"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/02/2019

Bibliografia (778)


-- Brüggemann, N., Die Anerkennung prorogationswidriger Urteile im Europäischen und US-amerikanischen Zivilprozessrecht (Mohr: Tübingen 2019)

-- Centner, B., Iura novit curia in internationalen Schiedsverfahren / Eine historisch-rechtsvergleichende Studie zu den Grundlagen der Rechtsermittlung (Mohr: Tübingen 2019) 

-- Jurczyk, F., Materialisierung des Zivilverfahrensrechts / Der Einfluss schuldvertraglicher Sonderwertungen zugunsten des Schwächeren auf das Erkenntnisverfahren nach der ZPO (Mohr: Tübingen 2019)

-- Tolani, M., Parteiherrschaft und Richtermacht / Die Verhandlungs- und die Dispositionsmaxime im Lichte divergierender Prozessmodelle (Mohr: Tübingen 2019)



Jurisprudência 2018 (186)


Competência material;
questão administrativa; questão prejudicial*

 
I. O sumário de RC 23/10/2018 (458/17.9T8GRD.C1) é o seguinte:

1. A competência material do tribunal afere-se em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida e da natureza das normas que disciplinam a relação jurídica que está na base do litígio.
 
2. No processo declarativo comum, a regra é no sentido de que o tribunal competente para a acção também o é para as questões da competência do tribunal administrativo cuja apreciação se revele essencial para o conhecimento do objecto da acção, caso em que pode o juiz conhecer da questão prejudicial com efeitos circunscritos ao processo ou sobrestar na decisão, até que o tribunal competente - tribunal administrativo - se pronuncie, no prazo e termos do art.º 92, n.ºs 1 e 2 do CPC.
 
3. Se o A. cingiu a eficácia da decisão sobre os pedidos de declaração de invalidade dos actos administrativos à acção que intentou e as questões de índole administrativa conexas apresentam uma incindível ligação de prejudicialidade com o pedido impugnativo que formula, é de considerar que estamos perante questões incidentais de natureza administrativa para cuja apreciação é competente o tribunal comum (n.o 1 do art.º 91º do CPC), cabendo, pois, ao julgador trilhar um dos caminhos apontados pelo art.º 92º do CPC para as solucionar.
 
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"3. Sob o capítulo IV (com a epígrafe “Da extensão e modificação da competência”), do Título IV (“Do Tribunal”) do Livro I (“Da Acção, das Partes e do Tribunal”), prevê-se nos art.ºs 91º e 92º da actual lei civil adjectiva (CPC), relativamente à competência do tribunal em relação às questões incidentais e questões prejudiciais, respectivamente:

O tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa (art.º 91º, n.º 1). A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respectivo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia (n.º 2).

Se o conhecimento do objecto da acção depender da decisão de uma questão que seja da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie(art.º 92º, n.º 1). A suspensão fica sem efeito se a acção penal ou a acção administrativa não for exercida dentro de um mês ou se o respectivo processo estiver parado, por negligência das partes, durante o mesmo prazo; neste caso, o juiz da acção decidirá a questão prejudicial, mas a sua decisão não produz efeitos fora do processo em que for proferida (n.º 2).

4. Sabemos que a competência material do tribunal se afere em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 91 e 95 e os Acórdãos do STJ de 12.01.1994, 22.01.1997, 20.5.1998 e 26.6.2001, in CJ-STJ, II, 1, 38 e V, 1, 65; BMJ, 477º, 389 e CJ-STJ, IX, 2, 129, respectivamente. e que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento/causa de pedir.

Assim, ao determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na alegação do A. e no efeito jurídico pretendido, sabendo-se, como decorre do exposto, que a competência dos tribunais judiciais é uma competência residual, dado que são da sua competência todas as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional, nomeadamente à administrativa. [...]

7. Na actualidade, partindo dos citados art.ºs 212°, n.° 3, da CRP Comentando o n.º 3 do art.º 212º da CRP, dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra Editora, 2º volume, 4ª edição, págs. 566 e seguinte: «Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); 2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal»., e 1°, n.° 1, do ETAF, a competência dos tribunais administrativos e fiscais dependerá da ponderação sobre se se está, ou não, perante pleitos derivados de relações jurídicas administrativas (e fiscais), sendo que só no primeiro caso tal competência se verificará. 

Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa. 

Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que, por via de regra, confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração Vide Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2001, pág. 518.; devem ser consideradas relações jurídicas administrativas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actua com vista à realização de um interesse público legalmente definido. Vide J. C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa - Lições, 3ª edição, 2000, pág. 79. 

8. In casu, em rigor, em causa está tão só aferir se, em razão do pedido deduzido na acção pela apelante e da causa petendi que o alicerça/sustenta, deve a decisão apelada manter-se.

É em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos (causa petendi) em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição (quid disputatum/quid decidendum em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum), que cabe determinar/aferir da competência do tribunal para o conhecimento de determinada acção, sendo para tanto irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão. Vide Manuel de Andrade, ob. cit., Coimbra Editora, pág. 91, citando Redenti; A. Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, pág. 379 e, ainda, entre outros, o acórdão do STJ de 09.7.2014-processo 934/05.6TBMFR.L1.S1, publicado no “site” da dgsi.

