"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/05/2022

Jurisprudência constitucional (211)


Apoio judiciário;
dispensa do pagamento da taxa de justiça

-- TC 6/4/2022 (278/2022) DR 104/2022, Série II de 2022-05-30, decidiu o seguinte:

Julga inconstitucional a norma contida nos artigos 8.º, 8.º-A, 8.º-B e anexo da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e 12.º e anexo iv da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de agosto, interpretados no sentido segundo o qual a insuficiência económica demonstrada pelo requerente do benefício do apoio judiciário não lhe permite obter o benefício da dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, mas apenas o respetivo pagamento faseado, quando o rendimento mensal disponível é substancialmente equivalente ao valor da taxa de justiça inicial a suportar no processo e o valor da prestação mensal a suportar na modalidade de pagamento faseado tem como consequência uma diminuição do rendimento mensal líquido do beneficiário para um valor inferior ao da remuneração mínima mensal garantida.


Jurisprudência constitucional (210)


Processo penal; medidas de coacção;
Inutilidade superveniente da lide

-- TC 26/4/2022 (277/2022), DR104/2022, Série II de 2022-05-30, decidiu o seguinte:

Julga inconstitucional a norma contida no artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de considerar supervenientemente inútil o recurso de decisão que aplicou medidas de coação não privativas de liberdade, por força da sua extinção temporal ou revogação na pendência do recurso.



Jurisprudência 2021 (208)


Recurso de revisão; fundamentos;
falsidade de depoimento; documento novo


1. O sumário de RL 21/10/2021 (57/14.7 T8PTS-A.L1-8) é o seguinte:

- No que respeita ao fundamento previsto na al. b) do artº 696º do CPC são requisitos substantivos (cumulativos) do recurso de revisão, que a falsidade do meio de prova não tenha sido objeto de discussão no próprio processo e que tenha determinado a decisão a rever (nexo de causalidade adequada).

- Se na decisão a rever o depoimento da testemunha que se reputa de falso foi valorado em conjugação com os depoimentos de outras testemunhas, com o teor de documentos, teor do relatório pericial, esclarecimentos escritos dos peritos e inspeção ao local, impõe-se concluir que aquele depoimento não foi determinante para a decisão revidenda, nada permitindo concluir que sem este meio de prova a decisão teria sido diversa. A não verificação do nexo de causalidade adequada exigido é causa de improcedência do recurso.

- A revisão fundada em documento pressupõe a novidade na vertente objectiva – o documento foi fabricado em data posterior à sentença a rever – ou subjectiva - o documento já existia, mas o recorrente estava impossibilitado de dele se servir, ou porque desconhecia a sua existência e/ou porque a falta da sua apresentação não lhe é imputável. Na vertente subjectiva, recai sobre o recorrente um ónus acrescido no sentido de alegar e provar que diligenciou pela obtenção do documento e que a impossibilidade da sua apresentação não lhe é imputável.

- Se os documentos que servem de fundamento à revisão carecem de ser conjugados com outros meios de prova (documentos ou depoimentos de testemunhas) significa que não são suficientes para por si só alterarem a decisão revidenda em sentido mais favorável ao recorrente.

- Sendo os documentos pré-existentes à acção declarativa cuja sentença se pretende rever – e tendo a quase totalidade sido junta nessa ação -, os quais se encontravam depositados/arquivados em tribunais (ou arquivos públicos), cartórios notariais, serviços de finanças, cujo acesso era permitido aos recorrentes na pendência da acção declarativa, carecem, em absoluto, do requisito da novidade.



2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Os recorrentes invocaram a falsidade do depoimento da testemunha R..

No que respeita ao fundamento previsto na al. b) do artº 696º do CPC são requisitos substantivos (cumulativos) do recurso de revisão, que a falsidade do meio de prova não tenha sido objeto de discussão no próprio processo e que tenha determinado a decisão a rever (nexo de causalidade adequada).

Conforme sublinhado no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10/01/2019, disponível em www.dgsi.pt, “o art. 696º, nº 1, b) CPC exige verificação cumulativa dos seguintes requisitos: A alegação da falsidade; a alegação de que a sentença cuja revisão se pede tenha sido determinada por essa falsidade, ou seja, que o acto falso tenha “determinado a decisão a rever” (nexo de causalidade adequada) e a alegação de que a falsidade não tenha sido discutida no processo em que foi proferida a sentença.”

No requerimento de recurso não vem alegado, como se impunha, em que data tiveram os recorrentes conhecimento da invocada falsidade, omissão que foi arguida pelos recorridos, na resposta. Os recorrentes apenas na sequência da notificação ordenada pelo tribunal de 1ª instância para as partes se pronunciarem sobre a caducidade alegada pelos recorridos nos artigos 4º e 5º da resposta vieram afirmar que tiveram conhecimento da falsidade em final de novembro de 2015.

A omissão total dessa alegação no requerimento do recurso tem efeito preclusivo.

Ainda que fosse de considerar a tempestividade do recurso, nesta parte, importa sublinhar que os recorrentes alegaram que o depoimento da testemunha foi fundamental para a decisão tomada.

“(…) a revisão só tem razão de ser quando se reconheça que a prova inquinada de falsidade foi causa determinante da decisão. Pode não ter sido a causa única e exclusiva, como já observámos; mas é indispensável que se adquira a segurança de que, sem a prova incriminada a decisão teria sido diversa. (…) Em caso de dúvida está indicado que o tribunal não admita a revisão ou julgue improcedente o fundamento; a homenagem ao caso julgado impõe essa atitude.” [Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. VI, pág. 351]

Analisada a decisão revidenda impõe-se concluir em sentido diferente do alegado e do exigido pelo artº 696º, al. b).

Com efeito, na decisão a rever o depoimento da referida testemunha foi valorado em conjugação com os depoimentos das testemunhas Maria A., José …, José P., Maria R. e João H., com o teor dos documentos juntos aos autos, mormente a fls. 8 e ss., 38 e ss., 674 a 687, 696 e ss., teor do relatório pericial de fls. 533 e ss. e documentos que o integram, como fotografias, levantamentos topográficos e mapa cadastral, esclarecimentos escritos dos peritos de fls. 601 a 607, esclarecimentos de perito no local, inspeção ao local e fotografias ali obtidas na ocasião, - o que resulta cristalinamente da extensa fundamentação da decisão de facto efetuada pelo Tribunal de 1ª instância e por este Tribunal da Relação, em sede de impugnação da decisão de facto, cujo trecho reproduzimos na alínea B) da factualidade provada e para o qual remetemos. [...]

*

Os recorrentes fundam, ainda, o presente recurso em documentos que juntaram.

Para verificação do fundamento enunciado na alínea c) do artº 696º do CPC exige-se a novidade do documento e que o mesmo seja, por si só, suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

A revisão fundada em documento pressupõe a novidade na vertente objetiva – o documento foi fabricado em data posterior à sentença a rever – ou subjetiva – o documento já existia, mas o recorrente estava impossibilitado de dele se servir, ou porque desconhecia a sua existência e/ou porque a falta da sua apresentação não lhe é imputável. Na vertente subjetiva, recai sobre o recorrente um ónus acrescido no sentido de alegar e provar que diligenciou pela obtenção do documento e que a impossibilidade da sua apresentação não lhe é imputável.

“Pelo requisito da suficiência exige-se que o documento, em si mesmo considerado (de per se), seja dotado de uma força probatória tal, que conduza o juiz à persuasão de que só através dele, a causa poderá ter solução diversa daquela que teve, não cumprindo este requisito o documento que apenas em conjugação com outros elementos de prova produzidos, ou a produzir, poderá modificar a decisão transitada em julgado.

Pelo requisito da novidade exige-se que o documento não tenha sido produzido no processo em que foi proferida a decisão que se pretende rever, seja porque os factos a que se reporta esse documento são historicamente posteriores ao momento em que esse documento podia ser junto àquele processo (superveniência objetiva), seja porque embora se reporta a factos ocorridos historicamente em momento anterior, o recorrente desconhecia, por motivo que não lhe é imputável, a existência desse documento (superveniência subjetiva), sendo que, nesta último caso, o recorrente terá de alegar e provar que esse desconhecimento não lhe é imputável.” [Ac. RG de 07/03/2019, www.dgsi.pt]

“Podem figurar-se três hipóteses: 1ª O documento já existia, mas a parte não tinha conhecimento dele; 2ª O documento já existia, a parte sabia da existência dele, mas não teve possibilidade de o obter; 3ª O documento ainda não existia: formou-se posteriormente ao termo do processo anterior.

Na 1ª hipótese é evidente que a revisão tem fundamento. Desde que a parte ignorava a existência do documento, é claro que não podia tê-lo produzido. O documento reveste a feição de documento superveniente (…).

