"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/09/2020

Bibliografia (942)


-- Bachmann, Johannes FriedrichUniversalisierung des Europäischen Zivilverfahrensrechts / Die unilaterale Erstreckung des Europäischen Zivilverfahrensrechts auf Drittstaatensachverhalte (Duncker & Humblot; Berlin 2020)




Jurisprudência 2020 (63)


Prova testemunhal;
contradita


1. O sumário (?) de RP 9/3/2020 (445/18.0T8ILH.P1) é o seguinte:

I - Nos termos do disposto no artigo 644º nº 1 al. a) do CPC cabe recurso de apelação da decisão proferida em 1ª instância que ponha termo a “(…) incidente processado autonomamente”.

Entre estes incidentes, inclui-se o incidente do valor da causa, processado nos termos dos artigos 296º a 310º do CPC e como tal processado autonomamente, mesmo que no âmbito do próprio processo.

II - Tendo sobre o incidente suscitado sido proferida decisão final, incumbia à parte interpor recurso no prazo de 30 dias após notificação da decisão, por força do disposto nos artigos 638º nº 1 e 644º nº 1 al. a) do CPC.

III- A nulidade da sentença a que se reporta o artigo 615º nº 1 al. d) do CPC – respeitante à omissão ou excesso de pronúncia – respeita ao não conhecimento de todas as questões/ ou ao conhecimento para lá de todas as questões que são submetidas à apreciação pelo tribunal. Ou seja de todos os pedidos, causas de pedir ou exceções cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo conhecimento de outra(s) questão(ões). Não se confundindo questões com argumentos ou razões invocadas pelas partes em sustentação das suas pretensões.

IV - O objeto processual é conformado pelo pedido e causa de pedir delineados na petição inicial pelo autor.

Sendo o objeto da ação o limite da condenação.

V - A junção de documentos – para prova dos fundamentos da ação ou da defesa - em sede de recurso, com as alegações só é permitida:

- quando tal apresentação não tenha sido possível até à apresentação do recurso;
ou
- quando a sua junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.

VI- O meio próprio para abalar a credibilidade do depoimento de testemunha, oferecendo para tanto prova documental, é o recurso à “Contradita” regulado nos artigos 521º e segs. do CPC.

VII - Visando os documentos oferecidos com as alegações abalar a credibilidade do depoimento de testemunha ou fazer prova ou contra prova de factualidade alegada nos articulados anterior à decisão proferida, é em sede de recurso inadmissível a sua junção.

VIII - Sobre a parte interessada na alteração da decisão de facto recai o ónus de alegação e especificação dos concretos pontos de facto que pretende ver reapreciados; dos concretos meios de prova que impõem tal alteração e da decisão que a seu ver sobre os mesmos deve recair; bem como e no caso de prova gravada, da indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso, sob pena de rejeição da reapreciação desta prova gravada.

IX - Na reapreciação da matéria de facto o tribunal da Relação, fazendo uso dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, deve alterar o decidido pelo tribunal a quo quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão, fundada então em erro de julgamento.

X - A privação do uso de veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável, desde que o lesado alegue e prove que para além da impossibilidade de utilizar o bem, tal privação gerou perda das utilidades pelo mesmo proporcionadas.

XI - O período em que o lesado fruiu das utilidades de um veículo alugado é de excluir do dano indemnizável referido em IX [X].

XII - O montante a colocar à disposição do lesado pela empresa de seguros nos termos e para efeitos do disposto no artigo 42º nº 2 do DL 291/2007 tem de ser o correspondente ao valor da indemnização devida.

XIII - Incumbindo ao autor alegar e provar os danos por si suportados em consequência do evento danoso, recai sobre o mesmo o ónus de alegar e provar que o valor disponibilizado pela seguradora para os fins referidos em XI [X] foi insuficiente e assim que o dano correspondente à privação do uso do seu veículo se prolongou para além de tal momento.

XIV - Na fixação do quantum indemnizatório por danos não patrimoniais e tal como decorre do disposto no artigo 496º nº 4 do CC, há que recorrer a critérios de equidade, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Analisadas as conclusões BA) a BH) temos que o recorrente justifica a junção dos documentos [...]  alegando, entre o mais:

“BF - Os supra referidos e-mails são comprovativos que, em virtude da sentença proferida, se tornam necessários pois provam a falsidade do depoimento da testemunha, pelo que se requer a junção aos autos nos termos do disposto no art. 651.º do Código de Processo Civil.

BG - Salienta-se ainda que a testemunha da Ré/recorrida ouvida em audiência de julgamento dia 24/01/2019 exerce função de gestora de sinistros ao serviço da mesma, há mais de 20 anos, motivo pelo qual o seu depoimento não é isento.

BH - Mais grave que a falta de isenção no depoimento prestado é o facto de mentir ao Tribunal o que descredibiliza totalmente o depoimento prestado.

BI - O facto provado em 46 deve ser eliminado, considerado não escrito sendo a matéria de facto alterada nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) do C.P.C.”

Peticiona o recorrente a junção de tais documentos para prova da “falsidade do depoimento de testemunha” e assim descredibilizar o seu depoimento, por esta via obtendo a eliminação do ponto 46 dos factos provados.

Os documentos em questão consistem em 4 emails alegadamente trocados entre o A. e R. no período compreendido entre 22/01/2016 e 27/06/2018, tendo a ação sido instaurada em julho de 2018.

E visam portanto, de um lado descredibilizar um depoimento prestado e de outro fundamentar a alteração de um ponto da decisão de facto.

Ora se o recorrente pretendia abalar a credibilidade do depoimento da testemunha prestado em audiência, o meio próprio que deveria ter oportunamente convocado era o da “Contradita”, regulado nos artigos 521º e segs. do CPC.

Momento processual adequado para oferecer os documentos que tivesse por oportunos.

Ultrapassado tal momento, está vedado ao recorrente nomeadamente em sede recursória invocar como fundamento para a junção de documentos o que anteriormente deveria ter convocado, no fim do depoimento da testemunha.

Por outro lado, os documentos em questão reportam-se a momento temporal à instauração da ação e não pode o recorrente invocar, com propriedade, que a sua junção se tornou necessária em virtude do decidido, pois que em causa está apenas a apreciação por parte do tribunal a quo de matéria de facto em discussão.

Poderá discordar do julgamento efetuado, e assim expressou o seu entendimento. Mas tal é questão a apreciar em sede de reapreciação da decisão de facto.

Não é contudo fundamento para a pretendida junção de documentos, pois que se trata de decisão sobre factualidade que estava em discussão.

Em conclusão, por inadmissível, vai indeferida a junção dos documentos oferecidos pelo recorrente com as suas alegações."

[MTS]


29/09/2020

Jurisprudência 2020 (62)


Revisão de sentença  estrangeira;
ordem pública internacional*


1. O sumário de RL 7/4/2020 (405/19.3YRLSB-2) é o seguinte:

É irrelevante, no caso concreto, que se saiba que no processo onde foi proferida a decisão (pelo cônjuge marido), não foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes (o que se declara tendo em vista o disposto no art. 980/-e do CPC). Já que a mulher, embora se encontrasse presente, se limitou a ouvir o divórcio pronunciado pelo marido, sem se poder opor ao mesmo.

É que o divórcio que resulta de uma declaração unilateral não pressupõe, logicamente, o contraditório ou a igualdade das partes. Daí que seja discutível a sua revisibilidade em abstracto. Mas, admitido que possa ser confirmado, como se viu que no caso pode ser, não se pode voltar ao início e pô-lo em causa por não haver contraditório ou igualdade das partes. Assim, o estudo citado de María Dolores Cervilla Garzón, ponto 42, nota 33, lembra que o facto de não existir motivo para oposição à pretensão de dissolução tão pouco é algo estranho para o ordenamento jurídico espanhol, pois desde a reforma de 2005 é possível o divórcio ou separação por simples vontade unilateral de uma das partes, sem que a outra tenha possibilidade de opor-se à dita pretensão; veja-se acima o que também se disse sobre o direito português, relativamente ao divórcio por separação de facto ou por ruptura definitiva do casamento, e sobre direito francês, relativamente ao divórcio por alteração definitiva da relação conjugal).

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Há muito que quer o direito islâmico quer o direito judaico, relativo a um certo tipo de divórcio, têm servido de exemplo de um conjunto de normas que põe em causa princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português (OPI) e que, por isso, não deve ser aplicado.