9. Assim, e considerado o demais enquadramento normativo aludido em II. 2. e 3., supra, face ao disposto no art.º 92º do CPC, nada impede/obsta a que em sede de tribunal comum seja a questão prejudicial conhecida e decidida - o juiz tem apenas a faculdade de sobrestar na decisão, suspendendo a instância até que tal questão seja decidida pelo tribunal competente (n.º 1), mas estando obrigado a apreciá-la ele mesmo caso se verifique a situação prevista no n.º 2, ainda que, nessa parte, a decisão não produza efeitos fora do processo (cf. n.º 2, in fine, do mesmo art.º).

Ou seja, v. g., se em acção intentada em tribunal comum ou judicial, o conhecimento do respectivo objecto depender de uma questão que seja da competência do tribunal administrativo (como a nulidade de um acto administrativo, sendo que consubstancia também um acto administrativo a concessão pelas Câmaras Municipais de licenças para construção, reedificação ou conservação, bem como para aprovar os respectivos projectos, nos termos da lei - cf. al. a) do n.º 5, do art. 64º, da Lei das Autarquias Locais, aprovada pela Lei n.º 169/99, de 18.9, aplicável à data da prática dos actos Depois alterada, designadamente, pelas Leis n.ºs 75/2013, de 12.9 e 7-A/2016, de 30.3.), inquestionável é que pode o tribunal comum apreciar tal questão (v. g., desconsiderar um acto administrativo, porque nulo), não estando obrigado a remeter as partes para a jurisdição administrativa, e ainda que, forçosamente, a decisão proferida na referida parte se restrinja às partes do processo, não produzindo efeitos fora do processo. O que significa que, se a questão incidental ou prejudicial for da competência do foro administrativo ou criminal, não é possível requerer o seu julgamento com a amplitude da constituição de caso julgado material, pelo que a sua decisão no foro comum apenas tem força obrigatória dentro do processo, remetendo-se para o foro próprio a sua decisão com força de caso julgado material (Cf. também o n.º 2 do art.º 92º do CPC).

A questão incidental (ou prejudicial, porque constitui pressuposto necessário da decisão de mérito) é objecto apenas de conhecimento “incidentaliter tantum” e não “principaliter”, podendo ser objecto de nova acção, embora sem prejuízo da anterior, e, a decisão do juiz e a que alude o n.º 1, do art.º 92º, do CPC, em rigor, está sujeita ao seu prudente arbítrio, integrando um seu poder discricionário. Anotando ou comentando disposição similar dos CPC de 1939 e 1961, vide, entre outros, A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Almedina, 1982, pág. 45; Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora, 1960, pág. 288; J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 170 e, entre outros, os acórdãos do STJ de 29.3.2007-processo 07B764 e de 06.12.2016-processso 886/15.4T8SXL.L1.S1, publicados no “site” da dgsi.

10. Na situação em análise, a causa petendi dos pedidos deduzidos pela A./apelante contra as Rés (nenhuma delas um órgão da Administração e que, ao abrigo de normas de direito público, são autores/agentes de actos administrativos que produzem efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, como v. g. uma Câmara Municipal), e por via principal, apenas demanda a apreciação - pelo julgador - e a aplicação de normas do direito privado, que não público ou de natureza jurídica administrativa.

Ao analisarmos o quid disputatum/quid decidendum da acção intentada pela A., e outrossim os pedidos deduzidos, é evidente que o julgamento do objecto da acção implica a valoração e a aplicação de normas do direito privado, atinentes às circunstâncias e efeitos decorrentes da celebração dos contratos de compra e venda dos autos cuja nulidade se pretende ver declarada - neste enquadramento, o desiderato da acção não envolve a resolução de um litígio emergente de uma relação jurídico administrativa, envolvendo, sim, contratos cujos efeitos jurídicos relacionam-se com a criação/extinção de relação jurídica de natureza real, confinada ao direito civil lato sensu, impondo-se a sua qualificação como sendo de direito privado, que não, de todo, contratos administrativos. O já revogado Código do Procedimento Administrativo/CPA (aprovado pelo DL n.º 442/91, de 15.11), no respectivo art.º 178º, n.º 1, caracterizava o contrato administrativo como sendo o acordo de vontades pela qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa.
Já o actual CPA (aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07.01) define os actos administrativos como as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta (art.º 148º) e refere que Os órgãos da Administração Pública podem celebrar contratos administrativos, sujeitos a um regime substantivo de direito administrativo, ou contratos submetidos a um regime de direito privado(art.º 200º, n.º 1). São contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial (n.º 2). Na prossecução das suas atribuições ou dos seus fins, os órgãos da Administração Pública podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer (n.º 3).

A pretensão da A. reveste natureza civil, pois assenta num litígio travado entre particulares, emergente de contratos de compra e venda de bem imóvel regulados pelo direito privado, e cujo remédio deve ser equacionado, conforme peticionado, à luz do ordenamento de direito privado, sendo que a requerida declaração de nulidade, que implica a aplicação de normas do direito privado, atenta a impossibilidade legal do objecto (art.ºs 280º, 286º e 289º, n.º 1, do CC), relaciona-se com a extinção das relações jurídicas objecto dos mencionados contratos de compra e venda de 09.6.2005 e 19.3.2008, impondo-se qualificá-los como de direito privado e não como contratos administrativos, e a A. alegou, entre o mais, a nulidade da deliberação da CMG de 31.3.2004, que nasce e insere-se no contexto de um litígio de direito civil.

