"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/07/2019

Jurisprudência europeia (TJ) (200)

 
Reg. 1215/2012 — Competências especiais — Matéria extracontratual — Lugar da verificação do facto danoso — Lugar da materialização do dano — Pedido de reparação do prejuízo causado por um cartel declarado contrário ao artigo 101.° TFUE e ao artigo 53.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu
 

TJ 29/7/2019 (C‑451/18, Tibor/ DAF Trucks) decidiu o seguinte:

O artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de uma ação para reparação do prejuízo causado por uma infração ao artigo 101.° TFUE, que consiste nomeadamente em acordos colusórios sobre fixação de preços e aumento dos preços brutos dos camiões, o «lugar onde ocorreu o facto danoso» refere‑se, numa situação como a que está em causa no processo principal, ao lugar do mercado afetado por essa infração, a saber, o lugar onde os preços de mercado foram distorcidos, no qual a vítima alega ter sofrido esse prejuízo, ainda que a ação seja intentada contra um participante no cartel em causa com quem essa vítima não tinha estabelecido relações contratuais.



27/07/2019

Informação (259)


Interrupção estival


Como tem sido habitual em anos anteriores, não haverá durante o período estival publicações regulares no Blog. Conta-se voltar à actividade normal no início do mês de Setembro.

O Blog tem, neste momento, cerca de 774.000 visualizações "presenciais", número que é tanto mais de realçar quanto há a percepção de que muitos leitores (quantos é algo que não é possível precisar) preferem seguir o Blog através das notificações por email. A página do IPPC no Facebook tem cerca de 4.000 seguidores, mas é certamente visitada por muitos mais. Apenas a página no Twitter tem um pequeno número de seguidores.

Perante estes números, a ideia só pode mesmo ser a de continuar dentro do espírito que sempre orientou o Blog. Sempre que haja discordância quanto ao decidido na jurisprudência, procura-se demonstrar qual é a melhor solução, não raramente privilegiando aquela que tem para as partes e para o sistema jurídico os menores custos.

A terminar, aproveita-se para desejar, a quem for aplicável, umas boas férias.

MTS


Paper (425)


-- Gillies, Lorna E., Conceptualising Special Jurisdiction for Receipt Orientated Torts on the Internet: Lessons from CJEU Jurisprudence (SSRN 06.2019)



26/07/2019

Alteração ao CPC (8)


-- DL 97/2019, de 26/7: Procede à alteração do Código de Processo Civil, alterando o regime de tramitação eletrónica dos processos judiciais

Nota: o DL 97/2019, de 26/7, altera os art. 21.º, 132.º, 137.º, 144.º, 145.º, 148.º, 153.º, 155.º, 158.º, 160.º, 163. a 166.º, 167.º, 169.º, 170.º, 172.º, 174.º, 175.º, 177.º, 184.º, 204.º, 207.º a 209.º, 213.º, 219.º a 221.º, 225.º, 228.º, 244.º, 246.º a 249.º, 251.º, 252.º, 255.º, 256.º, 259.º, 270.º, 271.º, 359.º, 360.º, 502.º, 507.º, 552.º, 558.º, 560.º, 567.º, 570.º, 642.º, 646.º, 712.º, 724.º, 773.º, 779.º, 922.º e 982.º

 

Jurisprudência 2019 (62) (3)


Juízos de família e menores;
competência executiva


I. Continuando a discussão sobre a competência executiva dos juízes de família e menores, um leitor do Blog enviou as seguintes observações:

"1. A LOSJ em nada mudou o paradigma que vinha da LOFTJ. Por isso, deve continuar a afirmar-se – na esteira do que dispunha o artigo 103.º da LOFTJ (Lei n.º 3/99, de 13/1, na redação dada pela Lei n.º 42/2005, de 29/8) – que vale a regra nos termos da qual os tribunais ou juízos com competência especializada são competentes materialmente para exercer, no âmbito do processo de execução, as competências previstas no Código de Processo Civil, quanto às decisões que hajam proferido nos processos que lhes sejam atribuídos. Esta regra é válida para todos os tribunais e juízos previstos no n.º 2 do artigo 129.º da LOSJ;

2. Aliás, mal se compreenderia que, no âmbito do processo de inventário, os juízos de família e menores fossem competentes para vender os bens adjudicados ao devedor de tornas (arts. 61.º e 62.º do Regime do Inventário e art. 122.º, n.º 2, LOSJ), mas já não fossem competentes para vender outros bens do devedor de tornas para pagar o mesmo crédito".

II. Supõe-se que estão claras as orientações possíveis na interpretação do art. 129.º, n.º 2, LOSJ e os argumentos que podem ser utilizados para confirmar ou infirmar a orientação que foi adoptada no acórdão divulgado em Jurisprudência 2019 (62). É com curiosidade que se aguarda a evolução da jurisprudência na matéria.

MTS  


Jurisprudência 2019 (66)


Citação; nulidade;
convolação oficiosa


I. O sumário de RG 7/3/2019 (2305/17.2T8VNF-A.G1) é o seguinte:


1 - Ocorrendo erro no meio processual utilizado pela parte impõe-se a convolação, oficiosa, para os termos processuais adequados - cf. nº3, do art. 193º, do CPC.

