Tendo sido intentada impugnação da decisão da matéria de facto, quer pelos AA./Recorrentes, quer pelo 1.º R./Apelante, de acordo com o exposto nas respetivas conclusões de apelação, vejamos, desde logo, se tal impugnação é legalmente admissível e, caso o seja, se deve proceder, perante o acervo probatório implicado, ou se, antes de mais, terá de ser anulada, oficiosamente, a sentença recorrida, com repetição parcial do julgamento.
Quanto ao recurso dos AA.
Pretendem estes Recorrentes – insurgindo-se apenas, como os mesmos referem, contra a decisão absolutória quanto à 1.ª R. mulher, à 2.ª R. (subempreiteiro) e ao 3.º R. (como liquidatário) – que se julgue agora como provado [cfr. conclusão 6.ª] o que consta da al.ª g) da matéria dada como não provada “O 1.º Réu contraiu e assumiu o pagamento da dívida aos AA no exercício da actividade que desenvolvia como comerciante (construtor civil)”. [...]
Da justificação/motivação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância pode retirar-se, com pertinência para a questão de facto em apreço:
“Já quanto à realidade reproduzida em N a sua prova assenta integralmente no teor do documento autenticado denominado de «Reconhecimento de Obrigação», dele resultando as declarações que são atribuídas ao 1.º Réu e que nessa alínea se deixaram transcritas, sendo certo que o mesmo não lhe assaca qualquer falsidade.
Ao invés, justifica-se que tenha resultado como facto não provado em b. – de que na declaração aludida em N. o 1.º Réu outorgou na sua qualidade de sócio gerente da 2.ª Ré Sociedade “A..., Lda. – com a circunstância de não se poder extrair do conteúdo dessa declaração, avaliando também o respectivo termo de autenticação do documento, que o 1.º Réu se tenha vinculado também na qualidade de legal representante da 2.ª Ré, tratando-se ao invés de uma declaração pessoal, que acresceria à eventual responsabilidade contratual ou legal da sociedade subempreiteira, conclusão essa que é a consentânea com a expressão contida nesse documento «de que ao assumir pessoalmente as obrigações infra discriminadas, não desonerava a responsabilidade da subempreiteira». (…)”.
Apreciando, dir-se-á que é, assim, de ter por incontroverso que o 1.º R. marido reconheceu, pessoalmente, perante os AA., a (sua) obrigação de eliminar os defeitos de construção, não desonerando a responsabilidade da subempreiteira, mediante o dito documento escrito denominado «Reconhecimento de obrigação», comprometendo-se a realizar os respetivos trabalhos (al.ª N da matéria provada).
Perscrutado o convocado documento n.º 10 junto com a petição inicial – cfr. fls. 105 e segs. do processo físico –, retira-se, claramente, que o 1.º R. marido afirmou que «é sócio gerente da sociedade “A..., Lda.”, a qual foi subempreiteira da Obra», declarando (ele, por este meio) que «assume pelo presente documento, pessoalmente as obrigações infra discriminadas, não desonerando contudo a responsabilidade da subempreiteira» (destaques aditados).
Ou seja – esta é também a nossa interpretação acerca do teor do documento, vista a univocidade do seu texto –, o que resulta manifesto é a contraposição entre as duas vestes do declarante: a de sócio gerente da sociedade, por um lado, e a pessoal, por outro.
Ora, assim sendo, o mesmo R./declarante o que disse foi que, embora também seja “sócio gerente da sociedade” (tenha essa qualidade), intervém a título pessoal, assumindo, pessoalmente, as obrigações em causa (não contendendo, pois, com a responsabilidade da subempreiteira, que não fica desonerada).
Por isso, tem de entender-se que aquele R./declarante interveio a título estritamente pessoal, e não em representação da sociedade, a qual não ficou, de modo algum, vinculada pelo ali declarado.