Note-se que é também este exemplo, que leva a que se tenham em consideração os fundamentos de uma decisão de divórcio, que põe em evidência que não é correcta a posição de que o reconhecimento só pode ser recusado quando a parte decisória da sentença a rever é, em si mesma, contrária à OPI (baseada no teor do artigo 1096/-f do CPC na redacção de 1939/1961, que se referia a ‘decisões’ contrárias), sendo irrelevante que os fundamentos em que assenta sejam ou não contrários à OPI (sem que essa posição tenha em conta que os arts. 1096/-f do CPC na redacção de 1996 e o art. 980/-f do CPC na redacção de 2013, falam em ‘resultados’ incompatíveis).

O que, indo mais longe, também põe em causa a forma como vem sendo entendida a afirmação de que o sistema português de revisão de sentenças estrangeiras é um sistema de reconhecimento individualizado, com controlo fundamentalmente formal (dito de delibação), isto é, quando a tal é dado o sentido de que não seria possível apreciar o mérito da decisão a rever, querendo-se com isso tirar impedimentos à actuação do tribunal, designadamente no sentido de não ser necessário conhecer os fundamentos da decisão ou no sentido de não se poder controlar os fundamentos da decisão.

Ora, como se diz no ac. do STJ de 14/03/2017, proc. 103/13.1YRLSB.S1: “apesar de se afirmar que, em Portugal, o reconhecimento de sentenças (nomeadamente) arbitrais estrangeiras observa o sistema de revisão formal ou delibação, não apreciando o juiz, em regra, o mérito da causa, convém esclarecer que se, em geral, assim é, o nosso sistema também contém inegáveis pontos de aproximação a elementos próprios dos de revisão de mérito.”

Ou como diz Sampaio Caramelo, em O reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, 2016, Almedina, pág. 128 e segs: a “salientada proibição da revisão de mérito da sentença arbitral pelo juiz do controlo, tem só a ver com aquilo que consta do Guia do ICCA sobre a aplicação da CNI. Ou seja, que “o tribunal estadual não detém o poder de substituir a decisão do tribunal arbitral a respeito do mérito pela sua própria decisão, ainda que os tribunais tenham cometido erro de facto ou de direito.”

Ou seja, não se trata de uma “proibição de reexame do mérito” “que é, aliás, desmentida sempre que o juiz de controlo seja chamado a apreciar a contrariedade da sentença arbitral com a ordem pública ou a ordem pública internacional” (ainda segundo o mesmo autor, obra e local citados).

Voltando à questão do controlo da decisão ou dos fundamentos, como diz João Gomes de Almeida (O divórcio em direito internacional privado, Almedina, Out2017, pág. 625), se aquela posição [controlo da decisão] fosse certa, “nenhuma sentença estrangeira que decret[ass]e o divórcio […] [seria] susceptível de ser contrária à OPI […] uma vez que o Direito português admite o divórcio.” Ora, a “susceptibilidade da violação da OPI só surge se for perfilhada a posição propugnada de que é possível atender aos fundamentos da sentença estrangeira. O Direito marroquino permite demonstrar isso.” (pág. 627).

Posto isto.

O aspecto mais marcante desses direitos – num de vários modos de dissolução do matrimónio - que serve para o exemplo, é o facto de o marido poder acabar com o casamento simplesmente mediante o repúdio da mulher e sem que a mulher possa fazer o mesmo. Dito nos termos do autor acabado de citar, agora na pág. 626: “O instituto do talak [talaq segundo outras traduções] permite [apenas] ao cônjuge marido dissolver o casamento por sua única e exclusiva vontade, sem que o cônjuge mulher se possa opor.” No direito judaico trata-se do ghet, segundo informa João Gomes de Almeida (na apresentação de 2019 citada abaixo, pág. 79).

Note-se que o art. 44-2, do CEP de 1957-1958-1993, a mulher também tem a faculdade de repudiar o marido (= tamlik), mas só se ela lhe for dada pelo marido (em virtude do direito de opção). É o que também resulta do art. 89 do CF de 2004; ou seja, está dependente da vontade do marido, como explica María Dolores Cervilla Garzón, no ponto 10 do seu estudo, tal como o ac. do TRL de 2007 citado abaixo.

Ora, considerava-se que aquele regime não era aceitável porque não se concebia que um casamento pudesse terminar por vontade de apenas um dos cônjuges, sem qualquer fundamento objectivo; mais tarde, começou-se a entender, que aquele regime também não era aceitável por violação do princípio da igualdade: só o marido é que podia acabar com o casamento, por sua única vontade, não a mulher. É já principalmente desta perspectiva, por exemplo, que João Gomes de Almeida analisa a questão na obra citada, págs. 626 a 629.

Há um terceiro argumento que é utilizado e que é o facto de o repúdio/talaq [pelo menos até 2004 pode-se continuar a usar a expressão correctamente] ser, durante um determinado período, livremente revogável (quando o seja, porque nem todos os repúdios serão revogáveis, como resulta das normas transcritas acima) por vontade unilateral do cônjuge marido, o que atentaria contra os princípios da igualdade e da dignidade humana da mulher. Mas, como resulta de tais normas e do que é lembrado por João Gomes de Almeida e pelo ac. do TRL de 2007, a questão não se pode chegar a pôr porque, durante esse período, o divórcio não é definitivo e por isso não pode ser pedida a sua revisão (art. 980/-b do CPC). Pelo que este argumento não é válido (no mesmo sentido, os pontos 47 e 48 do estudo de María Dolores Cervilla Garzón).

Hoje (e é hoje que interessa, porque é com a concepção da OPI actual que há que confrontar o pedido do reconhecimento), o primeiro argumento é afastado com a constatação de que, por exemplo, o direito espanhol, pertencente à mesma família jurídica de direito romano-germânico em que Portugal está inserido, aceita o divórcio a pedido [num casamento que tenha durado pelo menos três meses: é o que resulta da conjugação do art. 86 [redacção da Ley 15/2005, de 08/07] com as circunstâncias previstas no art. 81/2º, ambos do CC espanhol; Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 5.ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, págs. 736-737 fala deste divórcio). E mesmo no direito português há quem veja – embora o faça mais em sentido crítico do que como descrição do regime - na hipótese de divórcio prevista no art. 1781, alíneas (a) e (d) do CC, um divórcio a pedido (e Guilherme Oliveira, obra e local citados, sugere – faz-se uma síntese grosso modo - que é o que poderá acontecer caso se aplique aquela alínea de uma forma condescendente ou facilitada, como, por exemplo, no caso de se aceitar a alegação de ‘falta de afecto’ como motivo de divórcio aí inserida). Ou seja, a ideia do divórcio a pedido já não é estranha ao nosso ordenamento jurídico e, por isso, já não provoca um sentimento de rejeição. De resto, não havendo, ainda, em Portugal, o divórcio a pedido, já existe, como se vê, desde 2008, o divórcio sem consentimento do outro cônjuge, embora com fundamentos previstos legalmente (ar. 1781 do CC), entre eles os previstos na alínea (a) em que basta a simples separação de facto por um ano consecutivo e na alínea (d) quanto à ruptura definitiva do casamento. E o mesmo se diga do direito francês, como se verá mais à frente.

O segundo argumento, no entanto, continua válido e, por isso, em abstracto, o divórcio muçulmano decorrente da vontade unilateral do marido não é aceitável segundo a OPI (do Estado português), por violação do princípio da igualdade.

Os autores chamam, no entanto, a atenção para que a questão não deve ser apreciada em abstracto, mas em concreto, e que a ofensa aos princípios da ordem pública internacional do Estado só deve levar a que não se aceite o resultado da aplicação do direito estrangeiro que esteja em causa, quando a situação jurídica, que foi por ele regulada, tenha uma conexão muito próxima com o Estado português; não a tendo, o tribunal português não se deve imiscuir na questão. Para além de não o dever fazer quando é a própria mulher que vem pedir o reconhecimento da sentença estrangeira. E ainda, segunda João Gomes de Almeida quando “se apurar que, no caso concreto, se verificava algum dos motivos que são, segundo o direito material português, fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges” (pág. 628).

