"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/11/2020

Jurisprudência 2020 (105)


Seguradora; legitimidade processual;
parte principal; parte acessória*


I. O sumário de RG 21/5/2020 (2075/19.0T8VCT-A.G1) é o seguinte:

1. Salvo convenção ou disposição da lei em sentido contrário, o terceiro que seja titular duma relação jurídica conexa carece de legitimidade para intervir como parte principal. Essa ilegitimidade impede que seja directamente demandado ou a sua participação por via dos incidentes de intervenção espontânea ou provocada previstos nos artigos 311º e 316º do CPC, só podendo intervir como interveniente acessório ao lado do réu, circunscrevendo-se essa intervenção à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento, nos termos do nº2 do artigo 321º do Código de Processo Civil.

2. À luz do artigo 146º, nº1, do RJCS o lesado tem o direito de usar da acção directa contra a seguradora em todos os seguros obrigatórios, e nos seguros facultativos nas circunstâncias previstas nos nºs 2 e 3, do artigo 140º, isto é, se esse direito estiver previsto no contrato de seguro ou, inexistindo essa previsão, se o segurado tiver informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador;

3. No caso, sendo de natureza facultativa os contratos de seguro mediante os quais a ré transferiu para a seguradora a responsabilidade civil emergente dos serviços financeiros/profissionais prestados pelos promotores por si designados e a decorrente da sua actividade, e não se verificando as específicas circunstâncias dos nºs 2 e 3, do artigo 140º do RJCS, a seguradora chamada só pode participar na acção na qualidade de interveniente acessória ao lado da ré nos termos do nº2 do artigo 321º do CPC.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A recorrente pretende que a companhia de Seguros ... Limited-Sucursal em Portugal seja admitida a intervir nestes autos como parte principal nos termos do artigo 316º do CPC, alegando que, pelo contrato de seguro titulado pela apólice ..., transferiu para essa seguradora a responsabilidade civil emergente dos serviços financeiros/profissionais prestados pelos promotores por si designados; e que, por via do contrato de seguro titulado pela apólice nº. C03140004 transferiu a sua responsabilidade civil emergente da actividade por si exercida.

Sobre uma questão similar, no acórdão proferido a 23.01.2020 no processo 3743/18.9T8VCT-A este colectivo decidiu em sentido contrário ao do pugnado pelo recorrente, não havendo razão para alterar essa posição, que se passa a transcrever:

«Salvo convenção ou disposição da lei em sentido contrário, o terceiro que seja titular duma relação jurídica conexa carece de legitimidade para intervir como parte principal – essa ilegitimidade impede quer a demanda directa quer a sua participação nessa qualidade por via dos incidentes de intervenção espontânea ou provocada previstos nos artigos 311º e 316º do CPC - só podendo intervir como interveniente acessório ao lado do réu, circunscrevendo-se essa intervenção à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento, nos termos do nº2 do artigo 321º do Código de Processo Civil.

Como refere Salvador da Costa “o que verdadeiramente parece distinguir a intervenção principal provocada da intervenção acessória provocada é a real posição do interveniente relativamente à relação jurídica invocada pelo autor na petição inicial, pois se o chamamento daquele se basear na relação jurídica invocada pelo autor na petição inicial estaremos perante o incidente de intervenção principal provocada, ao passo que se o chamamento se estribar numa relação jurídica conexa com aquela já se tratará do incidente de intervenção acessória provocada” (incidentes da instância – p. 117/118).

À luz do artigo 146º, nº1, do RJCS o lesado tem o direito de usar da acção directa contra a seguradora em todos os seguros obrigatórios, e nos seguros facultativos nas circunstâncias previstas nos nºs 2 e 3, do artigo 140º, ou seja, se esse direito estiver previsto no contrato de seguro ou, inexistindo essa previsão, se o segurado tiver informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador. Não se verificando essas específicas circunstâncias, a existência do contrato de seguro facultativo apenas viabiliza a intervenção acessória da seguradora nos termos supra enunciados (nº2 do artigo 321º), pelo que se entende ser correcta e bem fundada a solução plasmada na decisão recorrida, que vai de encontro à orientação da doutrina – cfr. José Vasques, in Lei do Contrato de Seguro, 2ª edição, pág. 481 e ss, e Abrantes Geraldes, no citado estudo «O Novo Regime Do Contrato de Seguro, Antigas e Novas Questões».

O recorrente cita o acórdão desta Relação de 09-07-2015 (do mesmo Relator), onde a solução defendida é no sentido da admissibilidade da intervenção principal da seguradora, sucede que a situação aí tratada reportava-se a um.. seguro obrigatório (Decreto-Lei 279/200, de 06.10, que aprovou o regime jurídico das unidades privadas de saúde)."

*III. [Comentário] Convém ter presente os seguintes preceitos do RJCS:

CAPÍTULO II 
Parte especial 

SECÇÃO I 
Seguro de responsabilidade civil 
SUBSECÇÃO I 
Regime comum

Artigo 140.º
Defesa jurídica 

1 - O segurador de responsabilidade civil pode intervir em qualquer processo judicial ou administrativo em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco ele tenha assumido, suportando os custos daí decorrentes. 

2 - O contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.
 
3 - O direito de o lesado demandar directamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador. 

4 - Quando o segurado e o lesado tiverem contratado um seguro com o mesmo segurador ou existindo qualquer outro conflito de interesses, o segurador deve dar a conhecer aos interessados tal circunstância. 

5 - No caso previsto no número anterior, o segurado, frustrada a resolução do litígio por acordo, pode confiar a sua defesa a quem entender, assumindo o segurador, salvo convenção em contrário, os custos daí decorrentes proporcionais à diferença entre o valor proposto pelo segurador e aquele que o segurado obtenha. 

6 - O segurado deve prestar ao segurador toda a informação que razoavelmente lhe seja exigida e abster-se de agravar a posição substantiva ou processual do segurador. 

7 - São inoponíveis ao segurador que não tenha dado o seu consentimento tanto o reconhecimento, por parte do segurado, do direito do lesado como o pagamento da indemnização que a este seja efectuado. [....]


SUBSECÇÃO II 
Disposições especiais de seguro obrigatório

Artigo 146.º
Direito do lesado 

1 - O lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador. 

2 - A indemnização é paga com exclusão dos demais credores do segurado. 

3 - Salvo disposição legal ou regulamentar em sentido diverso, não pode ser convencionada solução diversa da prevista no n.º 2 do artigo 138.º
 
4 - ... 

5 - Enquanto um seguro obrigatório não seja objecto de regulamentação, podem as partes convencionar o âmbito da cobertura, desde que o contrato de seguro cumpra a obrigação legal e não contenha exclusões contrárias à natureza dessa obrigação, o que não impede a cobertura, ainda que parcelar, dos mesmos riscos com carácter facultativo. 

6 - Sendo celebrado um contrato de seguro com carácter facultativo, que não cumpra a obrigação legal ou contenha exclusões contrárias à natureza do seguro obrigatório, não se considera cumprido o dever de cobrir os riscos por via de um seguro obrigatório."

