"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/04/2020

Jurisprudência 2019 (229)


Recurso de revista;
contradição entre acórdãos da Relação*

 
1. O sumário de STJ 29/11/2019 (1320/17.0T8CBR.C1-A.S1) é o seguinte:

I - Só é admissível recurso de revista excecional, caso se verifiquem os pressupostos gerais atinentes ao valor da causa e à sucumbência.

II - O recurso prescrito na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC tem como justificação o objetivo de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações, em matérias que, por motivos de ordem legal que não dizem respeito à alçada do tribunal, nunca poderiam vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça – como por exemplo, em sede de insolvência (artigo 14.º, n.º 1, do CIRE), expropriações (artigo 66.º, n.º 5, do Código das Expropriações) ou providências cautelares (artigo 370.º, n.º 2, do CPC).

III - Se todos os acórdãos da Relação em contradição com outros acórdãos da Relação admitissem a revista "ordinária" nos termos do artigo 629.º, n.º 2, al. d), CPC, deixaria necessariamente de haver qualquer justificação para construir um regime de revista excecional para a contradição entre acórdãos das Relações tal como se encontra no artigo 672.º, n.º 1, al. c), CPC. Sempre que se verificasse uma contradição entre acórdãos das Relações seria admissível uma revista "ordinária", não havendo nenhuma necessidade de prever para a mesma situação uma revista excecional.

IV - A jurisprudência do Tribunal Constitucional vem assumindo que a Constituição não impõe que o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, comporte um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário uma redução intolerável ou arbitrária do conteúdo do direito ao recurso de atos jurisdicionais, manifestamente inexistente nas normas do Código de Processo Civil relativas aos requisitos de admissibilidade do recurso de revista. 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A interpretação das normas relativas à admissibilidade do recurso de revista deve ser feita de forma conjugada e atendendo a todos os elementos de interpretação da teoria do direito. O reclamante baseia essencialmente a sua tese na letra do artigo 629.º, n.º 2, do CPC, na parte em que o legislador afirma “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso”, sem a conjugar com a expressão constante da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º, que se refere ao «motivo estranho à alçada», nem com a ratio das normas que definem os pressupostos do recurso de revista geral e do recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, designadamente os artigos 671.º e 672.º do CPC.

A letra da lei consiste apenas num ponto de partida, que deve ser ponderado juntamente com o elemento histórico, racional e sistemático de interpretação, para, assim, reconstituir o pensamento legislativo.

Vejamos:

O recurso previsto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do atual CPC, reintroduzido pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, encontra o seu precedente histórico no artigo 678.º, n.º 4, do CPC anterior à Reforma de 2007. Este último preceito foi, por sua vez, introduzido no regime de recursos civis pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, dispondo que «É sempre admissível recurso, a processar nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B, do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se a orientação nele perfilhada estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça». Tal redação foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, que suprimiu a referência ao processamento do recurso nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B do CPC.

O Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, que operou a reforma do CPC anterior à vigente, centrada essencialmente em matéria de recursos e movida por objetivos de simplificação, celeridade processual e racionalização no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, acentuou, deste modo, a sua função de orientação e uniformização de jurisprudência, revogando o artigo 678.º, n.º 4, do CPC. 

O recurso prescrito na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC tem como justificação o objetivo de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações, em matérias que, por motivos de ordem legal que não dizem respeito à alçada do tribunal, nunca poderiam vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça – como por exemplo, em sede de insolvência (artigo 14.º, n.º 1, do CIRE), expropriações (artigo 66.º, n.º 5, do Código das Expropriações) ou providências cautelares (artigo 370.º, n.º 2, do CPC)."

*3. [Comentário] No acórdão transcreve-se parte do que se escreveu em Jurisprudência (157), o que se aproveita para agradecer.

MTS


 

29/04/2020

A taxa de justiça e as custas em sentido estrito nas reclamações para a conferência das decisões do relator de não admissão de recursos




[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]



Jurisprudência 2019 (228)


Assistente;
legitimidade para recorrer*

1. O sumário de STJ 24/10/2019 (1152/15.0T8VFR.P1.S1) é o seguinte:

I. O prejuízo para o interveniente acessório, decorrente do caso julgado, é apenas reflexo e indireto, que se materializa na ação de regresso, a propor eventualmente.

II. Não sendo o prejuízo direto e efetivo, é inadmissível a interposição de recurso, autónomo, pelo interveniente acessório, por efeito do disposto no art. 631.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Depois do n.º 1 do art. 631.º do CPC estabelecer a regra de que os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, possibilita-se também, a título de exceção, o recurso às “pessoas direta e efetivamente prejudicadas” pela decisão, ainda que tais pessoas não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.

A legitimidade para o recurso, por terceiros ou partes acessórias, advém do prejuízo direto e efetivo causado pela decisão judicial na sua esfera jurídica.

A exceção prevista na norma do n.º 2 do art. 631.º do CPC remonta a tempos antigos, consagrada por influência da jurisprudência e doutrina, porquanto, até então, apenas as partes principais podiam recorrer. Permitiu-se, desse modo, que aquele que tivesse sido “prejudicado diretamente” pela decisão podia impugná-la mediante recurso. O prejuízo não podia, por um lado, ser “indireto ou reflexo” e, por outro, tinha de ser “atual e positivo”, não sendo “suficiente o prejuízo eventual, incerto e longínquo” (ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, V, Reimpressão, 1981, pág. 272).

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que, então, se foi formando, acentuava a doutrina de ser preciso que o prejuízo resultasse “imediatamente” da decisão proferida, não bastando que fosse “eventual” ou dependesse de circunstância futura que pudesse “vir a surgir” como consequência do julgado (ALBERTO DOS REIS, ibidem).

Nos termos da doutrina enunciada, nos casos em que o prejuízo se apresentasse como “indireto” e “mediato”, não era admissível o recurso de decisão por quem não fosse parte principal.

Em 1961, na norma, substituiu-se o advérbio “diretamente” pela locução “direta e efetivamente”, para afastar a ideia do “prejuízo eventual ou meramente possível” (EURICO LOPES CARDOSO, Código de Processo Civil Anotado, 4.ª edição, 1972, pág.368).

Desde então, a norma (art. 680.º, n.º 2) manteve-se inalterável.

Conhecido o sentido normativo originário, torna-se mais fácil a compreensão da norma plasmada no atual art. 631.º, n.º 2, do CPC, nomeadamente quanto à expressão “direta e efetivamente prejudicadas com a decisão”.

Neste âmbito, a doutrina maioritária tem vindo a pronunciar-se no sentido de não ser admissível o recurso por parte do interveniente acessório (F. AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2000, pág. 99, J. LEBRE DE FREITAS A. RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, 3.º, 2003, pág. 21, A. RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil, 2009, pág. 71, A. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE P. DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, I, 2018, pág. 756, e LUÍS LAMEIRAS, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2.ª edição, 2009, pág. 93).

Diferentemente, no sentido da legitimidade para o recurso do interveniente acessório, conta-se CARDONA FERREIRA (Guia de Recursos em Processo Civil, 5.ª edição, 2010, págs. 131 e 132) e também “propende” SALVADOR DA COSTA (Os Incidentes da Instância, 9.ª edição, 2017, pág. 115).

