"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/12/2020

Bibliografia (954)


-- Silvestri, Caterina, Il fatto e la domanda in giudizio (E.S.I.: Napoli 2020)


23/12/2020

Jurisprudência europeia (TJ) (229)


Reg. 44/2001 — Artigo 15.°, n.° 1 — Competência em matéria de contratos celebrados pelos consumidores — Conceito de “consumidor” — Contrato de jogo de póquer celebrado em linha entre uma pessoa singular e um organizador de jogos de fortuna e azar — Pessoa singular que ganha a vida com jogos de póquer em linha — Conhecimentos possuídos por essa pessoa — Regularidade da atividade


TJ 10/12/2020 (C‑774/19, A. B. et al./Personal Exchange International Limited) decidiu o seguinte:

O artigo 15.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que uma pessoa singular domiciliada num Estado‑Membro que, por um lado, celebrou com uma sociedade estabelecida noutro Estado‑Membro um contrato para jogar póquer na Internet, que contém condições gerais determinadas por esta última, e, por outro, não declarou oficialmente essa atividade nem ofereceu essa atividade a terceiros enquanto serviço remunerado não perde a qualidade de «consumidor» na aceção desta disposição, mesmo que essa pessoa jogue esse jogo durante um grande número de horas por dia, possua conhecimentos alargados e obtenha ganhos significativos provenientes desse jogo.


Bibliografia (Índices de revistas) (178)


RabelsZ 


-- RabelsZ 82 (2018-3)

-- RabelsZ 82 (2018-4)

-- RabelsZ 83 (2019-1)

-- RabelsZ 83 (2019-2)

-- RabelsZ 83 (2019-3)

-- RabelsZ 83 (2019-4)

-- RabelsZ 84 (2020-1)

-- RabelsZ 84 (2020-2)


22/12/2020

Paper (454)


-- Pardo, Michael S., Naturalized Epistemology and the Law of Evidence: Methodological Reflections (SSRN 11.2020)


21/12/2020

Informação (277)


Férias de Natal


O Blog interrompe, até ao início de Janeiro, as publicações regulares.

Atendendo à actual situação, não se justifica o envio dos tradicionais votos. Em todo o caso, não deixa de se desejar a todos os Leitores as maiores felicidades pessoais e profissionais.

MTS 


Jurisprudência constitucional (191)


Custas de parte;
reclamação 

TC 10/10/2020 (726/2020) decidiu:

[...] Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, com as alterações da Lei n.º 27/2019, de 28 de março), nos termos da qual a reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte está sujeita ao depósito da totalidade do valor da nota [...].

 

Jurisprudência constitucional (190)


Decisão sumária;
relator; suspeição


Na fundamentação de TC 9/12/2020 (712/2020) escreveu-se o seguinte:

"4. Dispõe o artigo 29.º, n.º 1, da LTC, que é aplicável aos juízes do Tribunal Constitucional o regime de impedimentos e suspeições dos juízes dos tribunais judiciais, decorrendo do n.º 3 do mesmo preceito que a competência para a decisão do incidente está atribuída ao órgão coletivo competente para a decisão da causa cometida ao Tribunal Constitucional, no caso, à composição plena da 1.ª Secção.

Por força do disposto no artigo 69.º da LTC, a verificação de uma causa de suspeição ou escusa realiza-se ao abrigo do regime estatuído nos artigos 119.º e 120.º do CPC.

Para sustentar a sua pretensão, o requerente invoca, de modo genérico, o artigo 120.º, n.º 1, do CPC, o qual dispõe do seguinte modo:

«a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;

b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;

c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;

d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;

e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;

f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;

g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.»

O incidente de suspeição configura-se como um meio excecional de desvio ao princípio do juiz natural ou legal, constitucionalmente consagrado, votado justamente a assegurar a isenção e independência do julgador, pelo que a sua procedência carece da verificação de que ocorreu motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de quem decide, mormente pela ocorrência de uma das situações previstas no n.º 1 do artigo 120.º do CPC.

O único argumento invocado pelo recusante, como base do seu pedido de suspeição, é o de que recairá sobre o Juiz Conselheiro recusado «desconfiança sobre a sua imparcialidade» caso se admita que o mesmo, tendo proferido no processo decisão sumária «contra o requerente», intervenha, novamente na «veste de relator», no coletivo que decide a reclamação deduzida relativamente a essa decisão sumária. Entende o recorrente que o n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, na interpretação segundo a qual «se permite a intervenção na Conferência para apreciação de reclamação apresentada pelo arguido/recorrente do mesmo Juiz Conselheiro Relator que proferiu a Decisão Sumária novamente na qualidade de Relator é inconstitucional por violação das garantias de defesa dos cidadãos, do processo justo e equitativo consagrado no art.º 32 da Constituição».

Sucede, porém, que tal argumento não se subsume a nenhuma das alíneas da previsão legal invocada pelo recusante como base processual da pretensa suspeição. São, na verdade, as regras processuais legalmente estabelecidas (desde logo, na Lei do Tribunal Constitucional, especificamente no artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC), que permitem que um juiz possa intervir num mesmo processo, tomando várias decisões ou nelas participando a títulos vários, sem que isso integre, por si, as previsões do artigo 120.º, n.º 1, do CPC. E, diga-se, tal norma não se afigura violadora da Constituição, designadamente do artigo invocado pelo requerente, como, de resto, foi decidido por este Tribunal no Acórdão n.º 20/2007.

Em face do exposto, resta concluir pelo indeferimento do incidente de suspeição deduzido."

[MTS]


Paper (454)


-- M. Teixeira de Sousa, Os princípios do processo arbitral (vs.19.12.2020)


19/12/2020

O valor da acção – sua determinação



[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]



Nota:

Salvo o muito devido respeito, não encontro fundamento para rever a minha posição de que, havendo ampliação do pedido, há ampliação do valor da causa. Qualquer outra solução origina consequências que, além do mais, são contrárias aos princípios do processo equitativo estabelecidos no art. 20.º, n.º 4, CRP e no art. 6.º, n.º 1, CEDH.

Assim, se, por exemplo, o valor do pedido passar de € 4.000,00 para  € 40.000,00 e se o réu, em vez de ser condenado em € 4.000,00, é condenado em  € 40.000,00, não podem deixar de ser admitidos os recursos que seriam admissíveis se o valor inicial do pedido fosse de  € 40.000,00. No entanto, como se sabe, atendendo ao disposto no art. 629.º, n.º 1, CPC, isto só pode ser assim se o valor da causa acompanhar o novo valor do pedido.

Se o valor da causa não se alterasse, o réu condenado em € 40.000,00 não teria nenhuma possibilidade de recorrer, porque aquele valor continuava, de forma totalmente desconforme  com a utilidade económica do pedido e em total prejuízo daquela parte, fixado em € 4.000,00, ou seja, abaixo da alçada do tribunal de 1.ª instância.

Procurando ser totalmente claro (ou mostrando com clareza a dimensão do meu erro): a decisão que, após a ampliação do pedido, mantivesse, explícita ou implicitamente, o valor inicial da causa em € 4.000,00 e que, por isso, não admitisse a interposição de um recurso de uma decisão condenatória em € 40.000,00 seria uma decisão inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e do processo equitativo estabelecidos nos art. 13.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, CRP. 