2 - Tal convolação, com os limites naturais - pois que não pode operar caso existam obstáculos intransponíveis, como é o caso de ter já decorrido o prazo previsto para o ato convolado -, visa evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida em juízo, em prejuízo da justa composição dos litígios.

3 - Arguida na oposição à execução por embargos de executado a nulidade da citação efetuada na execução, o tribunal, oficiosamente, convola os embargos de executado em reclamação de nulidade (a tramitar na execução, onde foi praticado o ato), meio processual próprio.

4 - E cabe ao Tribunal
a quo apreciar e decidir a reclamação, fazendo as adequações formais que repute necessárias, nunca podendo, contudo, julgar “por erro no meio processual adequado, sem efeito o pedido de declaração de nulidade da citação para a execução”, não constituindo razões meramente formais limites naturais intransponíveis;

5 - Arguida a nulidade da citação num verdadeiro e próprio articulado de oposição à execução, por embargos de executado, com invocação de fundamentos para tal, a arguição da nulidade não pode ser apagada e esquecida, a pretexto da existência destes, sempre tendo de ser apreciada, para o que, na parte respetiva e na medida do necessário à correção do erro no meio processual empregue, se opera a referida convolação;

6 - Não se revelaria legítimo nem equitativo deixar de apreciar a reclamação, sempre podendo o Tribunal ultrapassar entraves formais e, para a tramitar, efetuar as necessárias adequações formais (como seja ordenar a extração de cópias do articulado em causa para serem juntas à execução e aí ser, tão só, apreciada a reclamação da nulidade da citação).

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2. Da convolação oficiosa da arguição da referida nulidade processual efetuada pela executada na oposição à execução por embargos de executado para o meio próprio - reclamação (na execução) - e dever da sua apreciação.

Pretende a apelante ver apreciada a questão, por si suscitada, da nulidade da citação por falta de envio dos documentos, legíveis, referentes às invocadas cessões de crédito, sendo que o que pretende é obter a anulação de todo o processado desde o requerimento executivo, isto é, o reconhecimento de uma nulidade, que prejudicou o exercício, por si, do contraditório e que inquina todo o processo, à exceção daquele requerimento, defendendo não existir impedimento de exercer o seu direito de arguir a nulidade em causa no próprio articulado de oposição à execução que apresentou.

O Tribunal a quo considerou que a nulidade da citação para a execução não configurando fundamento para a oposição à execução, nos termos dos arts. 729.º e 731.º do CPC, devia ter sido arguida através de reclamação a deduzir na própria execução, de acordo com art. 851.º do CPC, afirmando que seria possível convolar o articulado apresentado se a embargante se tivesse limitado a apresentar o pedido de declaração de nulidade da citação para a execução usando, erroneamente, o meio processual de embargos de executado, fazendo-se seguir o meio correto, mas que, no caso, uma vez que a embargante, para além da declaração de nulidade da citação, apresentou fundamentos e pedidos relativos a verdadeiro articulado de oposição à execução, não é possível efetuar tal convolação. Entende que, face aos pedidos apresentados pela embargante, se verifica uma situação de “cumulação de pedidos e ocorrendo erro na forma de processo quanto a um deles, a solução é considerar sem efeito o pedido para o qual o processo não é adequado, como se infere da solução dada a uma questão paralela no n.º 4 do art. 186.º, do C.P.C., onde, para o caso de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis se estabelece que «a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito, por incompetência do tribunal ou por erro na forma de processo». Reconhecendo, contudo, não se estar perante um caso de pedidos substancialmente incompatíveis, ainda assim, aplica aquela regra e determina o prosseguimento do processo para a apreciação dos fundamentos dos embargos, dando sem efeito o pedido e declaração de nulidade da citação, por erro no meio processual.

Vejamos o que expressamente estabelece a lei quanto à questão, o que a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo sobre a mesma, a orientação a seguir no caso concreto e se a arguição da nulidade deve deixar de ser apreciada só pelo facto de ter sido incorporada no articulado de oposição à execução, em vez de seguir num requerimento, separado, de reclamação.

Na verdade, para o processo executivo, sendo o que temos em mãos, estatui, expressamente, o artigo 851.º, com a epígrafe “Anulação da execução, por falta ou nulidade de citação do executado” que:

“1 - Se a execução correr à revelia do executado e este não tiver sido citado, quando o deva ser, ou houver fundamento para declarar nula a citação, pode o executado invocar a nulidade da citação a todo o tempo.
 
2 - Sustados todos os termos da execução, conhece-se logo da reclamação e, caso seja julgada procedente, anula-se tudo o que na execução se tenha praticado.
 
3 - A reclamação pode ser feita mesmo depois de finda a execução.
 
4 - Se, após a venda, tiver decorrido o tempo necessário para a usucapião, o executado fica apenas com o direito de exigir do exequente, no caso de dolo ou de má-fé deste, a indemnização do prejuízo sofrido, se esse direito não tiver prescrito entretanto”.
[...]

