"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/05/2025

Jurisprudência 2024 (158)


Inspecção judicial;
realização por deprecada*


1. O sumário de RP 10/9/2024 (80995/23.2YIPRT-A.P1) é o seguinte:

I - Apesar de a reconvenção não poder deixar de ter um valor próprio (art. 583º, nº 2 do CPC), o seu valor não se soma, necessariamente, ao valor do pedido do autor em vista de se determinar o valor da causa – o que releva para a aplicação do nº 2 do art. 299º do CPC é a distinção da utilidade económica do pedido reconvencional em relação ao pedido do autor.

II - O critério a aplicar para apreciar se os pedidos (em via de acção e de reconvenção) são distintos, é da nova utilidade ou valor económico

III - Não ocorre nenhuma diferença de pedidos quando o novo pedido implica uma redução relativamente ao pedido inicial – como acontece quando na acção é pedido o pagamento de preço de contrato e a pretensão formulada a título reconvencional se consubstancia na condenação da reconvinda a rectificar os defeitos que a obra apresente ou a reduzir o respectivo preço.

IV - Estando-se perante transacção comercial entre empresas (art. 2º nº 1 e 3º, a) do DL 62/2013, de 10/05), a dedução de oposição ao procedimento de injunção determina a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se os termos da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, tratando-se de valores não superiores a metade da alçada da Relação (art. 10º, nº nº 4 do DL 62/2013, de 10/05).

V - O regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, aprovado pelo art. 1º do DL 269/98, de 1/09, admitindo a dedução de apenas dois articulados (art. 3º e 4º do referido regime processual), afasta a possibilidade de dedução de reconvenção (a tramitação especial a observar, prevendo tão só dois articulados, é incompatível com a reconvenção, pois esta prevê que a tramitação da causa permita a réplica, para que o reconvindo possa deduzir a defesa que lhe aprouver).

VI - A aplicação da ressalva prevista no nº 3 do art. 266º do CPC exige a verificação de interesses relevantes ou demanda que a apreciação da pretensão suscitada pelo contra-ataque do demandado seja indispensável à justa composição do litígio (art. 37º, nº 2 do CPC).

VII - Podendo a demandada ver reconhecidos, independentemente da reconvenção, o direito à redução do preço e, bem assim, a excepção do não cumprimento (trata-se de matéria que funciona por via de excepção – art. 342º, nº 2 do CC e arts. 571º, nº 2, 572º, c) e 576º, nº 3 do CPC), não se vislumbra interesse relevante na dedução da reconvenção (aqui quanto ao pedido de correcão dos defeitos) que não seja obtido em acção declarativa autónoma, nem a apreciação da pretensão suscitada pelo contra-ataque da demandada se mostra indispensável à justa composição do litígio – a demandada não verá perigar a tutela de qualquer direito, pois que a lei não põe qualquer obstáculo à dedução da defesa que apresentou, além de que nenhum risco o recurso a acção autónoma aporta à demandada na efectivação do seu direito à correcção dos defeitos.

VIII - A realização de inspecção judicial através de deprecada por outro juiz desvirtuaria a sua finalidade e natureza – a percepção directa, pelo juiz da causa, da realidade a julgar – e não seria solução compatível com o princípio da plenitude da assistência do juiz (art. 605º do CPC).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"C. Da admissibilidade da inspecção judicial.

Sendo certo que a lei (art. 490º do CPC) faz depender a sua realização de um juízo de oportunidade (no âmbito de um poder legal discricionário), a sindicabilidade da decisão que rejeite a inspecção judicial é de afirmar quando estiver em questão apurar da verificação dos pressupostos definidos pela lei para a prolação duma tal decisão (isto é, quando estiver em questão apurar se o juiz extravasou o quadro das possibilidades legais de actuação) [Cfr., p. ex., Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 548 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), pp. 347 e 348.] – como acontece no caso em apreciação, em que o requerimento para a sua produção foi indeferido por em razão de o imóvel a inspecionar se situar fora da sua área de jurisdição.

Justificação juridicamente inatacável – e que, diga-se, a apelante não contraria minimamente.

A prova por inspecção, como estabelece o art. 390º do CC, tem por fim a percepção directa dos factos pelo tribunal – trata-se de meio de prova que tem por objecto o exame, realizado pelo juiz, de coisa, móvel ou imóvel, com o fim de permitir, de forma directa e imediata, a percepção do facto sujeito a prova, podendo o juiz fazer uso dos vários sentidos; prova directa porquanto pressupõe o contacto directo e imediato entre o tribunal e o facto sob prova, não existindo uma interposição de pessoa ou de coisa entre aqueles [Rita Gouveia, in Comentário ao Código Civil - Parte Geral, coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 804 e 805.].

A realização de tal meio de prova através de deprecada por outro juiz desvirtuaria a sua finalidade – a percepção directa, pelo juiz da causa, da realidade a julgar – e não seria solução compatível com o princípio da plenitude da assistência do juiz (art. 605º do CPC).

Assim, é de afirmar que a natureza de observação directa da prova por inspecção não permite que esta tenha lugar por deprecada [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), p. 347, citando acórdão da Relação de Coimbra de 10/04/1984, na CJ 1984, Tomo II, p. 52.– e por isso que não se situando o imóvel a inspecionar na área geográfica de jurisdição do tribunal, tem a inspecção requerida de ser indeferida."

*3. [Comentário] A RP decidiu bem a questão relativa à impossibilidade de realização da inspecção judicial através de uma deprecada. A realização da inspecção judicial por deprecada é uma contradição nos termos, dado que o que a inspecção deve proporcionar -- que é o contacto directo do tribunal com o facto probando -- é exactamente o que se perde com a sua realização por deprecada.

Já quanto à inadmissibilidade da dedução da reconvenção nas AECOPs, ter-se-ia preferido uma outra solução que não implicasse o eventual recurso a um outro meio processual por parte da Demandada.

MTS