Por fim, cabe referir que é fácil demonstrar que o art. 299.º, n.º 1, CPC não contém "toda a verdade" sobre a alteração do valor da causa: basta pensar na (não referida) apensação de acções (art. 267.º CPC). Tenho por certo que, havendo uma apensação de acções, o valor da causa na qual se verifica a apensação não permanece o mesmo. Não pode ser a circunstância de a hipótese não se encontrar prevista no art. 299.º, n.º 1, CPC que obsta à necessária alteração do valor da causa, aliás, em total coerência com o disposto no art. 297.º, n.º 2, CPC.

MTS


18/12/2020

Jurisprudência 2020 (117)


Recurso de revista;
oposição de julgados; ónus de alegação


1. O sumário de STJ 5/2/2020 (17.18.9YLPRT.A.P1.S1) é o seguinte:

I - Em regra, não é admissível recurso de revista de acórdão da Relação que confirme o despacho do juiz de 1.ª instância que não admita o recurso de apelação.

II - Exceptua-se os casos em que esteja preenchida alguma das previsões excepcionais do art. 629.º, n.º 2, do CPC.

III - A referência, nas conclusões ou na motivação do recurso de revista, a um acórdão de um tribunal da Relação ou do STJ no sentido da solução sustentada pelo recorrente não é, só por si, suficiente para que se considere invocada a contradição jurisprudencial prevista no art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"27. [...] há-de determinar-se se o recurso devia ter sido admitido de acordo com o art 5.º, n.º 3, e com o art. 6.º, em ligação com o art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.

28. Em desvio à regra do art. 671.º, n.º 1, é admissível recurso de revista de acórdão da Relação que confirme o despacho do juiz de 1.ª instância que não admita o recurso de apelação, desde que esteja preenchida alguma das previsões excepcionais do art. 629.º, n.º 2.

29. Entre as previsões excepcionais do art. 629.º, n.º 2, está a previsão da alínea d): 

“[…] é sempre admissível recurso [d]o acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme” [...].

30. O problema está em que a Ré, agora Reclamante, Bela Star — Pensão Residencial, Lda., não indicou o art. 629.º, n.º 2, alínea d), como fundamento específico do recurso.

31. O art. 637.º, n.º 2, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento.

O ónus de indicação do fundamento específico da recorribilidade deve ser cumprido em todos os casos em que o recorrente pretenda que o recurso seja admitido ao abrigo de uma norma excepcional — p. ex., do art. 629.º, alínea d), do Código de Processo Civil [...].

32. A Ré, agora Reclamante, alega que a omissão do fundamento específico de recorribilidade deveria ter sido oficiosamente suprida pelo juiz, de acordo com o art. 5.º, n.º 3, e com o art. 6.º do Código de Processo Civil. O art. 5.º, n.º 3, enuncia o princípio de que “[o] juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” e o art. 6.º o princípio de que o juiz tem o poder-dever de gestão processual:

1. — Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

2. — O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.


33. Os dois artigos citados são insuficientes para constituir o juiz no dever de suprir, ou no dever de convidar a Recorrente / Reclamante a suprir, a omissão do fundamento específico da recorribilidade.

34. Como se diz, p. ex., no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Setembro de 2017 — processo n.º 1029/12.1TVLSB-A.L1.S1 [...] —,

“VI. — A mera citação e referência a jurisprudência variada nas alegações de revista, no sentido e em apoio da solução que a recorrente defende e pretende ver reconhecida pelo tribunal, não se confunde com a invocação do fundamento específico da revista respeitante a conflito jurisprudencial evidenciado pela contradição ou oposição entre o acórdão recorrido e outro acórdão (da Relação ou do STJ).

VII. — Não é por se citarem vários acórdãos, sufragando a mesma solução de determinada questão de direito que, só por si, se invoca a contradição de julgados”.

35. A Ré, agora Reclamante, Bela Star — Pensão Residencial, Lda., não indicou o art. 629.º, n.º 2, alínea d), como fundamento específico do recurso nem nas conclusões da sua alegação, nem na reclamação deduzida contra o despacho da Exma. Senhora Desembargadora do Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo do art. 643.º do Código de Processo Civil. Em consequência, o despacho reclamado não podia ter admitido o recurso — como não admitiu. 

36. Em conclusão, deverá dizer-se que o recurso não pode ser admitido de acordo com o art 5.º, n.º 3, e com o art. 6.º, em ligação com o art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.

37. Finalmente, esclarecer-se-á que o ónus de o recorrente indicar o fundamento específico de recorribilidade é compatível com o art. 20.º da Constituição da República Portuguesa.

38. O Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça têm chamado constantemente a atenção para que “o legislador dispõe de ampla margem de conformação do regime de recursos” [...] e para que “a Constituição não impõe que o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, comporte um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário uma redução intolerável ou arbitrária do conteúdo do direito ao recurso de actos jurisdicionais” [...]. Ora a conformação legislativa do direito de recurso, em termos de colocar a cargo do recorrente o ónus de indicar o fundamento específico da recorribilidade, não é nem uma redução arbitrária, nem uma redução intolerável [...]."

MTS

17/12/2020

Jurisprudência 2020 (116)


Revista excepcional;
admissibilidade*


1. O sumário de STJ 5/2/2020 (983.18.4T8VRL.G1.S1) é o seguinte:

I - Para averiguar se se verifica uma “fundamentação essencialmente diferente”, relevante para efeitos do previsto no n.º 3 do art. 671.º do CPC há que atender ao núcleo fundamental de cada uma das decisões em confronto, desconsiderando as divergências marginais e secundárias que não se mostram decisivas para a solução.

II - Mesmo nos casos em que seja alegada a ofensa do valor probatório da prova tarifada, a interferência do Supremo, ao abrigo do art. 674.º, n.º 3, do CPC, não prescinde da inexistência de dupla conformidade decisória, pressuposto geral de admissibilidade da revista normal, tal como emerge do art. 671º, n.ºs 1 e 3, do CPC.

III - Sendo inadmissível a revista, arguição das nulidades do acórdão recorrido, previstas no n.º 1 do art. 615.º do CPC, apenas pode ter lugar perante a Relação (cf. art. 615.º, n.º 4, do CPC, ex vi do art. 679.º, do mesmo Código).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"7. Neste Supremo, a relatora proferiu despacho a não admitir a revista com o seguinte teor.

“A Lei n.º 41/2013, de 26/06, que aprovou o atual Código de Processo Civil, consagrou a regra da inadmissibilidade de recurso de revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido, e fundamentação essencialmente diferente, a decisão da primeira instância (art.º 671º, nº 3, do CPC).

Todavia, como se refere no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-11-2014, proc. 3479/10.9TBGDM-B.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.:

“[E]ssa atenuação do condicionalismo legal de que depende a verificação de uma situação de dupla conforme não pode ser interpretada como um regresso ao modelo recursório anterior à Reforma de 2007, fazendo depender o recurso de revista unicamente do valor do processo ou da sucumbência em conexão com a alçada da Relação. O relevo atribuído à fundamentação jurídica para evitar a formação de uma situação de dupla conformidade decisória não pode servir de pretexto para, na prática, restaurar de pleno o terceiro grau de jurisdição que o legislador de 2007 limitou, sustentado nas vantagens que uma tal restrição assegura, na medida em que evita o recurso indiscriminado ao Supremo Tribunal de Justiça, só porque o valor do processo ou da sucumbência o permitem.