(sobre tudo isto, para além do autor e obra já muito citados, veja-se, por exemplo:
- Ferrer Correia, Lições de DIP, 1973, Universidade de Coimbra, pág. 569;

- Teixeira de Sousa, O regime jurídico do divórcio, Almedina, 1991, pág. 20;

- Luís Lima Pinheiro, DIP, vol. III, tomo II, Reconhecimento de sentenças estrangeiras, 2019, 3.ª edição, AAFDL, págs. 66 a 71, 188 a 237, especialmente 227 a 230;

- Mariana Silva Dias, O reconhecimento do repúdio islâmico pelo ordenamento jurídico português: a excepção de ordem pública internacional, publicado na revista Julgar, n.º 23, 2014 e consultável online: que, para “o caso em que o repúdio é pronunciado no estrangeiro, previamente à emigração das partes para um Estado ocidental”, se pronuncia “a favor do reconhecimento do repúdio pelo Estado do foro. Com efeito, a dissolução do casamento verificou-se previamente à existência de qualquer ligação das partes com o Estado do foro, de acordo com um procedimento perfeitamente válido no país de origem. Numa situação destas, com uma conexão tão baixa com o Estado ad quem, será difícil que os resultados produzido pelo reconhecimento da sentença sejam manifestamente contrários aos princípios de ordem pública internacional e seria mais prejudicial ainda para as partes se estas fossem obrigadas a iniciar um segundo procedimento de divórcio no Estado do foro.” É esta autora que em nota lembra que “O repúdio apenas tem de ser autenticado por três adouls, que são os notários encarregues de emitir documentos autênticos sobre casamentos e divórcios e que são supervisionados pelo tribunal.” Noutra nota lembra “A esse prazo chama-se Idda e tem a duração de três meses ou três períodos menstruais. Durante esse tempo, a mulher vive afastada do marido e não pode casar-se novamente ou ter relações sexuais”, notas que, entre o mais, serviram para melhorar a tradução que foi feita da acta em causa. Em texto, a autora ainda escreve: “seguidamente, coloca-se o problema de saber se apenas estão sujeitas a revisão as decisões proferidas por um órgão jurisdicional ou se este regime de reconhecimento deve ser aplicado analogicamente às decisões de entidades religiosas que, em ordens jurídicas estrangeiras, delegam poderes de autoridade. Segundo Lima Pinheiro, «por “decisão” entende-se qualquer ato público que, segundo a ordem jurídica do Estado de origem, tenha força de caso julgado». Assim sendo, consideramos que as decisões provenientes de ordenamentos jurídicos que reconhecem força de caso julgado aos actos emitidos pelas autoridades religiosas neles sedeadas, devem ser alvo de revisão e confirmação quando se suscite o seu reconhecimento perante o Estado português.”

- María Dolores Cervilla Garzón, La aplicabilidad de las normas del Código de Familia marroquí (la Mudawana) que regulan el divorcio en España: el filtro constitucional, publicado em Cuadernos de Derecho Transnacional, n.º1 de 2018, editada por por el Área de Derecho Internacional Privado de la Universidad Carlos III de Madrid., https://doi.org/10.20318/cdt.2018.4119; [2014:313];

- ac. do TRL de 18/10/2007, proc. 10602/2005-2, que, entre o muito mais, lembra a posição de Ferrer Correia: “O repúdio da mulher portuguesa pelo marido muçulmano ofende o preceito constitucional que consagra o princípio da igualdade dos cônjuges. Mas se a mulher deu o seu assentimento ao repúdio – ou no próprio acto ou mesmo posteriormente – não se descortinam razões para fazer apelo à ordem pública; isto no caso de o repúdio ter sido realizado no estrangeiro, ao abrigo da lei do domicílio comum das partes, competente nos termos do art. 31º, nº 2 do Código Civil. O mesmo se diga se é a mulher quem pede em Portugal o reconhecimento dos efeitos do repúdio, v.g., porque pretende contrair segundo casamento” (Lições de Direito Internacional Privado I, Almedina, 2000, páginas 415 e 416);

- e uma apresentação feita por João Gomes de Almeida, sobre Casos práticos de divórcio transnacional, págs. 59 a 89, especialmente págs. 68 a 80 e 87 a 89 de um ebook do CEJ sobre o Direito Internacional da Família, Março de 2019).

Ora, o caso dos autos é precisamente um daqueles casos em que não existe conexão relevante com o Estado português: o requerente e a requerida eram ambos marroquinos e residentes em Marrocos. O divórcio foi decidido em Marrocos em 1995, cerca de 1 ano e meio depois do casamento e tal aconteceu há mais de 24 anos. O requerente tem a nacionalidade portuguesa só desde 2009 e vive em França, enquanto a ex-mulher continua a viver em Marrocos.

Assim sendo, o reconhecimento, no caso, não deve ser negado, com base na OPI."

[MTS]


28/09/2020

Jurisprudência 2020 (61)


Terceiros para efeitos de registo;
concepção restrita*


1. O sumário de RP 9/3/2020 (1873/18.6T8PVZ.P1) é o seguinte:

I - A decisão do processo na fase do saneador-sentença só pode suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência.

II - Se de acordo com as soluções plausíveis da questão e direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito;

III - A proteção dos terceiros adquirentes de boa-fé estabelecida no art. 291º do C.Civil não é aplicável aos negócios gratuitos, assim como não é invocável no caso de negócio oneroso de transmissão de bens alheios, perante o verdadeiro proprietário, porquanto, perante o proprietário, aquele contrato não tem nenhum valor assumindo o cariz de inter allius acta, sendo que a ineficácia do contrato relativamente ao proprietário opera ipso iure.

IV - Não tendo o registo natureza constitutiva, mas apenas valor declarativo, os atos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, por princípio, quaisquer direitos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão resume-se a saber se não tendo o autor registado o seu direito de propriedade não pode opô-lo a Ré que beneficia de registo da aquisição a seu favor.

Defende a Apelante que ocorreu violação dos artigos 4º e 5º do Código do Registo Predial, sendo a falta de registo do direito de propriedade do Autor impeditiva da declaração de nulidade do negócio jurídico de doação.

Afirma que “o autor veio invocar um facto sujeito a registo, não registado que pode ser invocado entre as partes”.

Diz a Apelante que o Autor não pode vir opor á segunda ré o facto de ter havido uma doação de bens alheios, com fundamento no art. 956º do C.C., quando existe uma lei especial, o CRPredial que prevê que a falta de registo não pode ser oposta aos interessados, pelo que não podia o tribunal ter declarado procedente a ação e determinado o cancelamento do registo a favor da Apelante

Vejamos se pode ser assim.

Da certidão do imóvel junta aos autos, verifica-se que a ora Apelante registou o direito de propriedade através da AP 1685 de 2018/03/26.

Por sua vez o Apelado registou a presente ação através da AP 2427 de 2018/11/12.

A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo (artigo 2º, nº 1, alínea a), do Código do Registo Predial).

Porém, o registo predial tem essencialmente por fim dar publicidade aos direitos inerentes às coisas imóveis (artigo 1º do Código do Registo Predial).

O registo predial, por si, não cria direitos de propriedade, apenas lhes dá publicidade.

Tem, pois, essencialmente, uma função declarativa e não constitutiva, conserva direitos mas não os cria, e não pode suprir a falta do direito nem sanar os vícios que envolvam os direitos transmitidos.

Ora o aqui Apelado adquiriu o direito por acessão imobiliária.

A acessão, segundo o art. 1325º do C.C., nas palavras de Luis A. Carvalho Fernandes, [In Lições de Direitos Reais, 6ª edição, pg.339] consiste na união ou incorporação em coisa de que é titular certa pessoa, de outra coisa pertença de pessoa diferente.

A aquisição por acessão imobiliária, como maioritariamente é aceite pela doutrina e pela jurisprudência é uma forma potestativa de aquisição do direito de propriedade, de reconhecimento necessariamente judicial, que depende, para se concretizar, de manifestação de vontade nesse sentido por parte do respetivo titular e em que o pagamento do valor do prédio funciona como condição suspensiva da sua transmissão, embora com efeito retroativo ao momento da incorporação, conforme arts.1316.º e 1317.º, al. d), do CC.

Apesar da doação de bens alheios ser ineficaz em relação ao respetivo proprietário, este pode pedir a declaração da sua nulidade no confronto do doador/donatário (artigo 286º do Código Civil).

