"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/03/2020

Jurisprudência constitucional (171)

 
Recurso de revista;
acórdão-fundamento
 

1. TC 4/3/2020 (151/2020) decidiu:
 
[...] julgar inconstitucional norma contida nos artigos 14.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e 637.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de o recurso de revista, em processo especial de revitalização, com fundamento em oposição de acórdãos, ser imediatamente rejeitado no caso de o Recorrente não juntar cópia do acórdão-fundamento, sem que antes seja convidado a suprir essa omissão [...].

 
 

Jurisprudência 2019 (207)


Agente de execução; responsabilidade civil;
dever de completude da parte; litigância de má fé

 
1. O sumário de RE 24/10/2019 (1121/18.9T8FAR.E1) é o seguinte:

I - A responsabilidade civil delitual assacável à ré assenta na omissão por banda desta de um comportamento profissional devido, em concreto, da comunicação aos titulares do direito de preferência na aquisição do imóvel, do projecto de venda e respectivas condições, que motivou a procedência da acção por estes intentada contra a autora para se lhe substituírem na posição de adquirentes.

II - Se a Agente de Execução tivesse levado a cabo o comportamento devido, o mesmo é dizer o comportamento lícito alternativo à ilícita omissão daquele, ou seja, a oportuna comunicação para o exercício do direito de preferência que os titulares do direito vieram exercer judicialmente, nunca a autora teria adquirido o imóvel, pelo que, caso a ré tivesse cumprido com o dever omitido, nunca se constituiria na esfera jurídica da Autora a possibilidade da venda do imóvel com lucro, e tanto sempre bastaria para a improcedência da pretensão indemnizatória fundada quer em lucro cessante quer em perda de chance.

III - O artigo 563.º do CC, consagra a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, o que significa que a omissão ilícita da agente de execução, ora ré, só deixa de ser considerada causa adequada da produção do dano decorrente da realização das despesas que um proprietário diligente tomaria no sentido da manutenção e valorização do imóvel indevidamente adquirido, sem o conhecimento deste e mercê da omissão daquela, quando o comportamento omissivo se revelar de todo indiferente para a produção do dano.

IV - No caso em presença, a omissão da ré deu causa à indevida aquisição do imóvel pela autora que, sem qualquer culpa da sua parte, a determinar o funcionamento do artigo 570.º do CC, actuou como proprietária, realizando despesas que suportou, na convicção de ter adquirido a seu favor essa qualidade, a qual veio a perder na sequência da procedência da acção de preferência por omissão da devida actuação da ré quanto à comunicação aos preferentes.

V - Portanto, ao omitir o dever profissional que sobre si impendia, permitindo com tal omissão a aquisição por banda da autora, em detrimento dos preferentes, a esfera de responsabilidade da ré abrange ainda as despesas acima referidas, as quais não podem sequer ser qualificadas como alguma especial idiossincrasia da adquirente que agravasse desproporcionalmente a esfera de risco que o comportamento omitido espoletou.

VI - Justifica-se a condenação da autora como litigante de má fé, se a mesma omitiu parcialmente a verdade de factos essenciais, que eram evidentemente do respectivo conhecimento, com o fito de tentar obter também da ré indemnização que já havia recebido parcialmente na acção de preferência.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"III.2.3. - Da litigância de má fé

Insurge-se a Recorrente quanto à sua condenação como litigante de má-fé, invocando, em suma, que não pretendeu qualquer vantagem indevida mas pretende apenas ser ressarcida dos prejuízos que efectivamente teve.

Vejamos.

Dispõe o artigo 542.º, do CPC, para o que releva na apreciação da questão relativa à litigância de má fé, o seguinte:

“1. Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

2. Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; (…)
 
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
 
Trata-se de norma que reproduz o que anteriormente constava no artigo 456.º do CPC, relativamente ao qual havia já abundante jurisprudência, com entendimento firmado e que continua a ter plena aplicação.

Efectivamente, a redacção do preceito nos termos em que actualmente se encontra, foi introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, visando consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.

Visou-se assim estender a possibilidade de condenação da parte como litigante de má fé, também aos casos de actuação com negligência grave, já que anteriormente se cingia apenas à respectiva actuação dolosa. “O elemento subjectivo é, pois, um pressuposto constitutivo da figura” [Cfr. PEDRO DE ALBUQUERQUE, in Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina 2006, pág. 92.  Sobre este ponto, vide ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ, ABUSO DO DIREITO DE ACÇÃO E CULPA “IN AGENDO”, 2006, ALMEDINA, nomeadamente páginas 65 e ss.].

Portanto, “com a reforma de 95/96 passou-se a sancionar a litigância temerária (sublinhado nosso) ao lado da litigância dolosa, como integrando o conceito de litigância de má fé.

As partes devem, em obediência ao princípio da sua auto responsabilidade, praticar os actos indispensáveis e idóneos a fundamentar e desenvolver os seus respectivos posicionamentos em termos de adequação ao fim que visam e de não contraditoriedade com a verdade material, assim devendo agir de acordo com a boa fé, expondo os factos em juízo sem formularem pretensões que sabem ser destituídas de qualquer razoável fundamento” [Cfr. Ac. STJ de 30-06-2011, Revista n.º 1103/08.9TJPRT.P1.S1 - 2.ª Secção [...]].

De facto, quer o direito de levar determinada pretensão ao conhecimento do órgão jurisdicional competente, solicitando a abertura de um processo com vista à composição do litígio com emissão de pronúncia final mediante decisão fundamentada, quer o direito de defesa por banda daquele contra o qual a pretensão é deduzida, assenta, dentro do quadro normativo vigente, no respeito por parte daquele que o exerce e daquele que se lhe opõe, dos deveres de probidade e de leal colaboração, de boa fé processual e de recíproca correcção, devidos ao tribunal e à parte contrária, deveres cujo cumprimento e escopo último visam afinal uma pronta, justa e serena aplicação da justiça ao caso concreto. Daí que o legislador tenha entendido, para potenciar a salvaguarda do respectivo cumprimento, sancionar aqueles que adoptam condutas reprováveis à luz daqueles princípios, constituindo o elenco das consagradas no n.º 2 do referido artigo 542.º do CPC, seguramente actuações censuráveis, a merecer reprovação pelos tribunais e que nem sequer estão dependentes do pedido das partes nesse sentido.