Assim, a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação implica que prevaleça o seu núcleo fundamental, ou seja, os aspetos que verdadeiramente se mostram decisivos para a obtenção do resultado, levando a desconsiderar, para este efeito, as divergências marginais, secundárias, periféricas, que não representam efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo acontece nas situações em que a diversidade de fundamentação se traduza apenas na não-aceitação, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado pela 1ª instância ou que não tenha sido admitido e que sirva para reforçar o mesmo resultado.

Se, como é natural, a sistematização das decisões ou a variedade dos argumentos jurídicos empregues numa e noutra das decisões é suscetível de conduzir a resultados formalmente diversos ou não inteiramente coincidentes, releva unicamente para o caso a essencialidade da fundamentação que, seguindo trilhos diversos, sustente uma e outra das decisões.”

Por outro lado, como tem sido afirmado por este Supremo Tribunal de Justiça, “não releva, para este efeito, a alteração factual operada pela Relação, pois que conhecendo, em regra, o Supremo Tribunal de Justiça de matéria de direito (art.ºs 46º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e 682º, n.ºs 1 a 3, do Cód. Proc. Civil), «os elementos de aferição das aludidas “conformidade” ou “desconformidade” das decisões das instâncias (os chamados elementos identificadores ou diferenciadores) têm de circunscrever-se à matéria de direito (questões jurídicas); daí que nenhuma divergência das instâncias sobre o julgamento da matéria de facto seja susceptível de implicar, a se, a “desconformidade” entre as decisões das instâncias geradora da admissibilidade da revista.” [Cf. Acórdão do STJ de 29-06-2017, processo nº 398/12.8TVLSB.L1.S1,in www.dgsi.pt.]

Dito isto, importa começar por referir que, no caso vertente, a alteração factual operada pela Relação não interferiu minimamente na apreciação da decisão de direito, como, aliás, resulta com clareza do acórdão recorrido.

Vejamos, então, se as decisões convergentes das instâncias assentam em «fundamentação essencialmente diferente», excludente da admissibilidade da revista.

Ambas as instâncias julgaram a ação improcedente, absolvendo o réu dos pedidos formulados.

Na 1ª instância, considerou-se que a resolução do contrato e o pagamento da cláusula penal tinham como pressuposto o incumprimento culposo por parte do réu, situação que a sentença entendeu não ocorrer, pois “o réu cumpriu a sua obrigação de dar o direito de preferência na aquisição dos quatro lotes, o que só não se efetivou, porque os autores recusaram a prestação e não quiseram adquirir os lotes (porque pretendiam que lhes fossem dados).” Acrescentou-se ainda que, mesmo que tivesse havido incumprimento por parte do réu, não houve culpa do réu, dado que foram os próprios autores a recusar a prestação, por pretenderem outra que não lhe era devida. Nesta linha argumentativa, a sentença considerou que deveria ter-se por ilidida a presunção de culpa.

Por fim, argumentou-se que, nas circunstâncias do caso, a atuação dos autores, ao exigir uma prestação que antes haviam recusado, configurava abuso de direito, nos termos previstos no art.334º, do CC.

A Relação, por seu turno, defendeu que, não obstante a alteração introduzida no elenco factual, a pretensão dos autores estava votada ao insucesso, na medida em que “foram os próprios autores que, na sequência das comunicações que lhes foram remetidas, informaram o réu que queriam que lhes fossem dados quatro lotes, colocando fora de questão a concessão do direito de preferência na respectiva alienação.”. De qualquer forma, adiantou que o alegado incumprimento nunca se poderia considerar culposo, “por terem sido os autores a rejeitar exercer o direito de preferência.”. Finalmente, entendeu que os autores, “ao valer-se de um direito que disseram não querer exercer, adotam um comportamento abusivo enquadrável no instituto jurídico denominado venire contra factum proprium”.

Confrontando ambas as decisões, afigura-se-nos, pois, sem hesitação, que não ocorre qualquer alteração estrutural ou essencial de fundamentação, movendo-se o acórdão da Relação no âmbito das mesmas razões fundamentais de direito que já haviam ditado a sucumbência dos autores em 1ª instância.

Não se verifica, portanto, uma situação que, ao abrigo do disposto na 2ª parte do art. 671º, nº3, do CPC, permita afastar a verificação da «dupla conforme». [...]

***

Os recorrentes invocam ainda a contradição de julgados e a norma do art. 629º, do CPC, conjugada com a do nº3, do art. 671º, do mesmo Código, para, por essa via, defender a admissibilidade da revista.

Admitindo que estejam a referir-se ao fundamento previsto na alínea d), do nº2, do art.º. 629.º, do CPC, cuja aplicação ao recurso de revista é ressalvada pela primeira parte do art. 671.º, n.º 3, do CPC, adianta-se, desde já, não estarem verificados os requisitos ali estabelecidos.

Com efeito:

Como resulta do referido preceito, aquele fundamento da revista circunscreve-se a recursos de decisões proferidas pela Relação em situações em que o acesso ao Supremo esteja vedado por motivos de ordem legal estranhos à alçada da Relação.

Tal requisito, contudo, não ocorre no caso em apreço, na medida em que a revista é interposta no âmbito de uma ação declarativa com processo comum.

Nesta conformidade, não se encontrando verificada uma exclusão do recurso ordinário por outro motivo de ordem legal, é patente não se mostrar preenchido o condicionalismo previsto no art. 629º, nº2, al. d), do CPC.

***

Esforçando-se por demonstrar que o recurso para o STJ é admissível, os recorrentes vieram ainda alegar que o acórdão recorrido enferma das nulidades previstas nas alíneas b), c) e d), do nº1, do art. 615º, do CPC.

Conforme refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª Edição, 2018, págs. 404 e 405, em anotação ao art. 674.º, n.º 1, al. c), do CPC, a respeito da revista poder ter como fundamento as nulidades previstas nos arts. 615.º e 666.º, do CPC, importa distinguir consoante a nulidade apontada ao acórdão recorrido ocorra quando não se verifica a dupla conforme (caso em que nada obsta a que o objeto do recurso seja até unicamente preenchido unicamente pela arguição de nulidades) dos casos em que ocorre dupla conforme.

Ora, nesta última situação, o conhecimento das nulidades pelo STJ fica dependente da admissibilidade da revista, o que, como vimos, não sucede no presente caso.

Em suma: dada a ausência dos requisitos previstos no art. 629º, nº2, al. d), do CPC, por um lado, e encontrando-se preenchido o condicionalismo previsto no art. 671.º, n.º 3, do CPC (“dupla conforme”), por outro, é imperioso concluir pela inadmissibilidade da revista, entendimento que, a nosso ver, não viola quaisquer princípios constitucionais, mormente o ínsito no art. 20º, da CRP.

Em face do exposto, decide-se julgar findo o recurso, por não ser admissível (art. 652º, nº 1, h), do CPC, ex vi do art. 679º, do mesmo Código). [...]

8. Deste despacho vieram os recorrentes reclamar para a Conferência, alegando, em síntese, que:

- Interpuseram recurso de revista e de revista excecional, nos termos do preceituado nos arts. 637º, 671º, 674º, 615º e 629º, entre outros, do CPC;

- O recorrido entendeu estar perante recurso de revista excecional;

- O Tribunal da Relação de Guimarães admitiu o recurso como de revista excecional;

- O Tribunal da Relação de Guimarães julgou a ação improcedente, com base em fundamentação essencialmente diferente da utilizada pela 1ª instância;

- Nas alegações de revista, invocaram como fundamento do recurso, a violação de lei substantiva e adjetiva e a contradição de julgados.