No caso, a nulidade da citação foi arguida na própria oposição à execução, tempestivamente apresentada, sendo, por isso, também tempestiva tal arguição – nº2, do art. 191º.

Vejamos, agora, se, adjetivamente, a reclamação da nulidade da citação podia ser efetuada nos embargos de executado, integrando, até, um fundamento dos mesmos, como pretende a apelante, ou, não o devendo ser, sendo esse o meio processual errado para o pedido de declaração de nulidade da citação, se, ainda assim, não podia, uma vez apresentada tempestivamente, deixar de ser apreciada (com produção da prova oferecida) e decidida.

Na verdade, suscitou a executada a pertinente questão, para decisão pelo Tribunal a quo, após apreciar da verificação dos factos a ela relativos, que a demonstrarem-se poderão, na verdade, contender com o pleno exercício do contraditório.

As questões que se levantam são a de saber se os embargos de executado são o meio processual próprio para reclamar a nulidade da citação e, não o sendo, por haver meio especificamente consagrado, se, ainda assim, a arguição da nulidade da citação efetuada no próprio articulado de oposição, devia ter sido apreciada, como solicitado, e se dela pode conhecer este Tribunal. [...]

Apesar de não se poder considerar a arguição de nulidade da citação um fundamento de embargos de executado, pois que nenhuma defesa relativamente à execução está em causa, sequer questão prévia daqueles, pois consagrado está meio próprio para o exercício do direito de arguir a nulidade da citação - a reclamação -, a deduzir no processo onde foi praticado a ato - a execução -, entendemos que sempre o Tribunal a quo tinha de conhecer da arguida nulidade, nenhum sentido fazendo distinguir os casos em que, não obstante a existência de prejuízo para o exercício da contraditório, apenas é arguida a nulidade da citação daqueles em que, para além disso, é invocado fundamento de oposição à execução. Seria tratar de modo diferente o que é igual.

Com efeito, mesmo suscitada a questão nos embargos, meio processual errado, sempre o Tribunal poderia ordenar a junção de cópia do articulado em que foi arguida à execução por ser aí que devia ser tramitada a reclamação da arguida nulidade e apreciá-la.

O que não podia era passar por cima do pedido formulado, com o fundamento invocado, e dá-lo sem efeito, sem nada apreciar, afirmando dar tratamento diferente ao que é, essencialmente, igual, por razões meramente procedimentais, estando, até, o processo onde foi arguida a nulidade na dependência da execução, constituindo um apenso seu e, por isso, facilmente acessível ao julgador, para o que for necessário.

Tal decorre do que dispõe o nº 3 do artigo 193º, do CPC, que consagra “O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados”, podendo estabelecer-se relações entre este artigo e a adequação formal (art. 547º, do CPC) pois, “podendo o juiz adotar uma forma divergente da legal, é-lhe também possível limitar a adequação à forma legal preterida no âmbito do que, tidas em conta as especificidades do caso, lhe parecer razoável ([José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 3ª Edição Coimbra Editora, pág 372])”. [...]

Tal preceito foi “introduzido pelo CPC de 2013, já não respeita ao erro na forma de processo, antes ao relacionado com o meio processual utilizado pela parte para a prática de determinado ato. Em tais circunstâncias, em lugar do decretamento puro e simples da nulidade do ato, impõe-se ao juiz o dever de proceder à sua correção oficiosa, determinando que sejam seguidos os termos processuais adequados. O sentido desta previsão é claro: evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida em juízo” ([António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, Almedina, pág 233 - v. exemplos aí citados de erro no meio processual e de limites naturais à convolação imposta pelo referido preceito])

E, como decidiu o Tribunal da Relação do Porto de 5/3/2015 “Se o executado deduz embargos de executado, mas o que invoca é uma nulidade processual – falta de citação – os embargos devem ser convolados numa reclamação por nulidade (art. 193.º, nº. 3, do CPC), se os embargos tiverem sido intentados no prazo da reclamação” ([Ac. de 5/3/2015, processo 3788/13.5YYPRT-A.P1 [...]]).

Cita o referido Acórdão Miguel Teixeira de Sousa, em comentário a um Ac. do TRE, na entrada de 08/02/2015 no blog do IPPCsob nulidade da citação; convolação de meio processual, que diz “atendendo a que o objecto do recurso era a nulidade da citação do requerido e que, segundo parece, a RE entende que o requerido, em vez de ter interposto o recurso, devia ter arguido a nulidade da citação depois de ter sido notificado da sentença que decretou a providência cautelar, verifica-se um erro no meio processual utilizado pelo requerido. O meio processual escolhido pelo requerido para invocar a nulidade da sua citação não é o adequado: devia ter sido a reclamação contra a nulidade, não a apelação interposta. Mas se assim é, então o que a RE deveria ter feito era analisar a aplicação ao caso sub iudice do (novo) art. 193/3 do CPC” [...].