Ademais, a relação jurídica administrativa é vista como uma relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) regulada/disciplinada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Vide, designadamente, Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 9ª Edição, Almedina, pág. 55, (quando considera que na falta de definição legal expressa, prudente é qualificar-se a “relação jurídica administrativa” partindo-se do entendimento do correspondente conceito constitucional, ou seja, no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração) e, de entre vários, o acórdão o do Tribunal de Conflitos de 15.5.2013-processo 024/13, publicado no “site” da dgsi.

11. Assim, em razão da causa petendi invocada pela apelante e que suporta os pedidos que formula na acção, não existe qualquer fundamento pertinente que justifique considerar que o litígio a dirimir na acção intentada se reporta a uma relação jurídica administrativa; acresce que a A./apelante não formula, por via principal, o pedido de declaração de nulidade de quaisquer actos administrativos [v. g., da deliberação da CMG de 31.3.2004, dita, designadamente, em II. 1. i) e ss), supra, e subsequente processo de licenciamento e fraccionamento (destaque) do prédio objecto dos autos], e, coerentemente, não demandou também a autora do acto em causa (como obrigada estava, caso tivesse deduzido um tal pedido) E, como bem se refere na “alegação” de recurso, “a circunstância de ter sido suscitada a intervenção do Município da Guarda não altera o que vem de ser dito, não apenas porque essa intervenção não se alicerçou em qualquer facto que se insira ao conceito de relação jurídico-administrativa, como não foi formulado qualquer pedido contra a chamada que tivesse de alguma forma alterado o objecto privatístico da causa tal como definido pela A. na sua p. i.”., pelo que não existe obstáculo adjectivo a que a questão - porque em rigor incidental e prejudicial do objecto da acção - da nulidade do acto administrativo em causa possa ser apreciada e julgada no Tribunal comum, nos termos do art.º 92º, do CPC, e em razão do disposto no art.º 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF. De resto, diz o n.º 1 do art.º 133º do CPA, então em vigor (aprovado pelo DL n.º 442/91, de 15.11), que são nulos os actos a que falta qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.

Nos termos do art.º 134º, n.º 2 do mesmo diploma, a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou qualquer tribunal, devendo entender-se, como se refere na “alegação” de recurso, que a norma do n.º 2 do art.º 134º do CPA não pode ser interpretada no sentido de dar a qualquer órgão administrativo ou a qualquer tribunal a competência para declarar ´erga omnes` a nulidade de um acto administrativo, mas sim no sentido de que o legislador administrativo pretendeu estender a competência do tribunal comum quando o acto administrativo se apresente como questão incidental, ou seja, quando caia no âmbito da previsão dos art.ºs 91º e 92º do CPC

Estando a decisão a que alude o n.º 1 do art.º 92º, do CPC, sujeita ao prudente arbítrio do juiz, integrando, como vimos, um seu poder discricionário, e sendo que a problemática da nulidade de actos administrativos consubstancia apenas parte da causa petendi do pedido da A., e, de resto, apenas do pedido principal deduzido, e dado que, reafirma-se, a competência dos tribunais judiciais determina-se por um critério residual ou por exclusão de partes (não existindo disposição de lei que submeta a acção à competência intentada pelos AA. a algum tribunal especial, cai ela inevitavelmente sob a alçada de um tribunal judicial), e, por último, porque a questão prejudicial, ainda que da competência do tribunal administrativo, pode ser conhecida/decidida pelo juiz titular da acção (art.º 92º, do CPC), inevitável é concluir-se que o litígio que opõe apelante e apeladas há-de forçosamente ser dirimido (apreciado e julgado) em tribunal judicial ou tribunal comum. Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 09.01.2003, 09.3.2004-processo 04A117 [tendo-se sumariado, nomeadamente: «III – (…) sendo o tribunal da comarca competente, em razão da matéria, para conhecimento da questão principal, será também ele competente para conhecimento das questões conexas, incidentais ou prejudiciais, ainda que para estas, quando isoladamente consideradas, fosse competente o foro administrativo. IV - A decisão dessas questões prejudiciais ou incidentais constitui apenas caso julgado formal.»], 09.7.2014-processo 934/05.6TBMFR.L1.S1 e 06.12.2016-processso 886/15.4T8SXL.L1.S1 [constando da respectiva fundamentação, nomeadamente: «Não é defeso ao demandante, que pretende ver apreciada determinada questão da competência dos tribunais comuns, invocar fundamentos que se relacionam com a competência de outros tribunais. (…) Diferente é saber se, quando essoutros fundamentos são invocados nos tribunais comuns, como no caso, como se atribui essa competência. A resposta deve ser encontrada no art.º 92º do Código de Processo Civil que regula as ´questões prejudiciais` e no art.º 91º que versa sobre a competência do tribunal em relação a ´questões incidentais`.»], da RL de 07.6.2011-processo 5338/09.9TBCSC-A.L1-1, 21.5.2013-processo 117/12.9TVLSB-A.L1-2 e 06.9.2018-processo 4730/16.7T8LSB.L1-2 e da RG de 17.12.2015-processo 1078/14.5T8VCT.G1, publicados, o primeiro, na CJ-STJ, XI, 1, 14 e, os restantes, no “site” da dgsi [sendo que o segundo foi também publicado na CJ-STJ, XII, 1, 110].

