"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/06/2017

Jurisprudência (645)


Simulação: prova;
prova testemunhal


I. O sumário de STJ 7/2/2017 (3071/13.6TJVNF.G1.S1) é o seguinte:
 
1- Como princípio – regra, a fixação dos factos materiais da causa, baseados na prova livremente apreciada pelo julgador nas instâncias não cabe no âmbito do recurso de revista.

2- O S.T.J. limita-se a aplicar aos factos definitivamente fixados pelo Tribunal recorrido o regime jurídico adequado.

3- São excepções a esta regra a existência de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

4- Em suma, o S.T.J. só pode conhecer do juízo de prova fixado pela Relação quando tenha sido dado por provado um facto sem que tivesse sido produzida a prova que a lei declare indispensável para a demonstração da sua existência ou tiverem sido violadas as normas reguladoras da força de alguns meios de prova.

5- Nesta área o S.T.J. está a sindicar a aplicação de normas jurídicas movendo-se, então, em sede de direito.

6- O n.º 1 do artigo 394.º do Código Civil veda a prova testemunhal para demonstração de convenções que contrariem ou ampliem o conteúdo de documentos autênticos ou particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, independentemente da data dessas convenções.

7- O n.º 2 do mesmo artigo 394.º manda aplicar essa proibição de meio de prova ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado quando invocados pelos simuladores.

8- Muito embora tal tenha sido proposto nos trabalhos preparatórios do Código Civil, a letra da redacção final do preceito não autoriza, ainda que por via indirecta, o recurso à prova testemunhal e consequentemente (artigo 351.º CC) à prova por presunção judicial.

9- Porém, a doutrina e a jurisprudência, inspiradas nos argumentos do Autor da 1.ª proposta (por sua vez seguindo os coevos Códigos Civis Italiano e Francês) e receando a rigidez do preceito, admitem que se utilize prova testemunhal desde que, a montante, surja um “princípio” (ou “começo”) de prova que crie uma convicção que as testemunhas podem sedimentar.

10- Essa tese pode aceitar-se com três condições: o princípio de prova consistir num documento, com força e credibilidade; o documento não ser usado como facto – base de presunção judicial; reconhecer-se que se trata de uma laboração da doutrina e da jurisprudência oportunamente arredada do “jure constituto” e, em consequência, a ser tida em consonância com os artigos 9.º e 10.º do Código Civil.

11- A prova testemunhal será sempre, nestes casos, complementar (coadjuvante) de um documento indiciário de “fumus bonni juris”.

12- São elementos da simulação a divergência entre a vontade real e a vontade declarada; o propósito de enganar (simulação inocente) ou prejudicar (simulação fraudulenta) terceiros.

13- Só pode ocorrer simulação nos contratos mas também nos negócios unilaterais desde que recepticios.
 
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"2-2- O n.º 1 do artigo 394.º do Código Civil excepciona a admissibilidade da prova testemunhal quando se tenha “por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.

Cabem no âmbito do preceito as convenções que contrariam (ou se opõem) ao declarado no documento assim como todas as que acrescentam (ou adicionam) qualquer clausulado.

Mas o legislador foi mais longe, ao detalhar no n.º 2 que a proibição é aplicável ao “acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores”.

Pretendeu, assim, deixar claro que a proibição também abrange aquele vício de vontade, ou seja apenas aquela divergência entre a vontade e a declaração, que não as outras.

Na vigência do Código Civil 1867, o Prof. Beleza dos Santos explicava o regime legal: “Em conclusão: se o acto simulado consta de um documento autêntico ou de um documento de igual força, nos termos do artigo 2432.º e 2433.º do Código Civil, os simuladores, seus herdeiros ou representantes que não devam reputar-se terceiros em relação a esse acto, só podem demonstrar a simulação se exibirem uma prova plena que destrua a eficácia da que resulta daqueles documentos, tal como um documento da mesma natureza ou igual valor ou uma confissão judicial. (Código Civil, art.º 2412.º). Se esse acto não consta de documentos autênticos ou de igual força, então os simuladores e seus representantes podem utilizar-se de qualquer meio probatório para demonstrar a simulação, devendo aplicar-se as regras gerais em matéria de prova.” (in “A Simulação em Direito Civil”, II, 151).

Assim se entendia pacificamente.

A polémica surge nos trabalhos preparatórios do vigente Código Civil e na tendência da doutrina para menorizar (quiçá por razões sociológicas) a valia da prova testemunhal (cf. os Profs. Pires de Lima e A. Varela: que a apodavam de “prova extremamente insegura” – in “Código Civil Anotado” I, 4.ª ed.; “… falibilidade e fragilidade da prova testemunhal” –Prof.Carvalho Fernandes – “A Prova da Simulação Pelos Simuladores”, apud “O Direito” 124.º, 1992, IV, 600; “ …esconjurar os perigos que a prova testemunhal poderia provocar: qualquer acto poderia ser contraditado.” Ac STJ de 5.6.2007-07A3134).

Antes de prosseguirmos devemos deter-nos-emos nas palavras do Prof. Manuel de Andrade ao referir que “os simuladores em geral procuram as trevas, fogem de testemunhas. Por outro lado, está pouco divulgada entre nós a prática das contra-declarações. Em regra, portanto, não há prova directa da simulação. A prova tem de ser feita, quase sempre, por meio de indícios ou presunções”. (“Teoria Geral da Relação Jurídica”, II, 1972, p. 207).

É certo que a demonstração da simulação é quase uma “probatio diabolica”, mesmo para os terceiros lesados, ou enganados.

