"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/05/2025

Jurisprudência 2024 (178)


Legitimidade processual;
aferição; substituição processual*


I. O sumário de RL 26/9/2024 (8273/24.7T8LSB.L1-2) é o seguinte:

1. Reportando-se a relação jurídica em litígio a um contrato de abertura de crédito celebrado entre a sociedade de que a Requerente é sócia e o Banco Requerido, a quem aquela vem imputar o incumprimento de tal contrato e a sua indevida resolução, a mesma carece de legitimidade ativa, por não ser parte naquele contrato que vem pretender manter vigente, sem que tenha o poder de negociar ou de intervir de alguma forma na sua execução.

2. A titularidade da relação material controvertida que constitui o objeto da presente providência, tal como configurado pela Requerente, não lhe pertence já que a mesma é uma pessoa jurídica distinta da sociedade contratante, a quem uma decisão proferida nos autos não pode vincular, por não participar no mesmo.

3. Não é qualquer interesse em demandar que confere legitimidade ativa a uma parte, exigindo o art.º 30.º n.º 1 do CPC que tal interesse seja direto, expresso na utilidade derivada da procedência da ação o que, desde logo exclui a legitimidade de quem se apresenta a demandar com um interesse apenas indireto ou reflexo, como acontece no caso com a Requerente enquanto avalista.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV. Razões de Direito

- da (i)legitimidade processual da Requerente

Alega a Recorrente que enquanto avalista tem interesse direto em demandar, de modo a evitar futuros prejuízos na sua esfera patrimonial, concluindo pela sua legitimidade ativa no presente procedimento.

É o art.º 30.º do CPC que nos dá o conceito de legitimidade, dispondo:

“1. O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”

Na avaliação deste pressuposto processual diz-se na decisão recorrida, o que desde já se adianta, de forma acertada:

“Revertendo ao caso, verifica-se que, a própria requerente alega que o contrato de concessão de crédito foi celebrado com a sociedade “B”, UNIPESSOAL, LDA. e que foi a esta sociedade que o requerido disponibilizou o valor do crédito e consequentemente foi esta que não logrou cumprir as suas obrigações e viu ser rejeitado o pedido de prorrogação do período de carência e o contrato ser resolvido. A requerente, a título pessoal, limitou-se a prestar uma garantia de garantia de 25% da responsabilidade emergente do contrato através do aval que deu a uma livrança em branco subscrita pela “B”. Verifica-se, assim, que a titular da relação material controvertida, tal como configurada pela requerente, e única entidade com legitimidade para peticionar a intervenção do Tribunal sobre o contrato celebrado, é a sociedade “B” (ainda que representada pela requerente enquanto única sócia e gerente), que é parte no contrato. O facto de a requerente ser interveniente no contrato como avalista não lhe confere legitimidade para actuar como se se tratasse da mutuária, uma vez que tal facto não lhe diz directamente respeito. Nestes termos, conclui-se, que a requerente não é parte legítima na acção.”

Para avaliar a legitimidade processual das partes, nos termos previstos no art.º 30.º do CPC importa ter em conta a sua posição na relação material controvertida tal como a apresenta o A., aferindo-se a legitimidade perante o pedido e a causa de pedir invocados no requerimento inicial, sendo que o que se pretende é que na causa estejam os verdadeiros interessados diretos na questão que se discute.

Sobre a questão da legitimidade, ensinam-nos com toda a clareza Antunes Varela, J Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, pág. 129: “Ser parte legítima na ação é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão existe; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida. Se assim não suceder, a decisão que o tribunal viesse a produzir, não poderia surtir o seu efeito útil, visto não poder vincular os verdadeiros sujeitos da relação material controvertida, ausentes da lide.”

A Requerente do procedimento cautelar será parte legítima se for a titular da relação jurídica que integra o objeto do litígio, enquanto titular do interesse relevante para efeitos de legitimidade, pois só se assim for pode dispor da relação jurídica de que pretende fazer valer-se no processo.

Não é qualquer interesse em demandar que confere legitimidade ativa a uma parte, exigindo o art.º 30.º n.º 1 do CPC que tal interesse seja direto, expresso na utilidade derivada da procedência da ação o que, desde logo exclui a legitimidade de quem se apresenta a demandar com um interesse apenas indireto ou reflexo, precisamente por não ser o titular da relação jurídica controvertida.

Revertendo para o caso em presença, verifica-se que a relação jurídica em litígio na qual a Requerente fundamenta os seus pedidos se reporta a um contrato de abertura de crédito celebrado entre a sociedade “B” e o Banco Requerido, imputando a Requerente ao Banco o incumprimento de tal contrato, por não ter prorrogado o período de carência de pagamento do capital mutuado e por ter resolvido o contrato.

Os pedidos por ela formulados no âmbito da presente providência reportam-se todos eles a esse mesmo contrato – pedindo o reconhecimento do direito à prorrogação do período de carência, a restituição de qualquer quantia cobrada a título de capital; pedindo que se declare que o contrato de abertura de crédito não está resolvido e que deve produzir os seus efeitos; pedindo que o Requerido seja condenado a cancelar o pedido de pagamento por conta da garantia à LISGARANTE, S.A.