MTS


27/11/2020

Legislação (200)


Covid-19

L 75/2020, de 27/11
Processo extraordinário de viabilização de empresas


Âmbito de aplicação material do Reg. 1215/2012


1. No recente acórdão da RL 10/11/2020 (25787/19.3T8LSB.L1-7) decidiu-se o seguinte:

I - Nas causas que envolvam elementos de conexão com diversos Estados-membros da União Europeia, a competência internacional dos Tribunais portugueses deve ser determinada à luz do Regulamento nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, e não à luz do disposto nos arts. 60º e segs. do CPC.

II - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para uma execução para pagamento de quantia certa intentada por um banco português contra duas pessoas singulares de nacionalidade espanhola e residentes em Espanha, tendo por títulos executivos livranças onde consta como lugar do pagamento Lisboa, e que os executados assinaram na qualidade de avalistas e gerentes da sociedade subscritora – art. 7º, nº 1, al. a) do referido Regulamento.

2. a) Verdadeiramente, não há muito a dizer sobre a orientação defendida pela RL, a não ser que a mesma assenta num equívoco, dado que o Reg. 1215/2012 não é aplicável ao processo executivo. Em concreto: nenhuma regra de competência constante do Reg. 1215/2012 tem aplicação no processo executivo. O mesmo vale, aliás, para a CLug II referida no acórdão.

Importa lembrar que o processo executivo se orienta por um princípio de territorialidade, segundo o qual as medidas executivas só podem ser tomadas no Estado da situação dos bens. Basta esta circunstância para demonstrar que, se, por acaso, alguma vez tivesse havido alguma dúvida sobre a aplicação do Reg. 1215/2012 ao processo executivo, a dúvida estaria imediatamente desfeita pela circunstancia de as regras de competência que dele constam não serem adequadas ao processo executivo. Por exemplo: de pouco serve entender -- como a RL fez -- que é competente para a execução o tribunal do lugar do cumprimento da obrigação (art. 7.º, n.º 1, Reg. 1215/2012), se no respectivo Estado-Membro não houver bens penhoráveis do executado. Aliás, é também exactamente pela mesma razão que as regras internas que constam do art. 62.º CPC não são aplicáveis ao processo executivo: para este processo, a sua utilidade é reduzida, se não mesmo nula.

Até ao momento, o único instrumento europeu que possibilita que certas medidas executivas sejam decretadas num Estado-Membro e executadas num outro Estado-Membro é o Reg. 655/2014, relativo ao procedimento de decisão europeia de arresto de contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial. Para uma apresentação geral deste Regulamento, clicar em Teixeira de Sousa, ROA 79 (2019), 189.

b) A única regra de competência em que é referido o processo executivo é a que consta do art. 24.º, n.º 5, Reg. 1215/2012. Mas o sentido -- indiscutível -- do preceito é o de determinar que o tribunal no qual corre a execução (e cuja competência é aferida pela lei interna do Estado-Membro) tem competência exclusiva para os processos declarativos que constituam incidente ou apêndice do processo executivo, como, por exemplo, os embargos de executado ou os embargos de terceiro.

c) Duas notas finais:

-- Atendendo ao princípio de territorialidade acima referido e dado que a própria exequente informou o tribunal de 1.ª instância que desconhece que os executados tenham bens situados em Portugal, a execução agora pendente nos tribunais portugueses vai ser, muito provavelmente, uma execução inútil que se extinguirá por não serem encontrados bens penhoráveis em Portugal (art. 750.º CPC);

-- Ao contrário do que se dá a entender no n.º I do sumário, o Reg. 1215/2012 também é aplicável quando a causa tenha conexão com Estados terceiros; por exemplo: se dois argentinos com domicilio na Argentina litigarem sobre um prédio situado em Lisboa, o Reg. 1215/2012 é aplicável, estabelecendo a competência exclusiva dos tribunais portugueses para a respectiva acção (art. 24.º, n.º 1, § 1.º, Reg. 1215/2012).


MTS


Jurisprudência 2020 (104)


Embargos de executado;
exigibilidade da obrigação; liquidação da obrigação*


1. O sumário de RG 21/5/2020 (1773/19.2T8GMR-D.G1) é o seguinte:

I- Porque o âmbito de aplicação da alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC não abrange excepções peremptórias, apenas estarão em causa, no que concerne à impugnação da liquidação e da exigibilidade da obrigação como fundamento de suspensão da execução sem prestação de caução, razões atinentes aos pressupostos processuais da acção executiva, não já motivos de natureza substantiva.

II- Não questionando a embargante a liquidez da obrigação, tão só a justeza do montante reclamado (que sustenta exceder o que poderá ser devido), é manifesto que não impugna a iliquidez da obrigação nos termos pressupostos pela alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC.

III- Alegando a embargante que, no âmbito da relação subjacente à relação cartular (relações mediatas), a embargada não procedeu à sua interpelação, não questionando porém a exigibilidade que os títulos dados à execução (livranças) demonstram à evidência, tem de concluir-se não se enquadrar a situação na previsão normativa da alínea c) do nº 1 do art. 713º do CPC.

IV- Porque a partir da apensação, atenta a unificação das causas para efeitos de tramitação, instrução e julgamento, se tem de considerar que as partes que intentaram acções separadas e distintas passam a ser partes numa causa única, estão elas (porque podem depor como partes), impedidas de depor como testemunhas.

V- Solução diversa implicaria conceder a incoerência dogmático-normativa do ordenamento processual - que uma mesma pessoa, no âmbito do mesmo processo, pudesse depor como parte (v. g., a requerimento do contraparte – no caso, a requerimento do exequente) e como testemunha (a requerimento de uma das outras partes)


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

À economia da presente apelação importa [...] a última hipótese – o fundamento previsto na alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC.

Preceito cuja aplicação demanda redobradas cautelas – constituindo a suspensão da execução fundada no recebimento dos embargos de executado situação excepcional (não a regra), tem de existir também ‘uma particular exigência na admissibilidade da suspensão da execução por via da norma’ em questão, tendo o juiz, ademais, de considerar, ouvido o exequente/embargado, que se justifica a suspensão da execução sem prestação de caução [Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva (…), pp. 256/257].

Primeiro pressuposto para aplicação da previsão em análise é o de que oposição deduzida tenha por fundamento a inexigibilidade e/ou a iliquidez da obrigação exequenda (art. 729º, e) do CPC).

A exigibilidade da prestação verifica-se ‘quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do art. 77º, nº 1 do CC, de simples interpelação ao devedor’; pelo contrário, não será exigível a prestação quando, ‘não tendo ocorrido o vencimento, este não está dependente de mera interpelação’, como acontece nas obrigações de prazo certo ainda não decorrido/esgotado, nas situações de prazo incerto e a fixar pelo tribunal (art. 777º, nº 2 do CC), nos casos em que a constituição da obrigação foi sujeita a condição suspensiva, ainda não verificada (arts. 270 do CC e 715º, nº 1 do CPC) ou, ainda, quando em caso de sinalagma, o credor não satisfez a contraprestação (art. 428º do CC) (José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª edição, pp. 100/101).