Acresce que, a litigância de má fé assenta sobre o comportamento processual das partes, apreciado com base na sua actuação na lide, globalmente considerada, daí que a decisão possa ser alicerçada quer nos factos alegados pelas partes quer ainda em quaisquer outros factos ou actuações que constem dos autos e que evidentemente são do conhecimento das partes podendo consequentemente estas pronunciar-se sobre tal, como ocorreu no caso em apreço e flui da decisão recorrida [Ac. STJ de 26-04-2012, Agravo n.º 81-E/1999.S1 - 7.ª Secção].

Podemos, pois, assentar que, constituindo a má fé um claro limite ao exercício do direito de acção ou de defesa, a conduta das partes só deve ser censurada por via deste instituto quando tenham actuado de forma ilícita em qualquer uma das circunstâncias referidas nas várias alíneas do n.º 2 do art. 542.º do CPC. Por isso que, não se encontram abrangidas pela previsão da norma as meras situações de discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, ou na defesa de uma posição que, ainda assim, não se venha a provar, em virtude de a parte não ter conseguido convencer o tribunal da bondade do invocado.

Inversamente, as condutas que integram tais comportamentos censuráveis a título de dolo ou negligência grave, e de lide considerada temerária, são amiúde alvo de condenação pelos tribunais, confirmadas, mormente pelo Supremo Tribunal de Justiça, extraindo-se dos vários exemplos de condenação o ensinamento de que o incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé [Cfr. a título exemplificativo o Ac. STJ 09-03-2010, Revista n.º 420/08.2TBFVN.C1.S1 - 6.ª Secção], sendo exemplo de situações consideradas como de correcta condenação por litigância de má fé pelo STJ aquelas em que: “o Autor, durante quase toda a lide, alterou a verdade acerca dos salários auferidos (…), é de considerar que o mesmo não foi apenas confuso e imprudente; foi temerário, actuando na «cobiça» da indemnização a qualquer título querida” [Ac. STJ de 30-06-2011, Revista n.º 1103/08.9TJPRT.P1.S1 - 2.ª Secção].

Ora, extrai-se de todos estes mencionados exemplos o ensinamento de que o incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé.

Assentes estes princípios e enquadrados pelos exemplos que antecedem, voltemos ao caso dos autos para decidir afirmando desde já que, independentemente do desfecho da acção lhe ser parcialmente favorável, a litigância da autora configura claramente uma actuação temerária da sua parte, porque não podia deixar de ter conhecimento da anterior acção e do pedido que ali formulou, repetindo-o parcialmente nesta e “atirando” documentos para os autos para que o tribunal os confrontasse com os anteriores, nunca sequer indicando quais aqueles que repetira quando reduziu o pedido, e escudando-se na mudança de mandatário e na quantidade de documentos juntos, sequer cotejando aqueles que se reportavam a reparações/materiais já pedidos na acção de preferência, e pagos, que manteve pelo menos em grande parte, conforme comprova o facto provado em 24. quase coincidente com o valor da condenação dos adquirentes naquela primeira acção.

Louvamo-nos nesta parte no segmento mais relevante da fundamentação da Senhora Juíza, quando referiu que «a autora, para além de ter inicialmente deduzido pedido global sem correspondência com as parcelas que indicou, o qual corrigiu em sede de audiência prévia, apenas confrontada pelo Tribunal com a existência de eventual litigância de má-fé veio reduzir o pedido, excluindo, precisamente, as verbas relativas a tais despesas.(…)

A justificação que a autora apresenta também não colhe, pois que não é verdade que o mandatário seja diverso, pois, após a sentença proferida, foi o mandatário que agora a representa que formulou o pedido de pagamento dessas despesas (cfr. fls.16 e 400 destes autos).

Donde, concluímos a posição assumida pela autora nos autos excedeu os indicados limites para além dos quais se considera ilegítimo o exercício dos direitos processuais, na medida em que sabia ter sido ressarcida de despesas com a aquisição e com obras realizadas no prédio misto adquirido, omitiu tal ressarcimento e procurou ser ressarcida pela ré pelo mesmo dano.

Ora, em síntese clara do sobredito louvamo-nos no juízo efectuado pelo Supremo Tribunal de Justiça, onde se afirmou que “as partes, recorrendo a juízo para defesa dos seus interesses, estão sujeitas aos deveres de cooperação, probidade e boa fé com o tribunal, visando a obtenção de decisões conformes à verdade e ao Direito, sob pena de a protecção jurídica que reclamam não ser alcançada, no que muito saem desacreditadas a Justiça e os tribunais.

A actuação processual do litigante de boa fé postula uma actuação verdadeira, correcta no tempo e modo processuais, não se compadecendo com subterfúgios e meias verdades, que mais não visam senão uma egoísta defesa de posições próprias que, prejudicando o opositor, acabam por não conduzir o tribunal à célere e correcta percepção da realidade.

Uma das condutas em que se exprime a litigância de má fé consiste na alegação, voluntária e consciente, de factos que seriam relevantes para a decisão da causa, mas que a parte sabe que, ao alegar como alega, desvirtua a realidade por si conhecida, visando, por isso, intencionalmente um objectivo censurável. (…)

Se é certo que o direito de recorrer aos tribunais para aceder à justiça constitui um direito fundamental – art. 20.º da CRP – já o mau uso desse direito implica uma conduta abusiva, sancionada nos termos do art. 456.º do CPC” [Ac. STJ 09-03-2010, Revista n.º 420/08.2TBFVN.C1.S1 - 6.ª Secção].