Mas esta é questão que transcende o âmbito deste Acórdão onde o que está em causa é a prova da simulação invocada pelos simuladores.

Ora, se nestes casos, sendo vedada a prova testemunhal também ficará vedado o recurso às presunções judiciais – prova da primeira aparência (presunção simples) – “ex vi” do artigo 351.º do Código Civil.

Restariam, a nível das presunções, e com o merecido respeito pelo Prof. Manuel de Andrade, as presunções legais, sendo que os outros meios de prova que restariam seriam a documental (com as restrições do n.º 1 do artigo 394 CC) e a confissão.

2-3- Retomando os atrás referidos trabalhos preparatórios do Código Civil, iremos percorrer a história do n.º 2 do artigo 394.º citado.

O Prof. Vaz Serra (in “Provas – Direito Probatório Material”- BMJ 112, p. 194-197; 219-232; 236-292) invocando os artigos 1417.º e 2724.º do Código Civil Italiano de 1942 e 1347 e 1348 do Código Civil Francês, projectou uma norma que permitia que os simuladores pudessem, excepcionalmente usar a prova testemunhal, mas apenas se:

— existisse um princípio de prova escrita “proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante” ou quando “da qualidade das partes, da natureza do contrato, ou de quaisquer outras circunstâncias seja verosímil que tenham sido feitas contradeclarações”;

— impossibilidade material ou moral de obtenção de prova escrita.

Esta formulação, decalcada dos artigos 2724.º do “Codice” (“vi è um principio di prova per iscritto …”, “quando il contraente è stato nell´impossibilità morale o materiale di procurarsi una prova scritta”) e 1347.º e 1348.º do “Code” nada tem, portanto, de original e foi definitivamente arredada pelo legislador da lei expressa.

Não obstante, e ao arrepio da letra o Prof. Vaz Serra insistiu na defesa da sua tese (v.g. R.L.J. 107.º, 311 ss, anotando o Acórdão do STJ de 4 de Dezembro de 1973).

Também vieram aderir a tal interpretação os Profs. Mota Pinto e Pinto Monteiro (embora em parecer – “Arguição da Simulação Pelos Simuladores. Prova Testemunhal”, CJ, X, 1985, 3.ª 11 ss) com o argumento nuclear maleabilizar o artigo 394.º e, de certo modo, o Prof.Carvalho Fernandes (ob. loc. cit. 615) pondo a tónica na eventualidade de “resultados injustos de aproveitamento do acto simulado por um dos simuladores em detrimento do outro”. (Mas este Autor chama a atenção para que não se ponha em causa a «ratio» do preceito nem se sobreponha” à certeza da prova documental, a fragilidade e a falibilidade da prova testemunhal e por presunções judiciais”).

2-4- Só com muitas reservas podemos concordar com o “novo” entendimento.

A tese em apreço não vale “jure constituto”, tanto assim que constou de uma proposta (trabalhos preparatórios do Código Civil) que não obteve acolhimento no n.º 2 do artigo 394.º.

Ademais, o legislador deixou clara no n.º 1 uma regra e enfatizou-a no n.º 2 reportando-a ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado “quando invocados pelos simuladores”.

Se tivesse querido flexibilizar este preceito tê-lo-ia dito expressamente, acolhendo a proposta do Prof. Vaz Serra, ou inserindo-o, sem qualquer “distinguo” na regra geral do n.º 1.

Como refere o Cons. Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código Civil”, II, 177) o entendimento flexível colide com o direito legislado.

De todo o modo, ainda fica alguma perplexidade quando se refere a expressão “princípio de prova” (ou “começo de prova”).

O conceito só pode ter correspondência no de “fumus bonni juris”, ou prova indiciária, sobretudo elaborado em sede de procedimentos cautelares.

A assim não se entender caímos nos princípios de experiência geral, de verosimilhança que a nada mais conduzem do que a presunções simples, judiciais ou de experiência (cf. Profs. Pires de Lima e A. Varela, “Código Civil Anotado”, I, 3.ª ed., 310; Prof. A. Varela, in “Manual de Processo Civil”, 1984, 486; e Prof. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, 191).

Ora, já deixámos dito que, inadmitida a prova testemunhal não são de admitir presunções judiciais (artigo 351.º do Código Civil).

Daí que o tal “princípio de prova” só poderia ser constituído por qualquer dos documentos a que se refere o n.º 1 do artigo 394.º que, se não unívocos, só poderão tornar-se completos se conjugados com a prova secundária (que ,então, se concede ser testemunhal), complementar ou, com rigor, meramente residual, e só por si sem valor autónomo, por não lho permiti o n.º 2 do artigo 394.º.

De todo o modo, não repugna aderir à interpretação menos restritiva, desde que o “princípio de prova” seja um documento que não integre facto – base de presunção judicial pois sendo-o o n.º 2 do artigo 394.º poderia entrar em colisão com o citado artigo 351.º CC.

Daí que, adicionando esse documento a existência de acordo simulatório ou um negócio dissimulado se possa lançar mão da prova testemunhal para confirmar ou infirmar, tornando-se, então, o primeiro elemento de prova e sem que colida com o citado n.º 2 do artigo 394.º (v.g. os Acórdãos do STJ de 17.6.2003 - 03A1565; de 5.6.2007 – Pº 7A1364; Pº 758/06.3TBCBR-BP1.S1; e de 9.7.2014 - 5944/07.6TBVNG.P1:S1)"
 
[MTS]