Por sua vez, a jurisprudência também se encontra dividida.

A título de exemplo, na senda da inadmissibilidade do recurso, pronunciaram-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de março de 2010 (428/1999.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt, e de 7 de dezembro de 1993 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 432, pág. 298).

Em sentido diverso, porém, foi a pronúncia dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de novembro de 2007 (Coletânea de Jurisprudência, STJ, Ano XV, t. 3, pág. 141, e de 17 de abril de 2008 (08A1109), acessível em www.dgsi.pt).

O argumento dos que defendem a admissibilidade do recurso baseia-se, em especial, no caso julgado da sentença da ação, na qual se procedeu ao chamamento, e que inclui o interveniente acessório, designadamente quanto aos pressupostos do direito de regresso. Por efeito da extensão do caso julgado ao interveniente acessório, considera-se que este é “direta e efetivamente” prejudicado pela sentença proferida na ação, acrescentando-se que aquela expressão tem uma “carga jurídica, não necessariamente fáctica” (CARDONA FERREIRA, ibidem, pág. 132).

Não obstante esta última argumentação poder impressionar de algum modo, porém, no nosso entendimento, não resiste a uma outra análise, nomeadamente quanto aos efeitos jurídicos do estatuto do interveniente acessório.

Na intervenção acessória, o chamado beneficia do estatuto de assistente, definido no art. 328.º do CPC, nos termos expressos no n.º 1 do art. 323.º do mesmo Código.

Ora, tendo os assistentes a “posição de auxiliares de uma das partes principais”, não lhes é permitido recorrer autonomamente, a não ser na situação especial de revelia do assistido, prevista no art. 329.º do CPC. Fora deste caso especial, ao assistente é apenas facultado, em recurso próprio, completar ou desenvolver a alegação apresentada no recurso pela parte principal, sem olvidar ainda que é a vontade desta última que prevalece, em caso de divergência insanável.

Por outro lado, é evidente que a sentença proferida não tem incidência direta nos interesses e na esfera jurídica do Recorrente, relevando, somente, de forma reflexa e indireta, no âmbito da eventual e futura ação de regresso.

Além do referido, e como resulta do contexto histórico que esteve na origem da norma legal em causa, a extensão da legitimidade para recorrer além das partes principais, não foi concebida para uma situação como a vertida nos presentes autos.

Acresce ainda também que o caso julgado pode estar limitado no seu alcance.

Efetivamente, para além de poder não abranger os fundamentos da ação, o caso julgado é ainda suscetível, perante certas circunstâncias, de poder ser revertido, nomeadamente quando a posição do interveniente acessório, enquanto mero auxiliar da parte principal, não lhe tenha garantido suficientemente o exercício do contraditório, designadamente por impedimento de alegação e prova de um facto ou desconhecimento de facto relevante não alegado ou da existência de um meio de prova que permitiria provar um facto relevante, alegado ou não no processo (J. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, 1.º, 1999, pág. 602).

Nesta perspetiva, o efeito do caso julgado fica algo esbatido.

De qualquer modo, o prejuízo para o interveniente acessório, decorrente do efeito do caso julgado (não havendo outro), é apenas reflexo e indireto, que se materializa na ação de regresso, a propor eventualmente.

Assim, no caso, não sendo o prejuízo direto e efetivo, é inadmissível a interposição de recurso, autónomo, pelo interveniente acessório, nomeadamente por efeito do disposto no art. 631.º, n.º 2, do CPC, tal como se decidiu no acórdão recorrido.

Neste contexto, o acórdão recorrido não violou qualquer disposição legal aplicável, em particular as especificadas pelo Recorrente."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não é defensável que o prejuízo do interveniente acessório decorrente da condenação da parte principal (ou assistida) seja apenas reflexo e indirecto. Remete-se para o que se referiu em Jurisprudência 2019 (135).

MTS

28/04/2020

Bibliografia (903)


-- Bart Krans et al., Civil Justice and Covid-19 (UiT: Tromso 2020) [OA]

 

Jurisprudência 2019 (227)


Processo executivo;
embargos de executado; prestação de caução

 
1. O sumário de RC 5/11/2019 (3141/18.4T8PBL-B.C1) é o seguinte:

I – Como se sabe, o fim da ação executiva é o de conseguir para o credor a mesma prestação, o mesmo benefício que lhe traria o cumprimento voluntário da obrigação por parte do devedor e, como este não pode ser compelido por aquele a realizar os actos necessários à satisfação do vínculo obrigacional, torna-se necessário, quando o devedor não cumpre, que a obrigação se torne efetiva, pelo valor que representa no seu património.

II - O art.º 623º, n.º 3, do Código Civil atribui ao tribunal a função de apreciar a idoneidade da caução, sempre que não haja acordo entre os interessados, não prevendo, todavia, qualquer critério pelo qual haja de ser aferido esse juízo de idoneidade.

III - A caução constitui uma garantia especial das obrigações, visa satisfazer o interesse do credor. Embora a lei não estabelece qualquer critério para avaliação da idoneidade da caução mas, atendendo à sua finalidade, há que fazer coincidir a idoneidade com a segurança da sua suficiência para satisfazer a obrigação que ela cauciona.

IV - À prestação de caução, enquanto garantia especial das obrigações, são associadas finalidades como a de prevenir o incumprimento de obrigações que possam vir a ser assumidas por quem exerce determinadas funções, como requisito de exercício de um determinado direito, ou para afastar o direito de outra parte.

V – E, por sua vez, à prestação de caução como condição para a suspensão da execução, como efeito dos embargos de executado à mesma deduzida, a jurisprudência tem-lhe atribuído finalidades específicas que vão além da garantia de pagamento da quantia exequenda, e que visam colocar o exequente a coberto dos riscos da demora no prosseguimento da ação executiva, obviando a que, por virtude de tal demora, o embargante-executado possa empreender manobras que delapidem o património durante o tempo da suspensão.

VI - Atento o regime instituído pela Lei n.º 41/2013, de 26.6, verifica-se que, perante a garantia da penhora, o executado que se oponha à execução poderá substituir a penhora por caução idónea, afastando a cumulação de penhora suficiente e caução (cf. os art.ºs 751º, n.º 7 e 856º, n.º 5, ambos do nCPC).

VII - Existindo garantia real anterior, nem sempre será necessário prestar uma nova e distinta caução e, muito menos, que o deva ser pela totalidade do crédito exequendo, porquanto não se justificará tal duplicação e sobrecarga para o executado (a garantia será idónea para o efeito de suspender a execução quando o valor do bem sobre que recai a garantia é suficiente para cobrir o crédito exequendo e os demais acréscimos e danos que resultem dessa suspensão).