A liquidez da obrigação concerne à determinação ou apuramento quantitativo da prestação – necessitando (em vista da execução, pois que esta depende da certeza, exigibilidade e liquidez da prestação – art. 713º do CPC) a obrigação ilíquida de ser liquidada, seja em incidente de liquidação no âmbito da acção declarativa (art. 704º, nº 6 do CPC), seja no âmbito da própria execução (art. 716º do CPC) (José Lebre de Freitas, A acção Executiva (…), pp. 102 a 104.).

Parece evidente que, no que concerne à impugnação da liquidação, que esta só poderá justificar a suspensão da execução nos casos em que a obrigação deva ser liquidada no processo executivo, nos termos do art. 716º do CPC, fora dos casos em que apenas depende de simples cálculo aritmético – a previsão da alínea c) do nº 1 do art. 733 do CPC incide sobre a verificação de excepção dilatória do processo executivo, como é o caso da inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda (Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva (…), p. 257).

Porque o âmbito de aplicação da alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC não abrange excepções peremptórias, apenas estarão em causa, também no que concerne à impugnação da exigibilidade da obrigação, como fundamento de suspensão da execução sem prestação de caução, razões atinentes aos pressupostos processuais da acção executiva e não já motivos de natureza substantiva [...].

O preceito em análise está orientado para que se ponderem interesses conflituantes – o interesse do executado/embargante em evitar o ataque ao seu património em processo executivo que não cumpre requisitos legalmente exigidos (exigibilidade e liquidez da obrigação exequenda – art. 713º do CPC) e o interesse do exequente/embargado em não ver paralisada a execução em consequência de uma gratuita e não consistentemente sustentada arguição da inexigibilidade e/ou iliquidez da obrigação exequenda [...]

Justificar-se-á, pois, suspender a execução (trazendo justo equilíbrio à relação de interesses opostos e conflituantes), ao abrigo da alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC, quando os elementos carreados aos autos (conjugando os que constem do processo executivo com os carreados aos embargos) permitam concluir (num juízo forçosamente sumário e não definitivo – prévio ao que a contraditoriedade da audiência permitirá formular a final), pela consistência da argumentação – dito doutro modo, que os elementos existentes nos autos imponham concluir estar abalada (pelo menos consistentemente questionada) a exigibilidade e liquidez da obrigação exequenda.

Na situação dos autos, é de manifesta e linear evidência que não pode decretar-se a suspensão da execução em virtude de estar arguida a iliquidez da obrigação – a obrigação é líquida em face dos títulos executivos, não sendo caso de liquidação no processo executivo, nos termos do art. 716º do CPC (e como acima referido, só em tais casos o preceito tem aplicação), não questionando a embargante a liquidez da obrigação, tão só a justeza do montante reclamado (que sustenta exceder o que poderá ser devido).

Não pode concluir-se, pois, que no caso dos autos seja impugnada, nos termos pressupostos pela alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC, a liquidação da obrigação exequenda.

Também se não pode concluir da argumentação expendida pela embargante na sua petição de oposição que seja impugnada a exigibilidade da obrigação exequenda.

O que a embargante sustenta é que, no âmbito da relação subjacente à relação cartular (relações mediatas), a embargada não procedeu à sua interpelação.

É perante o título executivo que se apura o pressuposto e requisito de exigibilidade da obrigação exequenda (por isso que não resultando do título o incumprimento da obrigação - cuja existência o título revela -, deverá tornar-se a mesma exigível - para lá de certa e líquida, quando assim for o caso -, sem o que a execução não pode prosseguir (José Lebre de Freitas, A acção Executiva (…), p. 99)) e, no caso dos autos, a exigibilidade da obrigação é evidente considerando s livranças dadas à execução.

Ademais, mesmo que fosse de ponderar a relação subjacente (e não é – já vimos que a previsão da alínea c) do nº 1 do art. 733º incide sobre a verificação de excepção dilatória e não sobre o que constitui excepção peremptória, ou seja, incide sobre os pressupostos processuais da acção executiva e não sobre matéria substantiva relativa à obrigação exequenda), sempre teria de considerar-se suficientemente demonstrado (num juízo exclusivamente assente nos elementos disponíveis – prova documental junta pelas partes –, prévio ao contraditório da audiência de julgamento e por isso não definitivo) que a embargada, previamente ao preenchimento das livranças, interpelou a embargante (e restantes executados) para o cumprimento (vejam-se os documentos de fls. 70, 73 e 76, que constituem comunicações dirigidas à embargante pela embargada solicitando o cumprimento da obrigação, e bem assim de fls. 84 a 86, reveladores de que tais comunicações, feitas por correio registado com aviso de recepção dirigidas para a morada da embargante constante do contrato, foram devolvidas ao remetente por não reclamadas – tendo por isso a declaração produzido os seus efeitos, à luz do art. 224º, nº 2 do CC).

De concluir, pois, não se enquadrar a situação dos autos na previsão normativa da alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC.

*3. [Comentário] A RG, segundo o que tudo indica, decidiu bem o caso concreto. 

O que, salva a devida consideração, não é aceitável são as afirmações genéricas de que

"o âmbito de aplicação da alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC não abrange excepções peremptórias"

e de que 

"a previsão da alínea c) do nº 1 do art. 733º incide sobre a verificação de excepção dilatória e não sobre o que constitui excepção peremptória, ou seja, incide sobre os pressupostos processuais da acção executiva e não sobre matéria substantiva relativa à obrigação exequenda". 

É claro que a exigibilidade e a liquidação não são pressupostos processuais do processo executivo, mas antes qualidades substantivas da obrigação exequenda. Por exemplo: a invocação contra a exigibilidade da obrigação de uma moratória concedida pelo exequente não é outra coisa que não a invocação de uma excepção peremptória.

MTS


26/11/2020

Jurisprudência 2020 (103)


Imunidade de jurisdição;
Conselho da Europa


1. O sumário de RL 2/6/2020 (15998/18.4 T8LSB.L1-1) é o seguinte:

I- A imunidade de jurisdição das Organizações Internacionais está, normalmente, prevista nos seus tratados constitutivos, nas convenções multilaterais e nos acordos bilaterais. 

II- Inexiste norma expressa que consagra a imunidade de jurisdição do Conselho da Europa.

III- O Conselho da Europa não assume a figura de um Estado (possuindo, antes, uma composição essencialmente inter-estatal), pelo que as regras a estes aplicáveis não são válidas para aquele.

IV- Assim, para apurar a imunidade de jurisdição do Conselho da Europa, há que lançar mão dos princípios gerais de Direito Internacional Público sobre a imunidade de jurisdição das Organizações Internacionais.