Assim, à luz do preceito legal supra citado e dos ensinamentos retirados dos referidos arestos do Supremo Tribunal de Justiça, a outra conclusão não se pode chegar do que àquela que levou a Senhora Juíza à condenação da Autora como litigante de má fé, ou seja, que a mesma omitiu parcialmente a verdade de factos essenciais, que eram evidentemente do respectivo conhecimento, tudo fazendo com o fito de tentar obter também da ré indemnização que já havia recebido, actuação que se reputa inaceitável em face da lisura e probidade processual que a lei impõe às partes, visando a descoberta da verdade material e a justa composição do litígio."
 
[MTS]
 
 

30/03/2020

Bibliografia (891)

 
-- Aguilera, Edgar R.. Some implications of an epistemic-intersubjective interpretation of the “beyond all reasonable doubt” standard of proof for criminal investigations, CIENCIA ergo-sum 27 (2020-2) [OA]

-- Forcada Miranda, Francisco J., Comentarios prácticos al Reglamento (UE) 2019/1111 (Editorial Jurídica Sepín: Madrid 2020)
 
 

Paper (443)


-- Gonzalez Lagier, D., Qué es el "fundherentismo" y qué puede aportar a la teoría de la prueba en el Derecho (borrador) (03.2020) (academia.edu)


Jurisprudência 2019 (206)


Reg. 1215/2012;
pacto de jurisdição; litisconsórcio voluntário

I. O sumário de RE 7/11/2019 (447/18.6T8FAR.E1) é o seguinte:

1 – A competência internacional dos Tribunais portugueses é a fracção do poder jurisdicional atribuída aos órgãos jurisdicionais internos, no seu conjunto, relativamente à quota de poder jurisdicional atribuída, por leis nacionais estrangeiras ou tratados ou convenções internacionais, a Tribunais estrangeiros sempre que o litígio apresente elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras.

2 – Os Tribunais portugueses estão vinculados a regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais que, no seu campo específico de aplicação, prevalecem sobre as normais processuais portuguesas, nomeadamente sobre as normas reguladoras da competência internacional constantes do Código de Processo Civil.

3 – Como densificação prática do comando impresso previsto no nº 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, a jurisprudência dos Tribunais Superiores expressa o entendimento que as disposições do Regulamento (UE) n.º 1215, incluindo a do artigo 25º, têm prioridade sobre as disposições do Código de Processo Civil.

4 – O conhecimento imediato do pedido em sede de despacho saneador apenas deve ocorrer se a questão for unicamente de direito, se puder ser já decidida com a necessária segurança e, sendo de direito e de facto, se o processo contiver todos os elementos para uma decisão conscienciosa, segundo as várias hipóteses plausíveis aplicáveis ao caso concreto.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"De acordo com mais avalizada jurisprudência a noção de pacto atributivo de jurisdição [artigo 25º do Regulamento (UE) 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012] é autónoma, relativamente ao direito interno de cada Estado-Membro – a validade do pacto de jurisdição deve ser, exclusivamente aferida (preenchida) à luz da própria disposição do Regulamento, ficando excluída a convocação, no caso e designadamente, do artigo 94º do Código de Processo Civil e do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (DL nº 446/85, de 25 de Outubro) [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/2018, in www.dgsi.pt.].

Na situação concreta somos confrontados com a existência de um documento escrito, de teor constitutivo ou confirmativo, que consagra o acordo de vontades na celebração de um pacto atributivo de jurisdição, nos precisos termos constantes da al. a) do nº 1 do artigo 25º.

Tendo sido cumprida esta formalidade ad substantiam, não existindo um quadro de litisconsórcio necessário que implique a derrogação do ajustado entre as partes para o estabelecimento de foro judicial, nem subsistindo qualquer razão de ordem pública ou de interesse nacional, deve prevalecer o entendimento expresso pela Primeira Instância, salvo se a questão venha a ser configurada como de inconstitucionalidade normativa.

Assim sendo, tal como proclama a Meritíssima Juíza «a quo» «tendo as partes (autoras e 2ª ré) acordado que a decisão dos conflitos decorrentes da violação daqueles contratos seria da competência de outros Tribunais, pertencente a ordem jurídica estrangeira, este Tribunal é absolutamente incompetente para apreciação desta causa», sublinhando-se, no entanto, que a decisão apenas abrange a «segunda ré, na medida em que apenas esta subscreveu o pacto de jurisdição»."

[MTS]

28/03/2020

Bibliografia (890)


-- Claudio Sarra / Daniele Velo Dalbrenta (Eds,) Res Iudicata / Figure della positività giuridica nell'esperienza contemporanea (Padova University Press: Padova 2013) [OA]

 -- Fernando Gascón Inchausti / Burkhard Hess (Eds.), THE FUTURE OF THE EUROPEAN LAW OF CIVIL PROCEDURE / Coordination or Harmonisation? (Intersentia: Cambridge: 2020)



27/03/2020

Jurisprudência 2019 (205)

 
Recurso;
conclusões; convite ao aperfeiçoamento
 
 
1. O sumário de 29/10/2019 (738/03.0TBSTR.E1.S3) é o seguinte:
 
I. Quando as Conclusões inscritas nas Alegações de Recurso (art. 639º, 1, CPC) apresentam irregularidades manifestas e censuráveis de acordo com o ónus processual da conclusão recursiva – nomeadamente, deficiência, obscuridade, complexidade e falta das especificações legais necessárias tendo em conta o exigido nos arts. 639º, 2, e 640º, 1 e 2, CPC –, o CPC, de acordo com o n.º 3 do art. 639º, oferece ao Relator do processo em sede de recurso o poder-dever de convidar o recorrente a sanar e/ou a corrigir as irregularidades detectadas e susceptíveis de afectarem a função delimitadora e identificadora das Conclusões.

II. Os Recorrentes, não se tendo determinado pelo que lhes é exigido no despacho de aperfeiçoamento, colocam-se na situação de não ver apreciado o objecto do seu recurso na parte afectada (logo, total ou parcialmente) pelo vício identificado, pois essa é a sanção cominada pelo art. 639º, 3, do CPC para a não apresentação tempestiva das novas Conclusões, reservando-se ulteriormente um juízo definitivo de ponderação ao tribunal.