9. O recorrido respondeu, pugnando pelo indeferimento da reclamação.

10. Cumpre apreciar e decidir.

Afigura-se-nos que a reclamação apresentada é manifestamente improcedente. [...]

11. Em face do exposto, acorda-se em indeferir a reclamação."


*3. [Comentário] O STJ decidiu bem.

Apenas um esclarecimento: para que se aceite que a relatora tinha competência para se pronunciar sobre matéria relativa a revista excepcional é necessário entender que, como se refere no acórdão, "os recorrentes não interpuseram recurso de revista excecional, nos termos previstos no art. 672º, do CPC, ainda que o pudessem ter feito, embora a título subsidiário, prevenindo assim a hipótese de ser rejeitada a revista normal." 

De outra forma, isto é, se os recorrentes tivessem invocado algum dos fundamentos enunciados no art. 672.º, n.º 1, CPC, a apreciação da admissibilidade da revista excepcional caberia à formação referida no n.º 3 do mesmo preceito.

MTS


16/12/2020

Jurisprudência 2020 (115)


Execução fiscal; penhora; 
habitação própria e permanente; reclamação de créditos;
adequação formal*


1. O sumário de RE 4/6/2020 (641/19.2T8PTG-A.E1) é o seguinte:

O princípio de adequação formal previsto no artigo 547.º do CPC não permite ao juiz deixar de ordenar a sustação da execução prevista no artigo 794.º do CPC, dispensando o exequente de reclamar o seu crédito na instância executiva fiscal onde se verificou a primeira penhora e de ordenar a notificação do primeiro exequente para reclamar o seu crédito na execução judicial sob o pretexto de adequação da tramitação processual às especificidades do caso.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A apelante insurge-se contra a decisão do tribunal a quo que indeferiu o pedido por aquela apresentado no sentido de ser dispensada de ir reclamar o seu crédito hipotecário ao processo de execução fiscal onde ocorreu penhora mais antiga sobre o prédio melhor identificado nos autos, evitando a sustação dos presentes autos de execução prevista no art. 794.º, n.º 1, do CPC, ordenando-se, ao invés, a notificação da primeira exequente para reclamar o seu crédito exequendo na presente ação.

Sustenta a recorrente que o princípio de adequação formal consagrado no art. 547.º do CPC permitiria ao tribunal a quo ter adaptado o regime legal previsto no art. 794.º, n.º 1, do CPC, aplicando-o de «forma inversa», isto é, dispensando a apelante de reclamar créditos na execução fiscal e ordenando a notificação do IGFSS para, querendo, reclamar créditos nos presentes autos.

Para fundar a sua posição, a apelante afirma que a execução fiscal está pendente há mais de 7 anos «sem que alguma conclusão esteja à vista» pois encontra-se parada por inércia do exequente ainda que em cumprimento de um plano de pagamentos nunca cumprido e «não apresenta perspetivas de qualquer efetiva obtenção de pagamento» ou «sequer de novos desenvolvimentos processuais» e que ela-exequente não pode «pugnar pela efetivação e tomada de diligências» porque o processo onde foi realizada a penhora mais antiga é um processo de execução fiscal. Conclui, afirmando que só a solução por si proposta lhe permitirá, em tempo útil e em respeito da garantia constitucional do n.º 4 do art. 20.º da CR, obter o pagamento das quantias exequendas.

Apreciando.

A apelante impugna a decisão recorrida na perspetiva de uma (alegada) violação do princípio de adequação formal consagrado no art. 547.º do Código de Processo Civil.

Resulta dos autos sobre o imóvel penhorado nos mesmos pende uma penhora mais antiga, realizada no âmbito de um processo de execução fiscal, para satisfação de um crédito do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP e no qual foi realizado um acordo de pagamento da quantia exequenda em prestações.

A recorrente defende que o tribunal a quo, fazendo aplicação do princípio da adequação formal consagrado no art. 547.º do CPC, deveria ter dispensado a sustação da execução relativamente ao imóvel penhorado nos autos e deveria ter dispensado a exequente/apelante de ir reclamar o seu crédito no processo de execução fiscal, «determinando que, em sentido inverso ao legalmente imposto, se notificasse o IGFSS para, querendo, reclamar créditos nos presentes autos».

Dispõe o art. 547.º do CPC, sob a epígrafe Adequação formal, que «O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo».

O princípio da adequação formal – uma emanação do princípio da gestão processual previsto no art. 6.º do mesmo diploma legal – permite agilizar e simplificar o processo de forma a alcançar a celeridade processual e adequar a tramitação processual às especificidades do caso.

Trata-se de um princípio «destinado a introduzir alguma flexibilidade na tramitação ou marcha do processo, permitindo adequá-la integralmente a possíveis especificidades ou peculiaridades da relação controvertida ou à cumulação de vários objetos processuais a que correspondam formas procedimentais diversas, visando ultrapassar – através do estabelecimento de uma tramitação “sucedânea” – possíveis inadequações ou desadaptações das formas legal e abstratamente instituídas, no âmbito de qualquer processo. Acentua-se com a consagração deste princípio – que se substitui ao do estrito e rígido respeito pela legalidade das formas processuais – o caráter funcional ou instrumental do processamento ou tramitação, que não pode ser perspetivado como encerrando um fim em si mesmo, mas antes entendido como visando a realização de objetivos essenciais: a justa composição do litígio, alcançada com respeito integral pelos princípios essenciais estruturantes do processo civil, nomeadamente os da igualdade das partes e do contraditório.» - Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, 2004, Almedina, p. 261 [...].

Como assinalam Paulo Ramos Faria/Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, 2014, 2.ª edição, Almedina, pp. 455 e ss., o princípio da adequação formal tem sempre em vista uma perspetiva de eficiência processual traduzida na ideia de realização da justiça material com um menor custo de tempo e de meios, implicando um dever de adoção da forma processual mais adequada e um dever de adaptação do conteúdo e da forma dos atos processuais ao seu fim. Deveres que estão, ambos, ao serviço de um processo equitativo, o qual constitui não apenas um limite ao princípio da adequação formal mas também a sua causa.

Importa, contudo, sublinhar que apesar de o princípio da adequação formal permitir ao juiz proceder a adaptações da forma legal ao caso concreto, considerando as especificidades da causa, ele não o legitima a preterir atos da forma legal que sejam imperativos ou a derrogar normas imperativas.

No caso concreto, a norma legal que a apelante pretende ver aplicada «de forma inversa» ao abrigo do referido princípio é, como se referiu, a constante do art. 794.º, n.º 1, do CPC que, sob a epígrafe 

Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens, dispõe o seguinte:

«Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga» [...].

O normativo em causa é igualmente aplicável quando a penhora sobre os mesmos bens ocorre numa execução judicial e numa execução fiscal, sendo esta a mais antiga. Nesse circunstancialismo, o credor pode reclamar o seu crédito na execução fiscal nos mesmos termos em que o poderia fazer numa execução judicial.