Donde que sempre houvesse, nitidamente, de manter-se a resposta negativa ao ponto da impugnada al.ª b): “não provado” que “na declaração aludida em N. aquele R. outorgou na sua qualidade de sócio gerente da 2.ª Ré Sociedade “A..., Lda.”.
Argumentação esta a apontar também, prima facie, para a manutenção da resposta negativa ao ponto da questionada al.ª g), por parecer não se provar que o mesmo R. assumiu o pagamento da dívida no exercício da atividade que desenvolvesse como comerciante (construtor civil).
Afastada, como visto, a sua intervenção na veste de sócio gerente – representante – da dita R. sociedade (por se ter vinculado a título estritamente pessoal), teremos de nos abstrair da sua atividade no âmbito societário, restando a aludida esfera estritamente pessoal.
Por isso, seria necessário, salvo sempre o devido respeito, provar – ónus a cargo dos AA. (art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.) – que o mesmo R./declarante exercia pessoalmente (fora do quadro da sociedade) a atividade de construtor civil, a ela se dedicando, como invocado no recurso dos demandantes, não bastando que o mesmo, no caso, se tenha obrigado, sem mais, à realização de uma série de trabalhos de construção civil, o que poderia levar a cabo através de outrem (terceiro), e não necessariamente por ser (pessoalmente) um construtor civil.
Ora, os impugnantes não são totalmente claros em tal desiderato probatório, antes se afastando, até certo ponto, para o âmbito de considerações de direito material/substantivo, que aqui não colhem utilidade (como ter a obrigação “a natureza de ato de comércio - artigo 2º do Código Comercial” e não haver “a moratória do artigo do 1696.º, n.º 1 do Código Civil”, em conjugação com o “artigo 10.º do Código Comercial”). [...]
Todavia, os AA./Recorrentes invocam ainda os depoimentos de parte dos 1.ºs RR., mormente a “assentada da Ré mulher DD” (cfr. conclusão 14.ª), mas também as “assentadas constantes da ata de audiência de discussão e julgamento do dia 20 de Setembro de 2023, de CC” (conclusão 20.ª).
E, nessa senda, é certo que a 1.ª R. mulher, em sede de depoimento de parte (cfr. ata de sessão de audiência final de 20/09/2023, a fls. 691 e segs. do processo físico), declarou que «há mais de 20 anos que o seu marido se dedica à atividade da construção civil e que durante esse período têm vivido do dinheiro que o mesmo gera nessa atividade e traz para casa» (cfr. declarações confessórias exaradas em ata a fls. 692 v.º, com sublinhado aditado).
Todavia, ponderando a impugnada resposta negativa do Tribunal a quo, ficou por esclarecer se aquela R. se referia – enquanto declarante/depoente/confitente – a uma atividade que o seu marido (co-R.) desenvolvesse pessoalmente ou, diversamente, (apenas) no âmbito da sociedade de que era sócio gerente, não se encontrando, por outro lado, semelhante confissão, nem qualquer esclarecimento a respeito, na assentada quanto ao depoimento de parte do 1.º R. marido (cfr. fls. 691 v.º a 692 v.º), pelo que sempre permanece, salvo o devido respeito, alguma margem de dúvida sobre a matéria (sentido e alcance do assim declarado/confessado, sabido que o simples leigo em matérias jurídico-societárias nem sempre terá facilidade em distinguir a intervenção de um sócio gerente no âmbito societário e fora dele).
Ou seja, a 1.ª R. mulher, reconhecendo/confessando que o seu marido, desde há mais de 20 anos, se vem dedicando à atividade lucrativa da construção civil e que, durante esse período, ambos têm vivido do dinheiro obtido pelo mesmo nessa atividade, confissão essa a atender nos termos do disposto nos art.ºs 352.º, 353.º, 355.º, 356.º, 357.º, n.º 1, e 358.º, n.º 1, todos do CCiv., bem como art.ºs 452.º e 463.º, estes do NCPCiv., pelo que deve, desde logo, a declaração confessória, por si, ser inequívoca, não deixou, todavia, esclarecida a dúvida aludida – com inerente redução a escrito, pela forma confessória legal –, que tem de ser colocada, esclarecimento que também não logra obter-se perante o teor do depoimento de parte do 1.º R., tal como, outrossim, reduzido a escrito, como importa para efeitos confessórios (aqueles que colhem força probatória plena).