V- De acordo com tais princípios, as Organizações Internacionais gozam de imunidade de jurisdição absoluta, inexistindo motivos para dar ao Conselho da Europa um tratamento mais desfavorável do que aquele que é dado às restantes Organizações Internacionais.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"e) É certo que, nem do Estatuto do Conselho da Europa, nem do Acordo Geral sobre os Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa resulta expressamente que o Conselho da Europa, enquanto tal, goza de imunidade de jurisdição.

Por outro lado, “no ordenamento jurídico português, não existe norma que regule a questão da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros perante os Tribunais portugueses, problemática que tem de ser apreciada à luz das normas e dos princípios de direito internacional geral ou comum, que, segundo o nº 1 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, “fazem parte integrante do direito português” (cf. Acórdão do S.T.J. de 4/6/2014, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).

Desde logo, há que salientar que o Conselho da Europa não é um órgão governamental de qualquer Estado soberano, nem tem quaisquer funções legislativas ou executivas (na União Europeia as competências no controle e em alterações na legislação são divididas entre o Parlamento e o Conselho da União Europeia, enquanto as tarefas executivas são levadas a cabo pela Comissão Europeia).

Deste modo, não há que aplicar “in casu” a “teoria relativa da imunidade de jurisdição do Estado”, segundo a qual “dela se consideram actualmente excluídos os actos de gestão (respeitantes a actos e contratos privados), apenas sendo considerados actos de imunidade de jurisdição dos estados os praticados sob a denominação de actos de império” (cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 10/5/2016, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).

Deste modo, a questão em apreço deverá ser resolvida mediante interpretação dos princípios gerais de Direito Internacional Público sobre a imunidade das Organizações Internacionais.

Ora, no Processo “Associação de Mães da Sbrebrenica e outros v. Estado da Holanda e Nações Unidas” (“Mothers of Sbrebrenica Association et al v. The State of the Netherlands and the United Nations”), que correu termos no Supremo Tribunal dos Países Baixos, e cuja decisão pode ser consultada na “internet” na Base de Dados do CAHDI (Committee of Legal Adviser on Public International Law), em http://www.cahdidatabases.coe.int/Contribution/Details/347, decidiu-se, a propósito da ONU e da imunidade desta organização (tradução do relator do presente Acórdão):

“(…) a questão é se, como a Associação et al. argumentam, o direito de acesso a um Tribunal independente consagrado no artigo 6º da CEDH e no artigo 14º do PIDCP prevalece sobre essa imunidade. Com base nos critérios estabelecidos pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) em Beer e Regan v. Alemanha e Waite e Kennedy v. Alemanha, o Tribunal de apelação examinou a questão de saber se a invocação da imunidade da ONU é compatível com o artigo 6º da CEDH. Nesse contexto, a primeira coisa que pode ser estabelecida é que a imunidade sirva um objectivo legítimo, ou seja, garantir o bom funcionamento das Organizações Internacionais. Em resposta à questão de saber se, neste caso, a imunidade é proporcional ao objectivo a ser cumprido, deve-se notar desde o início que a ONU ocupa uma posição especial entre organizações internacionais”.

“A base para a imunidade da ONU (distingue-se da imunidade concedida à funcionários e especialistas que realizam missões para a ONU) é o artigo 105º da Carta e artigo II, § 2 da Convenção. O Tribunal de recurso estava correto ao interpretar esta última disposição – que é uma concretização do parágrafo 1 do artigo 105º – à luz da artigo 31º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, para significar que a ONU desfruta de imunidade de jurisdição de maior alcance, no sentido de que a ONU não pode ser convocada para comparecer perante qualquer Tribunal nacional nos países que são parte no Convenção”.

“Tanto a base, quanto o escopo dessa imunidade, que visa garantir que a imunidade da ONU pode funcionar de forma completamente independente e, portanto, serve um propósito legítimo, portanto, diferente daquele subjacente à imunidade de jurisdição de que gozam os Estados estrangeiros. Conforme declarado na secção 13ª da Lei de Disposições Legislativas Gerais, o segundo, deriva do Direito Internacional (“parem parem non habet imperium”), e aplica-se exclusivamente a actos de um Estado estrangeiro realizados com capacidade governamental (“acta iure imperii”)”.

“Conforme declarado em 4.1.1, o Tribunal de apelação concluiu, com base nos critérios estabelecidos pelo TEDH em Beer e Regan /Alemanha (TEDH de 18 de Fevereiro de 1999, nº 28934/95) e Waite e Kennedy contra Alemanha (TEDH em 18 de Fevereiro de 1999, nº 26083/94), que a invocação da imunidade da ONU é compatível com o direito de acesso aos Tribunais consagrado no artigo 6º da CEDH e no artigo 14º do PIDCP. No processo de cassação, o Estado não contesta o argumento de que esse Direito de imunidade – que não é um direito absoluto – também constitui uma regra do direito internacional consuetudinário”.

“Ambos os casos acima citados envolveram processos perante os Tribunais alemães contra a “Agência Espacial Europeia” (ESA), na qual os requerentes queriam que o Tribunal estabelecesse que eles eram funcionários da ESA, de acordo com a lei alemã. A ESA, é uma organização internacional que goza de imunidade de jurisdição nos termos do artigo XV, §2 da Convenção para criação de uma Agência Espacial Europeia de 30 de Maio de 1975, em conjunto como Anexo I da mesma Convenção (Série 123 do Tratado Holandês). O Tribunal alemão aceitou esse fundamento. O TEDH considerou que isso não constituía uma violação do artigo 6º ECHR”.

E mais adiante :

“No presente caso, o capítulo VII permitiu ao CSNU adoptar medidas coercivas em reacção a um conflito identificado e considerado um ameaça à paz, a saber, a Resolução do CSNU 1244 que instituiu a UNMIK e a KFOR. Uma vez que as operações estabelecidas pelas resoluções do CSNU no capítulo VII da Carta da ONU são fundamentais para a missão da ONU de garantir a paz e a segurança internacionais e, como eles contam com sua eficácia no apoio Estados membros, a Convenção não pode ser interpretada no sentido de sujeitar os actos e omissões das partes contratantes cobertos pela Resolução do CSNU (…) ao escrutínio dos Tribunais. Fazê-lo, seria interferir no cumprimento da principal missão da ONU onde se inclui, conforme argumentado pelas partes, a condução eficaz das suas operações”.

“Seria também o mesmo que impor condições à implementação de uma Resolução do CSNU que não estava prevista no texto da própria Resolução”.

Mais à frente:

“E no parágrafo 149, o TEDH sustenta que, desde as operações estabelecidas pelo CSNU que as resoluções do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas são fundamentais para a missão da ONU para garantir a paz e a segurança internacionais, pelo que a Convenção não pode ser interpretada de maneira a sujeitar os actos e omissões das Partes Contratantes, que sejam cobertas pelas resoluções do CSNU e ocorrem antes ou no decurso de tais missões, ao controlo do Tribunal”.

Mais adiante:

“Essa imunidade é absoluta. Além disso, respeitá-la está entre as obrigações dos Estados membros da ONU que, como o TEDH levou em consideração em Behrami, Behrami e Saramati, nos termos do artigo 103º da Carta da ONU, prevalece sobre as obrigações conflituantes de outro Tratado Internacional”.

