"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/05/2025

Jurisprudência 2024 (159)


Processo de inventário;
remessa para os meios comuns


1. O sumário de RC 10/9/2024 (105/20.1T8CDR-A.C1) é o seguinte:

I – Em resultado do novo modelo procedimental que lhe foi consagrado na lei processual, e em razão do disposto no art.º 549º n.º 1 do CPC, é aplicável ao processo de inventário o efeito cominatório semipleno previsto para a processo comum de declaração, designadamente quando, notificado nos termos e para os efeitos do art.º 1105º n.º 1, o cabeça-de-casal não responde às reclamações contra a relação de bens deduzidas pelos demais interessados.

II – No inventário, não sendo caso do previsto no art.º 1092, nº 1, b), do Código de Processo Civil, as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns quando, nos termos do art.º 1093, nº 1, da referida lei, a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No seu despacho de 31.5.2023, escreve a julgadora da 1.ª instância:

“Conforme despacho deste Tribunal de 19-04-2023 foi ordenada, a pedido dos interessados, a suspensão da instância pelo prazo de 30 dias ao abrigo do art. 269.º, al. c) e 272º n.º 4 do Código de Processo Civil).

Transcorrido integralmente o prazo concedido, os interessados nada disseram.

Nestes termos, declara-se cessada a suspensão da instância (art. 276.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil).

Notifique.

*

E nestes termos notifique-se os interessados para requererem o que tiverem por pertinente, desde logo, quanto à ulterior marcha da lide, pois que o reclamante apresenta agora a qualidade de cabeça-de-casal, inexistindo sequer resposta a essa reclamação nos termos e para os efeitos do art. 1105.º, n.º 6 do Código de Processo Civil pela interessada DD com o inerente efeito cominatório nos termos da conjugação dos arts. 549.º, n.º 1 e 574.º do Código de Processo Civil sem embargo das exclusões legais.

Adverte-se, na hipótese de nada ser dito e ou requerido, desde já, para a patente no art. 281.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Prazo: 10 dias (art. 149.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Notifique”.

Tem-se entendido que a expressão limites e termos em que julga, constante do art.º 673.º do Código do Processo Civil - correspondente ao actual artigo 621.º-, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ela define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção – neste preciso sentido, por ex., o acórdão do STJ de 12.07.2011, pesquisável em www.dgsi.pt; com efeito, toda e qualquer decisão assenta em concretos pressupostos, quer de facto, quer de direito, sendo o caso julgado referenciado com um âmbito extensivo a certos fundamentos. [...]

Ora, salvo o devido respeito pelo Apelante [CC], quando a 1.ª instância, posteriormente decide que, relativamente à falta de relacionamento dos dinheiros em poder da recorrida e que a mesma se apropriou, "a remessa dos interessados para meios os comuns, prosseguindo os autos de inventário quanto aos demais bens relacionados, nos termos do art.º 1105.º, n.º 1 do Código do processo Civil", não está a violar o caso julgado, eventualmente formado pelo despacho de 31.5.2023, mas antes, fez uma errada interpretação, neste particular, das normas dos artigos 549.º, n.º 1, 574.º, 1105.º e  1093.º.

A 1.ª instância, nesta decisão, mantém o que decidiu no despacho de 31.5.2023, aqui escrevendo:

“Não se prevendo nas normas próprias do inventário qualquer efeito cominatório, por via do disposto no art. 549º, nº 1 do C. P. Civil, há que aplicar ao mesmo as regras próprias do processo civil de declaração que se mostrem compatíveis com o processo de inventário judicial, não se descortinando “qualquer razão plausível ou ponderosa que justifique, para o processo de inventário, o afastamento do efeito cominatório estabelecido no nosso Código para os processos e incidentes em geral, pelo que, por aplicação das regras supletivas, a falta de impugnação determina a aplicação do efeito cominatório semipleno” (v. Ac. Relação de 02/06/22, in www.dgsi.pt) – cfr. neste sentido, Ac. TRG de 23.03.2023, proc. n.º 2203/21.5T8GMR.G1 e Ac. TRG de 23.03.2023, proc. n.º 392/21.8T8VLN.G1, disponíveis in www.dgsi.pt).

Referem a este propósito ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA (Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 572 que “A não ser que a lei disponha de modo diverso, por aplicação supletiva das regras gerais, a falta de oposição determina a aplicação do efeito cominatório semipleno, nos termos da conjugação dos arts. 549º, nº 1 e 574º.

Assim como, regra geral, e sem embargo das exclusões legais (v.g. prova documental necessária), ocorre a admissão dos factos que não tenham sido impugnados por qualquer dos requeridos diretamente interessados na resposta ou antecipadamente”. (no mesmo sentido Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres in O novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, pág. 83).”

Por isso, mais do que uma questão de excepção de caso julgado - que visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior – trata-se de uma questão de acomodar os factos trazidos aos autos pelo interessado reclamante/apelante à interpretação do artigo 1105.º.

Diz-nos tal norma:

1- Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior (Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação (…) Apresentar reclamação à relação de bens), são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.

2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.

3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º.

