ferreira) que diziam que “a sentença só tem força de caso julgado na parte decisiva e não nos motivos, considerandos ou enunciações”, não deixavam de acrescentar “excepto quando os considerandos estejam relacionados com a decisão por forma que com ela formem um todo indivisível”. Do mesmo modo a jurisprudência que “aceita a regra segundo a qual o caso julgado não se alarga aos fundamentos da decisão”, logo acrescentado “que o CPC admite a decisão implícita, como consequência necessária do julgamento expressamente proferido e já transitado, constituindo problema de interpretação da sentença saber se nela há um fundamento implícito”.].

Efetivamente, de modos diversos e com mais ou menos nuances (de linguagem), diz-se repetidamente que a decisão e fundamentos constituem um todo único; que toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), pelo que o respetivo caso julgado se encontra sempre referenciado a certos fundamentos; que reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha com esse valor, por si mesma e independentemente dos respetivos fundamentos; enfim, que não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo no seu todo; que o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão [...].

 “Em regra, o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto da decisão; mais exatamente, os fundamentos não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão judicial; não são vinculativos quando desligados da respetiva decisão. Mas valem (os fundamentos) enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta [Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 579/80.]”.

Enfim, repetindo, os pressupostos da decisão (de facto e de direito [...] estão cobertos pelo caso julgado enquanto pressupostos da decisão – caso julgado relativo – ou seja, a força de caso julgado alarga-se aos pressupostos enquanto tais [O Prof. Antunes Varela – Manual de Processo, 1.ª ed., pág. 693 e ss. – parece ser um pouco mais restritivo, na medida em que apenas diz que “é a resposta dada na sentença à pretensão do A., delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende que seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado”; e que “a força do caso julgado não se estende, por conseguinte, aos fundamentos da sentença, que no corpo desta se situam entre o relatório e a decisão final”; porém, mais à frente não deixa de reconhecer que “reveste o maior interesse, para a delimitação do caso julgado, a fixação do sentido e, sobretudo, do alcance dessa resposta contida na decisão final”; e que “é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”]: o que está em causa no caso julgado é o raciocínio como um todo e não cada um dos seus elementos; e só o raciocínio como um todo faz caso julgado.

Mas mais – e relacionado com esta ideia dos fundamentos, enquanto tal (ligados ao decidido), adquirirem valor de res judicata – o caso julgado também possui um valor enunciativo, ou seja, a eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada, ficando afastado todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele efeito que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada. [...]

Mais ainda, os fundamentos podem possuir um valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objeto decidido e um outro objeto; conexões que podem ser, designadamente, de prejudicialidade, o que significa, por ex., que, se numa compra e venda o comprador obtém a redução do preço atendendo aos defeitos da coisa, não pode questionar a validade do contrato em ação em que o vendedor requeira que ele lhe pague a quantia em dívida.

E ainda o que resulta do que é normalmente chamado de “efeito preclusivo”; que designa o efeito da sentença segundo o qual não se pode formular a mesma solicitação processual no futuro com base em factos não supervenientes ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância (art. 611.º/1 do CPC) [...].

Podendo referir-se, neste ponto, que “o âmbito da preclusão é substancialmente distinto para o autor e para o réu. Quanto ao autor, a preclusão é definida exclusivamente pelo caso julgado: só ficam precludidos os factos que se referem ao objeto apreciado e decidido na sentença transitada. Assim, não está abrangida por essa preclusão a invocação de uma outra causa de pedir para o mesmo pedido, pelo que o autor não está impedido de obter a procedência da ação com base numa distinta causa de pedir. (…). Quanto ao âmbito da preclusão que afeta o réu, há que considerar que lhe incumbe o ónus de apresentar toda a defesa na contestação (art. 498.º/1), pelo que a preclusão que o atinge é independente do caso julgado: ficam precludidos todos os factos que podiam ter sido invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquela que foi apreciada pelo tribunal.” [Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 585/6.]

O que significa – é o sentido do efeito preclusivo para um réu – que os contra-direitos que um réu possa fazer valer – e não fez – são ininvocáveis contra o caso julgado; que este abrange aquilo que foi objeto de controvérsia e ainda os assuntos que o réu tinha o ónus de trazer à colação, estando neste último caso todos os meios de defesa do réu; que a indiscutibilidade duma questão, o seu carácter de res judicata, pode resultar tanto duma investigação judicial, como do não cumprimento dum ónus que acarrete consigo por força da lei esse efeito [Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 585/6.].

É, na síntese clássica, a regra do “tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debetat”.

E é chegado a este ponto da compreensão dos limites objetivos do caso julgado – nos meandros das situações incompatíveis, de prejudicialidade e do chamado efeito preclusivo – que emerge a “figura” da autoridade de caso julgado e os exemplos de escola (e jurisprudenciais) da verificação da “autoridade de caso julgado”.