Urgirá, pois, saber, para boa apreciação da impugnação recursiva da decisão de facto, nesta vertente, se aquela R. (confitente) se referia a uma atividade que o seu marido desenvolvesse pessoalmente [por si e para si, fora de qualquer quadro societário, tendo em conta também o teor das al.ªs EE a GG dos factos julgados provados ([---]) e, por outro lado, o disposto no art.º 1691.º, n.º 1, al.ª d), do CCiv.] ou, diversamente, no âmbito, apenas, da aludida sociedade de que era sócio gerente – ou de outras a que estivesse ligado –, bem como, perante essa clarificação confessória, apurar se o 1.º R. marido também apresenta (adere a) tal confissão – uma vez que seja com ela confrontado (mesmo que oficiosamente, como permite o art.º 452.º, n.º 1, do NCPCiv.), tudo pela necessária forma legal (redução a escrito a que alude o art.º 463.º, n.ºs 1 a 3, da lei adjetiva).
Tudo isto, assim, com vista a apurar, em sede de produção de prova por confissão de parte, vista a sua força probatória legal, se (i) o 1.º R. marido se vem dedicando, ou não, pessoalmente (por si e para si, fora do âmbito societário), à atividade da construção civil – já que nesse âmbito se vinculou “a efetuar a reparação dos defeitos de construção” (cfr. doc. de fls. 105 e 106 do processo físico), embora podendo socorrer-se de terceiro para o fazer – e (ii) nesse âmbito pessoal (de construtor civil) assumiu o pagamento aos AA..
Apuramento esse – em moldes inequívocos – que se nos afigura imprescindível para cabal resposta quanto ao controverso ponto da dita al.ª g) do quadro dado como não provado e adequada sindicância recursiva dessa esfera da impugnação da decisão de facto, com relevância, já em matéria de direito, perante o normativo invocado da al.ª d) do n.º 1 do art.º 1691.º do CCiv. ([---])
Em contrário, dir-se-ia – como o fez a 1.ª instância, na sua, aliás, exaustiva justificação da convicção – que:
«O facto exposto em DD está provado por documento autêntico junto a fls. 197 dos autos, assentando a materialidade constante do ponto EE nas informações comerciais das sociedades E..., Lda. e F..., Unipessoal, Lda., juntas a fls. 345 verso a 347, conjugadas com as declarações de rendimentos apresentadas pelos 1.ºs RR, constantes de fls. 198 verso a 208 e 327 a 334, sendo certo que a análise dessa documentação permite concluir que os rendimentos declarados do casal são provenientes de trabalho dependente, correspondentes aos rendimentos que lhe são pagos pelas sociedades comerciais de que é sócio e/ou sócio gerente; tendo essa documentação sido explicada pelo contabilista RR, o qual prestou um depoimento totalmente isento, assim se justificando porque razão demos como provados os factos descritos em FF e GG, tendo ainda presente que de acordo com o documento junto a fls. 198, o 1.º Réu deixou de exercer actividade empresarial em 30.09.1996 (conspecto probatório que contrariou a factualidade alegada pelos AA e que justifica que se tenha dado como não provado o que consta em g.), dado que, pese embora a própria 1.ª Ré mulher, tenha afirmado que há mais de 20 anos que o seu marido se dedica à atividade da construção civil e que durante esse período têm vivido do dinheiro que o mesmo gera nessa atividade e que traz para casa, uma vez que trabalha nas lides domésticas, declarando ainda que que embora tenha havido um processo para separação judicial de pessoas e bens, limitaram-se à separação dos bens patrimoniais, os quais foram vendidos, mantendo-se a viver com o Réu CC, por não ter havido de facto separação de pessoas, o seu relato terá, naturalmente, de ser interpretado e conformado com o facto inequívoco de que essa actividade de construção civil é exercida através de uma ou várias sociedades, com personalidade jurídica distinta dos seus sócios.».