Mas surge uma dúvida. Suponhamos que a parte não teve notícia da existência do documento por incúria sua, porque não procedeu às diligências naturalmente indicadas para descobrir o documento. Quando isso suceda, deve concluir-se que a parte não tem direito à revisão; se não teve conhecimento do documento foi porque não quis tê-lo; é-lhe imputável, portanto, o não uso do documento. Ora na base do n.º 3 está este pensamento: a revisão só é admissível quando não possa imputar-se à parte vencida a falta de produção do documento no processo em que sucumbiu.

Na 2ª hipótese também a revisão tem razão de ser. Se a parte empregou todos os esforços que estavam ao seu alcance para obter o documento e não conseguiu o seu desideratum, verifica-se a impossibilidade que justifica a revisão (…).

Restam dois casos: 1) a parte sabia da existência do documento, mas ignorava o seu paradeiro; 2) o documento estava em qualquer cartório, repartição ou arquivo público. No 1º caso é óbvia a impossibilidade de apresentação do documento, pelo que deve admitir-se a revisão. No 2º caso não pode, em princípio, invocar-se o n.º 3 do art. 771º. Se o original do documento estava depositado em cartório, arquivo ou repartição pública, devia a parte ter requerido uma certidão e juntá-la ao processo. Por isso é que Schönke entende que não pode, no caso referido, requerer-se a revisão. (…)

Voltamos a acentuar: o que é essencial é que não seja imputável à parte vencida a não produção do documento no processo anterior” [...]. [Alberto dos Reis, ob. citada,, vol. VI, pág.354-355]

“Não servem, pois, as certidões para demonstrar a tempestividade do recurso, sendo certo que impendia sobre o recorrente o ónus de alegar e provar a mesma.

Para além disso, importa referir que não podem os documentos ser aceites como fundamento de revisão a maioria, uma vez que o recorrente não alegou que não podia deles fazer uso antes do encerramento da audiência de discussão e julgamento, nos termos do disposto no art. 523.º, n.º 2, do CPC anterior, ou do art. 423.º, n.º 2 e 3, do atual CPC, como antes é seguro que o podia fazer. Como se refere no acórdão do STJ de 19 de dezembro de 2018, processo 179/14.4TTVNG-B.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt, “se esse documento for anterior à decisão a rever, igualmente não se verifica o requisito da novidade se o recorrente não alegar, como é seu ónus, que o seu não conhecimento e a sua não apresentação no processo em que sucumbiu não lhe pode ser imputável, designadamente por falta de diligência na preparação e na instrução da ação.” [...]

Mas, note-se que já não ocorre o preenchimento deste requisito, no caso em que os documentos apresentados para fundamentar a revisão, são anteriores à instauração da ação e o recorrente não tenha alegado, como era seu ónus, que o não conhecimento e a não apresentação dos documentos no processo em que saiu vencido, não lhe pode ser imputável, designadamente, por falta de diligência na preparação e instrução da ação.

É assim um ónus da parte que apresenta um recurso extraordinário de revisão, alegar e provar que não só não tinha conhecimento do documento, como esse desconhecimento não lhe era imputável, no sentido de não lhe ser exigível. (…)” [Ac STJ de 08/06/2021, www.dgsi.pt. No mesmo sentido Ac. STJ de 19/12/2018 e Ac. RG de 07/03/2019www.dgsi.pt]

Os recorrentes, pese embora tenham junto 14 documentos, identificam como novos, para efeitos da alínea c) do artº 696º do CPC, os documentos nºs 4, 10, 10-A, 11 a 13.

Apenas na pronúncia à resposta dos recorridos alegaram ter obtido os “novos” documentos nas datas neles constantes.

Na audiência prévia, instados a esclarecer a data da obtenção dos documentos, afirmaram ter sido na “data referida nas respetivas certidões, com exceção do documento n.º 10, tendo este sido levantado em data posterior.”

Notificados expressamente para se pronunciarem sobre a caducidade do direito ao recurso arguida pelos recorridos, alegaram que os documentos novos foram obtidos na data neles aposta, e “o conhecimento dos seus conteúdos ocorreu após ler/estudar o conteúdo das certidões”.

Os recorrentes não justificaram o fundamento da junção dos documentos nºs 1 a 3, 5 a 9. Dado o tipo de documentos em causa - certidões de “registo de batismo”, certidão de casamento e certidão de descrição predial, certidões notariais de escrituras de habilitação de herdeiros e de partilha - a sua junção tem em vista a apreciação conjuntamente com os demais, ditos novos, para deles serem retiradas as ilações pretendidas pelos recorrentes.

“Segundo o Ac. do STJ de 11/09/2007, 07A1332, www.dgsi.pt, não preenche este fundamento do recurso de revisão a apresentação de documentos que apenas em conjugação com outros elementos de prova produzidos, ou a produzir em juízo, poderiam modificar a decisão transitada em julgado e que, além disso, poderiam ter sido obtidos na pendência da ação de que emerge a sentença revidenda. No mesmo sentido cf. Acs. do STJ de 20/03/2014, 2139/06 e de 07/04/2011, 1242-L/1998, www.dgsi.pt” [Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, nota 732, pág. 499]

Os documentos nºs 1 a 3, 5 a 9 não deviam ter sido apresentados com o recurso e não podem ser atendidos. Mas outra ilação se retira, em conformidade com a jurisprudência citada, a de que os documentos nºs 4, 10, 10-A, 11 a 13 não são suficientes para por si só alterarem a decisão revidenda em sentido mais favorável aos recorrentes, sendo necessário, desde logo na ótica dos recorrentes, compaginá-los com os documentos nºs 1 a 3, 5 a 9 e também com a invocada falsidade do depoimento da testemunha Rosa S.. Tanto bastaria para afastar o requisito da suficiência dos documentos. [...]

Os recorrentes não alegaram qualquer facto que os impossibilitasse de aceder aos mesmos na pendência da ação em que foi proferida a decisão revidenda, sendo irrelevantes as datas de emissão das respetivas certidões.

Acresce que na ação declarativa foram juntos, além do mais, os documentos discriminados nas alíneas D), E) e F) dos factos provados que correspondem, na quase totalidade, aos documentos nºs 10, 10-A, 11 a 13.

Os recorrentes tinham a obrigação de diligenciar pela obtenção dos elementos probatórios pertinentes à sua pretensão/tese a fim de instruir aqueles autos.

“Se os documentos em que se fundamenta o pedido de revisão puderem ser obtidos através de certidões, sobre o requerente incumbia o ónus de instruir o processo de harmonia com tais provas, por tal obtenção estar ao seu alcance, incumbindo-lhe proceder a consultas e buscas; a situação não é assimilável aqueloutra em que o documento é desconhecido, por se encontrar em poder da parte adversa, ou de terceiro, ou não poder ser obtido a tempo de ter sido utilizado na acção revidenda.

Deve ser imputada à parte a não obtenção de documentos a que poderia aceder através de certidão emitida por entidade ou repartição pública, não sendo relevante a mera alegação de superveniência do conhecimento de documentos autênticos.

O documento superveniente apenas fundamentará a revisão extraordinária da decisão transitada quando, por si só, seja capaz de modificar tal decisão em sentido mais favorável ao recorrente.” [Ac. RL de 02/03/2017, www.dgsi.pt]

Em suma, nenhum dos documentos juntos se reveste de novidade e com a virtualidade de por si só, ou entre si conjugados, serem suficientes para alterar a decisão de forma mais favorável aos recorrentes, até porque, com exceção do documento nº 4, foram juntos à ação declarativa.

Não se verifica qualquer dos dois fundamentos do recurso de revisão alegados pelos recorrentes."

[MTS]


30/05/2022

Jurisprudência 2021 (207)


Processo de inventário;
tornas; execução*


1. O sumário de STJ 14/10/2021 (1040/19.1T8ANS-A.C1.S1) é o seguinte:

No nosso sistema processual, a força do caso julgado formal das decisões que verifiquem a inexistência de um pressuposto processual, tem eficácia meramente intraprocessual, pelo que, num novo processo que repita o objeto e as partes de um processo anterior, que terminou com a absolvição da instância do Réu, por falta de um pressuposto processual, salvo previsão legal específica em contrário, pode ser proferida decisão divergente da emitida no primeiro processo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Previamente a tomarmos posição sobre a existência de caso julgado que impeça o prosseguimento da presente execução, convém relembrar e precisar a tramitação processual ocorrida em toda esta situação.

Na sequência de divórcio entre a Embargante e o Embargado, correu termos inventário para separação de meações, no qual os bens comuns do casal foram adjudicados à Embargante, tendo o Embargado direito a tornas no valor de € 62.500,00.

O Exequente reclamou o pagamento das tornas nos termos do artigo 1377.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na altura vigente, não obtendo o pagamento das mesmas, pelo que, tendo, entretanto, transitado em julgado a sentença homologatória da partilha de bens, requereu a venda de bens adjudicados à Executada, nos termos do artigo 1378.º, n.º 3, do mesmo Código de Processo Civil, nos autos de inventário.

Face ao insucesso da venda desses bens, o Exequente deduziu ação executiva para pagamento de quantia certa (apenso E ao processo de divórcio), reclamando o pagamento das referidas tornas e indicando à penhora outros bens da Executada que não os adjudicados no processo de inventário.

