"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/05/2025

Jurisprudência 2024 (165)


Acção popular;
competência material


1. O sumário de RP 4/7/2024 (723/23.6T8AVR.P1) é o seguinte:

I - Numa ação instaurada por particulares contra uma Junta de Freguesia em que os autores pretendem que se declare a nulidade da escritura pública de justificação notarial como meio de prevenir violações de bens pertencentes ao domínio público do Estado, estamos perante um litígio cujo objecto é a prevenção e cessação de alegadas violações disposições normativas de ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida e bens do Estado, pretensamente cometidas por entidades públicas.

II - A revelar que a presente ação preenche a previsão da al. K) do nº1, do art 4º do ETAF e para apreciar a pretensão dos AA. são materialmente competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A questão submetida à decisão desta Relação consiste em determinar se a competência em razão da matéria para julgar a presente acção [popular] cabe aos tribunais administrativos ou aos judiciais.

A competência material do tribunal, sendo um pressuposto processual, deve ser aferida em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, englobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se como base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor.

Estabelecendo a al. a) do art. 96.º do Cód. Proc. Civil que a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, que é uma exceção dilatória insuprível e de conhecimento oficioso, nos termos dos arts. 97.º, 577.º, al. a), e 576.º daquele Código, determinando, assim e de acordo com o estabelecido no art. 99.º, n.º 1, ainda do mesmo Código, a absolvição do Réu da instância.

É sabido que os tribunais judiciais exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, dispondo, por isso, de uma competência residual (cf. artigos 209.º e 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, 40.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário e 64.º do Código de Processo Civil).

Para sabermos se a acção é da competência dos tribunais judiciais necessitamos por isso de a excluir do âmbito de competência material de outra categoria de tribunais.

Uma dessas categorias previstas na Constituição da República Portuguesa é a dos tribunais administrativos, aos quais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212.º, n.º 3CRP).

Em conformidade com essa previsão constitucional, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, estabelece no seu artigo 1.º, n.º 1, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.

Para Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., páginas 566 e 567), «estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (nº 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal». Ainda segundo estes autores «pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações (...) que possam ser reconduzidas à actividade de direito público, cuja característica essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado».

Também Vieira de Andrade, in Justiça Administrativa, 13ª edição, página 49, assinala que «o entendimento do que seja a relação jurídica administrativa deve partir do conceito constitucional, no “sentido estrito tradicional de «relação jurídica de direito administrativo», com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração”; relação em que “um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido” e onde a Administração “é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”.

Após descrição sintetizada dos fundamentos alegados na petição de pedir para sustentar as pretensões formuladas, a decisão recorrida atribui a competência em razão da matéria aos tribunais administrativos com fundamento na alínea K) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que estabelece:

“compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas.”

É incontroverso que para aferir a competência material do tribunal devemos estribar-nos no pedido formulado pelo autor e nos respectivos fundamentos, ou seja, devemos determinar essa competência tendo em mente que o que vai ser julgado na acção é a concreta pretensão deduzida pelo autor e os fundamentos nos quais ela se apoia. Por isso, importa ver o modo como vem estruturada a acção, a factualidade relevante articulada na petição inicial, a pretensão jurídica apresentada.

Posto isto, o n.º 3 do art. 212.º da Constituição da República Portuguesa estabelece como critério atributivo de competência aos tribunais administrativos e fiscais a natureza administrativa da relação jurídica controvertida.

Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, tal como referem os Prof. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, deve ter-se presente que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal” (Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p. 566 e 567).

Deste modo, é a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado no articulado inicial da ação, nomeadamente a partir da causa de pedir e do pedido, que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para julgar essa mesma ação.

Mas também é de exigir que um dos sujeitos da relação jurídica aja no exercício de poderes jurídico-administrativos ou a atividade por ele exercida esteja regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, dado que só assim estaremos em face de uma relação jurídica administrativa (cf. arts. 2.º, n.º 1, e 148.º do CPA), não sendo critério atributivo de competência material entre ordens de jurisdição aquele baseado unicamente na natureza do corpo normativo aplicável não se encontra estabelecido nem no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ( Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro), nem na Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.

.Feitas estas considerações, como bem assinala o julgador a quo, os Autores alegam que a ré Junta de Freguesia ... praticou atos de gestão pública ( tenta-se aprovar um Loteamento com 25 lotes, em nome da Ré, em terrenos pertencentes ao Estado, para assim, ser possível edificar um aglomerado habitacional composto por 25 lotes num terreno valorizado pela Ré em € 500,00 (quinhentos euros), violadores de disposições de natureza administrativa (PDM de Ovar, Decreto nº 15439 de 5 de maio de 1928, o Decreto de 9 de agosto de 1922 e o regime florestal criado pelo governo em 24/12/1901).

O que revela que os autores fundamentam as pretensões formuladas nas als a) a e) com a alegação de factos relativos a uma relação de natureza administrativa, quer quanto sujeitos, quer quanto ao objeto do processo.

Mais.

No caso sub judice, como assinala o tribunal a quo, o pedido mais significativo do ponto de vista da alteração sobre a ordem jurídica não pode deixar de ser o pedido de reconhecimento de que o Estado Português é o legítimo possuidor e proprietário dos prédios em causa (curiosamente, formulado em último lugar), dado que é esta a providência que torna efetiva a pretensão dos Autores de prevenção de violações do Perímetro Florestal das Dunas de Ovar, pois aqueles prédios não pertencem ao domínio privado da Ré Junta de Freguesia ..., mas antes ao domínio público do Estado.

E na hipótese de se demonstrar que os prédios em causa pertencem ao domínio público, naturalmente, que tais prédios não podem ser objeto de loteamentos, em virtude da sua principal utilidade pública.

E como resulta da petição inicial os autores não se insurgem apenas contra a escritura de justificação, mas também contra o loteamento em curso nos prédios visados e também atual PDM do Município [....]

E o alegado loteamento dos prédios que alegadamente pertencem ao Estado revela estarmos perante uma relação jurídica disciplinada por normas de direito administrativo.

A nulidade da escritura pública de justificação é visada como meio de atingir o fim dos autores, isto é, prevenir violações do Perímetro Florestal das Dunas de Ovar, pois aqueles prédios não pertencem ao domínio privado da Ré Junta de Freguesia ..., mas antes ao domínio público do Estado.

A providência requerida pelos Autores não respeita à propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas, cuja competência pertence inequivocamente aos tribunais comuns, nos termos do art. 17.º, n.º 7, da Lei n.º 54/2005, de 15.11, na redação dada pela Lei n.º 34/2014, de 19/06.

Assim, a presente ação coloca-nos perante um litígio cujo objecto é a prevenção e cessação de alegadas violações disposições normativas de ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida e bens do Estado, pretensamente cometidas por entidades públicas.

A revelar que a presente ação preenche a previsão da al. K) do nº1, do art 4º do ETAF que estabelece:

“compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas.”

Em consequência do exposto, para apreciar a pretensão dos AA. são materialmente competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais."

[MTS]