III. A cominação gravosa do art. 639º, 3 (não conhecimento do objecto do recurso) será justificada se as circunstâncias concretas do comportamento processual quanto ao ónus recursivo revelarem um juízo de especial censura à parte inadimplente de acordo com os princípios processuais pertinentes para tal regime (a tutela da igualdade das partes, a protecção do exercício do contraditório, a cooperação e a boa fé processual assim como o princípio da auto-responsabilidade das partes). Nessas hipóteses de actuação intolerável em face da expressão desses princípios encontraremos situações extremas de afastamento do conhecimento do mérito do recurso.

IV. Esse juízo implica, por um lado, a apreciação do conteúdo das Conclusões não obstante o incumprimento ou o cumprimento defeituoso do convite ao aperfeiçoamento e, por outro, comporta saber se a conduta processual em face do convite ao aperfeiçoamento revela uma particular indiferença para com o comando legal em sede de ónus de alegação recursiva (apreciação da forma de cumprimento no exercício do meio de impugnação da decisão recorrida).

V. Se esta apreciação formal, concreta e referida aos princípios processuais aplicáveis, conduzir positivamente a uma imputação de censura à parte, funcionará o princípio da preclusão do exercício de direitos ou da satisfação de pretensões adjectivas, em particular quando inerente ao não cumprimento do ónus da prática de certos actos processuais dentro dos prazos (considerados) peremptórios ou resolutivos cominados por lei, também plasmado no art. 639º, 3, do CPC

VI. Resultando o despacho de convite ao aperfeiçoamento do cumprimento de injunção do STJ ao Relator do processo de recurso de apelação na Relação, depois de os Recorrentes terem pugnando por evitar o efeito cominatório de rejeição do recurso de apelação com o fundamento na falta de conclusões com a prolação de despacho de aperfeiçoamento das conclusões, incidia sobre as partes recorrentes uma diligência particularmente qualificada no cumprimento do despacho de convite ao aperfeiçoamento à luz da cooperação (e, complementarmente, da boa fé) processual e da auto-responsabilidade dos Recorrentes no processo. Não só no conteúdo da peça – no que toca,
maxime, ao ponto decisivo da capacidade de síntese nas Conclusões a reformular –, mas também no preenchimento formalmente rigoroso do art. 639º, 3, do CPC, desde logo do seu prazo resolutivo. Neste se demonstraria o cumprimento minimamente diligente da resposta de aperfeiçoamento das Conclusões no âmbito do procedimento impugnatório.

VII. Quando as partes recorrentes apresentam nesse circunstancialismo processual a peça de aperfeiçoamento fora do prazo peremptório imposto pelo art. 639º, 3 CPC, não se comportam processualmente com esse mínimo de diligência e essa extemporaneidade por omissão justifica, numa situação extrema de aplicação da sanção do art. 639º, 3, CPC, a preclusão do conhecimento do mérito do recurso.

VIII. É admissível revista do acórdão da Relação que se abstém de apreciar o mérito da apelação com fundamento na intempestividade do cumprimento do despacho de convite ao aperfeiçoamento para apresentação de novas conclusões, previsto e cominado no art. 639º, 3, do CPC com a rejeição do recurso, uma vez configurar-se decisão final da Relação que põe «termo ao processo» por razões de natureza adjectiva (art. 671º, 1, CPC).
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

3.1.2. O convite a que se refere o art. 639º, 3, do CPC é feito uma só vez. Está na livre disponibilidade da parte recorrente responder com plenitude ao despacho do juiz Relator, atendendo às irregularidades expressas para sanação nesse despacho. Assim, sujeita-se a parte recorrente, que não o acatar ou o cumprir defeituosamente ou fora de tempo, à consequência do incumprimento [...] – não conhecimento do recurso na parte afectada (logo, total ou parcialmente) pelo vício identificado [...]. 

No entanto, deve considerar-se que essa é uma cominação processual a extrair in extremis se a apreciação recursiva for de todo comprometida com o incumprimento, mesmo que, não tendo usado da faculdade de apresentar novas conclusões, ocorra prejuízo para o intuito de a parte recorrente inverter a decisão recorrida [...]. Em particular, a falta de menção das normas violadas e/ou do sentido em que deveriam ser interpretadas as normas que serviram de fundamento à decisão não é em absoluto insuprível: a sua presença não terá um efeito de revelação do direito ao juiz, desde que o restante conteúdo (mesmo que imperfeito e lacunoso) das conclusões ainda permita a cognição do tribunal ad quem dentro de um certo objecto; a sua omissão ou incompletude ou obscuridade, em desconformidade com os ónus centrais da peça recursiva, prejudicará o resultado pretendido e sibi imputet [...]. Por outro lado, a falta de resposta ao convite ao aperfeiçoamento ou a resposta não sanante dos vícios identificados deve dar origem à rejeição de todo o objecto do recurso, nos termos do art. 639º, 3, CPC, se o julgador estiver em condições de fazer equivaler as conclusões manifestamente irregulares (que motivaram o convite ao aperfeiçoamento) a total omissão de conclusões – o que associaria tal efeito letal à sanção decorrente da aplicação do art. 641º, 2, b), do CPC. [Nestes sentidos, v., muito recentemente e com o mesmo Relator do presente recurso, o Ac. do STJ de 11/7/2019, processo n.º 334/16.2T8CMN-G-G1.S1]

Não sendo de extrair automaticamente o efeito gravoso da rejeição /não conhecimento do objecto do recurso pelo relator ou colectivo do tribunal ad quem na circunstância de resposta insuficiente ou inexistente [Neste sentido, ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 640º, págs. 153, 160 [...]], tal efeito não está excluído, sob pena de desvirtuamento da própria ratio legis do art. 639º, 3 [...]. De facto, uma vez recebida, ou não, a resposta do recorrente, ou recebida fora de prazo, “o relator deve ponderar de novo, dentro do seu prudente critério e com recurso aos princípios gerais do processo civil, qual a solução que mais se ajusta à concreta situação” – como enfatiza ABRANTES GERALDES [Recursos… cit., sub art. 639º, pág. 160]. E a cominação gravosa do art. 639º, 3, será justificada se as circunstâncias concretas do comportamento processual quanto ao ónus recursivo revelarem como inevitável decretar um juízo de especial censura à parte inadimplente à luz dos princípios processuais mais pertinentes para tal regime (a tutela da igualdade das partes, a protecção do exercício do contraditório, a cooperação e a boa fé processual assim como o princípio da auto-responsabilidade das partes). Nessa hipótese de actuação intolerável em face da expressão desses princípios, individual ou coligadamente analisados em concreto, poderemos estar nas referidas situações extremas de afastamento do conhecimento do mérito do recurso.