Nessa execução foi proferida decisão, em que, oficiosamente, se conheceu da verificação da exceção dilatória da nulidade do processo, por erro na sua forma, por se ter entendido que a cobrança do valor das tornas resultantes de processo de partilha judicial só pode ser efetuada através do processo executivo especial previsto no artigo 1378.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Esta decisão foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de 27.03.2012, após recurso interposto pelo Exequente [---].

Entretanto, na execução movida no processo de Inventário, foi proferido em 25.05.2016, despacho de extinção da instância, por deserção, em cuja fundamentação se afirmou que o credor de tornas não está impedido de lançar mão da competente ação executiva para pagamento de tornas a que tem direito.

O Exequente, em 30.5.2019, intentou contra a Executada nova Execução, reclamando mais uma vez o valor das tornas apuradas no referido processo de inventário, tendo, apresentando como título executivo a sentença homologatória do mapa de partilha elaborado naquele processo, pelo que estamos perante uma repetição do processo executivo que anteriormente havia sido considerado nulo, por erro na forma do processo (o apenso E ao processo de divórcio).

É relativamente a este segundo processo executivo, que o acórdão aqui recorrido decidiu que se verifica uma situação de caso julgado pela decisão proferida na execução que constitui o apenso E ao processo de divórcio.

Tendo essa anterior decisão incidido sobre a relação processual, o caso julgado por ela formado é meramente formal, tendo força obrigatória dentro do processo (artigo 620.º do Código de Processo Civil).

Com efeito, o caso julgado formal, em princípio, não obsta a que, entre as mesmas partes, o pedido deduzido seja novamente formulado, com a mesma causa de pedir, em nova ação, não havendo lugar à exceção do caso julgado, uma vez que este, sendo formal, apenas tem uma eficácia intraprocessual.

No entanto, relativamente às decisões que verificam a existência de uma exceção dilatória, por falta de observância um pressuposto processual, desde há muito que se questiona se o caso julgado formado com essa decisão também tem força extraprocessual, impedindo que, posteriormente, se proponham, entre as mesmas partes, ações com o mesmo objeto e em que se repete a situação que se considerou integrar uma exceção dilatória ou que imponham mais uma absolvição da instância.

Alberto dos Reis, em anotação ao artigo 672.º do Código de Processo Civil de 1939 [No Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, reimpressão, vol. V, pág. 157-158], cujo segundo período tinha uma redação muito próxima à do artigo 620.º do atual Código de Processo Civil, tendo presente as decisões de absolvição da instância, afirmou que o caso julgado formal não tem força obrigatória fora do processo respetivo...e, portanto, nem vincula o juiz, nem pode ser alegado pelas partes em processo diferente daquele em que foi proferido. Noutra anotação ao mesmo Código [Na ob. cit., vol. III, pág. 97 [...]] igualmente referiu que o benefício meramente processual que o Réu obteve com a pr1imeira sentença (que o absolveu da instância) não encontra proteção na segunda causa. Entende-se que, não tendo a sentença anterior recaído sobre o objeto essencial do litígio, não tendo atribuído a qualquer das partes os bens ou as vantagens substanciais a que aspirava, não há razão para dar estabilidade fora do processo, à decisão proferida.

Porém, Castro Mendes, no seu Manual de Processo Civil [Edição da Coimbra Editora, 1963, pág. 458], assumidamente contra a posição então corrente, afirmou que se se absolveu da instância por certo fundamento e este se repete em novo processo, é lícito neste opor a exceção do caso julgado.

Esta posição viria a ser desenvolvida e corrigida por Teixeira de Sousa [Em O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material (Estudo sobre a Funcionalidade Processual), no B.M.J. n.º 325, pág. 155-159, sobretudo, pág. 157-159.] que, admitindo a possibilidade do caso julgado formal ter uma eficácia externa, considerou que o caso julgado incidente sobre uma decisão de absolvição da instância não só define objetivamente o conteúdo da decisão processual produzida, como vincula subjetivamente os sujeitos adjetivos à decisão processual proferida, entendendo que existe uma vinculação à identidade de julgamento de certo objeto pelo seu impedimento à contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objeto, concluindo, no entanto, pela verificação de uma situação de autoridade de caso julgado, e não por uma exceção de caso julgado formal, quando refere que o que releva no processo subsequente não é a impossibilidade de apreciar determinado objeto mas a sujeição a julgar identicamente.

Já Anselmo de Castro [Em Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, pág. 15/16, embora referindo que, quando a exceção dilatória é uma ilegitimidade, o facto de poder existir uma pronúncia sobre a relação jurídica em litígio é suscetível de conferir a essa decisão efeitos extraprocessuais] seguiu a posição de Alberto dos Reis, argumentando que, não estando em causa interesses materiais nada contraindica que a lei seja interpretada no sentido de afastar o caso julgado material, e o juiz possa em nova ação pronunciar divergentemente.

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em anotação ao artigo 279.º do Código de Processo Civil [No Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, pág. 566], limitam-se a dar nota de uma orientação doutrinal no direito processual alemão que não admite a repetição de uma causa com a falta do mesmo pressuposto processual que originou a extinção ou a não admissão da anterior, pelo menos quando esteja em causa um pressuposto que coenvolva interesses materiais, referindo que, no nosso Código de Processo Civil, a expressão nova ação usada nos n.º 2 e 3 (do artigo 279.º), pode servir de argumento literal em prol deste entendimento: a inovação da segunda ação residirá na remoção do obstáculo (a falta do pressuposto em causa) à prolação da decisão de mérito sobre aquele objeto processual.

Também Maria José Capelo Em A Sentença entre a Autoridade e a Prova. Em Busca de Traços Distintivos do Caso Julgado Civil, Almedina, 2016, pág. 96-97, nota 328] se limita a referir que a questão merece ponderação, chamando a atenção para a consagração excecional da eficácia externa de um caso julgado formal no artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Civil atual, e referindo a posição de Proto Pizani [Em Lezioni di Diritto Processuale Civile, 5.ª ed., Jovene, 2006, pág. 82], no direito processual italiano, no sentido de que neste ordenamento jurídico, dispondo no artigo 310.º, n.º 2 (do Codice de Procedura Civile) que à extinção do processo sobrevivem as decisões de mérito e aquelas que regulam a competência, mostra inequivocamente ter optado – ao menos como regra geral – a favor da solução segundo a qual o caso julgado interno sobre questões de rito não sobrevive à extinção do processo, sem prejuízo de algumas decisões em matéria de competência, por força da lei, ou de legitimidade, poderem ter uma eficácia panprocessual.

É esta que também nos parece ser a melhor interpretação, numa leitura sistemática, das disposições do nosso Código de Processo Civil sobre a matéria.

Se a segurança jurídica, na vertente da estabilidade processual, impõe a imutabilidade interna das decisões sobre a tramitação, com eventual sacrifício da possibilidade de se encontrar um melhor direito numa revisão do decidido, evitando-se, assim, que, no mesmo processo, sejam proferidas decisões contraditórias sobre os seus termos [---], esse interesse deixa de pesar quando a questão processual decidida se coloca num outro processo, mesmo que este tenha igual objeto do primeiro. A necessidade daquela imutabilidade só se faz sentir no interior do processo onde foi proferida a decisão, a fim de garantir a sua estabilidade. Não sendo a decisão proferida uma decisão de mérito, uma vez que não decidiu o litígio substantivo, não tem aqui valia os fundamentos que justificam a força do caso julgado material e a sua expansão externa ilimitada [---].

Apesar de a possibilidade de serem proferidas decisões contraditórias em processos diferentes, mas com objeto idêntico e com as mesmas partes, poder causar alguma perplexidade, há que ter presente que essas decisões apenas decidem da admissibilidade daquele processo seguir os seus termos com vista à apreciação do mérito da causa, em nada definindo as relações jurídicas entre as partes em litígio, pelo que não existe qualquer solução material cuja definitividade importe salvaguardar.

Se, para a credibilidade do sistema judicial, pode ser importante a coerência e uniformização das suas decisões, mesmo que estas tenham um alcance meramente processual, esse já não é um interesse abrangido pelo princípio da segurança jurídica, enquanto princípio estruturante do Estado de direito democrático, e não tem o peso necessário para impor que, no modelo do processo equitativo, tais decisões, quando recaiam sobre a verificação dos pressupostos processuais, tenham necessariamente efeitos extraprocessuais, impondo-se em processos distintos daqueles onde foram proferidas.

O disposto no artigo 620.º do atual Código de Processo Civil que mantém, no essencial, a redação que já constava do artigo 672.º do Código de Processo Civil de 1939 [---], delimita a força do caso julgado desse tipo de decisões (dentro do processo), não excecionando aquelas que verifiquem a ausência de um pressuposto processual.

Por sua vez, como faz notar Maria José Capelo, o legislador quando quis conferir força extraprocessual ao caso julgado formado pelas decisões proferidas sobre a competência do tribunal em razão da matéria e da hierarquia (artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), fê-lo expressamente, a título excecional, e não como reflexo de uma orientação geral.

