Processo de inventário;
redução por inoficiosidade; litispendência
1. O sumário de RP 26/9/2024 (3733/22.7T8PNF.P1) é o seguinte:
A inoficiosidade de legado ou doação é uma questão que deve ser suscitada e julgada no processo de inventário por estar incluída nas finalidades deste, pelo que estando pendente esse processo o interessado não pode instaurar uma acção com processo comum contra o legatário ou donatário pedindo a declaração judicial da inoficiosidade daquela disposição.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Como vimos a questão que urge decidir consiste em saber se na pendência de um processo de inventário o herdeiro pode instaurar uma acção declarativa comum para discutir, de forma autónoma em relação ao inventário, a inoficiosidade das disposições mortis causa realizadas pelo inventariado.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Como vimos a questão que urge decidir consiste em saber se na pendência de um processo de inventário o herdeiro pode instaurar uma acção declarativa comum para discutir, de forma autónoma em relação ao inventário, a inoficiosidade das disposições mortis causa realizadas pelo inventariado.
Salvo melhor opinião, a resposta é claramente negativa, embora não propriamente pelo fundamento usado na decisão recorrida da falta de interesse em agir do autor.
O interesse em agir afere-se pela utilidade do meio processual para assegurar a tutela eficaz do direito subjectivo. Desde que o meio processual usado pelo autor tenha utilidade jurídica para tutelar eficazmente o direito subjectivo o autor tem interesse em agir. Questão diferente é a de saber se o meio processual que usa é o adequado ou aquele que a lei processual consagrou para essa finalidade específica.
O autor tem claro interesse jurídico em discutir a inoficiosidade da disposição mortis causa do seu falecido pai uma vez que, na qualidade de filho do inventariando, é herdeiro legitimário e a sua legítima será afectada pelo excesso da disposição. Esse interesse em agir não significa, contudo, que ele possa instaurar a acção que entender para discutir essa inoficiosidade.
O seu interesse tem de ser exercido através da acção que a lei processual prevê para esse fim, não por só ter interesse em agir dessa forma, mas porque no nosso sistema jurídico-processual civil vigora o princípio da legalidade das formas de processo (artigo 546.º do Código de Processo Civil), nos termos do qual o autor não goza do direito potestativo de escolher a forma de processo para formular a sua pretensão e é obrigado a recorrer à forma de processo que a lei prevê para esse caso.
O Código de Processo Civil consagra no título XVI a forma do processo especial de inventário (artigos 1082.º e seguintes). Entre as suas disposições conta-se a secção V intitulada precisamente «incidente de inoficiosidade».
O artigo 1118.º estabelece a este propósito que qualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do donatário ou legatário visado, até à abertura das licitações, a redução das doações ou legados que considere viciadas por inoficiosidade. Nesse requerimento, o interessado deve fundamentar a sua pretensão e especificar os valores dos bens da herança e dos bens doados ou legados, que justificam a redução pretendida. De seguida, são ouvidos, os restantes herdeiros legitimários e o donatário ou legatário requerido. Para apreciar o incidente o juiz pode proceder, mesmo oficiosamente, à avaliação dos bens, se a mesma já não tiver sido realizada no processo. A norma termina dizendo que a decisão incide sobre a existência ou inexistência de inoficiosidade e sobre a restituição dos bens, no todo ou em parte, ao património hereditário.
O subsequente artigo 1119.º estabelece sobre as consequências da inoficiosidade, prescrevendo que quando se reconheça que a doação ou o legado são inoficiosos, o requerido é condenado a repor, em substância, a parte que afectar a legítima, embora possa escolher, de entre os bens doados ou legados, os necessários para preencher o valor que tenha direito a receber. A seguir a norma dispõe sobre os casos em que há lugar a licitação e quem pode intervir na mesma para definir o que há a restituir e como se faz a restituição.
Resulta daqui, portanto, que o processo de inventário também tem por finalidade especial a verificação da inoficiosidade de legados ou doações realizados pelo inventariado, possuindo regras processuais a definir o tempo, o modo e as consequências da decisão desta questão, as quais, aliás, contendem e condicionam os actos processuais a praticar no processo de inventário após a verificação da inoficiosidade.
Acresce que nos termos do artigo 91.º do Código de Processo Civil o tribunal competente para a acção é igualmente competente para conhecer de todos os incidentes que nela se levantem e que contendam com o direito objecto da acção.
Por fim, nos termos do artigo 1092.º do mesmo diploma, se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a definição de direitos de interessados directos na partilha o juiz só pode remeter as partes para os meios comuns caso a natureza das questões ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente justificar que elas não devam ser incidentalmente decididas. Por outras palavras, a remessa das partes para os meios comuns só ocorre se tal for decido pelo juiz do processo de inventário depois de a questão ter sido suscitada, decisão que depende de um circunstancialismo específico relacionado com a complexidade.
Daqui resulta, pois, que estando pendente processo de inventário a questão da inoficiosidade de legado ou doação feita pelo inventariado tem de ser suscitada no processo de inventário ao abrigo do disposto no artigo 1118.º do Código de Processo Civil e, em princípio, aí terá de ser decidida, sem prejuízo dos casos em que, por decisão judicial, os interessados sejam remetidos para os meios comuns.
Ao escolher a forma do processo comum para suscitar a decisão judicial desta questão à margem do processo de inventário pendente, o autor incorreu em erro na forma de processo e, em simultâneo, criou uma situação de litispendência, uma vez que já se encontra pendente processo (o processo de inventário) em cuja finalidade está compreendida a suscitação e decisão da questão aqui formulada de modo autónomo.
Refira-se que não se coloca a hipótese de suspender a instância porque o vício é impeditivo da instauração da acção e a suspensão da instância por causa prejudicial pressupõe que ambas as causas sejam admissíveis e que haja entre elas apenas uma relação de dependência. Acresce que a questão não é prejudicial do inventário, é antes uma das questões essenciais do inventário (ainda que de dedução eventual: ela só se coloca se os interessados a suscitarem) na medida em que contende com a definição dos direitos dos herdeiros e esse é um dos passos necessários à justa partilha dos bens.
No sentido que aqui se professa, cf. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro, in O Novo Regime dos Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pág. 123, e Acórdão da Relação de Guimarães de 17-02-2022, proc. n.º 1242/20.8T8VCT.G1, in www.dgsi.pt.
Em conclusão, a decisão recorrida de absolver a ré da instância é correcta, ainda que por fundamento diferente, e deve ser confirmada. Improcede o recurso."
[MTS]