Na situação em apreço foi declarada a nulidade da doação efetuada por escritura publica 23.3.2018 entre as Rés, por se tratar de uma doação de bens alheios, tendo-se provado que a propriedade do imóvel pertence ao Autor que a adquiriu de forma originária através de acessão imobiliária industrial.

Ora, não tendo o registo natureza constitutiva, mas apenas valor declarativo, os atos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, por princípio, quaisquer direitos.

O conceito de terceiros deve, por isso refletir e ser entendido de acordo com essa função declarativa do registo e natureza publicitária.

A aquisição do direito de propriedade está sujeita a registo – art. 2º nº 1 al a) do Código do Registo Predial.

E os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo – art. 5º nº 1 do mesmo código.

Por sua vez, o art. 6º nº 1 proclama o princípio de que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos.

Finalmente o art. 7º preconiza que o registo definitivo constitui presunção que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

Isto posto, pretende a Ré a prevalência do seu registo por ser anterior ao do Apelado (que apenas registou esta ação).

Ou seja, há que saber em que medida a inscrição de um facto no registo predial, ou a sua não inscrição condiciona, retira ou atribui a alguém uma qualquer posição de vantagem jurídica.

A este propósito, de forma muito expressiva, referiu muito recentemente, o professor M.Teixeira de Sousa no blogue do IPPC,[Jurisprudência 2019 (186) [...] o seguinte: “Em princípio dever-se-ia esperar que um facto registado seria oponível a qualquer pessoa que não tivesse um registo incompatível anterior. Mas estranhamente no ordenamento jurídico português não é assim: seguindo uma chamada conceção restrita de terceiros, para efeitos de registo, o artigo 5º nº 4 do CRegPredial estabelece que um facto registado só (de acordo com a tal conceção restrita) é oponível a um outro adquirente de um autor comum.

Na verdade, a conceção restrita de terceiros para efeitos de registo obriga a distinguir (isto é, no universo daqueles que não são titulares do registo) entre os terceiros aos quais o registo é oponível (que são apenas aqueles que tenham adquirido o direito registado de um mesmo transmitente ou cedente) e os terceiros aos quais o registo não é oponível, que são todos os outros). O caráter restritivo da referida conceção reside nisto mesmo: em restringir, através do referido critério, os terceiros (ou seja os não titulares do registo) aos quais o registo é oponível ”.

A questão em apreço, não tem, reconhecidamente uma resposta fácil e passa desde logo pela controversa questão de saber quem é terceiro para efeito de registo.

Sem nos queremos alongar nesta matéria, como é sabido, a jurisprudência e doutrina têm-se dividido entre a adoção de um conceito amplo de registo - aquele que considera terceiro aquele que tem a seu favor um direito que não pode ser afetado pela produção dos efeitos de um ato que não figura no registo e que com ele seja incompatível [Neste entendimento, a compra na venda judicial de um imóvel prevalece sobre qualquer venda anterior do mesmo bem mas que não tenha sido registada ou, tendo-o, o registo seja posterior ao registo da respetiva penhora.] -- e um conceito restrito [Em que não considera terceiro, por exemplo, o adquirente do imóvel na venda judicial, em processo executivo, pois entende que a aquisição não deriva do mesmo transmitente que anteriormente vendeu o bem, embora sem registo. Isto é, para estes, terceiros são apenas os supostos adquirentes de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa de um mesmo autor comum, por isso, não considerando terceiro o exequente que nomeou o bem à penhora, ou o que nessa execução o veio a comprar, sendo-lhe oponível a aquisição anterior do mesmo bem, mesmo que não registada.

A questão veio a dar origem aos acórdãos do STJ para fixação de Jurisprudência nºs 15/97, de 20.05.1997 [Publicado no DR, I Série A, nº 152, de 4.7.1999- que considerou “terceiros para efeitos de registo predial, todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por um qualquer facto jurídico anterior não registado, ou registado posteriormente”] e 3/99, de 18.05 [Publicado no DR I Série, de 10.07.99 - que considerou “terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, os adquirentes de boa fé, de um mesmo direito transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa”].

Após os aludidos acórdãos uniformizadores, entra em vigor a redação do artº 5º do CRP, decorrente do Dec.-Lei nº 533/99, de 11.12, que no seu nº 4 veio dispor que “Terceiros, para efeitos de Registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

O regime de tutela dos terceiros de boa-fé, resultante das regras registrais, supõe aquisições sucessivas de um mesmo transmitente, tendo sido registada a segunda transmissão, mas não a primeira, pretendendo o primeiro adquirente (que não registou) invocar a invalidade do negócio de que resultou a segunda aquisição (registada), porque, à data da sua celebração, já o direito transmitido não se encontrava na esfera jurídica do transmitente, mas antes na esfera jurídica do primeiro adquirente.

Daí que, no caso em apreço, não faça sentido falar-se da prevalência das regras de registo contidas no Código de Registo Predial. Nestas, estão em causa adquirentes a quem os seus direitos foram transmitidos pelo mesmo titular, o que não é o caso dos autos, em que ocorreu uma aquisição originária do direito de propriedade sobre a coisa, por parte do autor.

Em face deste conceito, parece não haver dúvidas que Apelante e Apelado não são terceiros para efeitos de registo, já que não adquiriam o seu direito de autor comum. Não existe um transmitente comum do direito em conflito.

Com efeito, o autor adquiriu o seu direito de forma originária – através de acessão imobiliária.

A Acessão constitui causa originária de aquisição do direito real e por isso em nada é afetada pelas vicissitudes do registo que atinjam o anterior direito que se extingue por via delas (cf. Oliveira Ascensão Direito Civil - Reais 3ª Ed. Pág.309 e Menezes Cordeiro Direitos Reais III/1052)

O registo que a aqui Ré pretende fazer valer respeita assim o anterior direito que se extinguiu em consequência da aquisição por acessão do direito de propriedade do aqui Autor.

Daí que também nesta parte o recurso tenha de soçobrar.

*3. [Comentário] A RP decidiu bem.

Como decorre da citação do post do Blog -- o que cabe agradecer --, a RP decidiu segundo a lei, mas não pode deixar de se afirmar de imediato que o acórdão constitui um óptimo exemplo da péssima solução legal. Perante um terceiro que não seja adquirente do mesmo bem de um autor comum, qualquer titular registado está, atendendo ao disposto no art. 5.º, n.º 4, CRegP, precisamente na mesma situação de qualquer titular não registado.

MTS

26/09/2020

Bibliografia (941)


-- Locatelli Francesca, IL GIUDICE VIRTUOSO. ALLA RICERCA DELL’EFFICIENZA DEL PROCESSO CIVILE (E.S.I.: Napoli 2020)

-- Pagliantini, Stefano, RICERCHE DI DIRITTO EUROPEO TRA SOSTANZA E PROCESSO (E. S. I.: Napoli 2020)


25/09/2020

Jurisprudência 2020 (60)


Sentença estrangeira;
reconhecimento automático

1. O sumário de RE 2/4/2020 (12/20.8YREVR) é o seguinte:

Estando em causa decisão de autorização para disposição de bens dos menores situados em Portugal, decretada na Bélgica, por força do princípio do reconhecimento automático consagrado no artigo 21.º/1 do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, consubstancia decisão que é reconhecida em Portugal, Estado-membro da União Europeia, sem qualquer formalidade.

2. Na fundamentação e na parte dispositiva da sentença escreveu-se o seguinte:

II  FUNDAMENTOS

[...] No caso em apreço, está em causa uma sentença proferida no Estado da Bélgica que tem por objeto a autorização de venda de bem imóvel da titularidade de sujeitos menores de idade.


Por via disso, tem aqui aplicação o regime inserto no Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003 (relativo à competência, para o reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental. Efetivamente, prescreve o art. 1.º/1 al. b) do citado Regulamento que o mesmo é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental, sendo que, tais matérias dizem, nomeadamente, respeito às medidas de proteção da criança relacionadas com a administração, conservação ou disposição dos seus bens – cfr. art. 1.º/2 al. e). Tratando-se, como se trata, de decisão de autorização para disposição dos bens dos menores, por força do princípio do reconhecimento automático consagrado no art. 21.º/1 do Reg. (CE) n.º 2201/2003 [...], consubstancia decisão que é reconhecida em Portugal, Estado-membro da União Europeia, sem qualquer formalidade.