VIII - A nova caução já será necessária, no entanto, em caso de insuficiência do valor do bem dado em garantia, se este nada cobre para além do crédito exequendo.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

Tem-se discutido se, existindo garantia anterior – constituída antes do processo ou através da própria penhora já efectuada nos autos – ela poderá ser suficiente para suspender a execução, defendendo-se, na jurisprudência, de um lado, que a suspensão da execução, em consequência da dedução de oposição à execução, impõe sempre a prestação de caução e que a prestação de caução através de hipoteca já constituída anteriormente no processo para garantia de pagamento da quantia exequenda e que incide sobre o bem penhorado no mesmo processo não se prefigura como idónea, na medida em que a requerente não oferece qualquer garantia que a requerida já não tenha – ou seja, verdadeiramente nada oferece como caução, pois, constituindo a caução uma garantia especial das obrigações, da sua prestação teria de resultar um reforço da segurança do credor em relação à garantia geral que é dada pelo património do devedor ou por alguma garantia especial de que ele já beneficie (cfr. neste sentido, entre outros, os acórdãos da Relação do Porto de 02.4.2009, proc.º n.º 2239/07.9TBOVR-B.P1 e 28.4.2011-proc.º n.º 8176/09.5YYPRT-B.P1 e da Relação de Lisboa de 04.02.2010, proc.º n.º 33943/06.8YYLSB-8, publicados no “site” da dgsi.) e, de outro lado (em sentido contrário), que “a hipoteca, mesmo que anteriormente constituída, não é abstractamente inidónea para servir como caução - ela é idónea para o efeito de suspender a execução quando o valor do bem sobre que recai a garantia é suficiente para cobrir o crédito exequendo e os demais acréscimos e danos que resultem dessa suspensão” (cfr. os acórdãos da Relação do Porto de 31.10.2013, proc.º n.º 5025/12.0YYPRT-B.P1 e da RC de 05.5.2015-processo 505/13.3TBMMV-B.C1, publicados no “site” da dgsi).

Atento o regime instituído pela Lei n.º 41/2013, de 26.6, verifica-se que, perante a garantia da penhora, o executado que se oponha à execução poderá substituir a penhora por caução idónea, afastando a cumulação de penhora suficiente e caução (cf. os art.ºs 751º, n.º 7 e 856º, n.º 5).

Acolhendo, assim, segundo se perspectiva, a mesma solução se impõe quanto às garantias constituídas antes do processo; havendo garantia constituída, a caução só se justifica pela diferença presumível, eventualmente existente, entre o seu valor (do bem dado em garantia) e o do crédito exequendo e acessórios, incluindo os juros que, em estimativa, se preveja que venham a vencer em resultado da paragem do processo executivo (cfr. entre outros, J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 327 e J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 224 e seguintes, especialmente a nota (76)).

Assim, existindo garantia real anterior, nem sempre será necessário prestar uma nova e distinta caução e, muito menos, que o deva ser pela totalidade do crédito exequendo, porquanto não se justificará tal duplicação e sobrecarga para o executado (a garantia será idónea para o efeito de suspender a execução quando o valor do bem sobre que recai a garantia é suficiente para cobrir o crédito exequendo e os demais acréscimos e danos que resultem dessa suspensão). A nova caução já será necessária, no entanto, em caso de insuficiência do valor do bem dado em garantia, se este nada cobre para além do crédito exequendo. (cfr. os citados acórdãos da Relação do Porto de 31.10.2013, proc.º n.º 5025/12.0YYPRT-B.P1, relatado por Pinto de Almeida, da Relação de Coimbra de 05.5.2015, proc.º n.º 505/13.3TBMMV-B.C1, relatado por Manuel Capelo, da mesma Relação, de 17.01.2017, proc.º n.º 5211/15.1T8PBL-B.C1, relatado por Fonte Ramos e da Rel. de Évora de 6/11/ 2014 – proc.º n.º 53/14.4TBFAL-B.E1, relatado por Mata Ribeiro.

A particular função da caução prevista na al. a) do n.º 1 do artº 733º do CPC é de garantir o cumprimento da obrigação exequenda acautelando ou prevenindo os riscos que possam resultar da suspensão do processo executivo apresentando-se como requisitos essenciais, a sua prestação por meio adequado e que seja suficiente para assegurar a satisfação da obrigação exequenda, devendo por isso garantir o capital, bem como os juros vencidos e vincendos (v. Ac. do STJ de 04/03/2004 no processo 04B211 disponível in www.dgsi.pt).

Assim, não podemos deixar de advogar no sentido de estar com aqueles que não vêem objeção legal a que uma hipoteca já prestada a favor do exequente como garantia da obrigação exequenda possa ser oferecida e considerada idónea em ordem a servir como caução tendo em vista a suspensão da execução.

Pois, como se salienta no Ac. do Relação de Guimarães de 29/05/2008. Proc.º n.º 639/08, relatado por Manso Rainho “a garantia oferecida pela executada – a hipoteca que prestou a favor do exequente como garantia da obrigação ora exequenda – é legalmente idónea em ordem a servir como caução (v. artº 623º do CC). A única especialidade que se verifica no caso vertente é que, contrariamente ao que normalmente acontece, o devedor não vem oferecer a título de caução uma garantia até então inexistente (ou seja, não vem oferecer uma garantia a constituir ex novo), mas sim afetar a garantia especial preexistente (a hipoteca) aos fins (ou seja, como objeto) da caução. E isto parece-nos inteiramente legal, pois que o que está sempre em causa é que se mostre que o crédito exequendo é objeto de uma garantia idónea, e isto tanto se atinge mediante uma garantia de constituição ex novo como mediante a afetação de uma garantia preexistente.”

Também Lebre de Freitas parece perfilhar de tal posição quando afirma (in A Ação Executiva, 6ª edição, 2014, 225) que “havendo garantia constituída, a caução só se justifica pela diferença presumível, eventualmente existente, entre o seu valor e o do crédito exequendo e acessórios, incluindo os juros que, em estimativa, se preveja que venham a vencer em resultado da paragem do processo executivo”

O mesmo entendimento parece defender Rui Pinto quando refere “havendo penhora ou garantia real, a caução cobrirá apenas o eventual diferencial estimado entre o valor garantido pela penhora e o estimado, após a mora processual, se necessário reforçando ou substituindo a penhora nos termos do artº 818º n.º 2 in fine, não se duplicando as garantias na parte já coberta. Mas também por isso mesmo se não houver diferencial, pode ser dispensada a prestação de caução por já haver penhora ou garantia real suficientes mesmo para a mora processual” (in Manual da Execução e Despejo, 2013, 434-435).

Por sua vez Lopes do Rego também parece dispensar a constituição de uma nova garantia aceitando como caução a pré existente ao afirmar que “é evidente que, se, se tratar de execução de débito provido de garantia real que assegure integralmente aquele interesse do credor, não haverá (demonstrada tal circunstância no procedimento de prestação de caução) lugar à constituição de nova garantia, julgando-se, …“prestada” a caução através da mera subsistência da garantia real pré-existente (cfr. Comentário ao CPC, 1999, 543).

Na mesma linha de entendimento Remédio Marques salienta que só se impõe a prestação de caução se à data do pedido de suspensão ainda não tiver sido efetuada a penhora ou a dívida exequenda não se encontrar provida de garantia real cujo valor seja igual ou superior ao crédito exequendo (cfr.. Curso de Processo Executivo Comum, 2000, 163-164).