Ora, na situação em que a executada deduz embargos de executado, com determinados fundamentos, e aí invoca, também, nulidade da citação, não se mostra legítimo, nem proporcional e equitativo, deixar de apreciar a nulidade, sempre podendo o Tribunal ultrapassar entraves formais e tramitar a reclamação deduzida, efetuar as necessárias adequações formais, como ordenar a extração de cópias do articulado em causa para serem juntas à execução e aí ser, tão só, apreciada a arguição da nulidade da citação, considerando convolado tal pedido de declaração de nulidade da citação em reclamação.

Assim, mesmo sendo invocados nos embargos de executado fundamentos de oposição à execução, nunca a arguida nulidade processual podia ser dada sem efeito e ficar por apreciar, como conclui a apelante na conclusão VI, que procede."

[MTS]

25/07/2019

Jurisprudência uniformizada (40)


Consumidor; graduação de créditos;
Ac. STJ 4/2014

-- Ac. STJ 4/2019, de 25/7, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa.


Jurisprudência 2019 (62) (2)


Juízes de família e menores:
competência executiva


1. Em resposta ao post intitulado Jurisprudência 2019 (62), um outro leitor atento do Blog pronunciou-se no sentido de que a RP julgou bem a questão da incompetência executiva dos juízos de família e menores.

O argumento aduzido pelo referido leitor é o de que, quanto aos juízos de família e menores, o disposto no n.º 2 do art. 129.º LOSJ se refere apenas aos processos executivos atribuídos a esses mesmos juízos, ou seja, aos processos a que se referem a al. f) do n.º 1 do art. 122.º e a al. e) do n.º 1 do art. 123.º LOSJ.

2. Supõe-se de que não há dúvida de que o problema reside na interpretação do art. 129.º, n.º 2, LOSJ.

A leitura que é agora proposta para o art. 129.º, n.º 2, LOSJ é, no fundo, a de que os "processos atribuídos" referidos no preceito são aqueles que já são "atribuídos" por outras disposições legais (como a dos art. 122.º, n.º 1, al. f), e 123.º, n.º 1, al. e), LOSJ, mas também como as dos art. 111.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, 113..º, n.º 2, 126.º, n.º 1, al. m), e 128.º, n.º 3, LOSJ). Noutros termos: o art. 129.º, n.º 2, LOSJ nada acrescenta ao que se estabelece nestes preceitos; é apenas -- se assim se pode dizer -- um preceito meramente remissivo.

É bem possível -- não custa nada reconhecer -- que se possa fazer essa interpretação do disposto no art. 129.º, n.º 2, LOSJ. A única objecção que talvez possa ser levantada é a de que essa interpretação torna o preceito inútil, porque então não se estabelece nele mais do que já se encontra estabelecido noutros preceitos da LOSJ. Há que reconhecer, no entanto, que deficiências legislativas não são coisa rara.

Por isso, a defesa da posição contrária -- que foi aquela que foi referida no post intitulado Jurisprudência 2019 (62) -- talvez tenha a seu favor que ela é a única que fornece um sentido útil ao disposto no art. 129.º, n.º 2, LOSJ e que, por isso, respeita o comando interpretativo enunciado no art. 9.º, n.º 3, CC.

Pode ainda referir-se um outro aspecto. Os art. 111.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, 113.º, n.º 2, 126.º, n.º 1, al. m), e 128.º, n.º 3, LOSJ atribuem, aos respectivos tribunais, competência para a execução da generalidade das suas próprias decisões; em contrapartida, os art. 122.º, n.º 2, al. f), e 123.º, n.º 1, al. e), LOSJ atribuem aos juízos de família e menores competência apenas para as execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges e por alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados.

Bem se pode entender, por isso, que o sentido útil do disposto no art. 129.º, n.º 2, LOSJ é precisamente o de estabelecer o mesmo para todas as execuções das decisões de todos os tribunais que nele estão enunciados, pois que, se para os outros tribunais, essa competência abrange a generalidade das suas decisões, então o mesmo também deve valer para os juízos de família e menores. Quer dizer: o art. 129.º, n.º 2, LOSJ serviria precisamente para alargar a outras decisões o que os art. 122.º, n.º 2, al. f), e 123.º, n,º 1, al. e), LOSJ estabelecem apenas para uma certa categoria de decisões. O argumento vale o que vale, mas é talvez o que de mais relevante se pode retirar do disposto no art. 129.º, n.º 2, LOSJ, se se quiser extrair deste preceito algo de útil.

Ainda uma palavra mais. Este é certamente um dos casos em que mais vale uma jurisprudência estabilizada em qualquer dos sentidos possíveis do que uma permanente indefinição sobre o âmbito da competência executiva dos juízos de família e menores. Aguarda-se, pois, uma estabilização da jurisprudência na matéria.

3. Concluindo: o acórdão da RP publicado em Jurisprudência 2019 (62) acabou por originar uma interessante discussão jurídica, que, como resulta do exposto neste post e no anterior, continua à espera de uma última resposta. O Blog do IPPC cumpriu plenamente a sua função.

