Execução para entrega de coisa certa;
habitação principal do executado
I) A efetivação da entrega da casa que constitua habitação principal do executado deverá, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento, de ser precedida de comunicação antecipada do agente de execução à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes, de harmonia com o disposto no n.º 6 do artigo 861.º do CPC.
II) A referida comunicação do agente de execução deverá ocorrer com uma antecedência de, pelo menos, 10 dias em relação à data designada para a efetivação da entrega.
III) Não tendo ainda sido concretizada a venda, não existe motivo para que se diligencie, desde já, por tal comunicação.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Na decisão recorrida proferida em 22-05-2024 sobre a pretensão expressa pelo executado em 02-05-2024, o Tribunal recorrido – para além de outras considerações – analisou o pedido de diferimento da desocupação, concluindo que o incidente correspondente é dividido em duas fases: uma fase de suspensão liminar pelo agente de execução e uma fase de apreciação para confirmação pelo juiz da causa, a ser requerida pelo executado ou terceiro detentor da coisa, no prazo de dez dias contados da correspondente “advertência” do agente de execução, concluindo que, no caso, a venda do imóvel penhorado nem sequer foi ainda concretizada, pelo que é o pedido de diferimento é prematuro, não se integrando os fundamentos invocados na previsão do n.º 3 do art.º 863.º do Código de Processo Civil “únicos que, no caso, poderiam justificar a suspensão das diligências executórias”.
Por tal motivo, o Tribunal indeferiu a pretensão do executado.
Não se conformando com tal decisão, o recorrente entende que caberia ao Sr. Agente de Execução realizar diligências juntos das entidades assistenciais para se conseguir obter uma solução de alojamento para o Executado e para o seu agregado familiar, o que não foi feito até à presente data e, uma vez verificadas dificuldades de realojamento, dever-se-ia suspender a concreta diligência de entrega coerciva do imóvel por um período, que se quer naturalmente curto, até que as entidades competentes possam articular entre si e consigam uma solução habitacional.
Vejamos:
No âmbito da execução para entrega de coisa certa, o artigo 861.º do CPC trata da matéria atinente à “entrega da coisa”, dispondo nos seguintes termos:
“1 - À efetivação da entrega da coisa são subsidiariamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições referentes à realização da penhora, procedendo-se às buscas e outras diligências necessárias, se o executado não fizer voluntariamente a entrega; a entrega pode ter por objeto bem do Estado ou de outra pessoa coletiva referida no n.º 1 do artigo 737.º.2 - Tratando-se de coisas móveis a determinar por conta, peso ou medida, o agente de execução manda fazer, na sua presença, as operações indispensáveis e entrega ao exequente a quantidade devida.3 - Tratando-se de imóveis, o agente de execução investe o exequente na posse, entregando-lhe os documentos e as chaves, se os houver, e notifica o executado, os arrendatários e quaisquer detentores para que respeitem e reconheçam o direito do exequente.4 - Pertencendo a coisa em compropriedade a outros interessados, o exequente é investido na posse da sua quota-parte.5 - Efetuada a entrega da coisa, se a decisão que a decretou for revogada ou se, por qualquer outro motivo, o anterior possuidor recuperar o direito a ela, pode requerer que se proceda à respetiva restituição.6 - Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes”.
Conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-01-2015 (Pº 161/06.5TCSNT.L1-6, rel. MARIA DE DEUS CORREIA), “[d]a leitura conjugada dos artigos 861.º n.º 6 e 863.º n.º 3, resulta que existem duas situações distintas:
(i) aquela prevista nos n.ºs 3 a 5 do art.º 863.º em que “por atestado médico se mostre que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda”. Nesse caso, as diligências executórias são suspensas, durante prazo que o atestado médico indicar necessário.
(ii) aquela em que “se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado”.
- Na primeira situação, obviamente, não pode estar em questão a dificuldade ou não de realojamento. O que está em causa é o perigo para a vida de uma pessoa no acto de remoção da mesma da casa onde se encontra. Por conseguinte, haja ou não dificuldade no realojamento, a diligência suspende-se sempre que se mostre que a diligência põe em risco de vida a pessoa.
- Na segunda situação, a lei não diz que a diligência se suspende, como no caso previsto no art.º 863.º n.º 3. Neste caso em que se suscitem sérias dificuldades de realojamento, “o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes”.