Da mesma opinião parece comungar F. Amâncio Ferreira quando refere “sendo função estrita da caução a mera garantia da dívida exequenda, e não também a de cobrir os prejuízos resultantes da demora no prosseguimento da ação executiva, não se torna necessária a prestação de caução se o crédito tiver garantia real (v.g., hipoteca) constituída anteriormente à ação executiva, ou se ulteriormente se efetuar penhora, desde que uma e outra garantam o crédito exequendo e acessórios, incluindo os juros que se vençam em consequência da paragem do processo”(cfr. Curso de Processo de Execução”, 11ª ed., 196).” 
 
[MTS]
 
 

27/04/2020

Jurisprudência 2019 (226)


Título executivo;
títulos de crédito

1. O sumário de 3/12/2019 (4604/08.5TJCBR-B.C1) é o seguinte:

I - É à luz da lei vigente à data da sua constituição/emissão que, em princípio, se deve aferir da exequibilidade de um título.

II - Ainda que despidos da sua natureza cartular (vg. por extinção da obrigação cambiária), os títulos cambiários podem revestir-se de força de executiva, enquanto documentos particulares/quirógrafos, desde que tenham neles mencionada a relação causal subjacente à sua emissão ou o exequente a indique no requerimento executivo.

III - Assim, tendo o exequente (a favor de quem foram emitidos) indicado no requerimento executivo a relação causal subjacente à sua emissão, gozam de força executiva – enquanto documentos particulares quirógrafos - os cheques que apresentados a pagamento foram devolvidos com fundamento no seu bloqueamento pelo titular da conta/seu sacador.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da ação executiva (artº. 45º, nº. 1, do revogado CPC de 61 – em vigor à data da instauração da ação executiva - e artº. 10º, nº. 5, do nCPC).

No campo dos títulos executivos vigora, entre nós, o princípio da legalidade/tipicidade, segundo o qual só pode servir de base a um processo de execução documento a que seja legalmente atribuída força executiva.

Assim, e a esse propósito, o atual Código de Processo Civil (aprovado pela Lei nº. 41/2013, de 26/06, e entrado em vigor, nos termos do seu artº. 8º dessa lei, em 01/09/2013), sob a epígrafe “espécies de títulos executivos”, dispõe, no seu artº. 703º, nº. 1, que à “execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

2- (…)”.

Constituía entendimento dominante que a exequibilidade de um título deve ser aferida pela lei vigente ao tempo da propositura da respetiva ação (cfr., entre outros, a Abrantes Geraldes, in “Títulos Executivos”, Revista da Faculdade de Direito da UNL, A Reforma da Acção Executiva, Ano IV, nº 7, 2003, pág. 47” e Ac. do STJ de 15/2/2002, in “Rec. Agravo nº 3054/02, 1ª. sec., Sumários, 12/2002”).

Entretanto, o tribunal constitucional, através do acordão nº. 408/2015, de 23/2015 (publicado no DR, I série, nº. 2015, de 14/10/2015), veio declarar, “com força com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei nº. 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força o artigo 46º, nº. 1, alínea c), do Código de Processo Civil, de 1961, constante dos artigos 703º, do Código de Processo Civil, e 6º., nº. 3, da Lei nº. 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2º. da Constituição.”

Ora, extrai-se dessa doutrina fixada pelo TC (e reforçada daquilo que decorre da sua fundamentação), em homenagem ao princípio da constitucional da proteção da confiança, que o momento a atender para aferir da exequibilidade de um título deve ser aquele em que o mesmo foi emitido.

Sendo assim, e tendo os cheques em causa dados à execução sido emitidos no ano de 2005 (pelo menos é essa a data que neles consta, sem que tenha aqui sido questionada), é à luz da lei então em vigor que deverá ser apreciada a sua força executiva – e na pior das hipóteses seria sempre à data da instauração da execução, que neste caso ocorreu em 16/12/2008) -, sendo, pois, nessa medida, inaplicável, ao contrário do que fez o tribunal a quo, ao caso que nos foi submetido a apreciação, o atual CPC (e tal como ressalta, aliás, já ressaltava também do expresso no artº. 6º, nº. 3, daquela citada Lei nº. 41/2013, de 26/06, que o aprovou), sendo que, adiante-se, no caso, a solução final a que irá chegar-se não divergiria, em nossa opinião, na hipótese de se optar diretamente pela aplicação do nCPC.

Desse modo, dada a data em que foram emitidos os aludidos cheques e a que se reportam os presentes autos (e em último caso a própria ação executiva), a referida apreciação (da sua exequibilidade) deverá ser feita à luz do revogado CPC 61, na versão então em vigor (e à qual nos referiremos adiante, sempre que nada se diga em contrário).

Diploma esse que, sob a epígrafe “espécies de títulos executivos”, dispunha então no seu artº. 46º, nº. 1 (na redação que lhe foi então – no que concerne à sua al. b) – lhe foi introduzida pelo DL nº. 38/2003 de 08/03), que:

“a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos elaborados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.”

 
En passant, diga-se, que no confronto do citado artº. 46º (vg. al. c) do nº. 1 do CPC 61) com o também citado artº. 703º (vg. al. c) do nº. 1 do nCPC), verifica-se que enquanto o legislador do CPC de 61 ampliou a o elenco dos títulos executivos, já o legislador do nPC restringiu, no que concerne aos documentos particulares, esse elenco dos títulos executivos.

Conforme decorre do relatório do preâmbulo do DL nº 329-A/95 de 12/12 (pioneiro da introdução de tal reforma, que introduziu ao CPC de 61), o legislador justificou então tal ampliação do elenco dos títulos executivos com a ideia de “contribuir significativamente para a diminuição do número de acções declaratórias de condenação propostas, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, visando apenas facultar ao autor o, até agora, indispensável título executivo judicial”.

Legislador esse que decidiu, assim, sacrificar o valor de uma maior segurança jurídica aos valores de maior eficácia e celeridade das relações jurídicas.

Já o legislador do nCPC - e como decorre a exposição de motivos da Proposta de Lei 113/XII, que deu origem à Lei nº. 41/2013 de 26/06 que o veio aprovar - justificou essa referida redução/restrição invocando razões contraditórias daquelas que o anterior legislador havia aduzido para proceder à referida ampliação do elenco do títulos executivos baseados em documentos particulares, pois que apontou razões de interesse público para retirar força executiva aos documentos referidos no artº. 46º nº. 1 al. c) do anterior CPC, visando impedir, com tal, o risco de proliferação de ações executivas injustas, já concretizado no “aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório”, privilegiando, assim, a segurança jurídica."

[MTS]

24/04/2020

Jurisprudência 2019 (225)


Desistência do pedido;
efeitos processuais


1. O sumário de RP 4/11/2019 (32/18.2T8GDM-A.P1) é o seguinte:
 
I - A declaração de desistência do pedido configura um negócio unilateral não recetício, como tal não dependente do conhecimento da contraparte.

Operando de imediato, extingue o direito de que o desistente se pretendia fazer valer.

II - Enquanto negócio suportado numa declaração negocial está sujeito aos mesmos requisitos gerais de qualquer outro negócio.

Bem como sujeita aquela declaração de vontade às regras de interpretação definidas no CC.

III - A declaração de desistência do pedido emitida no âmbito de processo judicial tem efeitos processuais, entre os quais a extinção da instância e absolvição do pedido na medida em que seja aquela julgada válida por sentença devidamente transitada.