12. Assim, porque a A. cingiu a eficácia da decisão sobre os pedidos de declaração de invalidade do(s) acto(s) administrativo(s) à acção que intentou e as questões de índole administrativa apresentam uma incindível ligação de prejudicialidade com o pedido impugnativo que formula, é de considerar que estamos perante questões incidentais de natureza administrativa para cuja apreciação é competente o tribunal comum (n.o 1 do art.º 91º do CPC), cabendo, pois, ao julgador trilhar um dos caminhos apontados pelo art.º 92º do CPC para as solucionar (conhecer da questão prejudicial com efeitos circunscritos ao processo ou sobrestar na decisão, até que o tribunal competente - tribunal administrativo - se pronuncie, no prazo e termos do art.º 92, n.ºs 1 e 2 do CPC). Cf., ainda, designadamente, Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. I, cit., págs. 282 e 287 a 289 e J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 1º, cit., págs. 170 e seguintes e 174 e seguintes e o cit. acórdão do STJ de 06.12.2016-processso 886/15.4T8SXL.L1.S1.

13. Sem quebra do devido respeito por diferente entendimento, existe, pois, uma questão prejudicial de natureza administrativa que tem de ser enfrentada nos termos do art.º 92º do CPC."
 
*III. [Comentário] a) A RC decidiu bem, embora deva ser evitada a confusão entre a extensão da competência para uma questão incidental (regulada no art. 91.º CPC) e a extensão da competência para uma questão prejudicial (regulada no art. 92.º CPC). Questões incidentais e questões prejudiciais são duas coisas completamente diferentes:
 
-- Uma questão incidental é, como o próprio nome indica, algo que não condiciona necessariamente a apreciação do objecto da causa e que, por isso, pode verificar-se numa certa acção e não ocorrer noutra acção; por exemplo: o incidente de habilitação ou o incidente de intervenção de terceiros pode ocorrer numa acção cujo objecto é a condenação na satisfação de um direito de crédito e não ocorrer numa outra acção cujo objecto seja a condenação na satisfação de um outro direito de crédito igual, em espécie e categoria, ao direito da primeira acção;
 
-- Uma questão prejudicial é uma questão que condiciona necessariamente a apreciação de uma questão em qualquer acção que tenha como objecto esta questão dependente; por exemplo: em qualquer acção de alimentos a prestar por um dos progenitores a um filho é questão prejudicial a existência de uma relação de paternidade ou de maternidade entre o demandado e o demandante.

Disto resulta que não há que transpor o que se encontra estabelecido no art. 91.º CPC para as questões incidentais para o que se dispõe no art. 92.º CPC para as questões prejudiciais. 
 
b) O que que se estabelece no art. 92.º CPC, ao estatuir que, em última análise, o tribunal cível pode conhecer de questões prejudicais administrativas ou criminais, mostra que esse tribunal é, na ordem jurídica portuguesa, o tribunal com competência-regra. É isto que justifica que o tribunal cível possa conhecer, em certas condições, de questão prejudiciais administrativas e criminais.

MTS


27/02/2019

Comentário ao acórdão do STJ de 5/2/2019




[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]


Informação (248)


Tribunal dos Conflitos


A Proposta de Lei 181/XIII, que estabelece o regime da resolução dos conflitos de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais, regulando a composição, a competência, o funcionamento e o processo perante o Tribunal dos Conflitos, pode ser consultada aqui aqui (DOC) ou aqui (PDF).


Jurisprudência 2018 (185)


Execução;
abuso do direito*


I. O sumário de RL 15/11/2018 (796/17.0T8OER-A.L1-2) é o seguinte:

1 - Não constitui abuso de direito a instauração pela exequente de acção executiva contra a executada, com apresentação (como título executivo) de documento autenticado que contém um acordo entre as partes, nos termos do qual a executada se confessa e declara ser devedora à exequente da quantia de € 190.000,00, a pagar em três prestações iguais, mensais e sucessivas de € 63.333,33, já vencidas, e apesar de constar desse mesmo documento que “as partes comprometem-se a diligenciar e a envidar todos os esforços de modo a resolver por acordo qualquer litígio ou dúvidas de interpretação que possam eventualmente resultar ou emergir deste ACORDO ou de qualquer uma das respectivas cláusulas nele previstas”, uma vez que a executada não alega que se tenha manifestado qualquer controvérsia entre as partes sobre qualquer questão relacionada com a força executiva desse documento.

2 - Não há litispendência quando o credor, depois de instaurar execução hipotecária, reclama o seu crédito numa outra execução movida por um terceiro, em que foi penhorado o imóvel sobre o qual dispõe da referida garantia hipotecária.

3 - Não constitui fundamento de embargos de executado a circunstância do agente de execução, em execução hipotecária, não ter iniciado a penhora pelo imóvel hipotecado, antes tendo tentado a penhora de direitos de crédito da executada.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Nos termos do disposto no art.º 334º do Novo Código de Processo Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

O excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé ocorre quando o titular do direito viola o princípio da confiança que nele foi depositada pela contraparte, através da prévia aquisição da expectativa de uma conduta de sinal contrário à que se mostra adoptada.