Com o preceito acima transcrito pretende-se não permitir a adjudicação ou a venda dos mesmos bens em processos diferentes, uma vez que a liquidação deve ser única e deve operar-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar - Alberto dos Reis, Processo de Execução, volume 2.º, reimpressão, Coimbra Editora, 1985, p. 287. Com efeito, autorizar o prosseguimento de mais que uma execução sobre o mesmo bem não iria permitir atender de forma ponderada e em simultâneo aos direitos dos diversos credores, possibilitando, até, a derrogação da preferência prevista no art. 822.º do Código Civil, preceito que consagra a prevalência da penhora mais antiga sobre as posteriores.

Dito isto, a nosso ver, o princípio de adequação formal invocado pela apelante não permite ao juiz “inverter” o regime aplicável do art. 794.º do CPC no sentido de dispensar o exequente de reclamar o seu crédito na instância executiva fiscal onde se verificou a primeira penhora, ordenando, simultaneamente, a notificação do primeiro exequente para reclamar o seu crédito na presente execução. E não se diga que a notificação do primeiro exequente para reclamar o seu crédito na segunda execução obstaria a que fosse postergado o regime legal constante do art. 822.º do Código Civil porquanto a lei não obriga o primeiro exequente a reclamar o seu crédito na execução onde o bem sobre o qual tem uma garantia real (penhora) foi penhorado em segundo lugar; logo, não reclamando ele o seu crédito naquela (segunda) execução, a não sustação da instância executiva onde o bem foi penhorado uma segunda vez seria suscetível de gerar a preterição da preferência prevista no art. 822.º do Código Civil.

Não se olvida que o regime de execução fiscal apresenta algumas especificidades que colocam o exequente civil cuja penhora incida sobre os mesmos bens em desvantagem, designadamente quando a execução fiscal é sustada por motivo de acordo de pagamento da dívida em prestações já que, neste caso, o credor que tenha garantia sobre os bens não se pode opor a tal sustação, restando-lhe aguardar o desfecho de tal acordo. Porém, o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido do regime previsto no anterior 871.º do CPC (antecessor do atual art. 794.º do CPC) não ser inconstitucional, concretamente nos acórdãos n.ºs 51/99, de 19.01, 281/99, de 05.05 e 283/99, de 05.05, publicados, respetivamente, no DR, II Série de 05.04.99, 01.03.2000 e 14.07.99, resultando desta jurisprudência que a interpretação daquele normativo no sentido de ser sustada a execução judicial em que se penhorem bens já anteriormente penhorados numa execução fiscal não é inconstitucional, não só por não haver nenhuma diminuição da garantia do credor à satisfação do seu crédito – garantia que é abrangida pelo direito de propriedade consagrado no art. 62.º, n.º 1, da CR – mas também por essa satisfação não se tornar mais difícil ou onerosa, em desrespeito do art. 18.º, n.º 2, da CRP. Com efeito, assinala-se no Acórdão n.º 51/99 que «o artigo 871.º do CPC impõe a sustação da execução nos casos em que, efetuada a penhora ordenada nessa execução, se verificar a existência de penhora(s) anterior(es) à ordenada/efetuada nessa execução, abrindo-se prazo para o credor reclamar o crédito na execução onde a penhora foi registada com anterioridade. Mas refira-se que a natureza do crédito, ou melhor, a garantia do crédito decorrente da penhora mantém-se, em nada a afetando o regime previsto no art. 871.º do CPC. Aliás essa garantia da penhora é determinante quer no novo prazo para reclamação de créditos que é facultado ao credor, quer na preferência a efetuar em sede de graduação de créditos. Não pode dizer-se que, por força do mecanismo legal previsto no normativo em apreço, a posição do credor saia prejudicada ou seja para ele mais difícil a cobrança do seu crédito, tanto mais que a dívida não é estática, procedendo-se à contagem dos respetivos juros, que obviamente revertem a favor do credor. Por outro lado, o credor pode sempre impulsionar a execução sustada ao abrigo do artigo 871.º do CPC, nomeando à penhora outros bens do devedor, se os houver. Podendo, igualmente, acordar com o devedor o pagamento da dívida exequenda em prestações, nos termos do artigo 882.º do Código de Processo Civil […]. Essencialmente preservada a garantia do crédito, não pode dizer-se que as vicissitudes da execução fiscal – a que o exequente comum se sujeita – seja, de tal forma gravosas que, num quadro de necessária ponderação do interesse público em jogo naquela execução, afetem de forma desproporcionada tal garantia.»

Acresce que nos termos do art. 200.º, n.º 1, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), em caso de acordo de pagamento em prestações, a falta de pagamento sucessivo de três prestações, ou de seis interpoladas, importa o vencimento das seguintes se, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, o executado não proceder ao pagamento das prestações incumpridas, prosseguindo o processo de execução fiscal os seus termos. Pelo que, e ao contrário do que sustenta a apelante (cfr. conclusão n.º 12 das alegações de recurso), a falta de pagamento das prestações acordadas levará necessariamente a novos desenvolvimentos processuais com vista à satisfação da quantia exequenda e dos créditos que ali vierem a ser reclamados, não se verificando pois uma inviabilização definitiva da satisfação do crédito da ora apelante no âmbito do processo de execução fiscal. Dito de outra forma, mantém-se a possibilidade de o processo de execução fiscal evoluir para a fase da venda do bem ali penhorado e, consequentemente, a possibilidade de o aqui exequente ali se poder fazer pagar pelo produto da venda do imóvel penhorado, sendo, portanto, completamente justificada a sustação da execução prevista no artigo 794.º, n.º 1, do CPC.

Não merece, pois, censura a decisão do juiz a quo ao indeferir o pedido de não sustação da execução e de dispensa da exequente de reclamar os seus créditos na primeira execução."

*3. [Comentário] a) Importa começar por uma questão prévia. Tudo a leva a crer que, salvo a devida consideração, a 1.ª instância e a RE não deram a devida atenção a um aspecto essencial do caso sub iudice. Segundo parece decorrer do acórdão, na execução fiscal tinha sido celebrado um acordo para pagamento em prestações, pelo que essa execução estará, muito provavelmente, suspensa (art. 198.º, n.º 3, CPPT). 

Ora, numa execução (fiscal ou civil) que se encontra suspensa não é possível proceder à reclamação de créditos. Isto seria suficiente para evitar qualquer discussão sobre a necessidade de se proceder a uma adequação formal na execução civil, porque, não podendo reclamar-se o crédito exequendo na execução fiscal suspensa, a execução civil teria de continuar.

 b) Admita-se, no entanto, que a execução fiscal não se encontra suspensa. Nesta hipótese, a RE decidiu bem ou mal? "Maioritariamente" mal, mas "minoritariamente" bem...

O que verdadeiramente estava em causa não era analisar se o princípio da adequação formal poderia ou deveria ter sido utilizado na execução civil de molde a evitar a reclamação do crédito exequendo na execução fiscal, mas antes qual a orientação que deve ser seguida quando nesta execução, por força do disposto no art. 244.º, n.º 2, CPPT, não se possa vir a proceder à venda do bem penhorado nas duas execuções pela circunstância de este ser a habitação própria e permanente do executado.

Embora não seja possível emitir nenhum juízo peremptório, é, pelo menos, possível afirmar que não há a certeza de que a RE tenha realmente visto o problema por este prisma. Um indício disto mesmo é a circunstância de o art. 244.º, n.º 2, CPPT nunca ser referido pela RE na fundamentação do acórdão e de nesta se entender que a aplicação do disposto no art. 200.º CPPT pode levar à satisfação do crédito reclamado numa execução fiscal em que está penhorada a habitação própria e permanente do devedor.

b) Perante a penhora da habitação própria e permanente do executado em ambas as execuções, o que deve então acontecer na execução civil, atento o disposto no art. 244.º, n.º 2, CPPT?