O que vale por dizer que é dispensável o recurso a qualquer procedimento para que a decisão de autorização para disposição dos bens dos menores seja reconhecida em Portugal. Donde, não tem cabimento o processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira previsto nos arts. 978.º e ss do CPC.


É certo que, nos termos do disposto no art. 21.º/3 do citado Regulamento, a parte interessada pode pedir uma declaração judicial de reconhecimento ou de não reconhecimento, aplicando-se nesse caso o procedimento estabelecido para a declaração de executoriedade mediante a instauração de um processo prévio da competência do tribunal de comarca ou, existindo, do Tribunal de Família e Menores – cfr. arts. 29.º/1 e 68.º do Regulamento. No entanto, uma vez que o objeto do presente processo, conformado pelo concreto pedido deduzido e pela causa de pedir que o suporta, não contende com a declaração de executoriedade, não se verifica a incompetência deste Tribunal para a apreciação e decisão da causa.

Antes ocorre a exceção dilatória da falta de interesse em agir por parte da Requerente, implicando na absolvição do Requerido da instância – arts. 576.º/ 1 e 2 e 577.º do CPC.[Cfr., entre outros, Ac. TRC de 20/11/2008 (Jacinto Meca)]


III – DECISÃO FINAL

Pelo exposto, julgando-se procedente a exceção dilatória da falta de interesse em agir, decide-se absolver o Requerido da instância."

[MTS]


24/09/2020

Informação (273)


IAPL


O vídeo do Wibenar da IAPL sobre Remodelling Civil Justice in Challenging Times? (22/09/2020) pode ser visto aqui.



Jurisprudência 2020 (59)


Mandatário judicial;
falta de poderes*


1. O sumário de RG 19/3/2020 (5588/19.0T8VNF-B.G1) é o seguinte:

I- Sendo as partes pessoas singulares ou sociedades, no processo de insolvência é sempre admitida a sua representação por mandatário que deve então, na expressão do nº 1, do artigo 35, do CIRE, estar dotado de poderes para transigir.

II- Todavia, esta expressão, conquanto seja muitas vezes utilizada em sentido técnico estrito, como simples sinónimo de convencionar ou acordar, deve aqui ser entendida em termos mais amplos, envolvendo necessariamente a possibilidade de confessar ou desistir, pois que, é através do exercício de tais faculdades que será possível obviar à realização da audiência, que constitui a principal motivação da comparência pessoal ou equivalente.

III- E assim sendo, para haver uma legítima representação do requerente ou devedor bastará que a respectiva procuração confira poderes para confessar ou desistir, que são os poderes suficientes para poder obviar à realização da audiência, que, como se deixou dito, é a principal motivação da comparência pessoal ou equivalente.

IV- A situação de insolvência a que alude o n.º 1 do art.º 3.º do CIRE depende da verificação da impossibilidade de o devedor cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas.

V- Os factos-índice elencados no n.º 1 do art.º 20, do CIRE, que constituem condição necessária para legitimar a iniciativa processual dos sujeitos aí mencionados, não são, necessariamente, e em todas as situações, suficientes para que se declare a insolvência, revelando-se de igual modo, como pressuposto imprescindível - com excepção da situação prevista na alínea g) -, que o incumprimento, em razão do seu montante ou pelas circunstâncias em que ocorre, revele a impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua incapacidade patrimonial generalizada.

VI- Assim, para que possa ser decretada a insolvência têm de resultar demonstrados os factos ou circunstâncias em que o incumprimento ocorreu, em termos de permitir suportar a conclusão de que se está perante uma impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua “penúria ou incapacidade patrimonial generalizada”, pois que, o devedor apenas será insolvente logo que se torne incapaz de pagar as suas dívidas no momento em que estas se vencem.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como fundamento da sua pretensão recursória começa o Recorrente por alegar, em síntese, que nos presentes autos foram as partes notificadas atempada e devidamente, tendo estado presentes em audiência de julgamento, em conformidade com o que consta ata, na data devidamente agendada.

Contudo o Requerente, pese embora tenha sido representado por Mandatário forense, não se poderá afirmar que tenha estado presente tendo em conta a ausência de conferir ao Mandatário Forense poderes especiais para transigir, em conformidade com procuração forense junto com o Requerimento inicial.

E assim sendo, deveria o julgador a quo, em sede de sentença final ter homologado a desistência do pedido, nos termos legais supra referenciados e ter declarado a extinção da instância, o que, no entanto, não fez, tendo prosseguido com a Audiência de Julgamento e, em consequência, decretado a Insolvência do Requerido.

De harmonia com o disposto no artigo 35, do CIRE, (nº 1) “tendo havido oposição do devedor, ou tendo a audiência deste sido dispensada, é logo marcada audiência de discussão e julgamento para um dos cinco dias subsequentes, notificando-se o requerente, o devedor e todos os administradores de direito ou de facto identificados na petição inicial para comparecerem pessoalmente ou para se fazerem representar por quem tenha poderes para transigir” sendo que, (nº 2) “não comparecendo o devedor nem um seu representante, têm-se por confessados os factos alegados na petição inicial, se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º”, e, apenas (nº 3) “não se verificando a situação prevista no número anterior, a não comparência do requerente, por si ou através de um representante, vale como desistência do pedido”.

Ora, como referem L.A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “a obrigação de comparência é determinada pelo nº 1. Se as partes são pessoas singulares, são elas mesmas quem deve estar presente. Quando assim não seja, a presença é assegurada pelos respectivos administradores, na acepção do artigo 6º, devendo comparecer aqueles que, segundo a lei ou o estatuto do devedor, possam vinculá-lo. Em qualquer dos casos, porém, admite-se a representação por mandatário que deve então, na expressão do nº 1, estar dotado de poderes para transigir.

Esta expressão, conquanto seja muitas vezes utilizada em sentido técnico estrito, como simples sinónimo de convencionar ou acordar, deve aqui ser entendida em termos mais amplos, envolvendo necessariamente a possibilidade de confessar ou desistir. Realmente, é através do exercício de tais faculdades que será possível obviar à realização da audiência, que, se bem entendemos, será a principal motivação da comparência pessoal ou equivalente” (Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, reimpressão de 2009, pg. 185). (…)

Ora na situação vertente, pese embora a procuração forense junta com o Requerimento inicial não confira poderes especiais para transigir, o certo é que confere poderes especiais para desistir da instância, e tanto basta para que se possa e deva considerar devidamente representado requerente, pois que, se não tem poderes para transigir ou confessar, tem poderes para desistir do processo, poderes esses suficientes para poder obviar à realização da audiência, que, como se deixou dito, “será a principal motivação da comparência pessoal ou equivalente”.

Improcede, assim, nesta parte a presente apelação."

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito (e, em especial, o respeito devido à memória de um Colega entretanto falecido), a doutrina citada no acórdão não deixa de ser duvidosa. Se, como impõe o art. 35.º, n.º 1, CIRE, tiver sido concedido ao advogado poderes para transigir, é discutível que esse mesmo advogado possa simplesmente desistir ou confessar o pedido.

A razão é bem simples: a transacção pressupõe "recíprocas concessões" entre as partes (art. 1248.º, n.º 1, CC), ou seja, pressupõe uma desistência parcial do pedido pelo autor e uma confissão igualmente parcial do pedido pelo réu. Ora, uma coisa é uma desistência parcial do pedido em troca de uma confissão parcial do pedido, ou vice-versa, outra é uma desistência ou confissão do pedido, ainda que parcial, sem qualquer contrapartida da outra parte.

O argumento a maiori ad minus só pode funcionar na hipótese inversa: se for concedido ao mandatário judicial poderes para desistir ou para confessar o pedido, então esse advogado também tem poderes para celebrar uma transacção (que é, dito de forma simples, uma desistência ou uma confissão do pedido com contrapartidas da outra parte).

b) A RG entendeu que a concessão de poderes para desistir da instância é suficiente para satisfazer a exigência da concessão de poderes para transigir constante do art. 35.º, n.º 1, CIRE. Salvo a devida consideração, não se pode acompanhar esta orientação.