A resolução, no âmbito do processo de inventário, de questões de natureza incidental obedece a uma tramitação menos solene do que a consagrada para o processo comum e mesmo para certos processos especiais, designadamente no que concerne aos meios probatórios admissíveis – ver os arts. 191.º e 1105.º, n.º 3.

Como escrevem ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES / PAULO PIMENTA / LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA - Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2020, p. 547 (…) A doutrina não deixa de dar exemplos de casos em que não se revela adequada a tramitação incidental no âmbito do processo de inventário. Assim: “quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação, por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. n.º 5 do art.º 1105.º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art.º 1339.º do CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada com a realização de benfeitorias. (…)”

Por isso, o legislador, na sua sapiência, determina no artigo 1093.º, que se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster -se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

Assim, e em regra, sempre que a questão prejudicial respeite apenas a bens que integram o acervo a partilhar é o juiz do processo de inventário quem deve dirimir as questões controvertidas suscitadas em obediência ao art.º 91º - O processo de inventário é hoje uma verdadeira acção, obrigando a que os interessados concentrem os meios de defesa no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão. [...]

Ou seja, a remessa para os meios comuns apenas se justifica quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente, na óptica das garantias de que as partes beneficiam no processo declarativo comum, a sua apreciação e decisão no processo de inventário, atendendo à tramitação simplificada e às limitações probatórias que caracterizam as decisões tomadas ao abrigo do disposto no art.º 1105.º n.º 3 - só em face do resultado das diligências requeridas é possível apreciar a reclamação apresentada à relação de bens ou eventualmente concluir que a matéria de facto a apreciar é demasiado complexa, nos exatos termos previstos no art.º 1093.º , ex vi art.º 1105.º, n.º 3, devendo então o Tribunal abster-se de decidir, remetendo as partes para os meios comuns.

A remessa para os meios comuns pressupõe que dada a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revela inadequada - a diminuição das garantias reflecte-se na impossibilidade de se alcançar uma apreciação e decisão ponderadas em questões que envolvam uma larga indagação factual ou probatória.

Mais, nos termos do artigo 549º, os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum, nomeadamente a norma do artigo 574.º - ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor; consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito”.

De facto, por força da entrada em vigor da Lei nº 117/2019, de 13/09, o processo de inventário judicial passou a estar configurado como uma verdadeira acção declarativa, sendo que a este processo especial são plenamente aplicáveis os princípios gerais do Código, bem como o regime do processo comum de declaração, com as adaptações necessárias.

Por isso, em resultado do novo modelo procedimental que lhe foi consagrado na lei processual, e em razão do disposto no art.º 549º n.º 1, é aplicável ao processo de inventário o efeito cominatório semipleno previsto para a processo comum de declaração, designadamente quando, notificado nos termos e para os efeitos do art.º 1105º n.º 1, o cabeça-de-casal não responde às reclamações contra a relação de bens deduzidas pelos demais interessados. [...]

Dúvidas não há que - não estando afastado por qualquer forma tal efeito nem havendo qualquer razão para o afastar -, se deve aplicar ao inventário o princípio geral que resulta do processo comum, devendo extrair-se da falta de resposta/oposição à reclamação à relação de bens efeito cominatório que, contudo, se reflete apenas ao nível dos factos que se devem considerar admitidos por falta de impugnação - prova de factos por decorrência da confissão ficta -, não sendo automática a procedência da reclamação por via da referida falta de oposição - desde logo porque, como previsto no número 1 do artigo 574º, a falta de impugnação apenas acarreta que se considerem “admitidos por acordo os factos que não forem impugnados” se não “estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito”.

Ora, neste particular, o Apelante CC, interessado e requerente nos autos de inventario por óbito de seus pais AA e BB, e em que é a cabeça de casal DD veio, em cumprimento de despacho de aperfeiçoamento, juntar aos autos 31 documentos, com vista a completar a sua reclamação sobre a relação de bens, no que respeita a montantes em dinheiro, em poder da cabeça de casal. [...]

Como se pode ler, no acórdão desta Relação de Coimbra de 7.5.2024, pesquisável em www.dgsi.pt:

“No inventário, não sendo caso do previsto no art. 1092, nº 1, b), do Código de Processo Civil, as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns quando, nos termos do art. 1093, nº 1, da referida lei, a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.

No caso, admitidos os movimentos bancários, discutido apenas se o dinheiro é economia do casal, transferido, por acordo de pais e filho, para este, para o “esconder”, considerando que a prova se limita aos documentos aceites e aos depoimentos desta família, não se justifica aquela remessa”.

Ou seja, contrariamente ao entendimento da 1.ª instância [...], os factos assentes pela confissão da, à data, cabeça de casal, os documentos juntos pelo reclamante, o processo com o nº 457/14...., do Juízo Central Cível ... – Juiz ..., que por sentença de 25/10/2015, decretou a interdição de AA, e o mais requerido pelo reclamante, permite que se profira decisão final neste incidente relativamente à falta de relacionamento dos dinheiros em poder da recorrida e que a mesma se apropriou, não se mostrando, por isso, fundamento para a remessa para os meios comuns."

[MTS]