IV - E uma vez transitada em julgado tal sentença, fica a desistência do pedido abrangida pela força do caso julgado.

 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Alega a recorrente nas alegações de recurso:

- que a sua defesa por exceção [deduzida na contestação] “assenta exclusivamente na extinção do direito de crédito que a Autora faz valer na presente ação”, porquanto tendo a A. formulado precisamente o mesmo pedido há 4 anos, dele desistiu;

- tendo sido a A. quem em resposta à contestação erradamente qualificou de caso julgado a exceção alegada, no que foi seguida pela decisão recorrida;

- ter ocorrido violação do disposto no artigo 285º nº 1 do CPC, na medida em que o direito da recorrida se extinguiu pela desistência do pedido declarada na primeira ação;

- sendo para o por si alegado completamente irrelevante a causa de pedir [pelo tribunal a quo enquadrada na exceção de caso julgado].

Neste contexto foram formuladas as conclusões de recurso acima transcritas, nas quais a recorrente (re)afirma a extinção do direito de que se pretende fazer valer a recorrida, por via da desistência do pedido, declarada na primeira ação instaurada. [...]

O tribunal a quo enquadrou a exceção deduzida pela R. no instituto do caso julgado – exceção dilatória que e se procedente conduz à absolvição da instância e obsta ao conhecimento do mérito da causa, tal como o determinam os artigos 576º nº 2 e 577º al. i) – e apreciando, julgou esta improcedente pela não verificação da tríplice identidade – falhando a causa de pedir.

Entende a recorrente que pertinente para a questão por si suscitada é a declaração da desistência do pedido [independente da sentença homologatória proferida] e nesta colocando a tónica, afirma ser a mesma suficiente para a extinção do direito da recorrida, como tal enquadrando a exceção deduzida nas exceções perentórias[6] que e se procedentes conduzem à absolvição do pedido.

Aparentemente, a recorrente pretende dissociar, na declaração da desistência do pedido apresentada na primeira ação, os efeitos processuais dos substantivos, para tanto convocado o disposto no artigo 285º do CPC que alega ter sido violado.

Só aos segundos [efeito substantivo da extinção do direito] dando relevo e por essa via pretendendo afastar o enquadramento da exceção deduzida no caso julgado.

Adianta-se, desde já, que o enquadramento defendido pela recorrente, inviável como veremos, sempre conduziria ao mesmo efeito que o decidido pelo tribunal a quo.

Pode-se dizer que em termos processuais o efeito extintivo da declaração de desistência do pedido manifesta-se na extinção da instância, tal como decorre do disposto no artigo 277º al. d) do CPC: “Os negócios processuais são os negócios jurídicos que produzem diretamente efeitos processuais, isto é são os atos processuais de caráter negocial que constituem, modificam ou extinguem uma relação processual.” [Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 2ª ed. 1997, p. 193]

Em termos substantivos, por sua vez, a desistência do pedido extingue o próprio direito de que o desistente se pretendia fazer valer judicialmente (vide artigo 285º nº 1 do CPC).

Enquanto negócio suportado numa declaração negocial, está o mesmo sujeito aos mesmos requisitos gerais de qualquer outro negócio : “são elementos essenciais de todo e qualquer negócio jurídico (…) a capacidade das partes (e a legitimidade quando a sua falta implique invalidade e não apenas ineficácia)”, a declaração de vontade sem anomalias e a idoneidade do objeto”. [Prof. Carlos Alberto Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed. atualizada de 1989, p. 383/384]

Motivo por que a extinção da instância pressupõe prévia apreciação jurisdicional sobre a validade da declarada desistência - tanto validade formal como substantiva - como decorre do disposto no artigo 290º nº 3 do CPC, a ser declarada por sentença homologatória.

Sendo os negócios jurídicos “atos jurídicos constituídos por uma ou mais declarações de vontade dirigidas à realização de certos efeitos práticos, com intenção de os alcançar sob a tutela do direito (…)” [O mesmo autor in ob. cit. p. 379], no caso do negócio jurídico unilateral há uma só declaração, sendo para a eficácia do negócio desnecessária a aceitação de outra parte.

Não obstante, esta mesma eficácia poderá estar dependente do conhecimento do destinatário, caso em que o negócio unilateral é recetício por contraposição aos negócios unilaterais não recetícios quando dispensam para a sua eficácia esse mesmo conhecimento.

A renúncia unilateral (tal como o testamento) é um exemplo de negócio não recetício, porquanto entre o mais só reflexamente produzem as renúncias unilaterais “efeitos na esfera de terceiros”[Vide neste sentido o mesmo autor in ob. cit. p. 388.].

Nesta medida a declaração emitida pela ora recorrida no âmbito de outro processo de desistência do pedido configura um negócio unilateral não recetício não dependente do conhecimento da contraparte [Vide neste sentido Ac. TRE de 26/10/2017, nº processo 168214.1TBFAR.E1 in www.dgsi.pt].

E por esta via uma declaração válida de desistência do pedido, operando de imediato, preclude o direito do desistente em posteriormente vir peticionar de novo o reconhecimento do direito antes renunciado ou reconhecida a sua inexistência – preclusão que ocorre mesmo antes da homologação da desistência por sentença – desde que válida.

Será esta a vertente convocada pela recorrente.

Ocorre que a declaração emitida o foi no âmbito de um processo judicial e como tal enquadra-se num negócio processual com efeitos processuais, tal como acima já mencionado, culminando com a extinção da instância e a absolvição do pedido formulado contra a R., tal como o dispõe o artigo 290º nº 3 do CPC, na medida em que seja aquela julgada válida por sentença.


E uma vez transitada em julgado tal sentença, fica a desistência do pedido apresentada no processo coberta pela força do caso julgado [Vide neste sentido Ac. TRG de 16/05/2019, nº processo 275/17.6T8PTL.G1; Ac. TRP de 13/06/2019, nº processo 4640/17.0T8AVR-A.P1 in www.dgsi.pt].

Nesta medida nenhuma censura merece o enquadramento jurídico seguido pelo tribunal a quo, apreciando a exceção deduzida no âmbito da exceção dilatória de caso julgado."

[MTS]

23/04/2020

Legislação (191)



-- Dec. Ret. 17/2020, de 23/4: Declaração de Retificação à Lei n.º 10/2020, de 18 de abril, «Regime excecional e temporário quanto às formalidades da citação e da notificação postal, no âmbito da pandemia da doença COVID-19

-- P 101/2020, de 23/4: Procede à primeira alteração à Portaria n.º 357/2019, de 8 de outubro, que regulamenta as comunicações eletrónicas entre os tribunais judiciais e as escolas da rede pública tuteladas pelo Ministério da Educação

Jurisprudência 2019 (224)

 
Herança indivisa; dívidas da herança;
legitimidade passiva*

 
1. O sumário de RP 4/11/2019 (1136/18.7T8VFR.P1) é o seguinte:
 
I - Os titulares dos direitos e deveres da herança aceite mas que se mantém indivisa, em comum e sem determinação de parte, são os herdeiros/sucessores do autor daquela herança.
 
Não a própria herança aceite mas indivisa, a qual não é sujeito de direitos, não dispõe de personalidade judiciária e como tal não pode ser parte ativa nem passiva.
 
