"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/06/2017

Jurisprudência (646)


Direito de regresso; sub-rogação;
prescrição; prestações infortunísticas;


1. O sumário de STJ 7/2/2017 (3115/13.1TBLLE.E1.S1) é o seguinte:
 

I - O direito a que se refere o n.º 4 da Base XXXVII da Lei n.º 2127, de 03-08-1965, deve, apesar do respectivo nomen juris, ser considerado como um direito de sub-rogação legal (art. 592.º, n.º 1, do CC), porquanto se ancora na circunstância de a seguradora ter pago indemnizações que, em princípio, deveriam ser satisfeitas por quem deu causa ao acidente, sendo que tal interpretação é favorecida pela letra do correspondente art. 294.º, n.º 4 do CT.

II - Tanto o exercício do direito de regresso como o exercício do direito sub-rogado pressupõem o pagamento, pelo que o cômputo do prazo de prescrição a que alude o n.º 2 do art. 498.º do CC só se inicia a partir do momento em que aquele se efectiva (art. 306.º, n.º 1, do CC).

III - É de adoptar o entendimento que, dentro das prestações infortunísticas reclamadas pela seguradora, distingue entre núcleos indemnizatórios cindíveis (em função dos bens jurídicos lesados que aquelas visam ressarcir) e aqueles que não consentem divisão razoável, o que permitirá que o curso do prazo de prescrição ocorra em termos diversos relativamente a uns e a outros. Inexistindo núcleos divisíveis ou não sendo efectuada a respectiva prova, o prazo de prescrição inicia-se com o último pagamento sequencial.

IV - Cabendo à ré, arguente da prescrição, o ónus de, em relação a cada uma dos créditos autonomizáveis, alegar e provar a ocorrência da prescrição, deve a excepção peremptória improceder se a mesma se limitou a alegar, genericamente, tal facto extintivo relativamente a todos os valores peticionados pela autora, já que se trata de omissão que é impassível de ser judicialmente suprida.
 

2. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte:

"Considera-se continuativa, contínua ou de execução continuada a prestação que consiste numa actividade ou abstenção que se prolonga ininterruptamente — como conduta única, segundo os critérios da prática — durante um período mais ou menos longo…Quando, todavia, em vez de uma única prestação a realizar por partes (prestação fraccionada), existam posto que decorrentes de uma só relação obrigacional — diversas prestações (isto é prestações repetidas) a satisfazer regularmente (ex.: a obrigação do inquilino de pagar a renda mensal ou anual) ou sem regularidade exacta (ex.: a obrigação de fazer reparações em determinada coisa à medida que sejam necessárias), teremos as chamadas prestações reiteradas, repetidas, com trato sucessivo ou periódicas.”

Deverá contar-se o prazo de prescrição de três anos, desde o vencimento de cada uma das prestações anuais e vitalícias pagas mensalmente sob pena de prescrição, ou antes dever-se-á considerar que, sendo a obrigação uma única, ainda que pagável em prestações mensais (não se trata de renda vitalícia), o prazo apenas se inicia no termo dessa prestação com a data aleatória em que ocorrer o motivo por que cessa a obrigação da seguradora?

Se se considerar esta segunda perspectiva é evidente que a dívida do obrigado se acumulará e, quiçá por esse motivo, a lei estabelece como termo inicial o prazo de três anos a contar do pagamento. Esta perspectiva implica que o credor tenha que lançar mão de repetidas acções para evitar a ocorrência de prescrição com os inerentes custos.

Como decidir?

A problemática em questão foi lapidarmente abordada no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 7.4.2011 – Proc. 329/06.4TBAGN.C1.S1 – de que foi Relator o Conselheiro Lopes do Rego – aresto acessível in www.dgsi.pt. Aí pondera-se, ainda que a respeito do direito de regresso da seguradora no caso de pagamento das indemnizações ao lesado nos termos da al. c) do art. 19º do DL. 522/85, mas pertinentemente ao caso em apreciação:

“Não se inicia, nem corre autonomamente, o referido prazo prescricional quando os documentos a que se reporta a prescrição invocada se conexionam com o ressarcimento antecipado e faseado de danos exclusivamente ligados às lesões físicas sofridas pelo sinistrado – reparação dos períodos de incapacidade temporária, despesas médicas e de tratamentos clínicos, custo das deslocações para estabelecimento hospitalar – sendo tais pagamentos parcelares insusceptíveis de integrar um núcleo indemnizatório, autónomo e juridicamente diferenciado dos demais danos, de idêntica natureza, globalmente peticionados na acção de regresso.