A redação do artigo 279.º do Código de Processo Civil, quando prevê a propositura de uma segunda ação, após a anterior ter terminado com a absolvição da instância do Réu, por falta de verificação de um pressuposto processual, ao utilizar a expressão “nova ação” não deve ser lida com o sentido de que essa segunda ação, só será “nova”, se comportar uma “novidade”, corrigindo o vício que fundamentou a absolvição da instância, pelo que uma segunda ação que repetisse exatamente a primeira, estaria abrangida pela força do caso julgado da anterior decisão. Não há qualquer razão para conferir tal relevância à utilização da expressão “nova ação”, a qual apenas pretende prever a propositura de uma segunda ação, sem lhe conferir qualquer exigência de ela encerrar uma novidade, designadamente o suprimento do vício que determinou a absolvição da instância na ação anterior.

Por estas razões, deve considerar-se que se mantém no nosso sistema processual a força meramente intraprocessual do caso julgado formal das decisões que verifiquem a inexistência de um pressuposto processual, tal como Alberto dos Reis já havia salientado, com referência ao Código de Processo Civil de 1939, pelo que, num novo processo que repita o objeto e as partes de um processo anterior, que terminou com a absolvição da instância do Réu, por falta de um pressuposto processual, salvo previsão legal específica em contrário, pode ser proferida decisão divergente da emitida no primeiro processo [---].

Assim, após um processo em que a instância foi declarada extinta, por se ter considerado existir erro na forma processual, sem possibilidade de aproveitamento dos atos praticados, como ocorreu na situação sub iudicio, proposto um segundo processo com o mesmo objeto e as mesmas partes, sob a mesma forma, não se verifica uma situação de exceção do caso julgado, nem o juiz deste segundo processo está vinculado a proferir decisão idêntica à prolatada no primeiro processo, por respeito à autoridade do caso julgado formal, estando antes livre para decidir que a forma do processo é a adequada.

A decisão proferida no apenso E ao processo de divórcio que, oficiosamente, conheceu da verificação da exceção dilatória da nulidade do processo, por erro na sua forma, por se ter entendido que a cobrança do valor das tornas resultantes de processo de partilha judicial só pode ser efetuada através do processo executivo especial previsto no artigo 1378.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não tem força de caso julgado extraprocessual, pelo que o saneador-sentença proferido na presente execução, ao determinar o prosseguimento dos autos, para pagamento da quantia de 62.500,00€, acrescida de juros à taxa anual de 4%, desde 13.05.2004 e até integral pagamento daquela quantia, admitindo a insistência do Exequente na forma de processo escolhida, não desrespeita a força do caso julgado da decisão proferida no referido apenso E."


*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se acompanha a orientação segundo a qual o caso julgado formal é insusceptível de produzir efeitos extraprocessuais. Suponha-se que uma acção terminou com a absolvição da instância com fundamento em incompetência material do tribunal ou em preterição de litisconsórcio necessário passivo; não tem sentido admitir que o autor possa intentar quantas acções quiser no mesmo tribunal ou contra a mesma parte, argumentando que o caso formal anterior não produz nenhum efeito em cada um dos novos processos. Aliás, se esse efeito vinculativo não existe, dificilmente se pode entender que o autor que propõe repetidamente a mesma acção sem sanar a falta de um pressuposto processual faz um uso manifestamente reprovável do processo e, por isso, litiga de má fé (art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC).

b) O que talvez se possa entender na situação analisada no acórdão é que o caso julgado formal da decisão que, numa anterior execução, entendeu que a execução apropriada era a regulada pelo art. 1378.º CPC/61 (equivalente ao actual art. 1122.º CPC) pode ser afastado com o argumento de que numa anterior execução proposta com base naquele preceito não foi possível obter a cobrança do crédito.

MTS


28/05/2022

Jurisprudência europeia (TJ) (262)


Reenvio prejudicial – Diretiva 93/13/CEE – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Princípio da equivalência – Princípio da efetividade – Procedimentos de injunção de pagamento e de penhora junto de terceiros – Autoridade de caso julgado que abrange implicitamente a validade das cláusulas do título executivo – Poder do juiz de execução para fiscalizar oficiosamente o caráter eventualmente abusivo de uma cláusula


TJ 17/5/2022 (C-693/19 e C‑831/19, SPV Project 1503 et al./YB (C‑693/19) e Banco di Desio e della Brianza et al./YX et al. (C‑831/19)) decidiu o seguinte:

O artigo 6.°, n.° 1, e o artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que prevê que, quando uma injunção de pagamento emitida por um juiz a pedido de um credor não tiver sido objeto de oposição do devedor, o juiz de execução não pode, pelo facto de a autoridade de caso julgado de que essa injunção se reveste abranger implicitamente a validade das referidas cláusulas, excluindo assim qualquer fiscalização da validade das mesmas, fiscalizar posteriormente o eventual caráter abusivo das cláusulas do contrato que serviram de fundamento à referida injunção. A circunstância de, à data em que a injunção se tornou definitiva, o devedor ignorar que podia ser qualificado de «consumidor», na aceção desta diretiva, não é pertinente a este respeito.

 

Jurisprudência europeia (TJ) (261)


Reenvio prejudicial – Diretiva 93/13/CEE – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Princípio da equivalência – Princípio da efetividade – Processo de execução hipotecária – Caráter abusivo da cláusula que fixa a taxa nominal dos juros de mora e da cláusula de vencimento antecipado que figura no contrato de mútuo – Autoridade de caso julgado e preclusão – Perda da possibilidade de invocar o caráter abusivo de uma cláusula do contrato perante um órgão jurisdicional – Poder de fiscalização oficiosa do juiz nacional


TJ 17/5/2022 (C‑600/19MA/Ibercaja Banco et al.) decidiu o seguinte:

1)      O artigo 6.°, n.° 1, e o artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em razão do efeito da autoridade de caso julgado e da preclusão, não permite ao juiz fiscalizar oficiosamente o caráter abusivo de cláusulas contratuais no âmbito de um processo de execução hipotecária nem ao consumidor invocar, após o termo do prazo para deduzir oposição, o caráter abusivo dessas cláusulas contratuais nesse processo ou no âmbito de um processo declarativo posterior, quando, no momento da abertura do processo de execução hipotecária, o caráter eventualmente abusivo das mesmas já tenha sido objeto de fiscalização oficiosa por parte do juiz, mas, da decisão judicial que autoriza a execução hipotecária, não constar nenhum fundamento, ainda que sumário, que confirme que essa fiscalização foi levada a cabo ou que indique que a apreciação feita pelo juiz na sequência dessa fiscalização já não poderá ser posta em causa se não for deduzida oposição no referido prazo.

2)      O artigo 6.°, n.° 1, e o artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que não autoriza um órgão jurisdicional nacional, atuando oficiosamente ou a pedido do consumidor, a examinar o caráter eventualmente abusivo das cláusulas contratuais quando a garantia hipotecária tiver sido executada, o bem hipotecado tiver sido vendido e os direitos de propriedade relativos ao bem que é objeto do contrato em causa tiverem sido transferidos para um terceiro, desde que o consumidor cujo bem foi objeto de um processo de execução hipotecária possa invocar os seus direitos num processo posterior com vista a ser ressarcido, ao abrigo desta diretiva, das consequências financeiras resultantes da aplicação de cláusulas abusivas.


27/05/2022

Bibliografia (1020)


-- Stefan Frederic Thönissen, Subjektive Privatrechte und Normvollzug (Mohr: Tübingen 2022)


Jurisprudência 2021 (206)


Reg. 1215/2012;
responsabilidade extracontratual; dano; lugar


1. O sumário de STJ 14/10/2021 (26412/16.0T8LSB.L1-A.S1) é o seguinte:

I. Não obstante o artigo 267º, § 3, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, fazer recair sobre o Supremo Tribunal, enquanto tribunal de última instância de recurso, o dever de proceder ao reenvio prejudicial sempre que se suscitem dúvidas sobre a interpretação de uma norma do Direito da União Europeia, essa obrigação deixa de existir, designadamente, quando o Tribunal de Justiça da União Europeia já se tiver pronunciado, de forma firme e em caso análogo, sobre a questão a reenviar.

II. Constitui jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia que, na fase da verificação da competência internacional, o órgão jurisdicional onde foi intentada a ação não aprecia a admissibilidade nem a procedência da ação segundo as regras do direito nacional, nem está obrigado, em caso de contestação das alegações do demandante por parte do demandado, a proceder a uma produção de prova, cabendo-lhe apenas identificar os elementos de conexão com o Estado do foro que justificam a sua competência ao abrigo do disposto no artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, devendo, para esse efeito, considerar assentes as alegações pertinentes do demandante quanto aos requisitos da responsabilidade extracontratual e, em nome da boa administração da justiça, subjacente ao dito regulamento, apreciar as objeções apresentadas pelo demandado.