Como exceção dilatória, visa o caso julgado (material) prevenir, como já se referiu, a possibilidade de prolação de decisões judiciais contraditórias com o mesmo objeto (efeito impeditivo e função negativa); como autoridade de caso julgado, garante a vinculação dos órgãos jurisdicionais e o acatamento pelos particulares de uma decisão anterior (efeito vinculativo e função positiva).

Quando o objeto processual antecedente é repetido no objeto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como exceção de caso julgado no processo posterior; quando o objeto processual anterior funciona como condição para a apreciação do objeto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo instaurado em 2.º lugar [---].

Daí que a exceção do caso julgado pressuponha a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir; enquanto, naturalmente, a autoridade do caso julgado dispensa tal tríplice identidade [Se a exigisse não faria diferença com a exceção de caso julgado.]

Porém, tal dispensa não significa um não confinamento da “figura” do alcance e da autoridade do caso julgado àquelas situações em que a sentença reconhece, no todo ou em parte, um concreto direito do A., assim fazendo precludir todos os meios de defesa do R., os concretamente deduzidos e até os abstratamente dedutíveis com base em direito próprio; ou àquelas situações em que a sentença, ao reconhecer um direito, constitui um pressuposto ou condição de julgamento de um outro objeto ou prejudica/exclui a invocação de direitos contraditórios e incompatíveis [---].

No caso em apreço, a recorrente, entende que se trata de diferentes causas de pedir e pedidos, com o fundamento, acima já mencionado, de serem diferentes os fins visados em cada um dos processos em questão: solvabilidade da requerida e existência do alegado crédito, respectivamente, visando a requerida, nestes autos, invocar meios de defesa que não invocou no processo de insolvência, designadamente a questão do “sistema de segurança” e notificação da autora para juntar aos autos as fotografias dos veículos abastecidos.

Como já se referiu, entre a causa de pedir e a pretensão processual existe um nexo de individualização caracterizado pela reciprocidade: a causa de pedir individualiza a pretensão e a pretensão delimitada a causa de pedir, estabelecendo-se entra ambas uma relação de implicação mútua [Miguel Teixeira de Sousa, BMJ 325, pág. 106].

Daí o dizer-se, como também já se referiu, que “é a resposta dada na sentença à pretensão do A., delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado” [Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 693]; ou, por outras palavras, que a eficácia do caso julgado apenas cobre a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do A., concretizada no pedido e limitada através da respetiva causa de pedir; ou, ainda, que o que adquire o valor de caso julgado é o silogismo/raciocínio judiciário no seu todo, que o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão.

Como se salienta na sentença recorrida, o que está em causa nestes autos é apurar se a autora detém ou não o invocado direito de crédito sobre a ré.

Ora, analisando a matéria de facto dada como provada nos itens 1 a 9 da acção de insolvência, conjugada com a ali dada como não provada e descrita na respectiva alínea d), tal questão já se mostra decidida, no sentido de que, efectivamente, a aqui autora detém tal crédito sobre a ré, pelo que, nos termos expostos, não se pode, agora, de novo, discutir judicialmente tal questão.

A ordem jurídica já se pronunciou quanto a tal, em termos que vinculam as ora partes, por força da autoridade de caso julgado formado em resultado da prolação da sentença proferida nos autos de insolvência supra referidos."


*3. [Comentário] A RC decidiu bem, mas, ainda assim, deixam-se duas pequenas notas:

-- É correcto dizer que, ao contrário da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado não pressupõe a tríplice identidade quanto às partes, ao pedido e à causa de pedir, mas importa ter bem presente em que sentido se deve entender a afirmação:

-- As partes na acção posterior podem não ser as mesmas da acção anterior, mas isto pressupõe que o caso julgado formado na acção anterior se estende às (diferentes) partes da acção posterior; se o caso julgado da acção anterior não abranger ou não se estender a alguma das partes da acção posterior, a autoridade de caso julgado não opera; 

-- O pedido e a causa de pedir da acção posterior não podem ser os mesmos da acção anterior, dado que isso originaria, em conjugação com a identidade de partes, a excepção de caso julgado; mas o objecto da acção posterior tem de ser coincidente, em parte, com o da acção anterior; a autoridade de caso julgado permite que, na segunda acção (acção dependente), se dê como assente o decidido na anterior acção (acção prejudicial) e nela se discutam apenas as consequências do decidido nesta acção.

-- Deve evitar-se associar a autoridade de caso julgado a "matéria de facto dada como provada" numa acção; o caso julgado nunca se refere a factos adquiridos em processo (nomeadamente através de prova), mas, quando muito, a fundamentos de facto utilizados na sentença.

MTS