Não se tratará apenas de saber se e como deve ser conhecido o recurso em face das insuficiências, deficiências, obscuridades e omissões das Conclusões, para o fim de o julgador apreender de forma clara, inteligível e concludente o tema recursivo, mesmo que, ainda que em prejuízo do resultado pretendido pela parte, o faça por dedução ou simples percepção das questões de facto ou de direito que o recorrente suscita e que cabe ao tribunal superior solucionar – apreciação do conteúdo das Conclusões não obstante o incumprimento ou o cumprimento defeituoso do convite ao aperfeiçoamento. Trata-se, antes disso e previsivelmente a montante de chegarmos ao conteúdo da peça (até porque pode não haver peça), de saber se a conduta processual em face do convite ao aperfeiçoamento revela uma particular indiferença para com o comando legal em sede de ónus de alegação recursiva – apreciação da forma de cumprimento no exercício do meio de impugnação da decisão recorrida. Se esta apreciação, concreta e referida aos princípios aplicáveis, conduzir positivamente a uma imputação de censura à parte, então estaremos em condições de fazer funcionar o princípio da preclusão do exercício de direitos ou da satisfação de pretensões adjectivas, em particular quando inerente ao não cumprimento do ónus da prática de certos actos processuais dentro dos prazos (considerados) peremptórios ou resolutivos cominados por lei [V. FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, págs. 97 e ss. em esp. 100, onde se refere expressamente como situação de preclusão o não acatamento do despacho de aperfeiçoamento das conclusões nos termos do art. 639º, cuja omissão conduz à rejeição/indeferimento do recurso.], também plasmado, por isso, no art. 639º, 3, do CPC.

Para este efeito, note-se, o facto de o art. 639º, 3, do CPC impor um prazo peremptório ou resolutivo – 5 dias – faz com que se aplique o art. 139º, 3, do CPC: «O decurso do prazo perentório extingue o direito de praticar o acto». O que significa que, extinto o direito, não deve ser considerada a peça apresentada e a conduta da parte recorrente equipara-se pura e simplesmente ao incumprimento do despacho judicial, como se tivesse omitido a resposta ao convite, colocando-se igualmente na situação de não ver apreciado o objecto do seu recurso em função do juízo definitivo do julgado."
 
[MTS]
 
 

26/03/2020

As medidas excepcionais e temporárias estabelecidas pela L 1-A/2020, de 19/3 (repercussões na jurisdição civil)




[Para aceder ao texto clicar em M. Teixeira de Sousa / J. H. Delgado de Carvalho]




Jurisprudência 2019 (204)


Erro na forma do processo;
convolação


1. O sumário de 10/10/2019 (3575/17.1T8LOU-A.P1) é o seguinte:


I - O meio próprio de oposição do executado na execução é o processo de embargos de executado e os seus fundamentos, quando o título executivo seja uma sentença condenatória, são os que estão taxativamente previstos no art.º 729º do Código de Processo Civil.

II - Não obstante, é de admitir por simples requerimento no próprio processo de execução uma oposição pela qual apenas se invoque um vício cuja demonstração não carece de factos novos nem de prova, de que são exemplo o erro na forma do processo, a não indicação do valor da ação no requerimento executivo ou a falta de um requisito legal da petição. Tal não acontece com a exceção perentória do pagamento, sempre invocável apenas por meio de embargos.

III - Nos termos do art.º 193º, nº 3, do Código de Processo Civil (erro na qualificação do meio processual utilizado) é de admitir a conversão de um simples requerimento, que foi indevidamente junto à execução, em embargos de executado por oposição superveniente, onde se pede a extinção da execução por pagamento da quantia exequenda ao exequente e se junta um documento quitação por este supostamente assinado, ainda que por via de aperfeiçoamento, a processar nos embargos, aja de ser facultada ao embargante a alegação do momento em que efetuou o pagamento, tendo desde logo em vista a apreciação da tempestividade da oposição.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Poderia o executado vir ainda alegar o pagamento da quantia exequenda? Na afirmativa, em que condições?

Diz-nos o recorrente que, caso se venha a entender que era obrigação do exequente (sic) deduzir embargos supervenientes, impunha-se ao tribunal que proferisse um despacho que remetesse o interessado para aquele meio processual, por força do art.º art.º 193º, nº 3, visto numa perspetiva ampla, conjugando-se, designadamente com os art.ºs 6º e 547º.

Em tese, o nº 2 do art.º 728º responde a esta questão: “Quando a matéria da oposição seja superveniente [...], o prazo conta-se a partir do dia em que ocorra o respetivo facto ou dele tenha conhecimento o executado.”

Compreende-se o sentido desta norma em conjugação com a norma da al. g) do art.º 729º: se o facto extintivo ou modificativo da obrigação exequenda é anterior ao encerramento da discussão no processo declarativo é ali que deve ser alegado se dele se teve conhecimento, ainda que em articulado superveniente deva sê-lo, por força do que determinam os art.ºs 588º e 611º, nº 1, dissolvendo-se no efeito geral do caso julgado a consequência preclusiva das exceções alegáveis na ação declarativa. Se é posterior ao encerramento da discussão da causa na ação declarativa, pode ser invocado nos embargos de executado; se é posterior ao prazo que o nº 1 do art.º 728º prevê para o efeito, o facto pode ainda ser invocado na execução, em 20 dias, a contar do dia em que o facto ocorra ou dele tenha conhecimento o executado [...] (nº 2).