Este sentido interpretativo é aquele que é seguido pela jurisprudência do S.T.J., como no acórdão de 12/2/2009 (relatado por Azevedo Ramos e disponível em www.dgsi.pt), aí se referindo que “no âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara”. E no mesmo acórdão refere-se ainda que “o abuso do direito só deve funcionar em situações de
emergência, para evitar violações chocantes do direito e da justiça”.

Ou seja, e tendo presente o caso concreto, a propositura da acção executiva só se pode classificar como abusiva, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 334º do Código Civil, na medida em que da conduta das partes, aquando da outorga do acordo pelo qual a executada se declarou devedora à exequente da quantia de € 190.000,00, a pagar em três prestações mensais, iguais e sucessivas, com vencimento em 18/8/2015, 18/9/2015 e 18/10/2015, decorra que a exequente criou na executada a expectativa de que não poderia lançar mão da acção executiva para a realização coactiva da obrigação pecuniária em questão, sem que antes diligenciasse e envidasse “todos os esforços de modo a resolver por acordo” a questão do incumprimento da referida obrigação pecuniária.

Mas a contradição entre o conceito de direito à acção executiva (que pressupõe e prevê a existência de título executivo, e que no caso de se tratar de título extrajudicial há-de corresponder ao documento autêntico ou autenticado que importe a constituição ou reconhecimento de uma obrigação perante o credor, como emerge do art.º 703º, nº 1, al. b), do Novo Código de Processo Civil) e o conceito de litígio a resolver por acordo, é patente, afastando a interpretação pretendida pela executada.

É que a referência ao litígio pressupõe a existência de uma controvérsia sobre o direito, só assim sendo possível terminar o mesmo por transacção, através de concessões recíprocas (como decorre da noção de transacção de emerge do art.º 1248º do Código Civil).

Mas estando em causa a constituição de uma obrigação pecuniária pela executada, em documento que reveste todas as características de título executivo, a expectativa de confiança criada para cada uma das partes é que o litígio previsto nesse documento, relativamente ao qual as partes assumem o compromisso de “diligenciar e envidar todos os esforços” para a sua resolução, não pode ser o respeitante a qualquer controvérsia sobre o cumprimento da obrigação pecuniária (ou falta desse cumprimento), e do consequente direito à acção executiva (que assiste à exequente), para realização coactiva da obrigação em questão.

Assim, apresentando a exequente tal documento como título executivo, e não estando alegado pela executada que se tenha manifestado entre as partes qualquer controvérsia sobre qualquer questão relacionada com a sua força executiva (e desde logo não correspondendo à verdade a afirmação constante no ponto (i) da conclusão A) da sua alegação, no sentido de ter alegado na P.I. dos embargos que “não existiu qualquer contacto prévio da Exequente no sentido da resolução amigável de litígio emergente do não cumprimento tempestivo das obrigações pecuniárias assumidas pela Executada no mencionado “Acordo de Cessação do Contrato de Associação em Participação””), não se vê como é que a conduta da exequente é susceptível de ser caracterizada como excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, desde logo porque não se assume como violadora de qualquer princípio da confiança que haja sido em si depositada pela executada, no sentido de não haver lugar à demanda executiva em caso de incumprimento da obrigação pecuniária constituída no referido documento autenticado (sem que antes a exequente dialogasse consigo).

E sendo, para tanto, irrelevante, a existência (ou não) de tentativas da exequente no sentido da quantia exequenda lhe ser paga pela executada, não só porque tal não demonstra a existência de qualquer controvérsia sobre o direito de acção (executiva) da exequente, como porque as características da obrigação pecuniária constituída pela executada (designadamente o prazo certo de cada uma das prestações) dispensavam qualquer interpelação para cumprimento.

O que equivale a afirmar que, nesta parte, improcedem as conclusões do recurso da executada, não havendo que fazer qualquer censura à sentença recorrida, na parte em que afirmou não se verificar a invocada excepção do abuso no exercício do direito de acção da exequente."

III. [Comentário] Em anotação muito recente a um acórdão (Jurisprudência 2018 (184)), houve a oportunidade de deixar algumas reflexões sobre a necessidade de distinguir entre o exercício abusivo de um direito em processo e o abuso dos meios processuais (necessariamente reconduzível a uma situação de litigância de má fé).

Cabe salientar que a RL coloca correctamente o problema: o que estava em causa era efectivamente um eventual exercício abusivo do direito de crédito, não um uso abusivo do processo.

MTS


  

26/02/2019

Pode a compensação ope judicis ser motivo de suspensão da execução por efeito do recebimento dos embargos do executado?



[Para aceder ao texto clicar em J. H. Delgado de Carvalho]

 

Jurisprudência 2018 (184)


Revelia; efeitos;
abuso do direito; abuso do processo*

1. O sumário de RP 22/10/2018 (528/11.7TVPRT.P1) é o seguinte: 

I – A revelia operante tem por efeito a confissão dos factos articulados pelo autor, tal como estabelece o art.567.º/1, in fine, CPC. Tratando-se de um facto, a primeira caraterística ontológica que lhe assiste é evidente: o facto é. Ou se verifica, ou não. O «dever existir» está afastado do campo dos factos, por ser pertinente à valoração que se faz do facto.
 
II - Se na petição inicial, o autor alega uma hipótese («o réu sabia ou devia saber»), essa alegação não se torna num facto certo da vida real pelo silêncio do réu e consequente confissão ficta.
 