E quase a concluir:

“Embora a imunidade da ONU deva ser diferenciada da imunidade do Estado, a diferença não é suficiente para justificar uma decisão sobre a relação entre a primeira e o direito de acesso aos Tribunais, de uma maneira diferente da decisão do TIJ sobre a relação entre a imunidade do Estado e o direito de acesso aos Tribunais. A ONU goza de imunidade, independentemente da extrema seriedade das acusações contra as quais a Association et al. baseia suas reivindicações”.

f) Do que acima fica exposto, e a propósito da imunidade de jurisdição do Conselho da Europa podemos extrair as seguintes conclusões:

- A imunidade de jurisdição das Organizações Internacionais está, normalmente, prevista nos seus tratados constitutivos, nas convenções multilaterais e nos acordos bilaterais. 

- Inexiste norma expressa que consagra a imunidade de jurisdição do Conselho da Europa.

- O Conselho da Europa não assume a figura de um Estado (possuindo, antes, uma composição essencialmente inter-estatal), pelo que as regras a estes aplicáveis não são válidas para aquele.

- Assim, para apurar a imunidade de jurisdição do Conselho da Europa, há que lançar mão dos princípios gerais de Direito Internacional Público sobre a imunidade de jurisdição das Organizações Internacionais.

- De acordo com tais princípios, as Organizações Internacionais gozam de imunidade de jurisdição absoluta, inexistindo motivos para dar ao Conselho da Europa um tratamento mais desfavorável do que aquele que é dado às restantes Organizações Internacionais.

g) Deste modo, teremos de concluir que bem andou o Tribunal “a quo” ao decidir que o Conselho da Europa goza de imunidade de jurisdição, não podendo os Tribunais de um Estado membro contratante (neste caso Portugal) julgar a actuação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos no exercício das suas funções, enquanto órgão do Conselho da Europa.

h) Defendem ainda os recorrentes que se aplica ao Conselho da Europa (e a todas as demais pessoas colectivas de Direito Público sediadas em Portugal ou em país estrangeiro, mas com sucursal, agência, filial, delegação ou representação em Portugal), o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, consagrado na Lei 67/2007 de 31/12.

Ora, o artº 1º nº 1 de tal diploma dispõe que “a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial”. E acrescenta o nº 2 que “para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”. O nº 3, por sua vez, estipula que, “sem prejuízo do disposto em lei especial, a presente lei regula também a responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício”. O nº 4 adianta que “as disposições da presente lei são ainda aplicáveis à responsabilidade civil dos demais trabalhadores ao serviço das entidades abrangidas, considerando-se extensivas a estes as referências feitas aos titulares de órgãos, funcionários e agentes”. E conclui o nº 5 que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Ou seja, o âmbito subjectivo deste diploma abrange o Estado e demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa ; os titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício ; os demais trabalhadores ao serviço das entidades abrangidas, considerando-se extensivas a estes as referências feitas aos titulares de órgãos, funcionários e agentes ; pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Não vemos como enquadrar aí, mesmo por analogia, o Conselho da Europa, tal como acima o definimos. Com efeito, afigura-se-nos que estamos perante uma lei nacional, dirigida ao Estado português, seus órgãos e trabalhadores e ainda pessoas colectivas de direito privado (e seus trabalhadores), estas sim nacionais ou internacionais, que actuem no exercício de um poder público.

O Conselho da Europa não é, como já vimos, um Estado ou uma pessoa colectiva a ele equiparado. Muito menos é uma pessoa colectiva de direito privado.

E, acima de tudo, goza de imunidade de jurisdição."

[MTS]


Jurisprudência constitucional (189)


Alegações de recurso; acórdão-fundamento;
convite ao aperfeiçoamento


TC 16/11/2020 (641/2020) decidiu:

Julgar inconstitucional a norma contida na segunda parte do n.º 2 do artigo 637.º do Código de Processo Civil, quando estabelece, nos recursos em que se invoque um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, que o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento, sem que antes seja convidado a suprir essa omissão, por ofensa do artigo 20.º, números 1 e 4, da Constituição.

 

25/11/2020

Jurisprudência 2020 (102)


Acção de divisão de coisa comum;
princípio da dualidade das partes*

1. O sumário de RP 23/4/2020 (2323/19.6T8PRD.P1) é o seguinte:

O comproprietário e também co-herdeiro de outro comproprietário de um imóvel entretanto falecido pode pedir a divisão desse bem comum sem primeiro ter de se proceder á partilha da quota-parte hereditária.


2. Na fundamento do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão a decidir é aferir se, sendo a requerente da divisão de um imóvel de que é comproprietária e co-herdeira, pode enquanto tal, propor essa ação ou se tem de primeiro partilhar-se a parte comum pelos herdeiros e, depois de efetuada a partilha, para depois pedir a divisão do bem comum.

*

2.2). Dos argumentos do recurso.

Delimitada a questão a decidir, não nos iremos demorar pois a decisão recorrida explana corretamente a sua visão sobre a impossibilidade da requerente poder, desde já, intentar uma ação de divisão de coisa comum e a recorrente também o faz, quanto à possibilidade de tal suceder.

Como se denota, há duas ideias contrárias sobre esta questão.

Quando se intenta uma ação de divisão de coisa comum (artigos 925.º e seguintes, do C. P. C.), o que está na base é a compropriedade de um bem tal como definida no artigo 1403.º, n.º 1, do C. C..

Esta compropriedade pressupõe «um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará.» - Ac. do S. T. J. de 04/02/1997, citado no Ac. do mesmo Tribunal Superior de 30/01/2013, este em www. dgsi.pt -.

Em suma, se um co-herdeiro de um património comum pretende pôr fim à compropriedade, como até à partilha não é comproprietário pois não é dono do bem mas é antes titular de um direito sobre a herança, e incide sobre uma quota ou fração da mesma para cada herdeiro sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota, como se sumaria naquele Ac. do S. T. J. de 30/01/2013, não o poderá fazer.

Outra perspetiva é a que se denota do Ac. da R. C. de 09/02/1999, www.dgsi.pt, só sumariado e em que se menciona que estando pendente um processo de inventário para partilha de bens do falecido, comproprietário de uma quota de um prédio indiviso, pode qualquer dos restantes consortes nessa comunhão, requerer a divisão da coisa comum, através da ação própria, sem ter que aguardar pelo desfecho da partilha, não sendo necessário determinar a quota que vier a caber a cada um dos herdeiros.

Noutro Acórdão, agora da R. L. de 17/12/2002, também só sumariado, «…no caso de a herança indivisa ser, ela própria, comproprietária (v.g. de metade indivisa de um prédio), tem legitimidade para intervir em tal acção de divisão de coisa comum desde que representada por todos os herdeiros (que agem como representantes e não em nome próprio).».