MTS

Paper (424)


-- Pavillon, Charlotte, Private Enforcement as a Deterrence Tool: A Blind Spot in the New Deal for Consumers (SSRN 06.2019)



Bibliografia (831)


-- Andrioli, V., Lezioni di diritto processuale civile / Appunti di diritto processuale civile (E.S.I.: Napoli 2019) 

-- Montecchiari, T., Ius singulare e autotutela privata (E.S.I.: Torino 2019)

 

Jurisprudência 2019 (65)


Deferimento da desocupação de imóvel;
transacção; terceiros; inoponibilidade

1. O sumário de RG 7/3/2019 (195/10.5TJVNF-A.G1) é o seguinte: 

“I. A obrigação do Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social de efectuar o pagamento da quantia correspondente às rendas vencidas e não pagas durante o período de diferimento da desocupação (art. 930º-C do CPC; actual, art. 864º do NCPC) não pode resultar de transacção estabelecida entre as partes, homologada por sentença, onde apenas se preveja o diferimento da desocupação e, inclusivamente, se estabeleça que o pagamento das rendas, durante aquele período, ficava a cargo da executada.

II. Na verdade, tal obrigação só pode ser imposta àquela entidade se, na sequência do correspondente pedido de diferimento da desocupação, forem apresentadas provas da verificação dos respectivos requisitos, e sobre ele incida uma decisão judicial que, no seu prudente arbítrio, julgue os pressupostos de que depende o diferimento da desocupação verificados”.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do(s) recorrente(s) - no caso, a posição das partes -, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cf. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
*
No seguimento desta orientação, é a seguinte a questão que importa apreciar:

- Saber se a sentença que homologou a transacção estabelecida entre as partes, nos presentes autos de oposição à execução, pode constituir título executivo perante o “Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social” (ISS) – no sentido de obrigar aquela entidade a efectuar o pagamento da quantia correspondente às rendas vencidas e não pagas durante o período de diferimento da desocupação (art. 930º-C do CPC).
*
A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
*
Como factualidade relevante interessa aqui ponderar apenas os trâmites processuais e o teor da decisão proferida que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais.

*
B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Conforme resulta do relatório elaborado, a questão que, no fundo, importa decidir é a de saber se o Tribunal não devia ter alterado a decisão inicialmente proferida no sentido de notificar o Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social para efectuar o pagamento da quantia correspondente às rendas vencidas e não pagas durante o período de diferimento da desocupação do imóvel arrendado (cfr. art. 930º-C do CPC) (Dispositivo legal entretanto revogado, mas cujo regime foi acolhido, no essencial, nos arts. 864º e 865º do novo CPC). [...]
Cumpre decidir.

A questão colocada no presente Recurso deve ser resolvida no âmbito de dois níveis diferentes de apreciação.

Por um lado, em sede de interpretação da transacção (e da respectiva sentença homologatória) e do âmbito da sua eficácia executória (exequibilidade do título dado à execução – art. 10º, nº 5 do CPC).

E, por outro lado, em sede de verificação dos requisitos do pedido de diferimento da desocupação do imóvel arrendado (cf. art. 930º-C do CPC).

Ora, salvo o devido respeito pela opinião contrária, em qualquer um destes dois níveis de apreciação, não se pode reconhecer ao Recorrente qualquer razão. [...]
*
Uma vez esclarecidas estas regras interpretativas, importa, então, proceder à interpretação do clausulado da transacção estabelecida entre as partes,

Tratando-se de um documento escrito, a interpretação deve, pois, começar com a interpretação do texto do acordo que foi subscrito pelas partes.

Ora, dessa análise interpretativa é fácil constatar que, da transacção estabelecida entre as partes, não decorre para o Recorrido, Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, qualquer obrigação, que possa determinar a notificação ordenada pelo Tribunal Recorrido.

Na verdade, procurando no texto do acordo, não se logra encontrar nele qualquer elemento interpretativo textual que permita acolher, no seu âmbito, a interpretação defendida pelo Recorrente.

Com efeito, do texto das cláusulas atrás transcritas apenas decorrem obrigações para a executada Marta (…).

Assim, decorre da transacção estabelecida que o exequente e a executada limitaram-se a acordar:

- “o diferimento da desocupação do imóvel” em causa nos autos, até 31 de Dezembro de 2010, “data em que a executada se obriga a entregar o imóvel ao exequente ou a quem legalmente o representar livre e devoluto de pessoas e bens, com excepção dos móveis que pertencem ao arrendado”.

- e que “ as partes acordam que o valor locativo do imóvel em questão é correspondente ao valor da renda fixada, ou seja €250,00 (duzentos e cinquenta euros) mensais, valor este que a executada reconhece (em) estar em divida, desde Março de 2010 e ser devido até 31 de Dezembro de 2010, data da entrega do imóvel no total de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), quantia essa que a executada se compromete a pagar até ao dia 31 de Dezembro de 2010, data da entrega do imóvel”- ponto III da transacção.

Ou seja, decorre da transacção estabelecida que a executada e o exequente acordaram que a primeira, para além do pagamento de rendas relativas a período anterior, realizaria também o pagamento das “rendas” devidas no alegado período de diferimento acordado, isto é, até 31 de Dezembro de 2010.