III - A boa-fé civil não tem apenas efeitos no campo substantivo mas também no campo processual, aí impedindo e sancionando o abuso de direito de ação, mormente por via da responsabilidade civil extracontratual.
 
IV – O abuso de direito no campo processual, numa perspetiva macroscópica, pode aferir-se tendo em conta, designadamente, os seguintes índices: - o exercício gratuito do direito com o único e manifesto propósito de negar interesses dos outros, revelando-se, em contrapartida uma falta de interesse objetivo para o exercente (ex. a vingança e a pura finalidade de prejudicar terceiros);- a afirmação de interesses próprios mas em que se patenteia uma lesão ponderosa (mas de todo escusada) de interesse alheio (ainda que não dolosa); - o exercício do direito desviado do interesse que lhe é imanente e que justificou a sua atribuição, sendo abusiva qualquer situação subjetiva processual que se desvie manifestamente desse interesse;- a ação por má vontade ou para pressionar o lesado (ex., a ação sem fundamento relativa a um imóvel e registo da mesma, com isso podendo impedir a comercialização do imóvel, causando danos em cadeia); - o pedido manifestamente vexatório ou desprovido de qualquer propósito real.
 
V – A tutela judicial efetiva, na área do urbanismo e no quadro das chamadas relações jurídicas poligonais, acha-se especialmente reforçada, em moldes semelhantes ao que a lei prevê para o consumidor.
 
VI - Uma situação de significativo desequilíbrio entre as partes (um particular comum de um lado, o município e uma grande empresa do setor imobiliário, do outro) impõe que na concretização do que seja abuso de direito se considere o fim económico e social do direito exercido, visando restabelecer um certo equilíbrio de posições, tanto quanto possível, à semelhança do que ocorre, por exemplo, quando se reconhece a vulnerabilidade do consumidor.
 
VII – Não é abusiva, mormente pela pretensa criação de danos patrimoniais prolongados, a ação administrativa proposta por particular contra o município e empresa promotora imobiliária, quando aquele se considera afetado por um ato de licenciamento a favor desta dirigido à construção de edifício com área de mais de 18.000 m2, e considerando ser tal ato ilegal, segundo fundamentos que expressa, tendo previamente falhado na tentativa de compor extrajudicialmente os seus interesses, ainda que registe a ação e não logre obter vencimento da causa administrativa.
 
VIII- Para efeitos de aplicação do disposto no art. 6.º, n.º7 RegCP (dispensa do pagamento remanescente da taxa de justiça), não pode deixar de se considerar de especial complexidade uma ação de natureza cível cuja finalidade reside na avaliação dos pedidos e causa de pedir apresentados perante a jurisdição administrativa em ordem a verificar se comportam abuso de direito de ação quando tal ponderação implica análise dos articulados apresentados naquela jurisdição, das decisões proferidas em primeira e segunda instâncias, no Supremo Tribunal Administrativo e, também, no Tribunal Constitucional, além da verificação dos institutos jurídicos convocados naquela ação de natureza administrativa.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O réu, mais do que ter o direito, tem o ónus de contestar a ação, na medida em que a revelia (sendo operante) produz efeitos que lhe são desfavoráveis. Por isso mesmo é que uma das informações a transmitir ao réu aquando da sua citação respeita às cominações em que incorre em caso de revelia (art.227.º/2, in fine e art.563.º).
 
A revelia operante tem por efeito a confissão dos factos articulados pelo autor, tal como estabelece o art.567.º/1, in fine, sendo que este regime tem lugar quando o réu, apesar de não contestar, tenha sido ou deva considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa, ou, pelo menos, haja juntado procuração a mandatário judicial, no prazo da contestação. O efeito deste comportamento omissivo do réu é a chamada “confissão tácita ou ficta” [A solução do nosso sistema jurídico, comum à do direito alemão, não é a acolhida, por ex., na Itália, Espanha e França, onde o silêncio do réu opera como oposição ou contestação tácita – vide Miguel Mesquita, A revelia no processo ordinário, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, p. 1093]. 

Tal confissão distingue-se da confissão judicial expressa, que consiste numa declaração de ciência, através da qual se reconhece um fato cuja prova pertence à parte contrária (art.355.º ss). Por sua vez, a confissão a que conduz a revelia operante não depende de qualquer declaração nesse sentido, bastando a própria inércia do demandado. 

Nos termos legais, não tendo o réu contestado e considerando-se confessados os factos alegados pelo autor, restará apenas decidir a causa “conforme for de direito” (art.567.º/2, in fine). Com efeito, confessados que passam a ter-se os factos articulados na petição, deixa de haver controvérsia nessa sede, limitando-se a questão à valoração jurídica desses mesmos factos. Cumpre ressalvar que o estado de revelia operante em que se encontra o réu não conduz, sem mais, à procedência da ação. É isto que mostra o art.567.º/2, in fine

Propondo a ação, o autor formulou determinada pretensão de tutela jurisdicional e fê-lo por referência ao quadro fatual que verteu na PI. A operância da revelia leva a que se assuma como que verificado nos autos esse quadro fatual, mas não mais do que isso. Continua o juiz a ter de julgar a causa “conforme for de direito” e tal julgamento tanto pode conduzir à procedência da ação como não. Daí que se fale no efeito cominatório semi-pleno associado à revelia operante. Se o réu não contestar e a lei (art.364.º CC) ou as partes (cfr. art.223.º CC) exigirem documento escrito como forma ou prova de um negócio jurídico alegado na petição inicial e o autor não tiver junto esse documento aos autos, a falta de contestação não supre a falta daquele. Ou seja, os factos que só por via do documento possam ser demonstrados não são considerados confessados (cfr. art.568.º/d). 