De acordo com o art.º 551º, nº 1, “são subsidiariamente aplicáveis ao processo de execução, com as necessárias adaptações, as disposições reguladoras do processo de declaração que se mostrem compatíveis com a natureza da ação executiva”.

O art.º 547º dispõe que “o juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo”.

O nº 1 do art.º 6º que prevê o dever de gestão processual, estipula que “cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”.

Quanto ao erro na forma do processo ou no meio processual empregue, o art.º 193º estipula no nº 1 que “o erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei” e o nº 3, que “o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados”.

A direção formal do processo está estreitamente ligada ao cumprimento de deveres de cooperação do juiz para com as partes e destas para com ele.

No essencial, o recorrente defende que existe um erro na qualificação do meio processual utilizado que justificava que o tribunal tivesse mandado seguir a forma adequada: a convolação de um requerimento avulso introduzido na execução em requerimento de oposição superveniente, passando a correr por apenso à execução (art.ºs 728º, nº 2 e corpo do nº 1 do art.º 732º).

O documento de quitação reza assim:

«Eu, abaixo assinado, B…, NIF ………, declaro que recebi de B1…, advogado, a totalidade da quantia a que me assistia no âmbito do processo nº 3573/17.1T8LOU do tribunal judicial da comarca de Porto Este, Lousada, Juízo de execução, Juiz 2, pelo que daquela nada mais tenho a receber seja a que título for.»

Segue-se uma assinatura: [...]

É um caso de qualificação do erro na forma do processo que se discute.

O Código de Processo Civil prevê meios próprios ou típicos para a apresentação de pretensões incidentais, derivadas ou sucedâneas, como acontece com os embargos, oposições, incidentes da instância ou meios de impugnação.

O erro na opção feita, no tocante ao meio impugnatório adequado, é suscetível de correção oficiosa ou convolação para o meio impugnatório adequado, não se vendo motivo para que o não seja pelo tribunal ad quem. [...]

A impropriedade do meio processual utilizado deve ser detetada pelo confronto entre a pretensão formulada e o meio processual adotado. [Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, Almedina 2014, 2ª edição, pág. 204]

Sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes (princípio do dispositivo, incumbe ao juiz dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório, e, ouvidas as partes, adotar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável, conforme (art.º 6º, nº 1, do Código Processo Civil).

O tribunal não pode desprezar o princípio da cooperação intersubjetiva, enquanto princípio instrumental que procura otimizar os resultados do processo. Tem o dever de coordenar, gerir a instância e o rito processual. Neste contexto, a atuação do tribunal manifesta-se, não na discricionariedade do juiz em deferir ou indeferir determinada pretensão jurídica, sem fundamentação, mas em contribuir para o esclarecimento dos factos e prossecução da descoberta verdade material segundo um critério de eficiência processual.

Os institutos da gestão processual e da adequação formal no atual Código de Processo Civil permitem densificar suficientemente um princípio de eficiência processual que traduz a ideia de realização da justiça material com um menor custo de tempo e de meios, humanos e físicos.

Na atividade gestionária, o apego à forma legal, isto é, à regra estrita preexistente deve ser substituído pela procura de soluções formais afeiçoadas ao caso concreto, sempre no respeito pelos princípios do processo civil.

O que não pode ser admitido são práticas gestionárias potenciadoras de uma relevante incerteza processual, atitudes prepotentes ou, muito menos, excessivas intervenções que coloquem em causa a garantia da imparcialidade do tribunal ou os princípios do contraditório e do dispositivo. [Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., pág. 59]

Nada o executado fez constar quanto à data de pagamento, pelo que, a existir, pode ter ocorrido a todo o tempo, nomeadamente antes do encerramento da discussão da causa ou, depois dela, até ao termo final do prazo de 20 dias de que o executado dispunha para deduzir os embargos de executado nos termos do art.º 728º, nº 1, do Código de Processo Civil, casos em que seria extemporânea a alegação de pagamento; ou ainda depois dele, caso em que poderia estar em tempo.

Como vimos já, a forma adequada para o requerimento do executado, face ao respetivo pedido - extinção da instância em razão do pagamento da quantia exequenda - é o requerimento de oposição superveniente (art.º 728º, nº 2).

Constitui um ónus do executado alegar a verificação da superveniência do facto novo de modo a justificar a sua admissão processual. É um facto correlativo a um direito dele, que o favorece. No caso, cumpria ao executado alegar que o pagamento (facto pessoal de que não podia deixar de ter conhecimento no momento da sua prática) ocorreu há não mais de 20 dias antes do requerimento em que o invocou no processo (citado art.º 728º, nº 2). Sema a alegação da superveniência, o executado não a poderá provar, já que é um facto indispensável à admissão da oposição, por esta dever ser rejeitada quando é deduzida fora de prazo (art.º 732º, nº 1, al. a)). Sem ela também não poderá fazer prova do pagamento, cujo ónus também lhe pertence (art.º 342º, nº 1, do Código Civil).

Em todo o caso, o convite ao aperfeiçoamento está amplamente consignado no Código de Processo Civil (art.ºs 590º, nº 4), nada obstando - antes se impondo - que se conceda ao executado a faculdade de alegar a data ou datas em que efetuou o pagamento ao exequente e deu quitação, nada mais se tendo omitido que possa obstar a que o meio processual utilizado siga a forma processual adequada, na certeza de que o executado pretende provar o pagamento da quantia exequenda ao exequente e requereu já, por essa razão, a extinção da execução.

O exequente pronunciou-se já sobre o invocado pagamento e teve a possibilidade de se pronunciar, no presente recurso, sobre o erro na forma do processo invocado pelo executado e demais fundamentos da apelação, estando, nessa medida, cumprido o contraditório.