Não há, assim, dúvidas que da transacção estabelecida não ficou estabelecida qualquer obrigação para o Recorrido, Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social,

Ora, se isto é assim, não pode também defender-se que essas obrigações possam resultar da sentença que veio a homologar a referida transacção estabelecida entre as partes.

Na verdade, nestes casos, “… a sentença homologatória incorpora, então, as cláusulas do contrato de transacção, como que delas se apropriando, e nessa medida impondo às partes a vinculação ao respectivo cumprimento.

Como se escreveu no ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 25/3/2004 (Proc. 03B4074 ITIJ), a sentença homologatória, “que inicialmente arranca da transacção lavrada no processo (…), acaba assim por ganhar ou adquirir, pelo princípio da absorção, valência a se.

Tal sentença não conhece do mérito da causa, mas chama necessariamente a si a solução de mérito para que aponta o contrato de transacção, acabando por dar, ela própria, mas sempre em concordância com a vontade das partes, a solução do litígio. E, uma vez transitada em julgado, como que corta, e definitivamente, o cordão umbilical que a ligava à transacção de que nascera.

No caso, não vem arguido qualquer vício do contrato de transacção que não seja a insuficiência de forma, nem posta em causa a validade e efeitos da sentença homologatória transitada em julgado” [...] - cf. artºs. 290º e 291º do CPC (nem isso constitui o objecto do presente litígio).

Assim sendo, entende-se que a transacção e a sentença homologatória que sobre ela for proferida poderão constituir título válido e suficiente para, com fundamento nela, serem executadas qualquer uma das obrigações que dela decorram.

Sucede que, no caso concreto, contrariamente ao defendido pelo Recorrente, não decorre do respectivo teor – conforme se julga já ter demonstrado – qualquer obrigação, que tenha ficado estabelecida, que recaia sobre o aqui Recorrido.

Nesta conformidade, fica inevitavelmente afastada a hipótese de a decisão proferida, que ordenou a notificação do Recorrido, ter tido por fundamento a sentença homologatória da transacção, já que desta, como já por mais de uma vez referimos, não decorre a obrigação que constitui o objecto daquela decisão – o que significa que, por esta via, a decisão homologatória proferida não constituía título exequível susceptível de ser dado à execução. [...]

Ora, como já vimos, tendo em conta o teor da transacção aqui estabelecida entre as partes, fica claro que, nem mesmo de uma forma implícita, resulta da mesma, que o aqui Recorrido tenha sido condenado em qualquer prestação patrimonial, nomeadamente, naquela que o Tribunal Recorrido (inicialmente) (e o Recorrente) lhe pretendia(m) imputar - obrigação do Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social de efectuar o pagamento da quantia correspondente às rendas vencidas e não pagas durante o período de diferimento (art. 930º-C do CPC).

Com efeito, e contrariamente ao defendido pelo Recorrente, além dessa obrigação não ter ficado estabelecida na transacção (nem na sentença que a homologou), também não se vislumbra que o Tribunal Recorrido, ao homologar a transacção, se tenha pronunciado sobre os requisitos de que dependeria a intervenção do Recorrido (como já se referiu, o Tribunal ao fazê-lo, não conheceu “do mérito da causa”). Daí que também não se possa aceitar a afirmação do Recorrente de que tal obrigação constará expressamente na transacção (ou seja, que deve ser o “Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social”, a pagar ao Exequente, pelo menos o montante de € 3.000,00 (três mil euros), correspondente aos meses do diferimento da desocupação).

Improcede, pois, esta argumentação.

Aqui chegados, importa verificar se tal obrigação poderá decorrer do segundo nível de apreciação atrás enunciado.

Como se referiu, este segundo nível contenderia com a eventual afirmação da obrigação que alegadamente seria imposta ao Recorrido, por via da verificação dos requisitos do pedido de diferimento da desocupação do imóvel arrendado (cf. art. 930º-C do CPC).

Como é sabido, nos termos deste dispositivo legal (nº 1 e 2), no caso de imóvel arrendado para habitação, o executado, dentro do prazo de oposição à execução, podia requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, desde que alegasse algum dos fundamentos aí previstos (interessando-nos só a al. b)):

“(...) b) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do executado, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego ou de rendimento social de inserção”.

Em tal hipótese, caberia ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social indemnizar o exequente pelas rendas não pagas, acrescidas de juros de mora, ficando sub-rogado nos direitos daquele, devendo a decisão ser-lhe oficiosamente comunicada (n.º 3 do mesmo artigo) [...].

Mas, para tanto, será necessário que seja formulado o correspondente pedido de diferimento da desocupação, sejam apresentadas provas da verificação dos respectivos requisitos e sobre ele incida uma decisão judicial que julgue os pressupostos de que depende o diferimento da desocupação verificados.

Trata-se de decisão que o Tribunal tem de proferir de acordo com um juízo de “prudente arbítrio”, depois de analisados os critérios indicados no citado artigo 930º-C do CPC.

Com efeito, o legislador impõe, nestas situações, que o julgador, perante as provas juntas ao processo - e que devem ser correlacionadas com as circunstâncias mencionadas no n.º 2, alínea b) daquele dispositivo - proceda à respectiva análise, de forma a concluir pela verificação de razões sociais imperiosas que permitiriam o diferimento da desocupação do locado.