Desde logo, há uma diferença fundamental entre a transacção judicial e a desistência da instância. A transacção judicial termina um litígio (art. 1248.º, n.º 1, CC), ou seja, situa-se no plano do mérito da acção e resolve definitivamente o litígio entre as partes; a desistência da instância apenas faz cessar o processo pendente (art. 285.º, n.º 2, CPC), isto é, não se situa no plano do mérito da acção e, por isso, não impede a repropositura da acção. Sendo assim, não se vislumbra como é que a concessão de poderes para terminar o processo sem qualquer decisão quanto ao mérito pode equivaler à concessão de poderes para transigir sobre o mérito da causa.

A RG argumenta que os poderes para desistir da instância são "poderes [...] suficientes para poder obviar à realização da audiência [final]". Também isto não é verdade. Como decorre do disposto no art. 286.º, n.º 1, CPC, a desistência da instância depende da aceitação do réu se for requerida depois da contestação do réu. Disto resulta que, sem a anuência do devedor demandado, o advogado do autor não pode "obviar à realização da audiência".

c) Em conclusão: como pediu o devedor recorrente, deveria ter-se aplicado o disposto no art. 35.º, n.º 3, CIRE e considerado que o autor, pela falta de representante com poderes para transigir, desistiu do pedido. O efeito cominatório imposto por este preceito prevalece sobre a eventual sanabilidade do vício nos termos do art. 48.º CPC.

MTS

23/09/2020

Jurisprudência 2020 (58)


Despacho de aperfeiçoamento; omissão;
excesso de pronúncia


1. O sumário de RG 19/3/2020 (20175/19.0T8VNF-E.G1) é o seguinte:

I- O princípio do contraditório é hoje entendido um direito de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.

II- O exercício e a concretização deste princípio, numa concreta situação, não está dependente ou sujeita a um qualquer e prévio julgamento incidente sobre a solidez ou consistência substancial do eventual direito que, com a sua consagração e em decorrência do seu cumprimento, se pretendeu salvaguardar ou exercer.

III- O despacho de aperfeiçoamento previsto no n.º 2 do art.º 590.º é um despacho vinculado, com o significado de o juiz só poder retirar consequências da falta de preenchimento dos requisitos externos ou da falta de junção de documento probatório depois de facultar à parte, através do pertinente convite, a possibilidade de suprir as falhas detectadas ou de proceder à junção do documento em falta.

IV- Por decorrência do princípio geral da descoberta da verdade material, que sobressai do dispostos nos artigos 411º e 436º, do CPC, é permitido ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, e designadamente, ordenar a junção de documentos ao processo, que repute de relevante utilidade para esse efeito.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na situação vertente, e como se constata do conteúdo da decisão recorrida, os crédito[s] foram considerados caducados ou prescritos em razão de “a credora impugnada não logrou fazer prova de ter citado o insolvente devedor da liquidação do imposto nem da execução coerciva do crédito” ou por não ter “a credora impugnada provado que ocorreu qualquer facto que tivesse por virtualidade interromper o prazo de prescrição”, respectivamente.

E assim sendo, estando-se perante a não junção de prova documental como será aquela que, a existir, demonstrará a factualidade alegada pelo Recorrente, impeditiva das invocadas excepções de caducidade e prescrição, deveria este último ter sido notificado para proceder à junção de tal prova documental, ao abrigo do disposto no artigo 590, nº 1, al. c), do C.P.C., o que, contudo, assim não sucedeu, não tendo sido proferido qualquer despacho de convite ao aperfeiçoamento.

Como se refere no Acórdão da Relação de 19/12/2012, “(…) o n.º 2 do art.º 508.º - actual nº 3 - prevê a prolação de um despacho de aperfeiçoamento vinculado, com o significado, para o que ora importa considerar, do juiz só poder retirar consequências da falta de preenchimento dos requisitos externos depois de facultar à parte, através do pertinente convite, a possibilidade de suprir a falha detectada. A expressão legal utilizada, de sentido impositivo (…), leva-nos a concluir que se trata de uma verdadeira injunção que é dirigida ao juiz do processo e que não deve confundir-se com um poder discricionário que o conduza a proferir ou não, segundo o seu critério, a decisão interlocutória” (Cfr. A. Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., pág. 77).

Por outro lado, como resulta claro do preceito em análise, estão em causa ambas as partes, valendo a imposição tanto para a petição inicial, como para a contestação, o que, para além do mais, é decorrência do princípio da igualdade de armas, “manifestação do mais geral princípio da igualdade das partes, que implica a paridade simétrica das suas posições perante o tribunal. No que particularmente lhe respeita, impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses (…)” ( Cfr. José Lebre de Freitas, “Introdução ao processo Civil, conceito e princípios gerais”, 2.ª ed., reimpressão, págs. 118/119). E, por assim ser, a omissão, pelo juiz, de tal decisão interlocutória configura uma nulidade processual, nos termos no art.º 201.º do CPC.

Na previsão da norma cabem assim, entre outras situações que se poderão configurar, precisamente a “falta de cumprimento das regras que o art.º 501.º prevê para a dedução da reconvenção, designadamente procedendo à sua autonomização formal e à indicação do valor do pedido reconvencional” (Cfr. A. Geraldes, ob. cit., pág. 78).

Destarte, de tudo o exposto decorre com linear evidência assistir inteira razão ao Recorrente, pois que, não poderia o tribunal a quo julgar procedentes a excepções e prescrição e caducidade sem que antes tivesse convidado ou dado a possibilidade ao Recorrente/Mª Pº, de proceder à junção dessa prova em falta, que, integrando a omissão da prática de uma acto vinculado, a que o tribunal estava obrigado.

E, embora em nosso entender não se revista de autonomia face à omissão do proferimento do, como se deixou dito, despacho de aperfeiçoamento vinculado, sem o qual o juiz não poderia retirar consequências da falta de preenchimento dos requisitos externos depois de facultar à parte, implicitamente a esta omissão existe, de facto, também uma violação do princípio do contraditório.

Como é consabido, o princípio do contraditório é hoje entendido “como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirectamente, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. (Cfr. Lebre de Freitas/João Redinha/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 7-8)

Logo, por decorrência do princípio do contraditório, entendido, não no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, mas no sentido positivo, de direito de participar activamente no desenvolvimento e no êxito do processo, como necessária consequência resulta que qualquer das partes tenha sempre de ser notificada de toda e quaisquer excepções invocadas, bem como das omissões de apresentação de meios probatórios de quaisquer delas e, por maioria de razão, daquelas que, no seu citério, o tribunal considere ou venha a conferir relevância.

Assim, por decorrência desta acepção do princípio do contraditório, como necessária consequência resulta que qualquer das partes tenha sempre de ser notificada de toda e quaisquer excepções invocadas, seja qual for o entendimento que o tribunal possa ter sobre a sua relevância, ou seja, tal notificação não deve apenas ser efectuada nas situações em que, no seu citério, o tribunal as considere ou lhes venha a conferir relevância.

Parece-nos, assim, incontroverso que, devidamente contextualizada no âmbito dos actos processuais praticados, a decisão recorrida configura inquestionavelmente uma decisão surpresa.

Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra, de 13/11/2012, numa “razoável interpretação concatenada destes preceitos, importa concluir que a decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.

A lei, ao referir-se à decisão-surpresa, não quis excluir delas as decisões que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas.

O que importa é que os termos da decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstractamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspectivado como sendo possível.

Ou seja, estaremos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou, no mínimo e concedendo, quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que a parte o havia feito”. (Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 13/11/2012, proferido no processo nº 572/11.4TBCND.C1, in www.dgsi.pt)

Ora, como decorre dos elementos constantes dos autos neles não foi proferido qualquer despacho solicitando a junção dos elementos probatórios e logo, da sua imprescindibilidade para a decisão da causa, conforme o tribunal estava vinculado a fazer, sendo por isso legitima a eventual expectativa por parte do Recorrido de que os autos conteriam todos os elementos probatórios necessários ao conhecimento das excepções aduzidas.

Como se escreve no acórdão da Relação de Évora, de 25.10.2012,”…tendo a sentença recorrida sido proferida em sede despacho saneador sem do facto ter sido dado conhecimento prévio às partes e ao invocar nela fundamento não alegado pelas partes, concluindo por uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, violou o disposto no artº 3º, nº 3 do CPC, constituindo a sentença recorrida uma decisão-surpresa”. (Cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 25.10.2012 , in www.dgsi.pt)

Concluímos pois que a decisão em crise, da forma como foi proferida, contra a expectativa criada na parte e sem o seu conhecimento prévio, constitui uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório.