III. De acordo com a jurisprudência firmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, o conceito de «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», contido no artigo 7º, nº 2 do Regulamento nº 1215/2012, refere-se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem desse dano, de modo que o requerido pode ser demandado, à escolha do requerente, perante o tribunal de um ou outro destes lugares.

III. [sic] E segundo essa mesma jurisprudência aquela expressão «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», não pode ser objeto de interpretação extensiva, a ponto de englobar qualquer lugar onde possam ser sentidas as consequências danosas de um facto que já causou um prejuízo efetivamente ocorrido noutro lugar, reportando-se, antes, ao lugar onde o lesado direto alega ter sofrido um dano inicial e ao lugar onde os efeitos deste dano se manifestam concretamente, havendo necessidade, em alguns casos, de recorrer às « circunstâncias concretas» do processo para, numa apreciação global, complementar o critério da competência estabelecido no artigo 7º, nº 2, do Regulamento 1215/2012, por forma a assegurar o cumprimento dos objetivos de proteção jurisdicional de ambas as partes e os respeitantes à gestão do processo que estão subjacentes a esta regra.

IV. No caso de uma comercialização de veículos equipados pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, considerou o Tribunal de Justiça que o dano sofrido pelo adquirente final materializa-se no momento da compra desse veículo a um terceiro por um preço superior ao seu valor real e que, nestas circunstâncias concretas, o artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012, deve ser interpretado no sentido de que o tribunal do « lugar onde ocorreu o facto danoso» é o tribunal do lugar da aquisição do veículo em causa pelo adquirente final.

V. Daí ter afirmado, no Acórdão 9 de julho de 2020, Verein für Konsumenteinformation c. Volkswagen AG, C- 343/19, que «o artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado-Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado-Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado-Membro».

VI. Invocando a Deco, no caso dos autos, a responsabilidade civil extracontratual das rés, como fundamento dos pedidos de indemnização por ela formulados em defesa dos consumidores portugueses que, em Portugal, adquiriram às rés veículos automóveis fabricados na Alemanha pela ré Volkswagen AG e nos quais esta introduziu uma aplicação informática que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, evidente se torna, à luz do artigo 7º, nº 2, do Regulamento 1215/20 e da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre esta disposição, serem os Tribunais Portugueses internacionalmente competentes para conhecer do presente litígio.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2. Fundamentação de Direito

[...] o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente, com a questão de saber se os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para tramitar e julgar a presente ação.

Todavia, porque a resposta a dar a esta questão passa pela interpretação do disposto no artigo 7º, nº 2, do Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho nº 1215, de 12 de dezembro de 2012, importa abordar, previamente, a questão prévia

3.2.1. Da ausência de obrigação de reenvio prejudicial

O reenvio prejudicial, previsto no artigo 19º, nº 3, al. b) do Tratado da União Europeia (TUE) e no artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), é um mecanismo jurídico-processual que permite estabelecer uma cooperação jurisdicional entre o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e os tribunais nacionais, com vista a garantir a uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito da União.

Sempre que um tribunal nacional, chamado a julgar um litígio que envolva a aplicação de normas do Direito da União Europeia, tenha dúvidas sobre a interpretação e/ou aplicação dessas normas e que a decisão do TJUE sobre tais dúvidas se afigure indispensável para uma adequada resolução do caso, pode/deve o mesmo suspender a instância e reenviar as suas questões para o TJUE (reenvio prejudicial facultativo ou obrigatório) [---].

Mas se é certo que o disposto no artigo 267º, § 3, do TFUE, faz recair sobre o Supremo Tribunal, enquanto tribunal de última instância de recurso, o dever de proceder ao reenvio prejudicial sempre que se suscitem dúvidas sobre a interpretação de uma norma do Direito da União Europeia, a verdade é que esta obrigação de reenvio, por insusceptibilidade de recurso ordinário no direito interno, pode ser dispensada.

Com efeito, tal como nos dá conta o Acórdão do STJ, de 26.11.2020 (processo nº 30060/15.3T8LSB.L3.S1) [---], «desde o Acórdão Cilfit [---] que o TJUE vem admitindo, de forma consistente, a dispensa do dever de suscitar a questão prejudicial por insusceptibilidade de recurso em determinadas situações, a saber:

1.ª) quando a questão de direito da União Europeia suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do litígio concreto;

2.ª) quando o TJUE já se tenha pronunciado, de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou outro meio processual, atento o efeito erga omnes das suas decisões;

3.ª) quando o tribunal nacional considere que as normas da União Europeia aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas ou são suficientemente claras e determinadas, aptas para serem aplicadas imediatamente, sendo que a clareza das normas aplicáveis deve resultar da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adoptadas [---].

Este entendimento tem sido reafirmado em sucessivos Acórdãos do TJUE [---]».

No caso dos autos estamos no âmbito de uma ação popular prevista nos arts. 1º e 12º, nº 2, da Lei nº 83/95, de 31 de agosto e art. 3º, al. g) da Lei nº 24/96, de 31 de julho ( LDC) interposta pela Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor - Deco contra Volkswagen AG, sociedade de direito alemão com sede em Berlim, Alemanha, que se dedica ao fabrico e comercialização de veículos automóveis das marcas Volkswagen, …, …, entre outros; SEAT S.A., com sede em Martorell, Espanha, que se dedica ao fabrico e comercialização de veículos automóveis da marca SEAT, entre outros; SIVA- Sociedade de Importação de Veículos, S.A, com sede em Vila Nova da Rainha, Portugal, que se dedica à importação e comercialização de veículos automóveis nomeadamente das marcas Volkswagen, … e … e SEAT Portugal Unipessoal, Ldª, com sede em Lisboa, Portugal, que se dedica à importação e comercialização de veículos automóveis nomeadamente da marca SEAT. [...]

E a este respeito diremos, desde logo, que se é certo não haver divergência entre as instâncias nem entre as partes quanto à aplicação ao caso dos autos do disposto no artigo 7º, nº 2, do Regulamento (EU) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial [---], a verdade é que a divergência registada quanto à interpretação da expressão «lugar onde ocorreu (…) o facto danoso» contida no nº 2 do referido artigo conduziu, no caso dos autos, a soluções diametralmente opostas.

Com efeito, o Tribunal de 1ª Instância, aderindo ao entendimento defendido pelas rés e suportado pelo parecer que juntaram aos autos e elaborado por José Luís da Cruz Vilaça e Rita Leandro Vasconcelos, considerou que o lugar onde ocorreu o dano é o lugar em que se verificou o evento que causou o dano, pelo que, no caso dos autos, o lugar relevante para efeitos jurisdicionais, é o lugar da montagem, nos veículos, do software que altera os dados relativos às emissões poluentes de gases NOx, sendo, por conseguinte, os Tribunais alemães os tribunais internacionalmente competentes para julgar a presente ação.

Diferente posição assumiu o Tribunal da Relação, que, acolhendo a tese defendida pela autora, sustentada pelo parecer que juntou aos autos e elaborado por Jorge Pegado Liz, entendeu que o caso dos autos apresenta paralelismo com o caso decidido, em sede de reenvio prejudicial, pelo TJEU no acórdão que proferiu em 09.07.2020, no processo Verein für Konsumenteinformation c. Volkswagen AG, C-343/19, pelo que, atento o efeito erga omnes desta decisão, não só não se justifica a formulação de um novo pedido de decisão prejudicial sobre a interpretação do artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012, como também se impõe respeitar a interpretação dada a esta norma pelo TJEU no sentido de que, « quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado-Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado-Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado-Membro».

Daí ter concluído pela competência internacional dos Tribunais Portugueses para julgar a presente ação uma vez que, nas circunstâncias dos autos, a aquisição dos veículos afetados ocorreu em Portugal.

Deste entendimento dissentem as recorrentes que, estribadas no parecer que constitui um aditamento ao 1º parecer, elaborado por José Luís da Cruz Vilaça e Rita Leandro Vasconcelos, na sequência da prolação do referido acórdão do TJEU, de 09.07.2020 sustentam, no essencial, que as diferenças entre o presente processo e o processo V... c. VW impedem que as conclusões do acórdão no processo C-343/19 sejam transpostas para o caso dos autos.

Consabido que, de harmonia com o disposto no art. 267º do TFUE, a interpretação do Direito da União é da competência exclusiva do TJUE e que, o facto do acórdão por ele proferido, neste contexto, vincular o tribunal nacional que suscitou a questão prejudicial e os tribunais de todos os demais Estados-Membros, não impede um tribunal nacional de, num outro processo principal, voltar a suscitar a mesma questão prejudicial sempre que entender que existem elementos novos que podem levar o TJUE a alterar o acórdão prejudicial já proferido sobre a mesma questão de direito nem impede este tribunal, se o entender adequado ou necessário, de modificar a sua jurisprudência [---], vejamos, então, se no caso dos autos, ante a jurisprudência já firmada pelo TJUE em matéria de competência, justifica-se a formulação de um novo pedido de decisão prejudicial.