A revelia não produz efeitos quando se trate de factos para a prova dos quais se exija documento escrito. Se por lei (art.364.º CC) ou por convenção das partes (art.223.º CC) for imposta determinada forma para a emissão de declarações negociais, a lei de processo não pode permitir que a eventual falta de contestação conduza a um resultado contrário ao exigido pela lei substantiva ou pela convenção. Tenha-se em atenção que, neste caso, a inoperância da revelia é mais restrita do que nos anteriores. Quer dizer, por princípio, a falta de contestação implica a confissão de todos os factos articulados pelo autor, nos termos do art.567.º/1, salvo daqueles que, efetivamente, careçam de prova documental para a sua demonstração. Em caso de não impugnação também não se consideram assentes os factos que só podem ser provados por documento escrito (cfr. art.364.º CC) – art.574.º/2.

No que tange à terceira exceção (factos para cuja prova se exija documento escrito), à revisão do art.574.º/2 subjaz um fundamento em tudo equivalente à do art.568.º/d para o efeito cominatório da revelia: em matéria de declaração negocial, rege o princípio da consensualidade ou da liberdade de forma (cfr. art.219.º CC); porém, em diversas situações, a lei exige, sob pena de nulidade (cfr. art.220.º CC), o mero documento particular escrito (simples ou autenticado) ou outra forma ainda mais solene para a celebração (validade e forma) de certos negócios jurídicos (requisito ad substantiam ou mesmo ad constitutionem).

A revelia tem por pressuposto a vontade de não contestar. Se essa vontade estiver ausente, o sistema tem inconvenientes, de modo que “não pode o julgador aceitar passivamente afirmações inverosímeis, nem deve desprezar elementos probatórios contrários aos fatos deduzidos na inicial” [Bedaque, citado por Miguel Mesquita, cit., p. 1096].

Impõe-se fechar as considerações de direito acerca da confissão ficta com a referência ao que é um fato. Fato é todo o ato humano ou acontecimento natural. Será jurídico se a lei lhe atribuir um efeito jurídico.

Tratando-se de um fato, a primeira caraterística ontológica que lhe assiste é evidente: o fato é! Ou se verifica, ou não. O dever existir está afastado do campo dos factos, por ser pertinente ao dever ser ou à valoração que se faz do fato que existe ou não existe. Dito de outro modo: ou A fez ou não fez. Se não fez e devia ter feito, fato é que não fez e devia ter feito, e esta é a apreciação que podemos fazer sobre esse fato. Do mesmo modo, ou A sabia ou devia saber. Se sabia, é um fato; se não saia também é um fato; se devia saber, já pertence ao campo do dever ser e é, por isso, uma apreciação valorativa que pode ser jurídica ou não consoante a lei atribua ou não efeitos à ignorância.

Assim, quando a A. alega que os RR. sabiam ou deviam saber, o que se passa é o seguinte: não se trata de uma alegação de um fato, mas da invocação de uma hipótese que está destacada pela disjuntiva ou. 

Na verdade, ou uma coisa ou outra: ou os RR. sabiam ou não sabiam (caso em que se diz, deviam saber). 

A hipótese (ou suposição) que assim se coloca é convertida em fato real (sabiam?/não sabiam?) pela prova resultante da confissão ficta? Claro que não! O que nasce como hipótese não se torna num fato certo da vida real pelo silêncio de outrem."


*3. [Comentário] a) Não é possível avaliar o acórdão da RP sem deixar um apontamento crítico.

Antes do mais, não é facilmente compreensível o que se afirma no acórdão quanto à negação da confissão ficta, resultante de uma revelia operante (art. 567.º, n.º 1, CPC), relativamente à alegação pelo autor de que o réu sabia ou devia saber algo. A pergunta que se coloca é esta: se esse conhecimento ou dever de conhecimento integrar a previsão de uma regra jurídica, deve considerar-se que esta previsão não está preenchida pela circunstância de esse conhecimento ou dever de conhecimento decorrer de uma confissão ficta resultante de uma revelia operante? 

Para o caso de se considerar -- como fez a RP -- que deve ser fornecida uma resposta afirmativa à resposta anterior, uma outra se coloca de imediato: se não há confissão ficta sobre esse conhecimento ou dever de conhecimento, então quando é que a parte autora pode procurar realizar a prova desse conhecimento ou dever de conhecimento? A resposta é: em momento algum da tramitação do processo, porque, recorde-se, se a revelia for operante, salta-se imediatamente para a fase da sentença (art. 567.º, n.º 2, CPC).

Disto só pode resultar que a revelia operante do réu não pode deixar de considerar adquirido para o processo tudo o que o autor tenha alegado e seja relevante, como facto jurídico, para o preenchimento de uma previsão legal. Isto vale necessariamente para um alegado conhecimento ou dever de conhecimento do réu.

Em suma: a posição assumida pela RP quanto à exclusão da confissão ficta não parece ter sustentação possível no direito positivo.

b) A RP faz, no seu acórdão, algumas considerações sobre o "abuso de direito de acção judicial".