Neste caso, o prazo de prescrição do direito de regresso apenas se inicia no momento em que estiver cumprida a obrigação da seguradora de ressarcir o lesado de todos os danos que lhe advieram da lesão dos bens da personalidade e respectivas sequelas, ainda que tal núcleo indemnizatório tenha originado pagamentos faseados ao longo do tempo”. (destaque e sublinhado nossos)

Na fundamentação da decisão, pode ler-se: “Não sendo a letra da lei – ao reportar-se apenas ao “cumprimento”, como momento inicial do curso da prescrição – suficiente para resolver, em termos cabais, esta questão jurídica, será indispensável proceder a um balanceamento ou ponderação dos interesses envolvidos: assim, importa reconhecer que a opção pela tese que, de um ponto de vista parcelar e atomístico, autonomiza, para efeitos de prescrição, cada um dos pagamentos parcelares efectuados ao longo do tempo pela seguradora acaba por reportar o funcionamento da prescrição, não propriamente à “obrigação de indemnizar”, tal como está prevista e regulada na lei civil (arts. 562º e segs.) mas a cada recibo ou factura apresentada pela seguradora no âmbito da acção de regresso, conduzindo a um – dificilmente compreensível – desdobramento, pulverização e proliferação das acções de regresso, no caso de pagamentos parcelares faseados ao longo de períodos temporais significativamente alongados.

Pelo contrário, a opção pela tese oposta – conduzindo a que apenas se inicie a prescrição do direito de regresso quando tudo estiver pago ao lesado – poderá consentir num excessivo retardamento no exercício da acção de regresso pela seguradora, manifestamente inconveniente para os interesses do demandado, que poderá ver-se obrigado a discutir as causas do acidente, de modo a apurar se o estado de alcoolemia verificado contribuiu ou não para o sinistro, muito tempo para além do prazo-regra dos 3 anos a que alude o nº1 do art. 498º do Código Civil. […]

Afigura-se, todavia, que poderá não ser este o único caso em que a opção pela tese da unicidade da prescrição – como decorrência do carácter unitário da obrigação de indemnizar, inferível, desde logo, do modo como esta é, em regra, calculada, através da aplicação da “teoria da diferença”, comparando globalmente as situações patrimoniais, actual e hipotética, do lesado, nos termos do nº2 do art. 566º do Código Civil – conduz a uma desproporcionado alargamento do prazo da prescrição do direito de regresso: é o que poderá verificar-se quando a obrigação de indemnizar a cargo da seguradora abranja danos futuros, susceptíveis de se revelarem e desenvolverem ao longo de períodos temporais muito prolongados (o que normalmente ocorrerá quando o acidente tiver originado lesões graves, cujas sequelas incapacitantes se vão desenrolado e agravando ao longo de anos) – não se vendo, neste caso, razão bastante para que a seguradora não deva exercitar a acção de regresso, referentemente à indemnização que satisfez e que cobre integralmente os danos actuais, causados pelo sinistro e perfeitamente consolidados e ressarcidos, de modo a deixar assente nessa acção, exercitada em prazo ainda próximo da data do acidente, toda a sua dinâmica e causalidade.

Por outro lado, a ideia base da unidade da “obrigação de indemnizar” poderá ser temperada pela possível autonomização das indemnizações que correspondam ao ressarcimento de tipos de danos normativamente diferenciados, consoante esteja em causa, nomeadamente:

- A indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo estes ressarcidos fundamentalmente através de um juízo de equidade, e não da aplicação da referida teoria da diferença;

- A indemnização de danos que correspondam à lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou cindíveis de um ponto de vista normativo, desde logo os que correspondam à lesão da integridade física ou de bens da personalidade e os que decorram da lesão do direito de propriedade sobre coisas.