Destarte, e se por mais não fora, na procedência deste fundamento da presente apelação, sempre a decisão proferida deveria ser revogada determinando-se a sua substituição por outra que determine a prolação de um despacho de aperfeiçoamento e o consequente cumprimento do contraditório com relação à ausência dos meios probatórios dos factos impeditivos da procedência das excepções invocadas."

*3. [Comentário] É discutível o enquadramento da questão pela perspectiva do direito ao contraditório, pelo que é igualmente discutível que a decisão do tribunal a quo -- que, no fundo, desrespeitou o disposto no art. 590.º, n.º 2, al. c), CPC -- possa ser qualificada como uma decisão-surpresa. Em todo o caso, faltou esclarecer o vício correspondente à decisão-surpresa: esta decisão é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).

MTS


22/09/2020

Bibliografia (940)


-- Proto Pisano, A. (Ed.), L’affetto, l’umanità e l’intransigenza morale di un maestro: Virgilio Andrioli / Ricordi dei suoi allievi e lettere a cura di Andrea Proto Pisani (Jovene: Napoli 2020)


Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária


1. O n.º I do sumário de STJ 2/6/2020 (496/13.0TVLSB.L1.S1) é o seguinte:

A falta de observância da formalidade prevista no n.º 3 do art. 665.º do CPC, podendo influir na decisão da causa, importa a nulidade processual prevista no art. 195.º do CPC. Esta nulidade deve ser arguida no prazo de 10 dias (arts. 149.º e 199.º do CPC) e no tribunal em que foi cometida.

Este sumário reflecte uma confusão que tem vindo a tornar-se frequente na jurisprudência e que importa procurar desfazer.

2. O CPC trata das nulidades processuais nos art. 186.º a 202.º e das nulidades da sentença e do acórdão nos art. 615.º, 666.º e 685.º. Perante isto, pode colocar-se a questão: por que motivo têm tratamento em diferentes lugares do CPC as nulidades processuais e as nulidades da sentença? Ou noutra formulação: dado que a sentença é um acto processual, qual o motivo para que a nulidade da sentença não esteja tratada em conjunto com as nulidades processuais? Ou noutra formulação ainda mais precisa: constando do art. 195.º CPC uma regra geral sobre a nulidade dos actos, qual a justificação para que exista uma regulamentação específica sobre a nulidade da sentença?

A resposta tem a ver com a dupla perspectiva pela qual a sentença pode ser considerada (assim como qualquer outro acto processual) e é a seguinte: a sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.

Disto decorre que uma sentença pode constituir uma nulidade processual, se for considerada na perspectiva da sentença como trâmite: basta, por exemplo, que ela seja proferida fora do momento apropriado na tramitação processual. Um exemplo (naturalmente académico): se, no procedimento comum, o juiz proferir uma decisão logo a seguir ao termo da fase dos articulados, verifica-se uma nulidade processual nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC, porque foi praticado um acto que a lei, naquele momento, não permite.

Importa notar, no entanto, que, atendendo à diferença da sentença como trâmite e como acto, a nulidade processual do art. 195.º CPC nada tem a ver com a nulidade da sentença dos art. 615.º, 666.º e 685.º CPC. É fácil verificar que assim é.

A nulidade processual decorrente do disposto no art. 195.º, n.º 1, CPC existe mesmo que a sentença não padeça de nenhum outro vício, nomeadamente daqueles que estão enumerados no art. 615.º CPC. Quer dizer: a sentença pode conter toda a fundamentação exigível, pode não padecer de nenhuma contradição entre os fundamentos e a decisão, pode não conter nenhuma omissão ou nenhum excesso de pronúncia e pode não condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, mas, ainda assim, porque é proferida fora do momento adequado, verifica-se a nulidade processual imposta pelo art. 195.º, n.º 1, CPC.

Voltando ao exemplo (académico) acima referido: o proferimento da sentença logo depois da fase dos articulados constitui uma nulidade processual; no entanto, essa sentença pode não padecer de nenhum dos fundamentos de nulidade enumerados no art. 615.º, n.º 1, CPC.

O inverso também é possível (e é, aliás, a situação mais frequente): se a sentença é proferida no momento processualmente adequado, mas se a mesma não contém toda a fundamentação exigível, padece de uma contradição entre os fundamentos e a decisão, contém uma omissão ou um excesso de pronúncia ou condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, não há nenhuma nulidade processual nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC, embora se trate de sentença que é nula segundo o disposto nos art. 615.º, n.º 1, 666.º e 685.º CPC.

3. Assente esta distinção básica entre a sentença considerada como trâmite e a sentença considerada como acto, importa tratar agora do problema relacionado com as decisões-surpresa e com a sua correcta solução jurídica. A questão a resolver é a seguinte: uma decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC ou uma nulidade da sentença de acordo com o estabelecido nos art. 615.º, 666.º e 685.º CPC?

Segundo se pode imaginar, as dificuldades sentidas pela jurisprudência decorrem da circunstância de a decisão-surpresa resultar da omissão da audição prévia das partes e de, portanto, parecer que a ela está subjacente uma nulidade processual nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC. Há aqui, no entanto, uma confusão que importa procurar desfazer.

A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa).

Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência.

Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.

Note-se que, como se tem vindo a repetir neste Blog, esta solução é a única que é compatível com a impugnação da decisão-surpresa através de recurso e com o objecto do recurso. O objecto do recurso é sempre uma decisão, pelo que, se houvesse uma nulidade processual, a mesma não poderia constituir objecto de recurso e teria de ser reclamada no tribunal a quo.

Foi, aliás, esta a orientação adoptada no acórdão cujo sumário se transcreveu acima. Ela é coerente com a qualificação da decisão-surpresa como uma nulidade processual, mas, como se referiu, essa qualificação não é a adequada para o vício em causa.

4. Uma última observação: é preciso ler com muito cuidado toda e qualquer doutrina e toda e qualquer jurisprudência que se tenha pronunciado sobre o problema antes de ter surgido no panorama legislativo português a temática da decisão-surpresa.

Efectivamente, não se pode dizer que já antes não houvesse casos que, agora, seriam enquadráveis na decisão-surpresa. O que faltava na altura era a visão de que a decisão-surpresa constitui, em si mesma, um vício processual autónomo e próprio.

MTS

 

Jurisprudência 2020 (57)


Responsabilidades parentais; 
competência internacional; CProtCr


I. O sumário de RL 5/3/2020 (1173/18.1T8CSC-A.L1-2é o seguinte:

1. O elemento determinante para a aferição da competência internacional do tribunal em matéria das responsabilidades parentais relativa a uma criança de nacionalidade russa é o da residência habitual da criança, quer em face da Lei nacional, quer do direito internacional expresso na Convenção de Haia de 19 de outubro de 1996 que vincula tanto Portugal como a Federação Russa.

2. Se a questão da incompetência internacional do tribunal não é suscitada por qualquer uma das partes, o tribunal antes de a decidir deve diligenciar pelo cumprimento do direito ao contraditório, nos termos do art.º 3.º n.º 3 do CPC, podendo ainda oficiosamente realizar as diligências probatórias que tenha por necessárias ao seu esclarecimento como dispõe o art.º 10.º n.º 2 da RGPTC.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Insurge-se o Recorrente contra a decisão do tribunal a quo que concluiu pela sua incompetência para a tramitação do presente processo, após dar indevidamente como assente que à data da propositura da ação a criança residia na Federação Russa com a mãe.

A decisão recorrida pronunciou-se no sentido da incompetência absoluta do tribunal, por infração das regras de competência internacional, por o tribunal competente ser aquele onde a criança reside no momento em que o processo for instaurado, referindo resultar dos elementos dos autos, designadamente da decisão do tribunal de 15.11.2017 que a criança se encontra a residir com a mãe na Federação Russa, em Moscovo, país onde já residia à data da instauração deste processo.

Não pode deixar de notar-se a grande ligeireza com que foi proferida a decisão recorrida.