O que se vislumbra que se entende para quem defende esta posição é que, sabendo-se quem são os comproprietários, mesmo que um ou mais tenham falecido, os seus herdeiros ocupam a posição desse comproprietário falecido, assumindo essa qualidade, mesmo que não se tenha efetuado a partilha.

Conhecendo-se os comproprietários, independentemente do conteúdo do seu direito, não se encontra qualquer utilidade, prática ou jurídica, para que, previamente à divisão do imóvel, se proceda à partilha dos bens deixados pelos comproprietários falecidos, onde se incluía a compropriedade do imóvel a dividir. Sabe-se a quem pertence o direito, por sucessão, e conhece-se também a sua extensão, não advindo qualquer interesse prático na exigência da partilha, por decesso dos primitivos comproprietários. A divisão da coisa comum, assim como a venda antecipada antes da partilha, não prejudica o direito patrimonial dos respetivos interessados – Ac. da R. L. de 17/06/2015, www. dgsi.pt -.

Não tomando posição expressa sobre esta questão que não seria o objeto do recurso, a Relação do Porto, em 26/09/2019, citado pelo recorrente, (www.dgsi.pt), decide que, em relação à interposição de ação de divisão de coisa comum e contra quem deve ser intentada, se o único consorte não demandante faleceu e a respetiva herança permanece por partilhar, a ação deve ser instaurada contra a herança do consorte o que aponta para a desnecessidade de se intentar a prévia partilha.

Também adiante nessa decisão se menciona que «não estamos a falar (…) de legitimidade substantiva para dispor do direito de operar a divisão do quinhão da herança na coisa comum. Esta há-de aferir-se em conformidade com as regras de direito material próprias da comunhão hereditária, para o que poderá ser necessário consultar a vontade conjunta ou maioritária dos herdeiros, independentemente da posição que eles ocupem na acção de divisão de coisa comum».

Numa situação com solução mais direta para o que nos ocupa, no Ac. da R. E. de 12/07/2012, no mesmo sítio, dá-se o exemplo de que, estando os três comproprietários identificados na parte em que comungam na propriedade do bem 1/3 para cada um sendo um deles uma herança indivisa à qual concorrem vários interessados, a divisão pode facilmente ser feita, se o prédio for divisível, atribuindo a cada um o seu terço, e ficando aquele terço correspondente à herança atribuído à mesma, mas onde todos os seus herdeiros comungam, e cessando a compropriedade em relação aos titulares dos outros dois terços.

Este Acórdão foi revogado pelo Ac. do S. T. J. de 30/01/2013 acima referido.

No caso dos presentes autos, a requerente será comproprietária do imóvel acima indicado (prédio urbano composto por uma parcela de terreno destinada à construção urbana) em ¼ por o ter adquirido em conjunto com outras três pessoas, os 5.º e 6ºs. Réus e seu falecido marido (mas com aquisição datada de antes do casamento com a Autora e na pendência do casamento com a primeira mulher, aqui 1.ª Ré).

Falecido o marido da Autora, no lugar daquele de cuius, ficam a Autora, a primeira mulher do mesmo (1.ª Ré por não ter ainda sido feito partilha do imóvel aquando do divórcio com esta Ré), e os seis filhos, 2ºs. a 6ºs. Réus.

Deste modo, quanto à herança em causa (1/4 do imóvel), a 1.ª Ré terá 1/8 do imóvel por força do casamento (meação) e, quanto ao outro 1/8, a Autora e os seis filhos terão cada um 1/64.

A estes valores hão-de acrescer, a favor da Autora, 5.º e 6ºs. Réus, o quarto de que são comproprietários.

Ora, a título de exemplo, se existirem quatro comproprietários de um imóvel e um deles falecer, no lugar dessa pessoa singular surge a herança indivisa (para se analisar algo semelhante ao caso dos autos).

Se um dos outros três comproprietários, não herdeiro, quiser cessar a comunhão, terá de interpor a ação contra os outros dois e, sendo a herança, no conjunto, também ela comproprietária porque ingressou nessa posição, a ação tem de ser proposta contra a mesma, representada por todos os herdeiros nos termos do artigo 2091.º, n.º 1, do C. C. – assim expressamente o refere Luís Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas -.

Pensamos que aqui não existem questões sobre esta possibilidade pois não só, em regra, o comproprietário não pode ficar obrigado a permanecer na indivisão – artigo 1412.º, n.º 1, do C. C. – como a herança, já aceite (como se alega que foi), só «pode intervir» através dos herdeiros que sucedem nos direitos e obrigações do falecido por essa herança aceite não ter personalidade judiciária (artigo 12.º, a),a contrario, do C. P. C. e 2024.º, do C. C.).

Se o requerente da divisão do bem comum «só» é herdeiro, pensamos que efetivamente não pode recorrer a este tipo de ação pois ainda não é comproprietário como acima se referiu e consta na decisão recorrida; se o herdeiro, além dessa quota hereditária, é igualmente comproprietário e na ação já se encontram os restantes herdeiros (representando a totalidade da herança), pensamos que nada impede o comproprietário e herdeiro de querer fazer cessar a indivisão sem antes partilhar a quota hereditária.

Podendo o terceiro comproprietário (não herdeiro) fazer intervir a herança para se dividir o bem de que a herança é titular, não vemos motivo para que o mesmo comproprietário, por também ser herdeiro, já não o possa fazer.

A qualidade de herdeiro não afasta a qualidade de comproprietário, não fazendo nascer uma limitação ao exercício dos seus direitos, como pensamos que o recorrente afirma de modo correto.

Esse comproprietário, ao propor a ação, já está a representar a herança e ao propor a ação contra os outros comproprietários, incluindo a herança representadas pelos herdeiros, faz com que todos os herdeiros estejam na ação de divisão de coisa comum (é esta a decisão tomada pelo acima referido Ac., da R. P. de 26/09/2019 com a qual concordamos) e assim está assegurada a legitimidade.

Depois, importa analisar da divisibilidade ou indivisibilidade do bem e, consoante o que se decida, o imóvel é dividido de acordo com os quinhões ou com a adjudicação do bem a algum ou alguns dos comproprietários, preenchendo com dinheiro as quotas dos restantes – artigo 929.º, nºs. 1 e 2, do C. P. C. -.

Recebendo a herança o bem ou sua parte ou dinheiro, passa a ser titularidade da mesma herança o bem ou dinheiro, que depois podem ser partilhados entre os respetivos titulares.

Deste modo, para nós, a requerente podia propor a ação de divisão de coisa comum tal como o fez e intentando-a contra os requeridos que identificou."

*3. [Comentário] Se bem se percebe, a autora é, ao mesmo tempo, comproprietária e herdeira de um outro comproprietário do mesmo imóvel. Dado que a acção de divisão de coisa comum deve ser proposta por um dos comproprietários contra todos os demais comproprietários, isto significa que a acção devia ter sido proposta pela comproprietária contra... ela própria como herdeira de outro comproprietário.

Há, aliás, um conflito de interesses entre a autora como comproprietária e a autora como herdeira de outro comproprietário, porque o que ela receber numa dessas qualidades não pode receber na outra.