[…] Em suma: se não parece aceitável a autonomização do início de prazos prescricionais, aplicáveis ao direito de regresso da seguradora, em função de circunstâncias puramente aleatórias, ligadas apenas ao momento em que foi adiantada determinada verba pela seguradora, já poderá ser justificável tal autonomização quando ela tenha subjacente um critério funcional, ligado à natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados, com o consequente ónus de a seguradora exercitar o direito de regresso referentemente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, de modo a não diferir excessivamente o contraditório com o demandado, relativamente à causalidade e dinâmica do acidente, em função da pendência do apuramento e liquidação de outros núcleos indemnizatórios, claramente cindíveis do primeiro.

E, nesta perspectiva, incumbirá ao Réu que suscita a prescrição o ónus de alegar e demonstrar que o conjunto de recibos ou facturas pagas pela seguradora até ao limite do período temporal de 3 anos que precederam a citação na acção de regresso corresponderam a um núcleo indemnizatório, autónomo e bem diferenciado, relativamente aos restantes valores indemnizatórios peticionados na causa – não lhe bastando, consequentemente, alegar, como fundamento da prescrição que invoca, a data constante desses documentos”.

Acolhendo esta perspectiva que, de modo não rígido, permite que a contagem do prazo de prescrição de obrigações indemnizatórias, que se vencem instantaneamente e que por força de lei são pagas periodicamente (como é o caso de pensões infortunísticas com carácter vitalício ou tendencialmente vitalício), corra em termos diversos em relação a núcleos indemnizatórios autónomos, cindíveis, em função dos bens lesados que visam ressarcir, daqueloutros núcleos que não consentem divisão razoável. Poder-se-á dizer que, não existindo núcleos divisíveis, ou não se fazendo tal prova, incumbe a quem alega a prescrição [à unidade da obrigação corresponderá unidade da prescrição] sendo, por isso, contado da mesma forma o prazo prescricional, que se inicia com o último pagamento sequencial.

Sendo a prescrição uma excepção peremptória que, a proceder, permite ao excipiente recusar o pagamento, competiria à Ré, de forma inequívoca, alegar e provar que ocorreu a prescrição em relação àqueles créditos que poderiam ser autonomizados, por exemplo, se assim considerasse as despesas médicas e medicamentosas já realizadas, internamentos e transportes, devendo claramente discriminá-los.

No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19.5.2016 – Proc. 645/12.6TVLSB.L1.S1 – Relatora Maria da Graça Trigo – seguiu-se a doutrina do Acórdão de 7.4.2011, no que respeita à autonomização dos núcleos indemnizatórios, relevante para a contagem do início do prazo prescricional constando do ponto II do sumário – “No caso de sucessão de actos de pagamento efectuados pela seguradora, o “dies a quo” da contagem do prazo de prescrição de três anos, referido em I, situa-se na data do último acto de pagamento de cada “núcleo indemnizatório autónomo identificado e juridicamente diferenciado”, em função de critérios funcionais e temporais”. Como resulta desta decisão, o Acórdão do Tribunal da Relação (aí sob recurso) tinha diferenciado os núcleos que considerou autónomos e os que não se revestiam de autonomia, que não podiam ser atomizados para o efeito da contagem do prazo, decisão que o Acórdão em sede de revista corroborou.

Mas, no caso em apreço, a Ré invocou a prescrição genericamente, relativamente a todos os valores pagos agora peticionados pela Autora, pelo que não pode ser suprida a omissão, não podendo o Tribunal substituir-se-lhe para considerar quais os créditos que considera prescritos. A prescrição não é de conhecimento oficioso – art. 303º do Código Civil –, nem a deficiência factual, na arguição da excepção, pode ser suprida pelo Tribunal, sequer no contexto do recurso de revista.

Assim e considerando, pelo quanto se disse, que o prazo de prescrição do art. 498º, nº2, do Código Civil tem o seu termo inicial desde a data do último pagamento – 31.12.2014 – e tendo em conta a data da citação da Ré, 17.12.2013, não ocorreu a prescrição dos créditos peticionados."

[MTS]