Segundo uma posição minoritária (que se subscreveu recentemente no comentário a Jurisprudência (91)), o credor da execução civil pode reclamar o seu crédito na execução fiscal e obter nesta a satisfação do seu crédito. Nesta perspectiva, não há efectivamente qualquer razão para proceder à adequação formal na execução civil. Tudo pode ocorrer de forma "normal": suspensão da execução civil, reclamação do crédito na execução fiscal e satisfação do crédito reclamado nesta execução.

O problema reside em que a posição maioritária na matéria entende que o credor reclamante não pode obter a satisfação do seu crédito na execução fiscal (por nesta não poder ser vendida a habitação própria e permanente do executado) e que, por isso, nada impede a continuação da execução civil. É o resulta com total clareza do sumário de RL 5/11/2020 (3911/18.3T8ALM.A.L1-6):

I - A existência de penhora sobre imóvel efectuada em execução fiscal e registada a favor da Autoridade Tributária, com registo anterior à efectuada numa execução comum, não obsta ao prosseguimento desta execução com a venda desse bem, quando na execução fiscal tal venda não pode ocorrer, por força do disposto no n.º 2 do art.º 244.º do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), por o imóvel constituir habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.
 
II - Este regime apenas proíbe a venda do imóvel afecto à habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar no âmbito da execução fiscal.
 
III - Na situação referida no ponto I, não obsta ao prosseguimento da execução comum o disposto no n.º 1 do artigo 794.º do Código de Processo Civil já que o mesmo pressupõe que o processo onde ocorreu a primeira penhora se encontre a correr os seus termos e pretende evitar a execução simultânea do mesmo bem, o que não ocorre no caso em análise.

IV - Estando vedada a venda do imóvel na execução fiscal suspensa e não tendo aplicação ao caso o disposto no n.º 1 do artigo 794.º do Código de Processo Civil, deve a mesma ter lugar na execução comum.

V - Impondo-se, neste caso, que seja promovida a citação da Autoridade Tributária para reclamar o seu crédito (art.º 786.º, n.º 1, alínea b), do CPC) o que a suceder determinará que seja oportunamente graduado no lugar que lhe competir (art.º 791.º do CPC).

Por esta perspectiva maioritária, a 1.ª instância e a RE, ao recusarem a adequação formal sugerida pelo exequente, não decidiram bem. Pela perspectiva minoritária acima referida, a solução acaba por ser correcta, apesar de o problema que importava resolver nem sequer ter sido suscitado e, por isso, não ter sido enfrentado.

c) Passando para o caso concreto, só resta ao exequente -- que, neste momento, não tem outra alternativa que não seja a de reclamar o seu crédito na execução fiscal -- procurar obter nesta a satisfação do seu crédito. O problema é que, se esta execução está suspensa (como parece estar), não se vê como.

MTS


15/12/2020

Jurisprudência 2020 (114)


Responsabilidade extracontratual do Estado;
competência material*


1. O sumário de RG 4/6/2020 (4778/18.7T8BRG.G1é o seguinte:

. O ETAF veio alargar a competência dos tribunais administrativos a todas as ações em que se discute a responsabilidade extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, e independentemente dessa responsabilidade emergir de uma atuação de gestão pública ou de gestão privada.

. Tendo a autora formulado um pedido de condenação solidária de todos os RR, com fundamento em responsabilidade extracontratual, a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais, enformando os fundamentos dessa sua pretensão também na omissão dos 2ª e 3ª RR., relativamente à conduta da 1ª R., pois que nada fizeram junto desta 1ª R. para obviar ao resultado danoso, co-envolvendo-os na produção dos mesmos danos para os quais terão concorrido em conjunto, por força das suas condutas omissivas (1ª R. omissão do dever de conservação, demais RR. por omissão do dever de zelar pela segurança pública), os tribunais administrativos e fiscais são competentes para conhecer da ação, ainda que nem todos os RR. sejam pessoas coletivas de direito público.

. Nas ações emergentes de responsabilidade civil extracontratual de pessoa jurídica pública pode ser chamada a intervir pessoa jurídica privada, para quem haja sido transferida a responsabilidade por contrato de seguro, não impedindo a intervenção da seguradora, a atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A apelante alicerça a ação na seguinte factualidade:

1. A 15.11.2016 a Autora encontrava-se no caminho público, a cerca de dois metros da fita balizadora colocada pela Polícia Municipal, quando foi atingida por um pedregulho que resvalou do muro e foi atingir a Autora na perna direita.

2. O muro de suporte de terras é propriedade da 1.ª Ré.

3. A Autora avisou os 2.º e 3ª RR para que tomassem «as devidas precauções de intervenção urgente» em junho de 2016 e «depois após a primeira derrocada parcial em outubro de 2016», sendo destas o «dever de cuidado e de zelo pela proteção da segurança pública.»

4. Os seus avisos não produziram qualquer efeito, porque não houve intervenção no muro em risco.

5. Considerando que o local onde o muro ruiu é um caminho público e de passagem de inúmeras pessoas, os 2.º e 3.ª RR tinham a obrigação de promover uma intervenção urgente para acautelar situações como a que veio a ocorrer à Autora.

Nos presentes autos não se suscita dúvidas que a 1ª R. e a interveniente principal são pessoas colectivas de direito privado e que a 2ª e a 3ª RR. são pessoas colectivas de direito público.

A A. funda a responsabilidade da 1ª A. no artº 492º do CC, o qual estabelece uma presunção de culpa do proprietário ou edifício ou outra obra que possa ruir.

Relativamente às demais RR. a A. não indica em que preceito legal se baseia para lhes imputar responsabilidade. Limita-se a referir que estas não providenciaram que o muro fosse reparado com urgência, não tendo cumprido o dever de cuidado e zelo pela protecção da segurança pública.

Relativamente ao Município de Y a sua responsabilidade poderá ser equacionada tendo em conta o disposto no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL 555/99, de 16 de Dezembro).

De acordo com o artigo 89º do RJUE, as edificações devem ser objecto de obras de conservação. No entanto, quando estejam em causa obras que sejam necessárias à correcção de más condições de segurança ou salubridade, a Câmara Municipal pode ordenar a realização dessas mesmas que são, em primeira mão, da responsabilidade do proprietário.

Refere o artigo 89º do RJUE, sob a epígrafe “Dever de Conservação” que:

1 – As edificações devem ser objecto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético.
2- Sem prejuízo do disposto no número anterior, a câmara municipal pode a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, determinar a execução de obras de conservação necessárias à correcção de más condições de segurança ou de salubridade ou das obras de conservação necessárias à melhoria do arranjo estético.
3- A câmara municipal pode, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, ordenar a demolição total ou parcial das construções que ameacem ruína ou ofereçam perigo para a saúde pública e para a segurança das pessoas.
4- Os actos referidos nos números anteriores são eficazes a partir da sua notificação ao proprietário.

Por seu lado refere o artigo 91º, nº 1 do mesmo diploma legal que quando o proprietário não iniciar as obras que lhe sejam determinadas nos termos do artigo 89.º, não apresentar os elementos instrutórios no prazo fixado para o efeito, ou estes forem objeto de rejeição, ou não concluir aquelas obras dentro dos prazos que para o efeito lhe forem fixados, pode a câmara municipal tomar posse administrativa do imóvel para lhes dar execução imediata.