Só quem é parte pode ser condenado ou absolvido.

II - Pelos encargos da herança, incluindo as dívidas do falecido responde o património autónomo constituído pelos bens da herança indivisa.
 
Sendo para esse fim demandados os herdeiros/sucessores nessa qualidade.

III - Em ação na qual são RR. os herdeiros/sucessores do autor de herança indivisa e aceite, em que a A. alega ser credora da herança e demandar os herdeiros (nessa qualidade) para que possa obter a responsabilização daquela herança “R”, é de entender que o pedido formulado pela A., embora imperfeitamente expresso, é o de condenação dos RR. na qualidade em que são demandados a reconhecer a existência do crédito reclamado da responsabilidade da herança.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"In casu a A. instaurou, corretamente, atenta a reconhecida indivisão da herança aceite, a ação contra os herdeiros do autor de tal herança.
 
E nessa medida verificam-se os pressupostos processuais da personalidade e capacidade judiciária, bem como da legitimidade.
 
A questão – fundamento da decisão recorrida – baseou-se na entendida desadequação do pedido formulado perante as partes e causa de pedir identificados pela autora.
 
Esta autora, não obstante ter instaurado a ação contra os herdeiros da herança indivisa – que na p.i. identificou como RR. - terminou formulando pedido condenatório contra a “R.”.
 
Após terem sido pedidos esclarecimentos à A., pelo tribunal a quo, sobre “contra quem deduz o pedido”, nomeadamente se o faz “contra a herança indivisa não partilhada deixada por óbito de (…) devidamente representada por todos os herdeiros” ou “se o faz individualmente contra cada um dos herdeiros” - esclarecendo que no último caso é fundamental que a herança tenha já sido partilhada e no primeiro caso que os herdeiros “apenas podem ser condenados a reconhecer a existência de crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança” – e consequentemente endereçado convite à correção do pedido formulado “(…) nessa conformidade” (sublinhados nossos), respondeu a A.:
 
- ser responsável pelos alegados danos a herança aberta por óbito de D…;
 
- ter a herança sido aceite e permanecer indivisa, pelo que “a autora intentou a ação contra todos os seus herdeiros”.
 
Não formulou a A. qualquer correção ao pedido, na sequência do por si informado, em conformidade com o que o tribunal a quo antes havia expresso ser o seu entendimento para esta última hipótese.
 
Certo sendo que do esclarecimento prestado ficou também claro que a A. não deduziu o pedido contra cada um dos herdeiros indicados e muito menos pretende a condenação destes a título individual [porquanto afirma a responsabilidade da herança].
 
Ao invés tendo demandado estes, conforme esclareceu, na qualidade de herdeiros porquanto pelos danos de que pretende ver-se ressarcida, afirma ser responsável a herança aberta por óbito de D…, herança que assim pretende ver condenada. Por tanto e para tanto tendo instaurado a ação contra todos os seus herdeiros (entende-se herdeiros do de cujus).
 
A pretensão da recorrente é clara: que seja o património autónomo a responder pelas dívidas da responsabilidade do de cujus. [...]
 
 *
 
Em sede de recurso (vide as conclusões supra transcritas) a recorrente reitera que intentou a ação contra todos os herdeiros do de cujus para assegurar a respetiva legitimidade processual, mas não a legitimidade substantiva a qual está adstrita à herança.
 
Sendo esta – herança – a responsável pela dívida.
 
Nunca tendo sido pretensão da autora responsabilizar os herdeiros diretamente pela dívida [entende-se responsabilidade a título individual].
 
Motivo por que “peticionou a condenação da Ré (herança) e não dos Réus (herdeiros)”.
 
Tendo efetivamente pedido “a condenação da Ré (herança)” por ainda não ter ocorrido a partilha.
 
*
 
Dos despachos e requerimentos a que acima fizemos alusão, incluindo conclusões de recurso, extrai-se que não obstante a A. ter corretamente intentado a presente ação contra todos os herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de D…, repetidamente afirmou pretender a condenação da Ré herança.
 
Mas igualmente afirmou que demandou todos os herdeiros do de cujus na medida em que pelas dívidas da herança responde a herança.
 
O que é correto perante o disposto nos artigos 2068º e 2097º do CC já supra citados.

É ponto assente que a herança – indivisa mas aceite – não dispõe de personalidade judiciária e não é sujeito de direitos [Vide Ac. TRL de 17/03/2011, nº processo 57/10.6TBVPT.L1-2 in www.dgsi.pt].

Herança que também é claro não foi demandada – demandados são os herdeiros do de cujus.

A demanda da herança aliás só seria possível em caso de herança jacente por via da extensão da personalidade judiciária prevista no artigo 12º do CPC. Só nesta situação sendo possível condenar a R. herança. [Cfr. Ac. TRG de 02/06/2016, nº processo 72/15.3T8VPA.G1 [...] ].

A questão que analisamos não é de legitimidade processual, mas de procedência do pedido.

O tribunal a quo, em observância do dever de gestão processual, sobrepondo e bem o fundo à forma, esclareceu a A. sob os pressupostos condenatórios e moldes em que o pedido formulado poderia ser procedente [se demonstrados os pressupostos para tanto alegados] e convidou a A. a corrigir o seu pedido em conformidade com o que indicara antes.
 
A A. sem proceder a qualquer correção do pedido, alegou numa primeira resposta ser responsável pelos danos a herança e justificou por tal razão ter demandado os herdeiros do de cujus.

O assim declarado deixa margem para uma interpretação conforme à condenação dos RR. enquanto herdeiros a reconhecer a existência do crédito reclamado. Crédito este da responsabilidade da herança.

E assim entendido o pedido, ao tribunal incumbiria numa eventual procedência da ação, precisar os termos condenatórios, nomeadamente clarificando que o crédito seria satisfeito pelas forças da herança, ou seja que a satisfação daquele estaria limitado pelos bens que constituem o acervo hereditário.

O tribunal a quo, numa interpretação excessivamente rígida e formal concluiu que o pedido condenatório foi formulado - stricto sensu - contra a herança.

A qual não só não é parte, como não tem suscetibilidade de o ser [atento o facto de não ter personalidade judiciária].

E por esta via concluiu pela improcedência do pedido, porquanto ao tribunal está vedado condenar em objeto diverso do pedido.

A questão convoca as regras da interpretação definidas no CC, de acordo com as quais a declaração vale com o sentido que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário poderá deduzir do comportamento do declarante (art.º 236º do C.C.).

“A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante” [Ant. Varela in C.C.Anot., 4ª ed. P. 223 – nota 4].

No contexto acima já especificado quer quanto à pretensão concreta expressa pela autora, isto é, qual o fim último visado com a ação instaurada; quer quanto aos esclarecimentos que a autora e recorrente foi prestando no processo a solicitação do tribunal, ficou claro que a mesma não pretendia a condenação dos herdeiros a título individual. Ainda que a demanda dos mesmos resultou justificada pelo facto de serem os herdeiros do de cujus, pretendendo a responsabilização de toda a herança.