Por conseguinte, atendendo às disposições legais citadas, com especial enfoque no art.º 193º, nº 3, deverão os requerimentos com as referências nº 31917137, de 21.3.2019, nº 31954105, de 25.3.2019, nº 32108532, de 8.4.2019, nº 32185462, de 16.4.2019, o alegado original de quitação de 9.4.2019 e os despachos de 3.4.2019 e de 15.4.2019 ser desentranhados do processo de execução e passar a constituir apenso de oposição superveniente, pela ordem sequencial da sua introdução em Juízo, onde serão satisfeitas as obrigações tributárias próprias dos embargos e se determinará a notificação do embargante para que, em prazo certo, complete o requerimento inicial de embargos, nomeadamente com alegação da data ou datas do pagamento e quitação, cumprindo-se posteriormente o contraditório quanto aos novos factos que forem invocados e com possível indicação, quanto a estes, de novos meios de prova.

É neste processo de embargos que as provas requeridas poderão ser o não ser admitidas.

A esta solução não obsta o facto de não haver formação de caso julgado na extinção do processo executivo e de, por isso, não ficar o executado impedido de propor uma ação de restituição do indevido se não forem admitidos e apreciados os embargos e a dívida lhe for coercivamente cobrada. Evita-se, assim, uma nova ação, viabilizando-se já o conhecimento e a decisão relativa a um fundamento de oposição, com respeito pelo contraditório, com economia de meios e maior celeridade processual."

[MTS]



25/03/2020

Paper (442)

 
-- Ahmed, Mukarrum, The Validity of Choice of Court Agreements in International Commercial Contracts under the Hague Choice of Court Convention and the Brussels Ia Regulation (SSRN 02.2020)
 
 
 
 

Jurisprudência 2019 (203)

 
Reconvenção;
conexão objectiva
 
 
1. O sumário de RP 22/10/2019 (3445/18.6T8VFR-A.P1) é o seguinte:

I - Só o fundamento factual/jurídico da acção e da defesa podem conduzir à reconvenção – em consequência lógica, a causa de pedir, quer da acção, quer da reconvenção, tem de existir à data da propositura da acção, sob pena de inadmissibilidade do pedido reconvencional.

II - Os factos essenciais podem conceber-se enquanto factos essenciais principais, ou factos essenciais complementares ou concretizadores - só os factos essenciais principais desempenham função individualizadora ou identificadora e só a respectiva omissão implica a ineptidão da petição inicial, para efeitos do disposto no artº 186º nº2 al.a) CPCiv (veja-se o actual artº 5º nºs 1 e 2 CPCiv, na esteira do que já dispunha a norma do artº 264º CPCiv, proveniente da revisão de 95/96).

III - Os danos invocados não têm por força que ser quantificados, para que possam proceder, mesmo que num quadro de alegação complementar ou concretizadora, visto o disposto no artº 566º nº3 CCiv, mas o Juiz deve ainda utilizar os factos que conduzam directamente à quantificação, até à pronúncia em 1ª instância, desde que tenha conferido expressamente às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem – cf. artº 5º nº2 al.b) CPCiv, no quadro dos respectivos poderes/deveres oficiosos em matéria probatória – artº 411º CPCiv.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I
 
O pedido em causa tem por base uma causa de pedir desdobrada em três segmentos (isto pese embora os prejuízos invocados venham contabilizados numa única quantia liquidada - €450.000):
 
- os prejuízos decorrentes da propositura da acção;
 
- os prejuízos decorrentes da resolução do contrato, por parte da Reconvinte – acréscimo de prémios de seguro;
 
- os prejuízos decorrentes da execução contratual, motivadora da justa causa de resolução – a conduta em geral da Reconvinda, a ausência de informação quanto à sinistralidade.
 
Quanto ao primeiro dos apontados segmentos do pedido, tem razão a douta impugnação recursória.
 
Na verdade, só o fundamento factual/jurídico da acção e da defesa podem conduzir à reconvenção – em consequência lógica, a causa de pedir, quer da acção, quer da reconvenção, tem de existir à data da propositura da acção – neste sentido, Ac.R.P. 14/1/88 Bol.373/600, relatado pelo Consº Jorge Vasconcelos.
 
No mesmo sentido, veja-se o Ac.S.T.J. 22/5/03, pº 03A3141, relatado pelo Consº Afonso de Melo, baseado na doutrina do Ac.S.T.J. 2/3/45 Bol.28/99, com anotação concordante da Revista dos Tribunais, 63º/169 e 86º/365.
 
Por isso mesmo, da forma concreta como o autor articula os factos da presente acção não se podia deduzir o concreto pedido reconvencional, pois não nos encontramos perante idêntica causa de pedir; de forma idêntica, está também vedada a dedução de pedido reconvencional se a defesa invoca que o Autor promove alegação atentatória do seu bom nome, com efeitos junto das entidades de crédito.
 
O Ac.R.P. 16/10/86 Col.IV/236, relatado pelo Consº Flávio Pinto Ferreira, entendeu que os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com a propositura da acção devem integrar pedido de indemnização com base em litigância de má fé, sem excluir a possibilidade de dedução de acção própria.
 
Portanto, nesta parte a reconvenção era efectivamente inadmissível, à luz do disposto no artº 266º nº2 al.a) CPCiv.
 
II

Como visto, o Autor alega ainda:
 
- os prejuízos decorrentes da resolução do contrato, por parte da Reconvinte – acréscimo de prémios de seguro;
 
- os prejuízos decorrentes da execução contratual, motivadora da justa causa de resolução – a conduta em geral da Reconvinda, a ausência de informação quanto à sinistralidade.
 
Não curamos do mérito dos pedidos – apenas de saber se tais pedidos podem, ou não, considerar-se ineptos, visto o disposto no artº 186º nº2 al.a) CPCiv, por falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir.
 
Como é sabido, na exegese do actual artº 5º nºs 1 e 2 CPCiv, na esteira do que já dispunha a norma do artº 264º CPCiv, proveniente da revisão de 95/96, pode dizer-se que os factos essenciais podem conceber-se enquanto factos essenciais principais, ou factos essenciais complementares ou concretizadores.
 
Ora, só os factos essenciais principais desempenham uma função individualizadora ou identificadora, a ponto de só a respectiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial (cf. Ac.R.P. 8/1/2018, pº 1676/16.2T8OAZ.P1, relatado pelo Des. Baldaia de Morais).
 