Conforme se afirma no Ac. do TCAS, proc. n.º 08063/11, de 24-04-2014, «Há um interesse público na boa conservação dos edifícios erigidos no Município, que justifica a competência da CMB para a intimação das obras necessárias à correcção de más condições de segurança ou de salubridade ou à melhoria do arranjo estético».

Pretende-se, além de outros fins, a protecção dos valores a segurança e da saúde pública.

O ETAF veio alargar a competência dos tribunais administrativos a todas as ações em que se discute a responsabilidade extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, e independentemente dessa responsabilidade emergir de uma atuação de gestão pública ou de gestão privada.

Nesse sentido, Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida que defendem a competência da jurisdição administrativa para apreciar todas as questões de responsabilidade extracontratual da administração pública, ”independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de atuação de gestão privada: a distinção deixa de ser relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.” (Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª edição, Almedina, pág. 36 e ss., apud Ac. do TRC de 07.11.2017, processo 4055/16.8T8 VIS.C1).

Ora, sendo o 2º e a 3ª R. pessoas coletivas de direito público e pretendendo a autora acionar a sua responsabilidade civil extracontratual, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da respetiva ação. (v. Ac do STA de 26/09/2007 e Ac. do Tribunal de Conflitos de 17/06/2010; Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, 99; Santos Serra, A Nova Justiça Administrativa e Fiscal Portuguesa, comunicação efetuada em 28 de Agosto de 2006, no Congresso Nacional e Internacional de Magistrados, VI Assembleia da Associação Ibero Americana dos Tribunais de Justiça Fiscal e Administrativa, realizada na Cidade do México; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Almeida in Código do Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, vol. I, 59; Pedro Cruz e Silva in Breve estudo sobre a competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais em matéria de responsabilidade civil e de contratos, disponível in www.verbojuridico.net, apud Ac. do TRE de 11.07.2019, processo 442/18.5T8STB.E1).

A competência para conhecer das questões relativas à responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público por omissão dos deveres impostos pelo artº 89º do RGEU recai no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, de acordo com o disposto no artº 4º, nº1, alínea f) do ETAF.

O facto da A. ter demando solidariamente pessoas de colectivas de direito público e de direito privado, não exclui ações como a presente da competência material dos referidos tribunais, atento o expressamente salvaguardado no artº 4º, nº 2 do ETAF.

Dispõe o artº 91º do CPC que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nelas se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa e poderá ser também competente para conhecer das questões prejudiciais, ainda que do foro da competência do tribunal criminal ou administrativo, mas a decisão do juiz competente para a ação não produzirá efeitos fora do processo em que for proferida (artº 92º, nºs 1 e 2).

Mas para que possa se verificar esta extensão de competência é necessário que o tribunal seja competente para a ação, o que no caso não é, sendo que esta atribuição resulta desde logo da factualidade alegada pela A. e não das questões suscitadas pelos RR..

A ação instaurada pela A. assenta em duas causas de pedir complexas. Relativamente à 1ª R., os factos relativos ao acidente, à sua qualidade de proprietária e o seu comportamento omissivo de não reparação do muro que ameaçava ruir, acabando por dar azo a um acidente, e, relativamente à 2º e 3ª RR. os mesmos factos relativos ao acidente e a omissão de providências urgentes para impedir o acidente. O pedido é o mesmo, por força da responsabilidade solidária que lhes é imputada (artº 497º do CC).

A autora formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. E enformou os fundamentos dessa sua pretensão também na omissão dos 2ª e 3ª RR., relativamente à conduta da 1ª R., pois que nada fizeram junto desta 1ª R. para obviar ao resultado danoso, co-envolvendo-os na produção dos mesmos danos para os quais terão concorrido em conjunto, por força das suas condutas omissivas (1ª R. omissão do dever de conservação, demais RR. por omissão do dever de zelar pela segurança pública).

Relativamente ao interveniente principal a razão de ser da sua intervenção não se funda na responsabilidade extra-contratual, mas sim na responsabilidade contratual – a celebração de um contrato de seguro entre o R. Município e a interveniente Companhia de Seguros.

Já no vigência do artº 4º do ETAF, na redacção anterior ao DL 214-G/2015, se entendia que nas ações emergentes de responsabilidade civil extracontratual de pessoa pública a correr termos nos tribunais administrativos e fiscais, (na altura apenas por acto ou omissão de gestão pública) podia ser chamada a intervir pessoa jurídica privada, para quem tivesse sido transferida a responsabilidade por contrato de seguro (cfr se defende no Acórdão do TCAN de 20.05.2016, proc.00239/12.6BECBR, onde é feita referência a outros acórdãos). A intervenção suscitada, não impede assim também, a atribuição da competência aos tribunais da jurisdição administrativa."

*3. [Comentário] Convém ter presente o disposto no art. 4.º ETAF:

1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
 
[...] f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo; [...]
 
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.

MTS

14/12/2020

Jurisprudência 2020 (113)


Providência cautelar:
coligação passiva; inversão do contencioso


1. O sumário de RG 28/5/2020 (3050/19.0T8GMR-D.G1) é o seguinte: 

I. Num procedimento cautelar de restituição provisória de posse com pluralidade de partes do lado passivo, em que o requerente alega um conjunto de factos violadores da sua posse que imputa a alguns dos requeridos, e outro conjunto de factos igualmente violadores da sua posse que imputa a outros requeridos, estamos no lado passivo da relação processual perante a figura da coligação, e não litisconsórcio.

II. A coligação significa que apesar de estarmos perante um só processo, não estamos perante uma única acção, mas sim perante várias acções, todas independentes umas das outras, mas que por razões práticas, de economia processual, foram todas tramitadas no mesmo processo.

III. Não existe nenhum impedimento em que, num caso de coligação do lado passivo, se decrete a inversão do contencioso em relação a um dos requeridos, e não em relação a outro ou outros.

IV. Tendo sido decretada a inversão do contencioso após ter sido ordenada a restituição provisória de posse, e tendo sido instaurada, pelos requeridos, acção declarativa para discutir a titularidade do direito perfunctoriamente atribuído nos autos de procedimento cautelar, nada impede que seja ordenada e mantida a apensação dos autos de procedimento cautelar ao processo onde corre a acção declarativa, pois, mesmo não havendo qualquer efeito jurídico daí decorrente, há pelo menos vantagens práticas visíveis, e não ofende os direitos de nenhuma das partes.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como resulta das alegações das recorrentes, tudo está em saber qual a figura jurídica que está na base da pluralidade de partes nestes autos.

Vejamos: quando as requerentes vieram pedir ao Tribunal que fossem restituídas provisoriamente à sua posse sobre a unidade agrícola denominada “Quinta ...”, constituída pelos diversos prédios melhor identificados no art. 2º do requerimento inicial, começaram por alegar que tal Quinta integra a herança aberta por morte de seu pai, do qual as requerentes são as únicas e universais herdeiras, tendo a 1ª requerente sido nomeada cabeça-de-casal daquela herança aberta por óbito de seu pai. Alegaram de seguida que a referida Quinta estava a ser ocupada pela “X”, que, no local, ocupa um pavilhão ou armazém, onde desenvolve a actividade de avicultura. Mais alegaram que a mesma Quinta é ainda ocupada pelos 1º e 2º requeridos, que dela se intitulam proprietários e aí permanecem contra a vontade das requerentes e sem qualquer título que o legitime. Acrescentam que os requeridos recusam-se a entregar a dita Quinta às requerentes, sendo certo que “estroncaram” as fechaduras colocadas pela 1ª requerente nos portões da mesma Quinta e, no seu interior, com tom agressivo e amedrontando-a, expulsaram-na da mesma Quinta, estando actualmente as requerentes impedidas de exercer livremente o seu direito de propriedade sobre a referida Quinta.