Estamos perante um procedimento cautelar não especificado em que os pedidos formulados se dirigem ou fundamentam todos eles num contrato de financiamento bancário em que a Requerente, pessoa singular, não foi parte.

Ora, é manifesto que pertence à sociedade “B” a titularidade da relação material controvertida que constitui o objeto da presente providência, tal como configurado pela Requerente, sendo imputado ao Requerido o incumprimento do contrato com ela celebrado, que a Requerente vem pretender manter vigente, sem que tenha o poder de negociar tal contrato ou de intervir de alguma forma na sua execução.

A Requerente pessoa singular, perante o direito substantivo, não é a titular da relação material controvertida que serve de fundamento à pretensão que vem deduzir em juízo. O seu titular é a sociedade “B”, a quem uma decisão proferida nos autos não pode vincular num processo em que a mesma não participa.

Fundamenta ainda a Requerente a sua legitimidade no facto de ser avalista, afirmando ter por isso interesse na demanda.

Como expressamente prevê o art.º 30.º da LULL o pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval, admitindo-se por isso que esta garantia seja limitada a uma parte do valor do título, sendo o dador do aval responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, de acordo com o estabelecido no art.º 32.º do mesmo diploma. A responsabilidade do avalista pelo pagamento do título é assim solidária com a do aceitante do título e não meramente subsidiária, não obstante trata-se de uma obrigação autónoma e independente.

No caso, não é a relação jurídica da garantia prestada pela Requerente através do aval que está em discussão na presente providência e que é controvertida. Ao tribunal não é pedido que tome qualquer decisão sobre o aval que a Requerente prestou, não tendo o tribunal de proceder a qualquer apreciação ou tomar posição sobre tal relação jurídica contratual, nem tão pouco a Requerente invoca qualquer direito sobre o Requerido ao abrigo de tal contrato de garantia que com ele celebrou.

Antes a Requerente fundamenta os seus pedidos no alegado incumprimento de um contrato firmado entre a sociedade “B” e o Banco Requerido, centrando-se o litígio precisamente no relacionamento destas duas entidades na execução e cumprimento de tal contrato, sendo que os pedidos que formula são dirigidos tão só a essa relação contratual que não foi estabelecida com ela e em que a mesma enquanto pessoa singular não tem legitimidade para intervir.

O facto de se ter constituindo avalista no âmbito de uma livrança em branco entregue pela mutuária, como garantia do pagamento de uma parte do financiamento contratado, não lhe dá a possibilidade de intervir no contrato de que é garante, ainda que seja interessada no seu devido cumprimento, por ser avalista. Mas enquanto avalista, a mesma não tem legitimidade para pugnar pela manutenção de um contrato no qual não foi parte, com fundamento no seu alegado incumprimento pelo Banco R.

É certo que a Requerente apresenta-se como sócia gerente de tal sociedade, no entanto, como é sabido uma sociedade é uma pessoa jurídica com individualidade própria relativamente aos seus sócios e o contrato em questão, que constitui o objeto do litígio foi celebrado com a sociedade “B” e não com a Requerente, não tendo esta, enquanto pessoa singular, poder para dispor de tal relação contratual.

O litígio trazido ao tribunal centra-se no contrato celebrado entre a Sociedade “B” e o Banco Requerido, sendo uma relação contratual na qual a Requerente não pode imiscuir-se por não ter sido parte em tal contrato, pelo que o seu interesse no cumprimento do contrato, enquanto avalista é apenas indireto ou reflexo, o que não é suficiente para lhe conferir legitimidade para demandar o Requerido nos termos em que o faz.

Resta concluir que a Requerente, não dispõe de legitimidade ativa para demandar o Requerido nos termos em que o faz na presente providência, de acordo com o disposto no art.º 30.º n.º 1 a 3 do CPC por ter apenas um interesse indireto em demandar, que não é o interesse relevante para efeitos de legitimidade, por não ser a titular da relação material controvertida.

*3. [Comentário] A RL decidiu bem.

A ilegitimidade da Requerente resulta claramente do disposto no art. 30.º, n.º 3, CPC: tal como a relação jurídica controvertida é apresentada pela própria Requerente, esta parte não é titular dessa mesma relação; logo, a Requerente é parte ilegítima.

Dito de outra forma: a Requerente apresenta-se a substituir a sociedade que é titular da relação material controvertida; esta substituição processual não tem qualquer apoio legal; logo, a Requerente é parte ilegítima.

Qualquer destas explicações é mais adequada do que aquela que recorre ao critério do interesse que, equivocadamente, consta dos n.º 1 e 2 do art. 30.º CPC. Na verdade, não é fácil demonstrar que a Requerente não retira nenhuma utilidade da procedência do procedimento cautelar (e, em teoria, da consequente acção principal).

MTS