Constata-se, por um lado, que o tribunal a quo nem sequer diligenciou pelo cumprimento do direito ao contraditório das partes, principio previsto no art.º 3.º n.º 3 do CPC, antes de se pronunciar pela procedência da exceção da incompetência internacional do tribunal, sem que nada o fizesse prever e sem que qualquer das partes tenha invocado essa questão; por outro lado, é feita uma análise parcial e truncada dos elementos constantes do processo para se concluir, erradamente, como se verá, que a criança residia na Federação Russa à data da propositura da ação; finalmente o tribunal nem sequer optou por realizar diligências que permitissem um melhor esclarecimento da questão conforme dispõe o art.º 10.º n.º 2 da RGPTC que prevê a realização oficiosa das diligências que se tenham por necessárias ao conhecimento da exceção da incompetência territorial.

O art.º 37.º n.º 2 da Lei 62/2013 de 26 de agosto, Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ - estabelece que é a lei de processo que fixa os fatores de que depende a competência internacional do tribunal, prevendo o art.º 38.º do mesmo diploma que a competência se fixa no momento em que a ação é proposta, sendo irrelevantes modificações posteriores, exceto nos casos expressamente previstos na lei.

Sobre a competência internacional do tribunal, estabelece o art.º 59.º do CPC: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos art.º 62.º e 63.º, ou quando as partes lhe tenham atribuído competência nos termos do art.º 94.º.”

Esta norma exige a salvaguarda do que se encontra regulado nos tratados e convenções que se impõem ao Estado Português, numa consagração do primado do direito internacional convencional.

No direito interno, o art.º 62.º do CPC prevê nas suas várias alíneas os fatores de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, aí contemplando logo na al. a) a situação da ação poder ser proposta no tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.

A Lei 141/2015 de 8 de setembro vem aprovar o Regime Geral das Providências Tutelares Cíveis – RGPTC - nas quais se inclui a regulação do exercício das responsabilidades parentais, conforme expressamente previsto no art.º 3.º al. c).

É o art.º 9.º deste diploma que alude à competência territorial do tribunal, estabelecendo como regra, no seu n.º 1: “Para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado”.

Não sendo a Federação Russa um estado da União Europeia a que possa aplicar-se o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 de 27 de novembro de 2003 relativo à competência em matéria de responsabilidades parentais, destaca-se como relevante para o caso e no âmbito do direito internacional, a Convenção de Haia de 19 de outubro de 1996, relativa à competência, lei aplicável, reconhecimento, execução e cooperação em matéria de responsabilidade parental e medidas de proteção das crianças, convenção assinada e retificada tanto por Portugal como pela Federação Russa, que designadamente nos seus art.º 1.º, 3.º e 5.º confere aos tribunais do país da residência habitual da criança a competência internacional para julgar e decidir questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais, tomando as medidas necessárias à proteção da criança, adotando desta forma um critério de atribuição de competência idêntico ao da nossa lei nacional.

Diz-nos António Fialho, in Revista Julgar n.º 37, pág. 13 ss., estudo publicado sob o título A Competência Internacional dos Tribunais Portugueses em Matéria de Responsabilidade Parental, numa síntese do que nele expõe: “A competência internacional do tribunal para julgar em matéria de responsabilidade parental é determinada pelo superior interesse da criança e, em particular, pelo critério da proximidade concretizado através do conceito autónomo de residência habitual, conceito esse presente nos principais instrumentos de direito internacional que vinculam o Estado Português.”

É assim pacífico, não estando também em discussão nestes autos, que o elemento determinante para a aferição da competência internacional do tribunal nesta matéria das responsabilidades parentais é o da residência habitual da criança. Assim também o refere, entre outros, o Acórdão do TRL de 24/10/2019 no proc. 3682/06.6TBBRR-C.L1, que subscrevemos como 1ª adjunta.

No caso, a questão essencial da discordância está então em saber qual a residência da criança a 16.05.2019, data em que foi intentada a presente acção pelo seu progenitor.

O tribunal a quo deu como assente que a criança “se encontra a residir com a mãe na Federação Russa, país onde já residia quando da propositura da presente ação”.

Motivou a sua convicção quanto a este facto: nos “elementos carreados para os autos, máxime, da decisão proferida em 15.11.2017, no processo …/…T8CSC”.

O Recorrente contesta este facto, admitindo que a criança esteve a viver algum tempo com a mãe na Federação Russa, mas dizendo que regressaram a Portugal, onde estavam já há alguns meses antes da propositura da ação, tendo sido precisamente essa circunstância que motivou o seu recurso a juízo, por discordarem de algumas questões como sejam a escola que a menor deve frequentar ou a repartição do seu tempo com os progenitores, mais referindo até que a criança estava a repartir a sua residência semanalmente com cada um deles, conforme acordaram.

Invoca como elementos probatórios suscetíveis de infirmar o facto considerado assente pelo tribunal: a procuração junta aos autos pela Requerida e a cópia do requerimento de revisão de sentença estrangeira, documentos em que a mãe da criança indica uma morada de Cascais como correspondendo à sua residência, mais referindo que foi em Cascais que a mesma foi citada.

Em primeiro lugar, realça-se e faz-se consignar que este tribunal, na apreciação desta questão apenas poderá ponderar os elementos probatórios que existiam no processo à data em que a decisão recorrida foi proferida, não podendo assim levar em consideração outros documentos entretanto trazidos pelas partes ao processo, designadamente declarações da escola da criança ou da frequência de atividades extracurriculares, ou cópia de bilhetes de avião. Tratando-se de um reexame da decisão, como resulta do art.º 627.º n.º 1 do CPC são os elementos existentes à sua data e à luz dos quais a mesma foi proferida, que este tribunal tem também de avaliar.

Constata-se que o documento que constitui a decisão proferida a 15.11.2017, no processo …/…T8CSC, em que o tribunal de 1ª instância se fundou para concluir que a criança, à data da propositura da ação, se encontrava a residir com a mãe na Federação Russa, não permite de modo algum que se chegue a tal conclusão.

Na verdade, tal decisão, proferida pelo Juízo de Família e Menores de Cascais em processo tutelar cível que correu termos, apenas autorizou a criança a ir residir com a mãe para Moscovo, o que aliás teve a concordância do pai, como da mesma consta, isto em novembro de 2017.

Como é evidente, isso não obsta a que a criança possa ter regressado novamente a Portugal com a sua mãe, para aqui instalarem outra vez a sua vida, aqui se encontrando em maio de 2019, sendo aliás isso mesmo que é referido pelo Requerente quando interpõe a presente providência, até invocando um acordo dos pais na residência semanal alternada da criança com cada um deles, que tem estado a verificar-se.

O documento invocado pelo tribunal de 1ª instância não permite de forma alguma que se tenha como assente que em maio de 2019 a criança residia na Federação Russa, afigurando-se também que se o tribunal tinha dúvidas sobre tal facto, que nem sequer foi suscitado pelas partes, não podia deixar de previamente as ouvir sobre tal questão e quando muito haveria que determinar as diligências que tivesse por convenientes, para se esclarecer, nos termos previsto no art.º 10.º n.º 2 do RGPTC.

A nosso ver, tais diligências nem sequer se mostram necessárias, para que o tribunal possa concluir o contrário, ou seja, que a criança, à data da propositura da presente ação residia com a sua mãe em Cascais, uma vez que os documentos constantes dos autos que foram juntos pela Requerida, aliados às regras da experiência, permitem determiná-lo.

Tanto a procuração da Requerida datada de julho de 2018, como o requerimento de proteção jurídica por ela apresentado na segurança social em fevereiro de 2019, em que menciona a V… como integrando o seu agregado familiar e indica a sua residência em Cascais, indiciam nesse sentido.

Por outro lado, o referido pelo Requerente no seu requerimento inicial, no sentido de que a filha regressou a Portugal com a mãe, que tem passado alguns períodos consigo e que não estão de acordo sobre algumas questões que pretende ver reguladas, afigura-se perfeitamente verosímil. O contrário é que seria estranho: o pai vir suscitar esta regulação para as questões que referiu, se a filha ainda estivesse a residir na Federação Russa, para onde concordou e autorizou que esta fosse viver com a mãe, em 2017, conforme decisão invocada pelo tribunal.

Em conclusão, os documentos enunciados permitem concluir com segurança pelo erro da decisão recorrida quando deu como assente que a criança vivia com a mãe na Federação Russa à data da propositura da presente ação, antes revelando que a essa data a mesma já vivia novamente em Cascais com a mãe.

Impõe-se em consequência a revogação da decisão proferida, reconhecendo-se a competência internacional do tribunal para tramitar e decidir a presente ação, em razão da criança ter residência em Cascais à data da propositura da ação."

[MTS]