Nestes termos, se bem se percebe a situação, a acção não era admissível por violação do princípio da dualidade das partes, dado que a mesma pessoa deveria figurar nela como autora e como ré.
 
MTS


24/11/2020

Jurisprudência 2020 (101)


Revista excepcional;
ónus da parte


1. O sumário de STJ 6/2/2020 (2921.17.2T8PTM.A.E1.S1é o seguinte:

I. Não há excesso de pronúncia quando a questão é expressamente alegada nas conclusões de recurso e não há falta de pronúncia quando a questão é cabalmente respondida no Acórdão.

II. A alegação, sem mais, de que as questões jurídicas suscitadas no recurso são relevantes não equivale à interposição de revista excepcional.

III. Tendo o recurso sido interposto como revista normal, não há omissão de pronúncia pelo facto de não se ter procedido à apreciação preliminar sumária e, se tivesse sido interposta revista excepcional, esta apreciação nunca caberia ao Relator mas sim à Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Notificadas do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido em 5.12.2019, vieram, tanto a recorrida Fundbox, Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A., como as recorrentes Zurich Insurance, PLC – Sucursal em Portugal, Zurich Insurance, PLC – Sucursal no Reino Unido, Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A., e Seguradoras Unidas, S.A., apresentar requerimentos. [...]

Reclamam [...] as recorrentes Zurich Insurance, PLC – Sucursal em Portugal, Zurich Insurance, PLC – Sucursal no Reino Unido, Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A., e Seguradoras Unidas, S.A., para a conferência, nos termos do artigo 615.º, al. d), do CPC, ex vi dos artigos 666.º, n.º 1, al. d), 679.º, 684.º e 685.º do CPC, invocando a nulidade parcial do referido Acórdão (Acórdão reclamado) com os seguintes fundamentos:

a) ter considerado não verificado excesso de pronúncia por parte do Acórdão recorrido;

b) ter considerado verificados os pressupostos da dupla conforme quanto à questão da legitimidade passiva da recorrida Fundbox, a título próprio; e

c) ter desconsiderado o fundamento da revista excepcional previsto sob a alínea a) do n.º 1 artigo 672.º do CPC.

A recorrida Fundbox, Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A., veio responder à reclamação, pugnando pela improcedência das nulidades.

*
[...] c) Comportará a desconsideração do fundamento da revista excepcional previsto sob a alínea a) do n.º 1 artigo 672.º do CPC, com a consequente omissão da “apreciação preliminar sumária” prevista nos n.º 3, 4 e 5 da mesma norma e de pronúncia sobre tal fundamento, uma violação do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, conforme alegam as recorrentes / ora reclamantes?

Se, em regra, a falta de apreciação de qualquer questão constitui “falta de pronúncia” no sentido referido na norma do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, a verdade é que tão-pouco no caso concreto se verifica este vício.

Desde já, esclareça-se que quem teria competência para proceder à apreciação preliminar sumária / pronunciar-se sobre os pressupostos da revista excepcional seria a Formação referida no n.º 3 do artigo 672.º do CPC.

A verdade é que – e este é o argumento decisivo – o recurso não foi apresentado pelas recorrentes / ora reclamantes como revista excepcional.

Tendo em atenção o disposto no artigo 637.º do CPC, esse era um ónus que cabia às recorrentes. Não o tendo exercido, não podem agora pretender que a simples menção a que as questões jurídicas suscitadas no recurso são relevantes valha como formulação de um pedido de revista excepcional.

Improcede, portanto, a última alegação das recorrentes / ora reclamantes."

[MTS]


23/11/2020

Jurisprudência europeia (TJ) (227)


Luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais – Diretiva 2000/35/CE – Conceito de “transacção comercial” – Conceitos de “fornecimento de mercadorias” e de “prestação de serviços” – Artigo 1.° e artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo – Contrato público de obras


1. TJ 18/11/2020 (C‑299/19, Techbau/Azienda Sanitaria Locale) decidiu o seguinte:

O artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho de 2000, que estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais, deve ser interpretado no sentido de que um contrato de empreitada de obras públicas constitui uma transação comercial que dá origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços, na aceção desta disposição, e, por conseguinte, está abrangido pelo âmbito de aplicação material desta diretiva.

2. A Dir. 2000/35/CE foi substituída pela Dir. 2011/7/UE, que foi transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo DL 62/2013, de 10/5.


Jurisprudência europeia (TJ) (226)


Reg. 1215/2012 — Contrato de transporte aéreo — Cláusula atributiva de jurisdição contratada pelo passageiro que tem a qualidade de consumidor — Crédito desse passageiro contra a transportadora aérea — Cessão desse crédito a uma sociedade de cobrança de créditos — Oponibilidade da cláusula atributiva de jurisdição pela transportadora aérea à sociedade cessionária do crédito do referido passageiro — Diretiva 93/13/CEE


TJ 18/11/2020 (C‑519/19, Ryanair/DelayFix, anteriormente Passenger Rights) decidiu o seguinte:

O artigo 25.° do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, para contestar a competência de um órgão jurisdicional para conhecer de uma ação de indemnização intentada com base no Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91, e dirigida contra uma transportadora aérea, uma cláusula atributiva de jurisdição inserida num contrato de transporte celebrado entre um passageiro e essa transportadora aérea não pode ser oposta por esta última a uma sociedade de cobrança à qual o passageiro cedeu o seu crédito, a menos que, segundo a legislação do Estado cujos órgãos jurisdicionais são designados nessa cláusula, essa sociedade de cobrança não tenha sucedido ao contratante original em todos os seus direitos e obrigações, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. Se for caso disso, essa cláusula, que é inserida sem ter sido objeto de negociação individual num contrato celebrado entre um consumidor, a saber, o passageiro aéreo, e um profissional, a saber, a referida transportadora aérea, e que confere competência exclusiva ao órgão jurisdicional em cuja jurisdição se situa a sua sede, deve ser considerada abusiva, na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores.


Jurisprudência 2020 (100)


Reformatio in peius; 
matéria de conhecimento oficioso


1. O sumário de STJ 4/2/2020 (610/14.9TBBJA.E1.S1é o seguinte:

I - A declaração de nulidade de contrato de compra e venda tem como reflexo imediato a nulidade do negócio de constituição da hipoteca sobre a coisa através daquela adquirida.


II - A proibição da reformatio in pejus não tem aplicação na apreciação dessa nulidade por ser de conhecimento oficioso.


III - A nulidade do negócio constitutivo da hipoteca determina o cancelamento do correspondente registo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"É incontroverso que estamos perante uma situação em que já foi reconhecida, por segmento decisório transitado em julgado, a nulidade dos contratos de compra e venda celebrados em 14 de Maio de 2009 relativos à fracção “A”, primeiro entre BB e DD e, logo depois, entre esta e EE. Tal nulidade foi declarada por se ter verificado que foram celebrados em fraude à lei, na medida em que visaram alcançar um resultado que a lei não permite, fora das condições previstas no art.º 877.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, sem o consentimento da autora. Com efeito, perante a recusa desta em aceder a uma solução proposta sobre o pagamento das dívidas do 4.º réu, seu irmão, este e o pai de ambos - o referido BB, dono da fracção “A”, combinaram com a segunda ré a celebração daqueles contratos, o primeiro em que esta constasse como compradora e o segundo como vendedora ao 3.º réu, filho do quarto réu e neto do referido ….