Resultando a demanda dos herdeiros portanto do facto de serem estes os titulares do direito à herança, em comum e sem determinação de parte

Tendo presente:

- que os RR. são efetivamente os herdeiros do de cujus, e de tal não há dúvida porquanto foram os demandados e citados para os termos da ação, que aliás contestaram sem que a qualidade em que foram demandados lhes tenha suscitado dúvidas, atentos os termos em que contestaram.

- que é certo ter a A. reafirmado pretender a condenação da “R” herança o que também explicou no contexto de responsabilidade da herança pelas dívidas do falecido nos termos legais já supra citados;

- que a herança não é parte por não ser sujeito de direitos e assim não podendo ser condenada, sendo antes os RR. quem são os titulares do direito à herança nos termos também já referidos;

- que a A. expressou de forma clara qual era o sentido das suas declarações e por tanto qual a pretensão jurídica deduzida;

justificava-se a nosso ver, numa sobreposição do fundo sob a forma, que o tribunal a quo tivesse considerado precisamente que o pedido formulado pela autora era o de condenação dos RR. – pois são estes os demandados - a reconhecer a existência do crédito reclamado da responsabilidade da herança.

Note-se que o assim determinado não viola o princípio do dispositivo de acordo com o qual está o tribunal vinculado a resolver o conflito que as partes sujeitam à sua apreciação – delimitado pela causa de pedir e pedido formulados, os quais definem o objeto do processo – porquanto embora imperfeitamente expresso, é claro o sentido do pedido formulado pela autora.

Nesta perspetiva, entende-se assistir razão à recorrente, implicando a revogação da decisão a qual deverá ser substituída por outra que – após considerar que o pedido formulado pela autora é o de condenação dos RR. enquanto herdeiros na herança aberta por óbito de D…, a reconhecer a existência do crédito reclamado pela autora e da responsabilidade da herança – determine o prosseguimento dos autos para apreciação das demais questões suscitadas.".
 
*3. [Comentário] A RP decidiu bem.
 
A herança indivisa é responsável pelos encargos da herança, entre os quais se incluem as suas dívidas (art. 2068.º CC). No entanto, a herança indivisa, ao contrário da herança jacente, não é um património sem titulares, mas antes um património que tem como contítulares, numa situação de comunhão de mão comum, os herdeiros. É, aliás, por isso que é necessário atribuir personalidade judiciária à herança jacente (art. 12.º, al. a), CPC) -- que é um património sem titulares --, mas não à herança indivisa -- que é um património com vários titulares.
 
Assim, a alternativa não é entre pedir a condenação da herança indivisa ou pedir a condenação dos herdeiros, mas entre pedir a condenação dos herdeiros a título pessoal ou pedir a condenação dos herdeiros como contitulares da herança indivisa. Esta última teria sido a escolha correcta.
 
MTS
 

22/04/2020

Legislação (190)


Tribunais administrativos e fiscais

-- P 100/2020, de 22/4: Procede à primeira alteração à Portaria n.º 341/2019, de 1 de outubro, e à quarta alteração à Portaria n.º 380/2017, de 19 de dezembro


Procedimento cautelar; processo de jurisdição voluntária; recurso de revista




[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]


 

Bibliografia (902)


-- Fichtner, J. A./Mannheimer, S. N./Monteiro, A. L., Âmbito de aplicação da Convenção de Nova Iorque as convenções de arbitragem: necessária adoção do critério da internacionalidade, Revista de Arbitragem e Mediação 63 (2019), 227 [OA]

 

Jurisprudência 2019 (223)

 
Dupla conforme;
violação de regras processuais
 

1. O sumário de STJ 21/11/2019 (92/13.2TBPMS.C1.S1) é o seguinte:
 
I. Defere-se a presente reclamação para a conferência, admitindo-se o recurso, circunscrito à apreciação da alegada violação das normas processuais respeitantes à reapreciação da prova por não ter a Relação formado uma convicção própria, e, em consequência, à apreciação das invocadas nulidades do acórdão recorrido correctamente qualificadas como tal.

II. No caso dos autos, resultando do teor da fundamentação do acórdão recorrido que a Relação procedeu à apreciação dos meios de prova invocados numa e noutra apelação, com referência à factualidade impugnada, não se limitando a aderir ao juízo probatório da 1ª instância, antes formando uma verdadeira convicção própria, conclui-se pela inexistência da alegada violação das normas processuais respeitantes à reapreciação da prova.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"5.1. [...] Em sede de reclamação invocam os Recorrentes ter a Relação violado o disposto no art. 640º e no art. 662º, ambos do CPC. Compulsadas as alegações de recurso, constata-se que a referência à violação do regime do art. 640º do CPC não consta das conclusões recursórias, mas tão-só do corpo das alegações. E que aí apenas se refere essa norma sem que, afinal, se proceda à concretização da alegada violação do regime do art. 640º do CPC. Conclui-se, assim, que esta alegação não permite descaracterizar a dupla conforme.

Subsiste a questão da invocada violação das normas processuais respeitantes à reapreciação da prova por, alegadamente, não ter a Relação formado uma convicção própria, antes se ter limitado a remeter para a sentença da 1ª instância (concl. recursória 3).

Trata-se de questão relativa a irregularidade que vem imputada à conduta da própria Relação em sede do seu poder de reapreciação dos factos impugnados pela apelação interposta pelo R. Nesta medida, conforme jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, tal questão não se encontra abrangida pela dupla conforme, nos termos e para os efeitos do nº 3 do art. 672º do CPC.

Circunscrita a este fundamento e, em consequência, também à apreciação das nulidades correctamente qualificadas como tal, a presente revista é admissível.

Esclareça-se também que, compulsado o corpo das alegações de recurso, nele se encontram referências a outras matérias e/ou questões (reapreciação da matéria de facto; condenação do A. como litigante de má fé) que não integram o objecto do recurso, uma vez que não encontram qualquer reflexo nas respectivas conclusões recursórias pelas quais, nos termos do nº 4 do art. 635º do CPC, se delimita o objecto recursório. Matérias e questões que, de todo o modo, sempre se encontrariam abrangidas pela dupla conforme, enquanto obstáculo à admissibilidade do recurso; e cujo conhecimento por este Supremo Tribunal, no que se refere à aludida reapreciação da matéria de facto, sempre seria limitado nos termos do nº 3 do art. 674º do CPC.

6. Pelo exposto, defere-se a reclamação, admitindo-se o recurso, circunscrito à apreciação da alegada violação das normas processuais respeitantes à reapreciação da matéria de facto por não ter a Relação formado uma convicção própria, e à apreciação das invocadas nulidades do acórdão recorrido correctamente qualificadas como tal."
 
[MTS]
 

21/04/2020

Jurisprudência 2019 (222)

 
Litigância de má fé;
garantia do contraditório
 

1. O sumário de STJ 21/11/2019 (1986/06.7TVLSB-C.L1.S2) é o seguinte:

I. De acordo com o despacho proferido nos autos, no presente caso em que a decisão de condenação por litigância de má-fé integra a decisão que põe termo ao processo, não está em causa uma decisão interlocutória, mas antes uma parte ou extensão da decisão de mérito; assim, e ainda que não se ignore existirem, a esse respeito, divergências na jurisprudência do STJ, considerou-se ser a decisão recorrível nos termos gerais do nº 1 do art. 671º do CPC.