Sucede que, no caso concreto, nada disto se verifica.

Com efeito, o diferimento da desocupação ficou estabelecido por transacção das partes (e não por decisão judicial).

Nessa transacção, contrariamente ao que decorreria do regime legal invocado, ficou mesmo estabelecido que, durante o período de diferimento da desocupação, o pagamento das rendas ficava a cargo da executada.

Além disso, como bem intuiu o Tribunal Recorrido, nunca poderiam as partes estabelecer em termos de transacção, sem intervenção do Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, que era esta a entidade que ficaria responsável pelo pagamento daquelas rendas (sem que precedentemente se julgassem verificados os respectivos pressupostos de reconhecimento do pedido formulado).

Aliás, tal obrigação nunca poderia ficar estabelecida por transacção, uma vez que, como decorre do exposto, o seu reconhecimento depende de decisão judicial, onde se reconheça a verificação dos pressupostos legais expressamente previstos no art. 930-C do CPC.

Tal decorre, também, do facto de se tratar de prestações sociais públicas indisponíveis ao eventual acordo das partes, pelo que tal pretensão, a nosso ver, atenta aquela natureza, só poderá ser reconhecida se os aludidos pressupostos forem provados – o que, no caso concreto, obviamente, tendo em conta a transacção estabelecida não ocorreu (a celebração da transacção teve por efeito justamente a desnecessidade de discutir aqueles pressupostos que se mantêm, assim, e aliás, controvertidos – até porque foram expressamente impugnados na contestação).

Nesta conformidade, também por esta via não se pode reconhecer a pretensão do Recorrente, uma vez que, como se referiu, da transacção (e da sentença que a homologou) apenas resulta a obrigação de a executada pagar tais rendas; e, por outro lado, não estava na disponibilidade das partes decidir no âmbito da transacção estabelecida, a imputação de responsabilidades a um terceiro, o identificado Fundo, ainda que tal pudesse decorrer da aplicação do art. 930º-C do CPC (actual, art. 864º do NCPC), uma vez que se verificassem (provassem) os respectivos pressupostos legais.

Nesta conformidade, e sem necessidade de mais alongadas considerações, julga-se totalmente improcedente o Recurso interposto, exactamente com os mesmos fundamentos aduzidos pelo Tribunal Recorrido."

[MTS]

24/07/2019

Jurisprudência 2019 (62)


Juízes de família e menores:
competência executiva


1. Um leitor atento do Blog chamou a atenção para o facto de a solução encontrada em RP 8/3/2019 (6292/06.4TBVNG-B.P1 = Jurisprudência (62)) ser contrariada pelo disposto no art. 129.º, n.º 2, LOSJ, do qual resulta que os tribunais de família e menores têm competência para executar as suas próprias decisões. Sendo assim, o tribunal de família e menores tem competência executiva para a execução da decisão proferida por ele mesmo no processo de inventário.

Salvo melhor opinião, há que dar razão ao leitor do Blog.

2. Desconhece-se o desenvolvimento posterior do processo, mas não é de excluir a verificação de um conflito negativo de competência, dado que não se pode excluir que o juízo de execução venha (ou tenha vindo) a declarar-se incompetente para a execução, precisamente com o argumento de que o tribunal competente é o de família e menores.

3. Note-se que, quanto à interpretação que faz do disposto no art. 85.º CPC, nada há a objectar à RP. O problema é que, ao contrário do que a RP entendeu, o n.º 2 deste preceito não era aplicável ao caso sub iudice. 

MTS


Paper (423)


-- Eidenmueller, Horst G. M., The Rise and Fall of Regulatory Competition in Corporate Insolvency Law in the European Union (SSRN 05.2019)




Jurisprudência 2019 (64)


Presunções judiciais;
poderes do STJ*


I. O sumário de STJ 7/3/2019 (248/17.9T8BRG.G1.S2) é o seguinte:

1. Está fora das atribuições do Supremo, enquanto Tribunal de revista, sindicar o modo como a Relação reapreciou os meios de prova sujeitos a livre apreciação ou fez uso de presunções legais [sic; rectius: judiciais], fora dos estreitos limites do art. 674º, nº 3, do CPC.

2. Em face do art. 27º, nº 1, al. c), do DL nº 291/07, de 21-8, procede a ação de regresso numa situação em que se apurou que o veículo segurado abalroou uma viatura que se encontrava parada e devidamente sinalizada numa via que formava uma reta numa localidade, estando o condutor daquele veículo com uma taxa de 0,92 gr/l e sob influência do álcool, e seguindo a uma velocidade superior a 90 kms/h.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 

"1. O R. insurge-se contra a manutenção na decisão da matéria de facto relacionada com a condução sob alcoolemia, considerando, por um lado, que a colheita de sangue só ocorreu duas horas depois do acidente e, por outro, que, não estando provado o grau de alcoolemia que detinha na ocasião em que ocorreu o acidente, não poderia considerar-se provada, mediante presunção judicial, a existência de um nexo de causal entre o acidente e a alcoolemia.