Mas temos de descer ainda mais ao concreto. Para isso, vamos dar um salto lógico e também cronológico até à matéria de facto dada como provada no segundo acórdão desta Relação, datado de 10.10.2019.

Resultou com efeito provado, e resumidamente, para o que agora interessa, que em 13 de Março de 2018, a 1ª requerente dirigiu-se à Quinta ... e deparou-se com os vários portões da Quinta fechados e sem que as respectivas fechaduras abrissem com as chaves que as requerentes tinham. No interior da quinta, a 1ª requerente deparou-se com um senhor que se apresentou como sendo F. F. que disse aí explorar um aviário no armazém, cuja existência até então desconhecia, para a empresa X. As requerentes mudaram as fechaduras dos portões de acesso à quinta. Após, a 1ª requerente foi surpreendida pela entrada e permanência na Quinta do requerido M. C. e de um filho deste que tinham entrado por ter estroncado a fechadura colocada pela 1.ª requerente minutos atrás. Aquele requerido tinha ainda solicitado a comparência da autoridade policial para expulsar a 1.ª requerente dali, alegando que a sua mulher – a requerida M. G. – e ele próprio eram os proprietários da Quinta. E ainda se provou que o legal representante da requerida X, Lda e o requerido M. C. fizeram entre si um acordo de arrendamento, mediante o qual este cedeu o gozo dos pavilhões existentes na referida Quinta à Requerida X, onde esta desenvolve a actividade de criação de aves.

Finalmente, sabemos ainda que os requeridos M. C. e M. G. intentaram contra as requerentes e a herança de falecido J. F. uma acção declarativa na qual pedem que se declare que eles adquiriram por acessão industrial imobiliária o direito de propriedade sobre a referida Quinta, contra pagamento a efectuar pelos autores, a quem venha a ser judicialmente reconhecido o direito de propriedade sobre os imóveis do montante de € 399.038,00 em prazo a determinar pelo Tribunal.

Ou seja, estamos perante dois litígios distintos.

Quando as requerentes intentaram o presente procedimento cautelar, submeteram à decisão do Tribunal: a) um primeiro litígio, entre elas e os requeridos M. C. e M. G.; b) um segundo litígio, entre elas e a requerida X, Lda.

São dois litígios totalmente diferentes. O litígio que opõe as Requerentes à X, Lda, é localizado aos armazéns que esta sociedade ocupa na dita Quinta, a coberto de um contrato de arrendamento. Já o litígio que opõe as requerentes aos requeridos M. C. e M. G. se afigura como um litígio global, pois estes arrogam-se o direito de propriedade sobre a totalidade da Quinta.

Dizendo de outra forma: apesar de o pedido formulado pelas Requerentes ser o mesmo para todos os Requeridos, já as causas de pedir são diversas num caso e no outro. Considerando que estamos perante um meio de defesa da posse, a causa de pedir no litígio que opõe as requerentes aos requeridos M. C. e M. G. abrange os factos concretos praticados por estes que ofenderam a posse daquelas. E, similarmente, a causa de pedir no litígio que opõe as requerentes à requerida X, Lda, abrange os factos concretos praticados por esta que ofenderam a posse daquelas.

Donde, é perfeitamente possível julgar um dos litígios de uma forma, e julgar o outro de forma diferente, tudo dependendo das contingências probatórias -e não só- de cada caso. São dois litígios que por razões de conveniência prática e de economia processual foram trazidos a Juízo no mesmo processo, e aí foram tramitados em conjunto, mas que podiam igualmente e com a mesma facilidade ter sido deduzidos em dois processos judiciais distintos.

O que significa que nos presentes autos a pluralidade de partes assume a figura da coligação, e não do litisconsórcio, seja voluntário, seja necessário.

Existe litisconsórcio quando a relação material controvertida respeita a várias pessoas (art. 32º,1 CPC). Esse litisconsórcio pode ser voluntário, caso em que a acção respectiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados, mas também podem ser propostas várias acções, ou pode ser necessário, o que sucede nos casos em que a lei ou o negócio o exijam expressamente, ou quando a própria natureza da relação jurídica controvertida exigir a intervenção dos vários interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (art. 33º,1,2 CPC).

Sendo caso de litisconsórcio necessário, há uma única acção com pluralidade de sujeitos; no litisconsórcio voluntário, e por maioria de razão na coligação, há uma simples acumulação de acções, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes (art. 35º CPC).

No caso dos autos, como já vimos, a reunião no mesmo processo da requerida X, por um lado, e dos requeridos M. G. e M. C., por outro, configura uma mera coligação, ou seja, estamos perante duas acções, mas tramitadas no mesmo processo [...].

Estamos pois em condições de concluir que assiste total razão às recorrentes, quando dizem que “o casal M. G. e M. C. sendo, por um lado, litisconsortes necessários entre si, não é, por outro lado, litisconsorte com a X, Lda., sendo antes partes coligadas, pelo que a conduta e a posição processual de uns nada tem que ver com a conduta e a posição processual do outro, como decorre do artigo 634.º do CPC”.

Igualmente lhes assiste razão quando afirmam que “nunca foi posta em causa, nem pelos próprios Requeridos M. G. e M. C., nem pelo Tribunal que a decisão de decretamento da providência cautelar estava tomada quanto a estes com força de caso julgado e, bem assim, com inversão do contencioso”.

E, para não nos alongarmos desnecessariamente, podemos resumir dizendo que assiste integral razão aos recorrentes, quanto ao que afirmam nas suas conclusões de recurso.

Assim é que o despacho recorrido assenta em pressupostos falsos: a decisão que inverteu o contencioso (no litígio entre as requerentes e os requeridos M. G. e M. C.) não foi revogada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães; a nova decisão da 1ª instância, na sequência do recurso que levou à prolação daquele acórdão, apenas apreciou o litígio entre as requerentes e a requerida X, Lda; não é correcto afirmar peremptoriamente que “não poderá entender-se, nos mesmo autos, que foi invertido o contencioso relativamente a uns requeridos e declinado em relação a outros – a decisão deverá ser unitária”, porque pode ser correcto ou pode não o ser, tudo dependendo de estarmos perante uma situação de litisconsórcio necessário, ou perante uma mera coligação. No caso dos autos, em que estamos perante uma coligação entre o casal S. e a X, Lda, pode ser declarada a inversão do contencioso em relação e um e não em relação ao outro, porque estamos perante duas acções independentes, que apenas por razões de eficiência e economia processual são tramitadas no mesmo processo.

Estamos pois em condições de concluir que nos presentes autos de procedimento cautelar, no litígio que opõe as requerentes aos requeridos M. G. e M. C., foi decretada a imediata restituição da posse às requerentes dos prédios melhor identificados no art. 2º do requerimento inicial, tendo sido igualmente decretada quanto a eles a inversão do contencioso. Decisão que transitou em julgado."

[MTS]