“Quanto aos factos complementares e aos factos concretizadores, embora também integrem a causa de pedir, não têm uma função individualizadora, pelo que a omissão da respectiva alegação não é passível de gerar ineptidão da petição inicial; assim, os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir complexa, ou seja, uma causa de pedir aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele; por seu turno, os factos concretizadores têm por função pormenorizar ou explicitar o quadro fáctico exposto, sendo essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da acção” – escreveu-se no mesmo aresto, aliás reproduzido pelo Prof. Teixeira de Sousa, in blog do ippc, entrada de 11/4/2018.
 
Sem curarmos do mérito, repetimo-lo, foram invocados danos, recorde-se, decorrentes de acréscimo de prémios de seguro (veja-se a alegação do artº 30º do articulado de resposta às excepções, por parte da Ré), e decorrentes da inércia da conduta da Autora ou da ausência de informação quanto à sinistralidade (no decurso da execução do contrato – vejam-se os artºs 55º, 67º a 69º, 79º, 82º e 83º do articulado contestação/reconvenção).
 
Isto posto, os danos invocados não têm por força que ser quantificados, para que possam proceder, mesmo que num quadro de alegação complementar ou concretizadora, visto o disposto no artº 566º nº3 CCiv.
 
A necessidade de quantificação ou de mais adequada concretização dos factos alegados deveria ter dado origem, fosse o caso, à prolação do despacho de aperfeiçoamento, previsto na norma do artº 590º nº4 CPCiv.
 
Todavia, há que não olvidar que os factos complementares e concretizadores, designadamente em matéria de quantificação, podem ainda ser utilizados pelo Julgador, até à pronúncia em 1ª instância, desde que se tenha conferido expressamente às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem – cf. artº 5º nº2 al.b) CPCiv, no quadro dos respectivos poderes/deveres oficiosos em matéria probatória – artº 411º CPCiv.
 
Em resumo – não existe fundamento para afirmar que, na parte em que excede o pedido inadmissível, tal como supra expusemos, a reconvenção formulada o foi, designadamente, na ausência de causa de pedir.
 
Não existe assim que afirmar a ineptidão da reconvenção, por aplicação da norma do artº 186º nº2 al.a) CPCiv."
 
[MTS]

24/03/2020

Bibliografia (889)


-- Christoph Schmon, The Interconnection of the EU Regulations Brussels I Recast and Rome I - Jurisdiction and Law (T.M.C. ASSER: The Hague 2020)


Jurisprudência 2019 (202)


Presunções judiciais;
poderes do STJ*

 
1. O sumário de STJ 17/10/2019 (1703/16.3T8PNF.P1.S1) é o seguinte:

I. Segundo a jurisprudência corrente, o STJ só pode sindicar o uso de presunções judiciais pela Relação, se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.

II. Nessa conformidade, pode ser sindicável em sede de revista o uso de presunções judiciais quando a lei o não admita, por violação, por exemplo, do artigo 351.º do CC, ou, quando admitindo-o, tal uso ocorra fora do condicionalismo legal traçado no artigo 349.º do mesmo Código, que exige a prova de um facto de base ou instrumental e a ilação a partir dele de um facto essencial presumido.

III. Relativamente ao erro sobre a substância do juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em casos de manifesta ilogicidade.

IV. Para tanto, importa que da decisão de facto ou, porventura, da respetiva motivação constem os factos instrumentais a partir dos quais o tribunal tenha extraído ilações em sede dos factos essenciais, nos termos dos artigos 349.º do CC e 607.º, n.º 4, do CPC, ou até algum argumento probatório decisivo, que permitam, nessa base objetiva, aferir a ocorrência de manifesta ilogicidade.

V. Face ao preceituado nos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC, está vedado ao tribunal de revista indagar, por via da livre reapreciação da prova produzida, erro intrínseco na formação da convicção do julgador.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"Como é sabido, no domínio das presunções judiciais, tem vindo a admitir-se, após alguma controvérsia, que o STJ “só pode sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofende qualquer norma legal, se padece de evidente ilogicidade ou se parte de factos não provados” [Neste sentido, vide, entre outros, o acórdão do STJ, de 25/11/2014, proferido no processo n.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1].

Nessa medida, pode ser sindicável em sede de revista o uso de presunções judiciais quando a lei o não admita, por violação, por exemplo, do artigo 351.º do CC, ou, quando admitindo-o, tal uso ocorra fora do condicionalismo legal traçado no artigo 349.º do mesmo Código, que exige a prova de um facto de base ou instrumental e a ilação a partir dele de um facto essencial presumido.

E relativamente ao erro sobre a substância do juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em casos de manifesta ilogicidade.

Para tanto, importa que da decisão de facto ou porventura da respetiva motivação constem os factos instrumentais a partir dos quais o tribunal tenha extraído ilações em sede dos factos essenciais, nos termos dos artigos 349.º do CC e 607.º, n.º 4, do CPC, ou até algum argumento probatório decisivo, que permitam, nessa base objetiva, aferir a ocorrência da sobredita ilogicidade. Mas, face ao preceituado nos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC, está vedado ao tribunal de revista indagar, por via da livre reapreciação da prova produzida, o erro intrínseco na formação da convição do julgador."

*3. [Comentário] O STJ continua a recorrer ao "bordão" de que não pode conhecer de presunções judiciais, excepto se a presunção "ofende qualquer norma legal, se padece de evidente ilogicidade ou se parte de factos não provados”. 

Cabe perguntar, no entanto: mas, para que o STJ saiba se uma presunção judicial utilizada pelas instâncias ofende uma norma legal, padece de ilogicidade ou parte de um facto não provado, não é necessário que o STJ infira, ele próprio, a presunção judicial "correcta"? Ou não é que é apenas através da comparação da presunção judicial "correcta" inferida pelo STJ com aquela que foi inferida pelas instâncias que se pode saber se esta apresenta algum dos referidos vícios?

MTS