Pretende, na realidade, que este Supremo Tribunal de Justiça sindique a decisão da matéria de facto que foi enunciada pela 1ª instância e, depois, confirmada pela Relação que para o efeito procederam à apreciação e reapreciação de meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.

No precedente recurso de apelação pretendeu o R. que se considerassem não provados os seguintes factos que a 1ª instância inscrevera na sentença:

- Que o R. conduzia sob o efeito do álcool;

- Que após o embate, foi recolhido sangue ao R., tendo sido detetada a presença de álcool no sangue de 0,92g/litro;

- E que a presença de álcool no sangue causou ao R. perturbação dos reflexos e da coordenação motora, diminuição da atenção e concentração, bem como lentidão na capacidade de reação e perceção, determinando o embate.

Cada um destes factos foi verificado pela Relação que procedeu à reapreciação dos meios de prova produzidos, concluindo, também por via de presunções judiciais, pela sua manutenção.

Tal decisão, na medida em que envolve a formulação de juízos sustentados na livre apreciação dos meios de prova, não está, por regra, submetida a recurso de revista, nos termos do art. 662º, nº 4, do CPC. Por outro lado, atento o disposto no art. 674º, nº 3, são limitados os poderes que o Supremo Tribunal de Justiça detém relativamente à matéria de facto que as instâncias considerem provada e não provada, o que apenas pode ocorrer em casos em que o erro de apreciação das provas decorra da violação de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou que determine a sua força legal.

No aspeto formal, as instâncias procederam à ponderação dos meios de prova que foram produzidos num processo contraditório. Em termos materiais, nenhum dos factos relacionado com a condução sob efeito do álcool estava sujeito a prova tarifada ou resultou do não atendimento de algum meio de prova com valor vinculativo para as instâncias.

Tendo a Relação feito uso de presunções judiciais, não existe motivo para recusar a legitimidade de tal atuação, na medida em que, mais uma vez, se trata de factos que não rejeitam o uso de tal mecanismo decisório.

Ademais, os factos a que o recorrente e reporta nem sequer se enquadram na estreita faixa de situações em que porventura poderia justificar-se a ação cassatória do Supremo Tribunal de Justiça que, segundo a jurisprudência corrente, está reduzida a casos em que a base das presunções não apresenta qualquer logicidade (neste sentido cf. o Ac. do STJ de 4-11-16, relatado e subscrito pelos ora adjuntos, relativamente a um caso de alcoolemia).

No caso, quer a reapreciação dos meios de prova, quer o uso de presunções judiciais inscrevem-se na esfera de influência do princípio da livre apreciação das provas, não havendo razão alguma para sindicar e alterar a decisão da Relação.

Assim, quer o facto de a recolha de sangue ter ocorrido depois do acidente (o que é normal), quer a afirmação de que o R. conduzia sob efeito do álcool e que se verificava um nexo de causalidade entre a alcoolemia existente e o acidente não podem ser objeto de qualquer modificação por parte deste Supremo Tribunal de Justiça.

2. Questiona também o recorrente a interpretação que foi feita do regime jurídico aplicável ao caso. Considera que para que proceda a ação de regresso recai sobre a Seguradora a demonstração de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente, o que não se verificaria em face da matéria de facto.

No caso concreto, provou-se que:

- Momentos antes do acidente ambos os veículos seguiam no sentido ... e o QH encontrava-se parado, junto à berma direita, atento o seu sentido, com os faróis traseiros e dianteiros ligados e com um farolim intermitente ligado sobre o tejadilho, sendo visível a mais de 200 metros;

- O lesado seguia de pé sobre a plataforma traseira do QH, local próprio para o transporte dos trabalhadores que fazem a recolha dos resíduos sólidos urbanos e os introduzem no camião, altura em que o veículo conduzido pelo R embate na parte traseira onde aquele seguia, provocando-lhe as lesões.

- O R. seguia a mais de 90 kms/h, ainda que dentro dos limites da cidade de ..., num local bem iluminado por potentes candeeiros de iluminação pública, junto a um cruzamento e a uma zona comercial, com circulação de peões.

- Depois do acidente foi feita a recolha de sangue no organismo do R., tendo sido detetada a presença de álcool no sangue de 0,92 gr/litro.

- Ademais, o R. conduzia sob o efeito do álcool cuja presença no seu organismo lhe causou uma perturbação dos reflexos e da coordenação motora, uma diminuição da atenção e concentração, bem como uma lentidão na capacidade de reação e perceção, determinando o embate.

*III. [Comentário] O STJ decidiu bem o caso concreto, apesar de ter enunciado mais uma vez a mais que discutível tese sobre a impossibilidade de o STJ controlar as presunções judiciais utilizadas pelas instâncias.

O acórdão contém a seguinte declaração de voto: "Votei o acórdão com fundamento no facto de a Relação ter dado como provada, no uso de presunções judiciais, a verificação de nexo de causalidade". No contexto da decisão e, em especial, da sua fundamentação, a declaração não é totalmente compreensível, mas presume-se que a mesma tenha a ver com a discussão havida entre os subscritores do acórdão.

MTS