3.2.1.1. Nesta matéria, enunciam os considerandos 15 e 16 do Regulamento nº 1215/2012 que:

«15. As regras de competência devem apresentar um elevado nível de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.

16 O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. (…)».

Assim e com vista a prosseguir estes mesmos objetivos, no capítulo da «Competência» e na secção I, intitulada “Disposições gerais”, estabelece artigo 4º, nº1 deste Regulamento que «Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro».

E na secção II, denominada “Disposições especiais”, estipula o artigo 7º, deste mesmo Regulamento que «As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:

[…] 2. Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso».

Por outro lado, do Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II), enuncia, no seu considerando 7 que «O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 200, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, (Bruxelas I) e com os instrumentos referentes à lei aplicável às obrigações contratuais»

E, sob a epígrafe «Concorrência desleal e atos que restrinjam a livre concorrência», estabelece no seu artigo 6º, nº 1 que «A lei aplicável a uma obrigação extracontratual decorrente de um ato de concorrência desleal é a lei do país em que as relações de concorrência ou os interesses coletivos dos consumidores sejam afetados ou sejam suscetíveis de ser afetados».

Resulta, assim, evidente do artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012, que, nos litígios relativos a obrigações extracontratuais, foi vontade do legislador europeu oferecer ao demandante um foro alternativo (o do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso) ao foro geral, previsto no artigo 4º, nº 1 e correspondente ao domicílio do demandado num Estado-Membro.

De salientar, desde logo, em conformidade com a jurisprudência firmada do TJUE, que, na medida em que de acordo como o considerando 34 do Regulamento nº 1215/2012, este regulamento revoga e substitui o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, que, por sua vez, substituiu a Convenção de 27 de setembro de 1968 (doravante Convenção de Bruxelas), ambos relativos à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça às disposições destes instrumentos jurídicos, designadamente no que diz respeito à expressão « lugar onde ocorreu o facto ou poderá ocorrer o facto danoso » contida no seu artigo 5º, nº 3, vale também para o artigo 7º, nº 2 do Regulamento nº 1215/2012, por se tratarem de disposições equivalentes [cfr. Acórdão de 31 de maio de 2018, Nothartová, C-306/17 [---], nº 18 e Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18 [---], nº 23 e jurisprudência aí referida].

Segundo a jurisprudência deste mesmo tribunal, esta regra de competência especial prevista nestes artigos baseia‑se na existência de um elemento de conexão particularmente estreito entre o litígio e o tribunal do lugar onde ocorreu ou possa ocorrer o facto danoso, que justifica uma atribuição de competência a esse tribunal por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo [cfr. Acórdãos de 5 de junho de 2014, Coty Germany, C‑360/12 [---], n.° 47, e de 10 de setembro de 2015, Holterman Ferho Exploitatie e o., C‑47/14 [---], n.° 73 e jurisprudência referida], já que, em matéria de responsabilidade extracontratual, normalmente, é o tribunal mais apto para decidir, nomeadamente, por razões de proximidade do litígio e de facilidade na recolha das provas [cfr. Acórdãos de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C-352/13 [---], n.° 40, e de 10 de setembro de 2015, Holterman Ferho Exploitatie e o., C-47/14 [---], n.° 74].

De sublinhar ainda, conforme tem sido reiteradamente declarado pelo TJUE na sua jurisprudência relativa a estas mesmas disposições, que o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso», refere‑se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem desse dano, de modo que o requerido pode ser demandado, à escolha do requerente, perante o tribunal de um ou outro destes lugares [cfr., em matéria de poluição, Acórdão de 30 de novembro de 1976, Bier, 21/76 [---], nºs 24 e 25; relativo a dano material decorrente de produto defeituoso, Acórdão de 16 de julho de 2009, Zuid-Chemie, C-189/08 [---], nº 23 em matéria de contrafação, Acórdão de 5 de junho de 2014, Coty Germany, C‑360/12 [---], n.° 46; em matéria de contrato de administrador de uma sociedade, Acórdão de 10 de setembro de 2015, Holterman Ferho Exploitatie e o., C‑47/14 [---], n.° 72; referente a dano consistente em acréscimos de custos pagos na compra de camiões , em razão de preços artificialmente elevados, Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18 [---], nº 25 e jurisprudência aí referida ].

Vale isto por dizer, na expressão do Advogado-Geral Manuel Camps Sánchez-Bordona [---], que «Quando o comportamento ilícito e as suas consequências se situam em Estados-Membros diferentes, o critério da competência judiciária desdobra-se, assumindo-se que, em matéria de responsabilidade extracontratual, ambos os lugares têm uma vinculação significativa com o litígio. Nestas situações, o demandante pode escolher entre as duas jurisdições no momento da propositura da sua ação».

Mas, a verdade é que situações existem em que se suscitam muitas dúvidas na determinação do lugar da materialização do dano, o que acontece sobretudo nos casos em que os danos não afetam a integridade física de uma pessoa ou de uma coisa determinada, mas, de um modo geral, o património.

Prova disso é que, desde 1976, o TJUE tem sido chamado várias vezes a decidir se, para efeitos de competência judiciária, se deve considerar como «lugar onde ocorreu o facto danoso» o lugar num Estado-Membro onde se verificou o dano, quando esse dano consiste numa perda patrimonial que é consequência direta da prática de um ato ilícito ocorrido noutro Estado-Membro, pelo que importa indagar o sentido que o TJUE vem dando àquele conceito.

E a este respeito, o que ressalta, desde logo, da jurisprudência do TJUE, é que, segundo este tribunal, aquela expressão não pode ser objeto de interpretação extensiva, a ponto de englobar qualquer lugar onde possam ser sentidas as consequências danosas de um facto que já causou um prejuízo efetivamente ocorrido noutro lugar, não podendo, por isso, ser interpretado no sentido de que inclui o lugar onde a vítima alega ter sofrido um dano patrimonial subsequente a um dano inicial ocorrido e sofrido por ela noutro Estado.

Por conseguinte, interessa apenas o dano inicial e não o dano consecutivo, ou seja, o dano acessório de um dano inicial ocorrido [cfr. Acórdãos de 19 de setembro de 1995, Marine, C-364/93 [---], nºs 14 e 15; de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18 [---], nº 28 e jurisprudência aí referida e de 9 de julho de 2020, Verein Konsumenteinformation c Volkswagen AG, C-343/19 [---], nº 26].

E vem também declarando, de forma constante, que este conceito refere-se apenas ao dano inicial sofrido diretamente pelo lesado e não o dano sofrido, indiretamente, por um lesado (lesado indireto) [cfr., entre outros Acórdãos de 11 de janeiro de 1990, Dumez France e Tracoba, C-220/88 [---] e de 10 de dezembro de 2015, Lazard, C-350/14 [---]].

De igual modo, vem afirmando a necessidade de distinguir o evento ou eventos causais do dano das consequências (prejuízos) a que dão origem, pelo que, nos casos em que o lugar onde se situa o facto suscetível de implicar responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto provocou um dano não sejam idênticos, tem considerado como sendo o « lugar da materialização do dano » o lugar onde os efeitos danosos de um facto se manifestam concretamente [Cfr. entre outros, Acórdão Zuid-Chemie BV c. Philippo’s Mineralenfabrick NV/SA, processo C-189/08 [---], nº 27 e Acórdão Cartel Damage Claims (CDC) Hydrogen Perixide SA, processo C-352/13 [---], nº 52 ].

Daí, no Acórdão Kronhofer, C-168/02 [---], em que o alegado prejuízo financeiro que o autor sofreu noutro Estado-Membro produziu um efeito simultâneo no conjunto do seu património, o TJUE ter afirmado que a expressão « lugar onde ocorreu o facto danoso» não se refere ao lugar do domicílio do requerente, no qual se localiza «o centro do seu património», pelo simples motivo de aí ter sofrido um prejuízo financeiro resultante da perda de elementos do seu património ocorrida e sofrida noutro Estado-Membro, só se justificando a atribuição de competência aos tribunais daquele domicílio se este constituísse, efetivamente, o lugar do evento causal ou da materialização do dano ( cfr. nºs 16 a 21).

Mas, ainda assim, reconhecendo que a identificação/determinação do lugar onde se materializou o dano não é igual para todos os tipos de dano e ante as dúvidas suscitadas pelos órgãos jurisdicionais de reenvio, sobretudo nos casos em que estão em causa danos de natureza material e/ou puramente patrimonial, vem recorrendo às « circunstâncias concretas » do processo para, numa apreciação global, precisar o critério da competência relativo ao « lugar do dano», por forma a garantir a proximidade entre o litígio e o foro e a previsibilidade das partes e, deste modo, cumprir os objetivos de proteção jurisdicional de ambas as partes e os respeitantes à gestão do processo que estão subjacentes à regra de competência especial prevista no artigo 5º, nº 3, da Convenção de Bruxelas e do Regulamento nº 44/2001 e no artigo 7º, nº 2, do Regulamento 1215/2012, permitindo simultaneamente ao demandante identificar facilmente o órgão jurisdicional onde pode intentar a ação e ao requerido prever razoavelmente aquele onde pode ser demandado e garantindo uma boa administração da Justiça.