Porém, desde logo, deve notar-se que, em teoria/hipótese, é possível exercer atividade comercial não declarada, com rendimentos também não declarados, termos em que não será de afastar liminarmente esta hipótese (a considerar apenas no âmbito probatório), razão pela qual os documentos aludidos pelo Tribunal recorrido, na sua conjugação com a prova testemunhal (de que a 1.ª instância também se socorreu), não afastam totalmente a possibilidade de exercício não declarado dessa atividade, ainda que de âmbito/natureza comercial.
Depois, deve referir-se que, a haver dúvidas quanto ao sentido e alcance de determinada prova por confissão judicial escrita (resultante, pois, de depoimento de parte, tal como prestado perante o Tribunal, com decorrente força probatória taxada), a incerteza sobre a interpretação das declarações confessórias assim prestadas não deve ser resolvida pela imediata via interpretativa, se ainda é possível obter os necessários esclarecimentos do próprio declarante/depoente, mormente tratando-se de conteúdo confessório essencial para a sorte dos autos (como na hipótese de poder influir na condenação ou absolvição de um dos demandados, no caso, a 1.ª R. mulher).
Nesse caso, as dúvidas terão de ser esclarecidas, logicamente, pelo próprio confitente – é este que terá de esclarecer o alcance da sua confissão (dissipando a esfera de incerteza/imprecisão), por ser reportada, como tem de ocorrer, a factos pessoais ou de que o declarante tenha, ou deva ter, um conhecimento pessoal (art.º 454.º, n.º 1, do NCPCiv.) –, para o que terá de ser ouvido como depoente de parte (com juramento e decorrente dever de verdade, com precisão e clareza, nos termos dos art.ºs 459.º a 461.º do NCPCiv.), segundo, assim, as formalidades legais previstas para a produção do respetivo meio de prova (art.ºs 452.º e segs. do mesmo Cód.), não sendo por acaso que, na ordem de produção das provas em audiência final, se começa, logo a seguir à tentativa de conciliação das partes (se permitida), pela prestação dos depoimentos de parte [cfr. art.º 604.º, n.º 3, al.ª a), do NCPCiv., e ata de fls. 691 e segs. do processo físico], só depois, por regra, se passando à produção de outras provas. [...]
Tal superação, assim sendo, só pode ocorrer pela via de esclarecimentos (depoimento complementar) do próprio confitente, e não por outrem em seu lugar.
E, obtida essa prova qualificada – com força probatória cabal –, o facto fica, obviamente, provado em plenitude, não havendo lugar a outras provas a respeito, assim se compreendendo, desde logo, a proibição de prova testemunhal (como referido no art.º 393.º, n.º 2, do CCiv., não é admitida prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado, seja por documento, seja por outro meio com força probatória plena).
Em suma, quanto à dita al.ª g) dos factos dados como não provados, não está esta Relação em condições de decidir a impugnação.
Ou seja, o Tribunal ad quem não se encontra, in casu, na posse de todos os elementos que permitam – com a necessária segurança – a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, visto o âmbito e contornos da impugnação dos AA./Recorrentes, tornando necessário, em apreciação oficiosa, anular a decisão proferida pela 1.ª instância, ao abrigo do disposto no art.º 662.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv., com repetição parcial do julgamento, quanto à prova por depoimento de parte dos 1.ºs RR., a começar pela 1.ª R. mulher, no que concerne à matéria da al.ª g) mencionada, de molde a serem esclarecidas as dúvidas/incertezas aludidas, sem prejuízo da possibilidade de apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições."
[MTS]