"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/06/2017

Jurisprudência (648)




Matéria de facto; impugnação; ónus do recorrente;
declarações de parte; apreciação


1. O sumário de RG 9/2/2017 (1671/15.9T8VCT.G1) é o seguinte: 

I – O art.º 640.º do C.P.C. impõe diversos ónus ao recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto. Sendo essencial a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, já que definem o âmbito do recurso, e sendo ainda importante a indicação dos concretos meios probatórios e a proposta de decisão, atento o princípio da cooperação e porque conferem seriedade ao recurso, já a indicação das passagens da gravação pode bastar-se com a sua transcrição. 
 
II - Não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua própria convicção. 
 
III – O art.º 466.º do C.P.C., concedendo às partes o poder de iniciativa que antes apenas cabia ao juiz (cfr. actual n.º 2 do art.º 7.º do C.P.C.), impõe que as declarações que prestem na audiência de julgamento sejam apreciadas pelo tribunal a par dos outros meios de prova de apreciação livre, cumprindo apenas, quiçá, um esforço mais aturado para apurar da sua credibilidade. 
 
IV – Se não houver, sequer, uma aparência de declaração de vontade não existe negócio jurídico. 
 
V – É, assim, ineficaz quanto à Ré o contrato de mediação imobiliária celebrado e assinado apenas pelo Réu, se se não provou qualquer facto do qual se possa extrair que aquela tenha, de algum modo, aderido ao contrato ou assumido a disponibilidade de pagar ou contribuir para o pagamento da comissão pretendida pela mediadora. 
 
VI – A remuneração da mediadora imobiliária só é devida com a conclusão e perfeição do negócio visado pelo exercício da mediação pelo que, em princípio, se se não concretizar o negócio também não haverá qualquer remuneração a pagar. 
 
VII – O direito da mediadora imobiliária à remuneração depende, assim, da verificação de uma relação causal entre a actuação do mediador e a conclusão do negócio. 
 
VIII – Considera-se quebrado o nexo de causalidade entre a actividade da mediadora imobiliária e a conclusão de um negócio de compra e venda que posteriormente veio a ser celebrado pelos mesmos interessados angariados por aquela se estes tinham, nos primeiros contactos, sujeitado a compra à verificação de uma condição e desistiram dela por a condição se não ter verificado, e tenham, passados uns meses, vindo a comprar o mesmo imóvel, directamente aos proprietários, mas agora sem que a mediadora imobiliária tenha praticado qualquer acto de mediação.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.

Assim é que deverá o recorrente enunciar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a) do n.º 1), enunciação que é essencial porque delimita o poder de cognição do tribunal ad quem. Com efeito, versando o litígio sobre direitos de natureza disponível, a iniciativa é exclusivo do seu titular.

Deve ainda o recorrente indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (alínea b) do n.º 1), assim como apresentar o seu projecto de decisão, ou seja, expor, claramente, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c) do n.º 1), atento o princípio da cooperação e porque conferem seriedade ao recurso.

E no que concerne à alínea a) do n.º 2 do mesmo preceito legal julga-se suficiente a transcrição dos depoimentos, ainda que se cinjam aos segmentos pertinentes à alteração da decisão, conforme o entendimento que vem vingando no S.T.J. O aqui relator vem adoptando esta posição desde a entrada em vigor do actual C.P.C., atenta a nova filosofia que introduziu no processo, a qual assenta no primado da substância sobre a forma, pressupondo, por isso, a prolação de decisões materiais em detrimento das decisões formais, o que, por sua vez, tem como pressuposto básico o apuramento da verdade material dos factos. , até por este ónus não revestir a mesma importância daqueles, pela sua reduzida, se não nula, utilidade, não só porque a indicação das passagens do depoimento com referência ao tempo da gravação poderá nem estar correcta (e não há nenhuma sanção contra a incorrecção), como porque a credibilidade de uma testemunha não pode ser avaliada com base em algumas passagens do seu depoimento. Tem que se saber da sua razão de ciência e estar atento à sua postura, revelada pelo tom de voz, e pela forma como responde às perguntas que lhe são feitas por cada um dos inquiridores, o que impõe, as mais das vezes, que se alargue a audição do depoimento a outros temas que não, exclusivamente, àquele que está em reapreciação.

Isto considerado, resulta não dever acolher-se a pretensão veiculada pela Autora, de rejeição do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto, por “a indicação dos concretos pontos de facto” não ter sido feita com referência aos articulados, e por não terem sido indicados “em concreto os trechos que poderiam permitir decisão diferente”. 

Com efeito, e com o respeito devido, não colhe, de todo, o primeiro fundamento. Sendo já passada a bicéfala “selecção da matéria de facto” que continha os “factos assentes” e a “base instrutória”, a descrição dos factos é agora exclusivo da sentença, à qual devem ser levados os factos julgados provados e os que se julgaram não provados (cfr. n.º 4 do art.º 607.º do C.P.C.). Assim, o resultado do julgamento, com o qual se não concorda, hão-de ser os “concretos pontos de facto” descritos na sentença – tenha-se presente que, quanto aos factos, foram alargados os poderes de cognição do tribunal, nos termos constantes do art.º 5.º, n.º 2 do C.P.C..

Assim, o recurso aos articulados só fará sentido relativamente a factos que, tendo sido alegados, não constarem da sentença, nem como provados, nem como não provados. 


No que se refere ao segundo fundamento invocado, remete-se para a análise que acima se fez ao requisito constante da alínea a) do n.º 2 do art.º 640.º, reafirmando-se que nas alegações oferecidas pelos Apelantes são transcritas as (longas, no recurso do Apelante/Réu) passagens dos depoimentos que, na perspectiva dos Recorrentes, impunham uma decisão diversa.

Têm-se, pois, por cumpridos todos os ónus legalmente impostos, nada obstando, por isso, à reapreciação da decisão de facto."


[MTS]