Foi o que aconteceu nos Acórdãos de 28 de janeiro de 2015, Kolassa, C-375/13 [---]; de 16 de junho de 2016, Universal Music International Holding BV, C-12/15 [---]; de 12 de setembro de 2018, Löber, C-304/17 [---] e de 9 de julho de 2020, Verein für Konsumenteinformation c. Volkswagen AG, C- 343/19 [---].

E porque este último acórdão versa sobre uma situação muito semelhante à dos presentes autos, impõe-se proceder a uma análise mais detalhada do mesmo por forma a indagar se o critério nele seguido pelo TJUE, com vista a determinar o lugar da materialização do dano, tem aplicação ao caso em apreço.

3.2.1.2. O processo C-343/19

No processo C-343/19, estava em causa uma ação proposta pela Verein für Konsumenteninformation (doravante V... e que é uma organização de consumidores, com sede na Áustria e cuja missão estatutária consiste, entre outras coisas, na defesa em juízo dos direitos que os consumidores lhe cederam para esse efeito), num tribunal da Áustria, contra a Volkswagen AG, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe determinada quantia em dinheiro, a título de indemnização pelos danos causados, e fosse declarada responsável por todos os danos ainda não quantificáveis e /ou que se viessem a produzir no futuro.

Como fundamento deste pedido invocou a responsabilidade civil extracontratual da Volkswagen AG, que, na sua sede na Alemanha, equipou os veículos que aqueles consumidores adquiriram na Áustria com motores a diesel, do tipo EA 189, neles introduzindo um dispositivo informático que manipula os dados relativos às emissões de gases de escape, permitindo revelar, nos ensaios e medidas, as emissões que respeitam os valores máximos impostos, ao passo que, nas condições reais de utilização desses veículos em estrada, as substâncias poluentes efetivamente emitidas atingem proporções que excedem várias vezes os limites previstos. Afirma que só graças a esse programa a Volkswagen pode obter para os veículos equipados com o motor ... a homologação prevista na regulamentação da União.

Segundo a VHI, o dano para os proprietários desses veículos reside no facto de que, caso tivessem tido conhecimento dessa manipulação, ter-se-iam abstido de comprar esses veículos ou teriam obtido um desconto sobre o respetivo preço de, pelo menos, 30%. Uma vez que os veículos em causa contêm desde o início um vício, o seu valor de mercado e, portanto, o seu preço de compra são claramente inferiores ao preço efetivamente pago. A diferença representa um dano que dá direito a indemnização.

Assim, tendo em conta a jurisprudência firmada e supra mencionada no ponto 3.2.1.1, afirmou o TJUE, nos pontos 29 a 39 do referido acórdão, que, no caso de uma comercialização de veículos equipados pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape e consistindo o dano alegado numa menos-valia dos veículos em causa, resultante da diferença entre o preço que o adquirente pagou por esse veículo e o seu valor real em razão da instalação de um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, há que considerar que, apesar de esses veículos se encontrarem afetados por um vício desde a instalação desse programa informático, aquele dano, que não existia antes da compra do veículo pelo adquirente final, que é o lesado direto, constitui um dano inicial na aceção da jurisprudência recordada nos supra citados acórdãos Marine e Tibor-Trans e não uma consequência indireta do dano inicialmente sofrido por outras pessoas na aceção da jurisprudência referida no citado acórdão Dumez France e Tracoba.

Mais do que um dano puramente patrimonial, trata‑se de um dano material resultante de uma perda de valor de cada veículo em causa e decorrente do facto de, com a revelação da instalação do programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, o pagamento efetuado para a aquisição desse veículo ter como contrapartida um veículo afetado por um vício e, portanto, com um valor inferior.

Daí impor-se concluir que, no caso de uma comercialização de veículos equipados pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, o dano sofrido pelo adquirente final materializa-se no momento da compra desse veículo a um terceiro por um preço superior ao seu valor real.

E que, nestas circunstâncias concretas, a interpretação do artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012, no sentido de que o tribunal do « lugar onde ocorreu o facto danoso» é o tribunal do lugar da aquisição do veículo em causa pelo adquirente final, respeita o objetivo de previsibilidade das regras de competência, referido no considerando 15 deste mesmo regulamento, visto que um construtor automóvel estabelecido num Estado-Membro que se dedique a manipulações ilícitas sobre veículos comercializados noutros Estados-Membros pode razoavelmente esperar que o dano se produza nos Estados-Membros onde o veículo em causa foi adquirido por uma pessoa que confiava, legitimamente, que esse veículo estaria em conformidade com essas prescrições e que, depois, verifica que dispõe de um bem defeituoso e de menor valor, podendo, de igual modo, esperar ser demandado nos órgãos jurisdicionais desses Estados ( v. por analogia, Acórdãos Kolassa, C-375/13, nº 56 e Löber, C-304/17, nº 35),

E respeita também os objetivos de proximidade e de boa administração da justiça, referidos no considerando 16 do referido regulamento, na medida em que o tribunal do Estado-Membro em cujo território esse veículo foi comprado tem mais facilmente acesso aos meios de prova necessários à realização da avaliação das respetivas condições do mercado (cfr. Acórdão Tibor-Trans, C-451/18, nº 34).

Mas, para além de tudo isto, está ainda em conformidade com as exigências de coerência previstas no considerando 7 do Regulamento Roma II, uma vez que um ato como o que está em causa no processo principal, na medida em que é suscetível de afetar os interesses coletivos dos consumidores enquanto grupo, constitui um ato de concorrência desleal (Acórdão de 28 de julho de 2016, Verein für Konsumenteninformation, C-191/15 [---], nº. 42) e pode afetar esses interesses em qualquer Estado-Membro em cujo território o produto defeituoso seja comprado pelos consumidores

E está, de igual modo, em conformidade com disposto no artigo 6º, nº1, do referido regulamento, segundo o qual o lugar onde ocorreu o dano num processo que envolva um ato de concorrência desleal é o lugar onde «as relações de concorrência ou os interesses coletivos dos consumidores sejam afetados ou sejam suscetíveis de ser afetados», ou seja, o lugar onde o produto é comprado (v., por analogia, citado Acórdão Tibor-Trans, C-451/18, nº. 35).

Assim, em face do exposto, declarou que «o artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado-Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado-Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado-Membro.»

Mas se assim é, dúvidas não restam que o TJUE já respondeu a esta questão, pelo que não se vislumbra razão para formular, de novo, esta questão prejudicial."

[MTS]


26/05/2022

Admissão indevida do recurso de revista



[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]



Jurisprudência 2021 (205)


Matéria de facto;
recurso; impugnação especificada


1. O sumário de STJ 14/10/2021 (374/17.4T8FAR.E2.S1) é o seguinte:

I. A delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa assenta na noção de relação jurídica administrativa, abrangendo apenas os litígios em que um dos sujeitos é uma entidade pública ou uma entidade privada que atua como se fosse pública e em que os direitos e os deveres que constituem a relação emergem de normas legais de direito administrativo ou referem-se ao âmbito substancial da própria função administrativa.

II. Não cabe, assim, no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais julgar litígios no domínio das relações entre particulares, titulares de direitos reais, regidas pelas normas do Código Civil, da competência residual dos tribunais judiciais.

III. Cumpre o ónus impugnativo previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 640º, do Código de Processo Civil, quem rebate, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tenta demonstrar que a prova que esteve na base da formação da convicção do tribunal inculca outra versão dos factos, não constituindo fundamento para a rejeição do recurso, nesta parte, a falta de indicação, nas conclusões recursórias, dos meios concretos de prova nem das passagens das gravações constantes do corpo alegatório, visto que não têm por função delimitar o objeto do recurso, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2.2. Do ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto previsto na alínea a) do nº 2 do art. 640º, do CPC. 

A este respeito importa sublinhar, como já se afirmou nos Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 21.03.2019 (processo nº 3683/16.6T8CBR.C1.S2) e de 03.10.2019 (processo 77/06.5TBGVA,C2.S2) [---], que o exercício efetivo pelo Tribunal da Relação do duplo grau de jurisdição quanto à decisão da matéria de facto, incluindo a eventual reapreciação de depoimentos gravados, prestados oralmente na audiência de discussão e julgamento, à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, tem como contrapartida a imposição aos recorrentes de um rigoroso ónus de impugnação por forma a impedir que «a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo [Neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed. , pág. 169].

Daí dispor o art.º 640.º do C. P. Civil que:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)».

Na expressão do Acórdão do STJ, de 29.10.2015 (processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1[---], consagra este regime processual um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.

Assim, nesta conformidade, integram um ónus primário, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do nº 1 do citado art. 640º, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto [---].

Mas, já constituirá um ónus secundário, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640º, pois tem, sobretudo, por função facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência.