- A antecipação refere-se à data em que esteja designada a diligência de execução da entrega do imóvel. Logo, tal comunicação destina-se a garantir que, na data designada, a diligência se executará, porque, entretanto, é suposto que as entidades notificadas tiveram tempo de analisar e providenciar pela solução do problema do alojamento do executado”.
Pressuposto para o acionamento da comunicação antecipada a que se reporta o n.º 6 do artigo 861.º do CPC é, para além da circunstância de se dever tratar da casa de habitação principal do executado, a de que se prevejam sérias dificuldades no realojamento do executado.
Anotando o n.º 6 deste preceito legal, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2022, pp. 294-295) que, “[s]e o imóvel a entregar constituir a casa de habitação principal do executado, pode ocorrer a suspensão das diligências executivas, verificados os requisitos enunciados no n.º 3 do art.º 863.º. Suscitando-se sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução, antecipadamente e em tempo útil, deve comunicar o facto à Câmara Municipal e às entidades assistenciais competentes (n.º 6). A jurisprudência vem decidindo que a comunicação em causa não determina a suspensão das diligências executivas para entrega do imóvel, entendendo que, na data designada, a diligência se executará, no pressuposto de que as entidades notificadas tiveram oportunidade para analisar a situação e providenciar pela solução do problema do alojamento do executado. Mesmo que tal não tenha ocorrido, a execução da entrega de imóvel não se suspende, uma vez que a lei não o afirma, ao contrário do caso previsto no n.º 3 do art.º 863.º, sendo que o legislador terá ponderado que não seria justo onerar o exequente com a inércia ou a incapacidade dos organismos oficiais, cometendo-lhe uma tutela de facto que legalmente não lhe caberia, com a inerente e injustificada compressão dos seus direitos (…)”.
Compreende-se, pois, que haja uma relação entre a necessidade de realojamento e os procedimentos de entrega da casa que constitua habitação do executado.
Note-se que, o direito à habitação constitui um direito a prestações positivas do Estado e de outros entes públicos territoriais, os quais são os seus sujeitos passivos, não sendo exercitável em via direta contra tais entidades e, muito menos, contra particulares. Sob a reserva do possível, cabe ao Estado desenvolver políticas que fomentem a habitação, designadamente para os mais carenciados.
“Em caso de despejo de indivíduos ou famílias vulneráveis, cabe ao Município, ao ISS, IP e ao IHRU, IP o acompanhamento da situação, cabendo a tais entidades diligenciar pela procura de soluções de realojamento (Artigo 13º da Lei nº 83/2019, de 3.9 e Artigo 4º do Decreto-lei nº 89/2021, de 3.11).
A execução do despejo deve ser precedida da comunicação pelo agente de execução ao Município em causa, ao IHRU, IP e ao ISS, IP da existência de dificuldades do realojamento do executado casos estas tenham sido reconhecidas ou invocadas no processo (…). Essa comunicação do agente de execução deverá ocorrer com uma antecedência de, pelo menos, 10 dias em relação à data designada para a execução do despejo” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2024, Pº 29703/22.7T8LSB-A.L1-7, rel. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA).
De todo o modo, conforme também se enfatiza neste aresto, a realização da comunicação do agente de execução “não significa que a execução do despejo só seja admissível mediante asseguramento prévio do realojamento do executado. Não cabe ao Tribunal assegurar realojamento ao executado, mas apenas comunicar a necessidade do mesmo ao Município, ao ISS, IP e ao IHRU, IP, cabendo a estes diligenciar pelo suprimento de tal necessidade. O Tribunal não supre necessidades de habitação, limitando-se a dirimir litígios, no caso entre privados” (pronunciando-se no mesmo sentido, vd. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16-01-2024, Pº 587/19.4T8VFX-E.L1-1, rel. FÁTIMA REIS SILVA).
Assim, deverá o agente de execução comunicar antecipadamente (antes da diligência de entrega efetiva) as necessidades de realojamento do executado – caso se entenda reconhecer existirem sérias dificuldades de tal realojamento - à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.
Se assim é, parece claro que não tendo ainda tido lugar a concretização da venda, não se mostram verificados os pressupostos que determinarão – concretizada que seja aquela – a entrega da casa, com a consequente necessidade de realojamento.
Verifica-se, pois, que bem decidiu o Tribunal recorrido, ao reconhecer que não se justifica o deferimento do requerido, desde logo, por prematuridade."
[MTS]
[MTS]