Assente tal nulidade, importa extrair os efeitos da sua declaração relativamente à hipoteca e respectivo registo, uma vez que vem questionado o cancelamento do registo da hipoteca a favor da Caixa Geral de Depósitos, também determinado na sentença, mas revogado, nessa parte, pelo acórdão recorrido.

Efectivamente, na sentença, foi determinado o cancelamento do registo daquela hipoteca, bem como o cancelamento dos registos das aquisições a favor de DD e de JJ, após a declaração de nulidade dos dois contratos de compra e venda por estes celebrados. Embora a parte decisória seja omissa relativamente ao acto constitutivo da hipoteca, a verdade é que faz referência a ele na respectiva fundamentação nos seguintes termos:

Importa agora determinar qual a consequência da nulidade da compra e venda sobre a hipoteca constituída a favor da Caixa Geral de Depósitos, SA. Tal hipoteca foi constituída por quem substancialmente não a podia constituir. Ora, para que o devedor (ou terceiro) possa constituir uma hipoteca, sobre um bem imóvel, será indispensável que tenha o poder de dispor dele. Só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respectivos bens – cfr. art. 715.º do CC.

Assim, também a hipoteca registada sobre o bem imóvel acima identificado terá que ser cancelada, por ter na sua base um negócio nulo.”

Por sua vez, no acórdão recorrido, após suscitar questões, nomeadamente quanto à falta de declaração, na parte decisória, da invalidade do contrato de constituição da hipoteca, o tribunal ad quem entendeu que não se podia substituir ao tribunal a quo, por força da proibição da reformatio in peius, consagrada no art.º 635.º, n.º 5, do CPC.

Porém, afigura-se-nos que não tem aqui aplicação essa limitação, por se tratar de uma questão de conhecimento oficioso em que o tribunal ad quem não está limitado pela iniciativa das partes à semelhança da matéria de qualificação jurídica dos factos (cfr. art.º 5.º, n.º 3, do CPC), sendo-lhe lícito “conhecer oficiosamente de determinadas questões relativamente ao segmento decisório sob reapreciação” [Cfr. Conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, pág. 117], como a decorrente da nulidade substantiva que esteve subjacente ao cancelamento do registo, visto que dispõe dos necessários elementos de facto e foi respeitado o contraditório.

Cremos não haver dúvidas de que a nulidade é de conhecimento oficioso, como claramente flui do disposto no art.º 286.º do Código Civil, ao preceituar que: “A nulidade … pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.

Com a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre BB e a segunda ré e do contrato celebrado entre esta e o terceiro réu, este deixou de ser titular do direito de propriedade da fracção que declararam ter adquirido através deste contrato e de ter qualquer disponibilidade sobre a mesma.

Porque a declaração de nulidade tem efeito retroactivo (cfr. art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil), forçoso é concluir que o terceiro réu adquirente deixou de ter poderes de disposição sobre a fracção, pelo que a hipoteca foi constituída por quem não tinha legitimidade para hipotecar (cfr. art.º 715.º do Código Civil).

A lei equipara a constituição da hipoteca à alienação da coisa, aplicando-se-lhe, por conseguinte, as mesmas regras, designadamente quanto à hipoteca de coisa alheia.

À hipoteca de bens alheios, aplica-se o regime da venda de bens alheios, constante do art.º 892.º do Código Civil. A hipoteca de bens alheios é constituída sobre uma coisa que, no momento da constituição, pertence a outrem, não tendo o devedor o poder de disposição sobre ela [ Cfr. Isabel Menéres Campos, em anotação ao art.º 715.º, Comentário ao Código Civil, Universidade Católica Editora, pág. 959], como sucedeu no presente caso em face da declaração de nulidade do contrato de compra e venda da fracção pelo 3.º réu devedor.

Tal negócio é nulo, tanto mais que não haverá lugar a convalidação mediante a aquisição pelo hipotecador da propriedade da fracção, em face da instauração da presente acção [cfr. art.ºs 895.º e 896.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Civil].

A declaração de nulidade da compra da fracção autónoma em causa nos autos pelo 3.º réu, seu declarado adquirente, origina, “como reflexo imediato” [Cfr. Acórdão do STJ e desta Secção, de 29/3/2012, processo n.º 2441/05.8TBVIS.C1.S1, publicado na CJ – STJ – ano XX, tomo I, págs. 180 a 185], a nulidade do respectivo negócio de oneração constitutivo da hipoteca, efectuado por ele em favor da chamada CGD.

Sendo nulo o negócio constitutivo da hipoteca, como é, extinguiu-se o direito que dela emergia, o que determina o cancelamento do correspondente registo nos termos do art.º 13.º do CRP.

Com efeito, o direito que a mesma conferia ao credor (a chamada Caixa Geral de Depósitos) de ser pago pelo valor da coisa hipotecada com preferência sobre os demais credores (cfr. art.º 686.º, n.º 1, do Código Civil) deixou de subsistir com a declaração de nulidade da compra e venda da fracção e da consequente nulidade do negócio de constituição da hipoteca, não fazendo sentido manter-se o respectivo registo, tanto mais que este é constitutivo daquela, como resulta, a nosso ver, do art.º 687.º do Código Civil e sustenta a melhor doutrina [Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações – Garantias – Almedina, pág. 753; Isabel Menéres Campos, obra citada, pág. 915 e demais autores aí mencionados].

À mesma conclusão se chegaria se o registo não fosse considerado constitutivo, mas apenas uma mera condição legal de eficácia, como alguns sustentam. Trata-se de uma distinção de escassa relevância prática, uma vez que, “não produzindo a hipoteca não registada efeitos sequer inter partes, a preferência ou a prioridade no pagamento, que são os efeitos mais relevantes como garantia real, não se verificam” [Cfr. Isabel Menéres Campos, obra citada e local citados na última nota] (cfr. citado art.º 687.º e art.º 4.º, n.º 2, do CRP).

Aqui, não está em causa a hipoteca sem registo, mas o registo sem hipoteca, por ser nula. Deixando de existir o facto, não pode subsistir o correspondente registo a que está  sujeito e ao qual pretende dar publicidade [cfr. art.ºs 1.º e 2.º, n.º 1, al. h), ambos do CRP]. Trata-se de um registo que apenas cobre um direito inexistente, pelo que não pode subsistir, havendo que determinar o seu cancelamento.

Destarte, o recurso procede na parte referente à questão aqui em causa, havendo que reconhecer à autora/recorrente o direito de obter o cancelamento do registo, como lhe fora reconhecido na sentença, que deve ser repristinada."


[MTS]