"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/01/2014

Poderes de substituição do STJ


1. O acórdão do STJ de 11/7/2013 (acessível no sítio
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e506b33a9ed87de680257ba5004d561b?OpenDocument ) decidiu um caso que, no essencial, se resume no seguinte: um menor e o seu pai morreram intoxicados com CO2, em circunstâncias bastante trágicas, num silo destinado ao depósito de bagaço; a mãe do menor falecido e cônjuge do outro falecido instaurou, contra a empresa proprietária do silo, uma acção para obter uma indemnização pela morte do seu filho e marido; as instâncias negaram a atribuição da indemnização com fundamento na inexistência de um nexo de causalidade adequada entre a inobservância das regras de informação, segurança e socorro e a ocorrência do acidente de que resultou a morte das vítimas; divergindo da posição assumida pelas instâncias, o STJ entendeu que se verifica o referido nexo de causalidade; no entanto, apesar de chegar a esta conclusão, o STJ não exerceu os seus poderes de substituição quanto à decisão recorrida, ou seja, não substituiu esta decisão por uma outra decisão (art. 726.º aCPC = art. 679.º nCPC), antes devolveu o processo às instâncias para que estas fixassem a indemnização a atribuir à autora.
Seguindo uma orientação adoptada num outro acórdão, o STJ afirma, tomando como referência esse outro aresto, o seguinte:
 
"A sustentar tal posição [a da não aplicação da regra da substituição] invoca-se, por um lado, a circunstância de “a fixação dos montantes indemnizatórios devidos por danos não patrimoniais pressupor essencialmente um juízo equitativo, que se não reconduz à estrita resolução de uma «questão de direito», segundo critérios estritamente normativos”, e, por outro lado, “não se justificar a eliminação de um grau de jurisdição, de modo a ficar resolvida definitivamente a questão dos montantes indemnizatórios devidos”, sem que a Relação possa apreciá-la e decidi-la, salvo se desse grau de jurisdição prescindiu antes a parte interessada."
 
Perante a dificuldade de encontrar um apoio legal para a recusa do exercício dos poderes de substituição, o STJ conclui o seguinte:
 
"O regime prescrito no art. 731º-2 do CPC [684.º, n.º 2, nCPC] para o suprimento da nulidade por omissão de pronúncia deve também aplicar-se no caso de o Tribunal da Relação não ter apreciado a matéria de atribuição e fixação das indemnizações, designadamente por danos não patrimoniais, face à solução que deu ao litígio, desresponsabilizando inteiramente os réus, em confirmação integral do anteriormente decidido na 1ª Instância, que, pela mesma razão, também não a apreciara".
 
2. O acórdão em análise merece uma rápida apreciação em dois planos:
-- O dos fundamentos para a recusa da aplicação da regra da substituição pelo STJ;
-- O da justificação legal que foi encontrada pelo STJ para a devolução às instâncias.
Quanto ao primeiro aspecto, não parece convincente nem o fundamento relativo à equidade, nem o respeitante à eliminação de um grau de jurisdição: o fundamento relativo à equidade só seria aceitável se o STJ não pudesse, ele próprio, julgar segundo a equidade -- o que, como se sabe, não é o caso (ou melhor, se entende, talvez com base num costume jurisprudencial, que não é o caso); o fundamento respeitante à supressão de um grau de jurisdição também não parece poder ser procedente: é curioso que o STJ -- que teria sempre, na hipótese da quantificação da indemnização pelas instâncias, a última palavra sobre a matéria -- não queira ter, ele próprio, a "primeira (e única) palavra" sobre essa mesma indemnização; a seguir-se esta orientação, nunca o STJ poderia pronunciar-se sobre algo de que as instâncias não conheceram (porque, por exemplo, entende aplicar um regime jurídico diferente daquele que as instâncias utilizaram ou porque entende dar relevância a um meio de prova, com valor tarifado, que as instâncias não ponderaram). Generalizando a orientação do STJ, haveria que concluir que os recursos só poderiam servir para controlar matéria já decidida, nunca para se pronunciarem sobre matéria não considerada pela instância a quo.
Que, no âmbito da revista, o CPC não sustenta esta conclusão decorre precisamente dos restritos casos em que o STJ pode devolver o processo às instâncias: esses casos são aqueles em que o STJ entende que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito ou em que ocorrem contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito pelo STJ (art. 729.º, n.º 3, aCPC = art. 682.º, n.º 3, nCPC).
Não tendo, no caso concreto, o STJ utilizado este preceito, isso só pode significar que o STJ entende que a matéria de facto é suficiente para a fixação da indemnização a favor da autora. Daí ser estranho que, num caso em que a lei não justifica a devolução do processo às instâncias, o STJ tenha aplicado (extensivamente?; analogicamente?) o disposto, em matéria de nulidade do acórdão a quo, no art. 731.º, n.º 2, aCPC = art. 684.º, n.º 2, nCPC para justificar essa devolução. A ratio deste preceito -- que é a de permitir que a instância recorrida repare uma omissão de pronúncia cometida por ela própria -- não parece poder estender-se ao caso em que essa mesma instância não aprecia uma questão (no caso em análise, a indemnização) por o seu conhecimento ter ficado prejudicado pela resposta que deu a uma outra questão (no caso, a ausência de uma nexo de causalidade adequado).
 
MTS