II. Incindindo a decisão de condenação por litigância de má-fé sobre os “representantes legais da autora”, os actos de notificação da própria sociedade autora não podem valer como notificação pessoal dos seus representantes legais; nem tampouco o conhecimento pessoal que estes possam ter dos factos provados relevantes, nos quais a sobredita condenação se fundou, pode suprir a falta de notificação pessoal, se tal falta tiver ocorrido.

III. Assim, comprovando-se que um dos recorrentes (i) não foi nominalmente notificado; (ii) à data da notificação dos despachos em causa, não era já representante legal da autora; (iii) não veio aos autos apresentar resposta aos despachos da 1ª instância que ordenaram a notificação do “representante legal” da autora; forçoso é concluir não ter o mesmo recorrente sido pessoal e devidamente notificado.

IV. Compulsado o processo, verifica-se que, por acórdão anterior da Relação, foi definida – e não impugnada – a aplicação do regime da condenação por litigância de má-fé anterior à reforma do CPC (introduzida pela Lei nº 41/2013, de 26/06), de acordo com o qual, quando a parte for uma pessoa colectiva, a responsabilidade pelas custas, multa e indemnização inerentes à condenação recai sobre o representante legal da mesma; na medida em que os ora recorrentes, na primeira vez que vieram ao processo, não invocaram qualquer nulidade processual – designadamente pelo facto de o direito aplicável ter sido definido antes de terem sido pessoalmente notificados, não lhes tendo sido dada oportunidade de se pronunciarem sobre a questão da própria determinação de tal regime – formou-se a esse respeito caso julgado formal.

V. Quanto à alegada inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do regime dos arts. 456º e ss do CPC antigo, por violação do princípio da retroactividade das normas sancionatórias de conteúdo mais favorável, mostra-se evidente, a partir da conclusão do ponto IV, que o acórdão recorrido não interpretou nem aplicou as normas em causa, antes se limitou a considerar ter-se formado caso julgado formal a respeito da aplicação de tais normas. Pelo que não padece o acórdão recorrido da invocada inconstitucionalidade.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"7. Quanto à questão da alegada violação do princípio do contraditório por falta de notificação do Recorrente EE, consideremos os termos em que o acórdão recorrido apreciou a questão:

“Relativamente à invocada nulidade da decisão, e salvo novamente o devido respeito, se há direito que foi respeitado em todo este processado foi o do contraditório, conhecendo as partes as decisões proferidas pelos Tribunais de recurso quanto a este particular aspeto e tendo, nessa sequência, sido notificadas, mais do que uma vez, para se pronunciarem sobre essa mesma litigância de má-fé.

Acresce que a matéria de facto fixada nas decisões acima mencionadas e que fundam a condenação como litigantes de má-fé dos aqui Apelantes, não foram objeto de alteração, nem em sede dos recursos anteriormente suscitados, nem no presente, mantendo-se, assim, inalterados e sendo também incontornável que foi sobre essa mesma materialidade que o Tribunal de 1ª Instância, na decisão aqui sob recurso, sustentou a respetiva condenação.

Neste contexto, a simples invocação pelos Apelantes de estarem perante uma decisão surpresa – a que foi proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância e está aqui em apreciação
, constitui, só por si, um comportamento que não é compatível com o da lisura processual que se impõe às partes no processo.

Com efeito, a presente ação foi instaurada em 23 de Março de 2006 sendo certo que a procuração mencionada nos autos foi outorgada pelo aqui Apelante EE, com data de 16 de Maio de 2000, na qualidade de sócio e gerente da A. e com poderes para o acto e em representação da A. – alínea B) dos Factos Provados.

A factualidade com interesse para a compreensão da ação está basicamente contida nas alíneas H), I), N), O), P), U), Y) e Z) dos Factos Provados, dali se aferindo o papel preponderante que o Apelante Vítor Santos sempre teve na condução dos factos que precederam a instauração desta ação, quer como sócio maioritário e único gerente da A., enquanto sociedade por quotas, obrigando sozinho esta sociedade, quer depois da sua transformação em sociedade anónima, quando passa a ocupar o lugar de Presidente do Conselho de Administração e onde os demais Apelantes ocupam o lugar de vogais. Estes, por sua vez, ocupavam o lugar de gerentes da A. em 16 de Maio de 2000, quando aquela era uma sociedade por quotas, intervindo nessa qualidade na escritura pública mencionada sob a alínea K).

Podemos facilmente concluir pela leitura de toda a materialidade dada como provada que todos os Apelantes intervieram nos actos em que a A. fundou a presente ação tendo, assim, pleno conhecimento dos mesmos e que exerceram as suas funções na realização dos interesses daquela e dos mesmos, confundindo-se em ambos o prosseguimento de toda asta atividade que, objetivamente, tem lançado os Apelados num verdadeiro “calvário” jurídico que perdura há mais de sete anos, apenas para apuramento da má-fé processual dos Apelantes.

Improcede, pois, a invocada nulidade da decisão.”


Constata-se que, efectivamente, a Relação entendeu não ter ocorrido desrespeito do princípio do contraditório na condenação dos Recorrentes, enquanto representantes legais da A., atendendo, por um lado, a que, ao longo das múltiplas vicissitudes do processado, as partes foram por diversas vezes notificadas para se pronunciarem sobre a possibilidade de condenação por litigância de má-fé; e, por outro lado, a que os Recorrentes têm conhecimento pessoal dos factos que conduziram à condenação por litigância de má-fé.

Não pode acompanhar-se este entendimento que se afigura padecer de ilegalidade e de inconstitucionalidade.

Com efeito, incindindo a decisão de condenação por litigância de má-fé sobre os “representantes legais da A.” (a sociedade AA - Administração de Propriedades, Lda.), os actos de notificação da própria autora não podem valer como notificação pessoal dos seus representantes legais. Nem tampouco o conhecimento pessoal que estes possam ter dos factos provados relevantes, nos quais a sobredita condenação se fundou, pode suprir a falta de notificação pessoal, se tal falta tiver ocorrido.

Assim, importa verificar se o aqui Recorrente EE foi ou não pessoalmente notificado para se pronunciar sobre a possibilidade de condenação por litigância de má-fé.

Compulsados os autos, verifica-se que, por despachos da 1ª instância de fls. 2333 e de fls. 2721 (do processo principal), foi determinada a notificação do “legal representante” da A. para se pronunciar sobre a existência de má-fé e consequências respectivas, sem se identificar a pessoa ou pessoas em causa, e sem se especificar que se tratava dos representantes legais da A. à data da propositura da acção.

GG e FF vieram aos autos apresentar resposta a cada um dos referidos despachos, respectivamente, a fls. 2359 e a fls. 2726 (do processo principal).

Comprovando-se que EE: (i) não foi nominalmente notificado; (ii) à data da notificação dos despachos em causa, não era já representante legal da A. (cfr. certidão do registo comercial junta com o recurso de apelação); (iii) não veio aos autos apresentar resposta aos despachos da 1ª instância de fls. 2333 e de fls. 2721 (do processo principal); forçoso é concluir não ter este sido pessoal e devidamente notificado.

Conclui-se, assim, ter sido desrespeitado o princípio do contraditório por falta de notificação pessoal do Recorrente EE."
 
[MTS]