E se é certo cominar a lei o incumprimento do ónus primário e do ónus secundário de igual forma, ou seja, com a sanção da rejeição imediata do recurso [cfr. art 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do mesmo artigo], não sendo consentida a formulação ao recorrente de um convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, a verdade é que, tal como se afirma no citado Acórdão do STJ, de 29.10.2015, «não poderá deixar de ser avaliada diferentemente a falha da parte consoante ocorra num ou noutro âmbito».

Dito de outro modo e nas palavras do Acórdão do STJ, de 19.02.2015 (processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1[---], enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1 do referido art. 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, al. a) do mesmo artigo, tal sanção deverá ser aplicada com algum tempero, só se justificando nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame por banda do tribunal de recurso.

Desde que não exista essa dificuldade, apesar da indicação pelo recorrente da localização dos depoimentos não ser totalmente exata e precisa, não se justifica a rejeição do recurso.

E, quanto à problemática de saber se tais requisitos do ónus impugnativo devem constar, formalmente, das conclusões recursórias ou bastará incluí-los no corpo alegatório, refere o Acórdão do STJ, de 19.02.2015 (processo nº 99/05.6TBMGD.P2.S1) [---] que a resposta a dar a esta questão depende da função que está subjacente a cada um dos referidos ónus.

Deste modo, «constituindo a especificação dos pontos concretos de facto um fator de delimitação do objeto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões recursórias [---], por força do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugadamente com o art. 640º, nº 1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente, o preceituado no nº 1 do art. 639º, todos do CPC».

Mas, já assim não acontece com a especificação dos meios concretos de prova nem com a indicação das passagens das gravações visto que «não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória». 

*

No caso dos autos, verifica-se que os autores interpuseram recurso de apelação da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância e impugnaram, para além do mais, a decisão sobre a matéria de facto, sustentando, nas conclusões das suas alegações de recurso que:

«XVI. Não existe compatibilidade entre o teor dos depoimentos das testemunhas, da prova documental e da prova pericial e os factos dados como provados

XVII. Os depoimentos das testemunhas, arroladas pela ré, revelam-se contraditórios e nenhuma destas testemunhas conseguiu indicar com exatidão o local onde, alegadamente, se situa o prédio de ré.

XVIII. Relativamente ao estado de conservação do prédio da ré à data dos factos, os depoimentos das várias testemunhas são contraditórios.

XIX. Toda a prova testemunhal foi produzida por confrontação com o levantamento topográfico a fls. 355 dos autos, elaborado com base nas informações prestadas pela filha da ré, parte interessada na causa.

XX. O douto Relatório Pericial é totalmente omisso quanto aos documentos matriciais, registrais e cadastrais de todos os prédios, sem qualquer base científica, baseado unicamente no Levantamento Topográfico, a fls 355 dos autos, realizado pelos topógrafos Jorge M. L. Batista e Rita Batista.

XXI. Conclui-se que face a prova testemunhal, prova documental e prova pericial produzida em sede de audiência de julgamento, impunha-se ao tribunal considerar como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 13 e 27 a 29, da fundamentação de facto da douta sentença.

XXII. Conclui-se que o douto tribunal a quo, atenta a prova produzida, deveria ter considerado provado que os lotes ... e ..., forma legalmente adquiridos pela autora Radical Red Holdings LLC, reconhecendo-se os autores DD e EE como legítimos proprietários dos referidos lotes, na sequência da aquisição dos mesmos por escritura pública de compra e venda à Radical Red Holdings, LLC.

XXIII. Conclui-se que o tribunal a quo não realizou convenientemente o exame crítico das provas, conforme dispõe o art.º 607º, n.º 5 , do CPC

Pronunciando-se sobre este segmento do recurso, o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão ora recorrido, considerou que os apelantes não respeitaram os requisitos formais do ónus de impugnação da decisão de facto exigidos pelo art. 640º, do CPC, em consequência do que decidiu rejeitar, nesta parte, o recurso interposto, com base na seguinte fundamentação, que se transcreve:

«Os recorrentes propõem-se impugnar a matéria de facto.

Alegam que, face a prova testemunhal, documental e pericial, produzida em sede de audiência de julgamento, impunha-se ao tribunal considerar como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 13 e 27 a 29, da fundamentação de facto da douta sentença.

E ainda que, atenta a prova produzida, deveria ter considerado provado que os lotes ... e ..., forma legalmente adquiridos pela autora Radical Red Holdings LLC.

Porém entendemos que não cumpre o ónus respetivo.

Nos termos do art.° 640.° do CPC:

(…) Esta exigência de especificação dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, só se satisfaz se essa concretização for feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, (neste sentido, Acórdão do STJ de 19.02.2015, Relatora: Maria dos Prazeres Beleza, processo n.° 405/09.1TMCBR.C1.S1)

Ora, não cumpre este ónus o recorrente que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em blocos ou temas de factos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna, do que decorre a rejeição do recurso na parte afetada. (neste sentido, vide o Acórdão do STJ de 05.09.2018 proferido no processo n.° 15787/ 15.8T8PRT.P1.S2).

É o que se passa no nosso caso.

Com efeito, os recorrentes limitam-se a descrever a sua posição sobre a apreciação das provas por referência a temas da matéria de facto.

E mesmo quando criticam a natureza e o teor de alguns depoimentos e o alcance da prova pericial e documental não fazem qualquer ligação com os factos concretos que entendem incorretamente julgados, ou seja, fazem uma análise em termos genéricos.

Esta forma de impugnação da matéria de facto sendo, sem dúvida, mais fácil e expedita, não é a legalmente imposta.

A ideia legal da impugnação implica a confrontação específica e concreta das provas, com as alegadas "patologias" de cada facto impugnado.

E estas omissões não são apenas omissões relativas às conclusões do recurso, mas sim de todo o texto do mesmo, pelo que, ainda que se considere que não é de exigir nas conclusões, a reprodução do que alegou anteriormente, ainda assim, há incumprimento de tal ónus, porque nem no texto encontramos os pontos referidos. (…)

O não cumprimento dos ónus impostos à recorrente implica a rejeição do recurso, sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento, (…)

Pelo exposto, decide-se rejeitar, nesta parte, o recurso interposto».

Contra este entendimento, insurgem-se os recorrentes, persistindo na defesa de que cumpriram o ónus de impugnação imposto pelo art. 640º, do CPC, pois, na impugnação da matéria de facto realizada no âmbito do recurso de apelação não só indicaram os pontos de facto impugnados, a resposta a dar aos mesmos, os meios de prova e passagens de gravações dos depoimentos que no seu entender impõem decisão diversa da proferida, procedendo à transcrição dos excertos considerados importantes, como fizeram uma análise crítica do sentido das respostas dadas e indicaram o motivo pelo qual as respostas deveriam ser negativas. [...]

*

[...] quanto à questão do cumprimento do referido ónus, julgamos assistir razão aos recorrentes.

Senão vejamos.

Lendo os pontos 52 a 143 das alegações de recurso de apelação dos autores, verifica-se que, em sede de impugnação da matéria de facto, discordam os mesmos dos factos dados como provados pelo tribunal de 1ª instância e supra descritos nos nºs 3 a 13 (todos eles respeitantes à composição, área, configuração, localização do prédio da ré e respetiva utilização) e nos nºs 27 a 29 (atinentes à área e confrontações dos lotes ... e ... dos autores), sustentando que as provas testemunhal, documental e pericial que serviram de base à formação da convicção do Tribunal de 1ª Instância revelam-se inconsistentes e enfermam de várias contradições, pelo que impunha-se ao tribunal considerar, por um lado, como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 13 e 27 a 29, da fundamentação de facto da douta sentença.

E, por outro lado, devia ter considerado provado que os lotes ... e ..., foram legalmente adquiridos pela autora Radical Red Holdings LLC. [...]

É que o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, atua também nesta vertente, sendo lícito ao impugnante, tal como referem Abrantes Geraldes e outros [In “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 2018, págs. 770 e 771], «rebater, de forma suficiente  e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente», situação em que «deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilidade dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente».

E se é certo não terem os recorrentes indicado, nas conclusões recursórias, os meios concretos de prova nem das passagens das gravações, certo é também que, de acordo com a jurisprudência firmada deste Supremo Tribunal, bastará incluí-las no corpo alegatório, visto estarmos perante um ónus que «não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória». 

Daí que, nestas circunstâncias e em conformidade com o entendimento acima perfilhado se considere que os recorrentes cumpriram o núcleo essencial do ónus de impugnação prescrito no art. 640º, do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso.

Vale tudo isto por dizer que o acórdão ora recorrido interpretou e aplicou erradamente os parâmetros processuais que disciplinam o seu poder de cognição da decisão de facto impugnada, mormente os constantes do artigo 640.º, n.º 1, als. a) e c) e nº 2, alínea a), do CPC, o que importa a sua anulação, ficando, deste modo, prejudicado o conhecimento da terceira questão suscitada no âmbito do recurso de revista interposto pelos autores e supra enunciada no ponto 3.2.2, uma vez que a mesma tem subjacente matéria de facto que foi objeto de impugnação por parte dos autores."

[MTS]