A primeira observação que importa fazer é que, ao contrário do que muitas vezes se faz, importa distinguir claramente os casos em que há um exercício abusivo de um direito em juízo daqueles em que existe um abuso dos meios processuais. O primeiro caso é, nitidamente, um caso de abuso do direito que é sancionado pelo art. 334.º CC, pois que é irrelevante que esse abuso ocorra em juízo ou fora dele. Por exemplo: um venire contra factum proprium constitui um abuso do direito, seja ele praticado extraprocessualmente ou numa acção pendente. 

Se o venire for praticado num processo pendente, este processo é apenas o ambiente em que ocorre o abuso do direito. O que há é, por isso, o exercício abusivo de um direito, não o abuso do processo. É, aliás, por isso que esse exercício abusivo conduz à improcedência da causa com fundamento no disposto no art. 334.º CC, não a uma sanção processual.

Esta observação tem importância para o caso concreto. Recorde-se que o que está em causa na presente acção é saber se a alegação da nulidade de um acto administrativo que licenciou uma construção é abusiva. Como é claro, para determinar o carácter abusivo ou não abusivo dessa alegação é completamente irrelevante o meio através do qual essa alegação é feita. Dito de outro modo: o que se pode discutir é se a alegação é abusiva em si mesma, independentemente do meio processual ou extraprocessual que é utilizado para a sua produção.

Portanto, o que podia ser discutido nesta acção era o carácter abusivo dessa alegação; a circunstância de essa alegação ser produzida em juízo não lhe retira o eventual carácter abusivo, nem atribui carácter abusivo ao uso dos meios processuais. Não há nenhum abuso dos meios processuais, mas antes um eventual abuso da alegação nos tribunais da nulidade do licenciamento. O que pode ser abusivo é o acto em si mesmo, não o uso do meio através do qual o acto é praticado. 

É por isso que, no caso concreto, não tem sentido averiguar se existiu um abuso da acção (no sentido de abuso dos meios processuais), mas apenas analisar se a alegação da nulidade do licenciamento pode ser considerada abusiva. Aliás, a própria RP é bastante explícita em acabar por reconhecer isso mesmo:

"[...] a propositura da ação administrativa em 2010, quando os então AA. se achavam prejudicados, não se desvia do escopo globalmente considerado: a reposição do statu quo ante (ou a indemnização sucedânea que é atribuída quando aquele não pode ser alcançado, máxime quando é demasiado oneroso para o obrigado).

Abuso de ação existiria se a parte, ao propor a ação, pretendesse (direta ou indiretamente) algo que se desviasse excessivamente da finalidade dessa ação e da justa composição do litígio. Não sucede assim quando se verifica que o particular se vê afetado por um ato de licenciamento de uma construção manifestamente volumosa que considera ser ilegal, tendo previamente falhado na tentativa de compor extrajudicialmente os seus interesses." 


Noutros termos, recorrendo às próprias palavras da RP: 

-- Não faz sentido verificar o abuso da acção, porque a parte nada fez para evitar a justa composição da lide, isto é, não fez nenhum uso anómalo do processo;

-- Faz sentido discutir se houve abuso na alegação da nulidade do licenciamento urbanístico, mas há que concluir pela inexistência de qualquer abuso, porque o particular foi afectado por um acto de licenciamento de uma construção manifestamente volumosa que o mesmo considera violar o PDM.

Portanto, o que a RP acabou por reconhecer foi que a alegação da nulidade do licenciamento não é abusiva.

c) Questão distinta das situações em que se verifica o exercício abusivo de um direito em processo é a de saber qual o âmbito do abuso do processo ou dos meios processuais. Alguma doutrina -- e, segundo parece, também o acórdão da RP -- entende que o abuso do processo é independente da litigância de má fé.

A esta orientação, parece ser preferível aquela que considera que o abuso do processo não tem autonomia perante a litigância de má fé. A pergunta que, neste contexto, cabe fazer é a seguinte: é pensável um abuso do processo que não seja reconduzível ao disposto no art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC, isto é, ao uso manifestamente reprovável do processo? 

Pode responder-se: sim, porque, ao contrário do abuso do direito, a litigância de má fé pressupõe o dolo ou a negligência grade da parte (art. 542.º, n.º 1, CPC). Cabe, no entanto, perguntar: é imaginável que o uso reprovável do processo não resulte, pelo menos, de uma negligência grave? Em concreto: é pensável que a parte que propõe sucessivas acções, que dirige sucessivas reclamações ou que interpõe sucessivos recursos não actue, pelo menos, com negligência grave? A resposta parece impor-se: ninguém imagina que alguém proponha várias acções, dirija várias reclamações ou interponha vários recursos apenas por mera negligência ou mesmo sem nenhuma negligência, isto é, apenas abusando dos meios processuais.

Esta resposta não deixa, no direito português (e é apenas deste se que se está a tratar), nenhum espaço para o abuso do processo. Dito de outro modo: não há abuso do processo ou dos meios processuais que não seja subsumível à litigância de má fé pelo uso indevido dos meios processuais.

d) Na ordem jurídica alemã, o problema merece uma solução completamente diferente (cf., por último, Leidner, Rechtsmissbrauch im Zivilprozess (2019)). Mas isso sucede porque na ZPO nada há de semelhante ao disposto no art. 542.º CPC.
 
MTS