"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/03/2021

Bibliografia (966)


-- Peter C.H. Chan / C.H. van Rhee (Eds.), Civil Case Management in the Twenty-First Century: Court Structures Still Matter (Spinger Singapore 2021)



Jurisprudência 2020 (180)


Processo de inventário; 
remessa do processo; prazo


1. O sumário de RG 1/10/2020 (608/20.8T8VNF.G1) é o seguinte:

I- Tendo a alteração de regime de inventário, com a publicação da Lei nº 117/19, de 13 de setembro, como objetivo principal evitar a morosidade dos processos, querendo que os interessados nos inventários obtenham o desfecho do processo em tempo útil, para que esses interessados possam pedir a remessa do processo a tribunal nas condições previstas na al. b) do nº 2 do art. 12º, não é necessário que o prazo de pendência do processo sem andamento útil e efetivo tenha de decorrer inteiramente a partir da entrada em vigor dessa Lei. 


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

O inventário em causa nos presentes autos foi instaurado na vigência da Lei nº 23/2013 de 5/3, que atribuía aos Notários competência exclusiva para o processamento dos atos e termos do processo de inventário relativamente aos inventários instaurados a partir da entrada em vigor daquela Lei, tendo o Juiz apenas competência para intervir em situações específicas aí expressamente previstas (art. 3º,nºs 1 e nº 4 e art. 66º do referido diploma)

Em 1 de janeiro de 2020 entrou em vigor o novo regime do processo de inventário, alterado pela Lei nº 117/2019 de 13 de setembro. que consagrou um regime de competência concorrente entre os Tribunais e os Cartórios Notariais, com as exceções aí previstas, regime este apenas aplicável aos processos cuja instauração ocorresse após o início da sua vigência (v. art. 11º, nº 1).

No entanto, no art. 12º da Lei 117/19 – norma transitória - prevêem-se situações em que inventários pendentes nos cartórios notariais são remetidos aos tribunais judiciais.

Nos termos do nº 1 dessa norma, são oficiosamente remetidos pelo Notário ao Tribunal, os inventários em que sejam interessados diretos menores, maiores acompanhados ou ausentes.

No nº 2 deste preceito prevê-se a remessa facultativa ao Tribunal, a pedido de qualquer interessado direto, de inventários que se encontrem suspensos, há mais de um ano, ao abrigo do disposto no art. 16º do regime jurídico do processo de inventário (al. a) ou que estejam parados, sem realização de diligências, há mais de seis meses (al. b).

Foi ao abrigo desta última disposição que o ora Recorrente pediu a remessa do inventário ao Tribunal, tendo a mesma sido deferida pelo Sr. Notário competente.

Para estabelecer ou não a competência do Tribunal para os termos do presente inventário é necessário pois, saber como se conta o prazo de seis meses previsto na referido disposição legal.

A Srª Juiz a quo entende que tal prazo se conta da entrada em vigor da mencionada Lei mas não podemos concordar com tal entendimento.

Vejamos:

Na exposição de motivos da proposta de Lei que deu origem ao diploma resulta que a nova Lei se destinou a superar os constrangimentos verificados durante a vigência do regime anterior, designadamente “os tempos desrazoáveis de resolução, com prejuízos, tanto para a situação jurídica dos cidadãos, como para o interesse coletivo de ordenamento do território (…)”.

A norma transitória em análise tem como fim permitir aos interessados reagir contra situações em que “ocorreu uma demora anormal que pode traduzir-se na violação do direito de acesso à justiça em tempo útil” (v. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres in O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, pág. 168).

Ora, em face dos objetivos enformadores da Lei em análise, não faria sentido que, estando o processo parado há mais de seis meses aquando da entrada em vigor dessa Lei, os interessados ainda tivessem que esperar mais seis meses para requerer a remessa do mesmo a Tribunal (implicando na prática que o processo pudesse estar parado mais de um ano sem justificação) pois, tendo a alteração de regime como objetivo principal evitar a morosidade dos processos, querendo que os interessados nos inventários obtenham o desfecho do processo em tempo útil, o entendimento de que o prazo previsto na al. b) do nº 2 do art. 12º da Lei nº 117/2019 se conta da sua entrada em vigor, é contrário ao espírito da lei.

Neste sentido, dizem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres (in ob. cit, pág. 168) que “Atenta a teleologia do estabelecido no nº 2, al. b) – que visa proteger os interessados de uma demora no processamento do inventário que pode ser lesiva do direito a uma decisão em tempo razoável -, não se deve exigir que o prazo de pendência do processo sem andamento útil e efectivo careça de decorrer inteiramente a partir de 1/1/20. Para que se possa requerer o desaforamento previsto no nº 2, al. b), basta que nessa data, já tenha decorrido todo o prazo de seis meses ou que, nessa mesma data, já se tenha iniciado o decurso desse prazo. Não se trata, pois, de uma situação de retroactividade, mas antes de uma hipótese de retroconexão: produção de efeitos no domínio da lei nova (faculdade de requerer a remessa do processo) com base em factos ocorridos no domínio da lei antiga (decurso total ou parcial, do prazo).”.

Em face do que acima se disse, há que revogar a decisão recorrida, devendo o Tribunal recorrido aceitar a competência para os termos do inventário em análise."

[MTS]


30/03/2021

Jurisprudência 2020 (179)


Servidão predial; 
acção inibitória; legitimidade passiva*


I. O sumário de RC 13/7/2020 (178/16.1T8TND.C1) é o seguinte:


1.- Se o autor não instaura uma acção constitutiva de um direito de servidão de passagem e de servidão de águas, mas peticiona apenas que se declare a existência dos referidos direitos com a inerente condenação da parte contrária ao seu reconhecimento e para que deixe de praticar actos lesivos desses alegados direitos, deverão estar em juízo as pessoas que alegadamente se encontrem a violar o direito do autor.

2.- A servidão de passagem por destinação do pai de família constitui-se no momento em as fracções de um determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes.

3.- A servidão de presa traduz-se, no direito de captar e derivar a água, em benefício do prédio dominante, por meio de levadas, canais ou outras obras análogas, no prédio serviente. A servidão de aqueduto consiste essencialmente no direito de conduzir a água através do prédio serviente, para o prédio dominante.

4.- Para a aquisição do direito de servidão de águas, torna-se ainda necessário, identificar o prédio onde exista a fonte ou nascente que revelem a captação e a posse da água nesse prédio e o prédio serviente (art. 1390.º nº2 do CC).


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No caso em apreço consideramos que não foi preterido o litisconsórcio necessário porque estamos perante uma acção de condenação e não uma acção constitutiva e nessa medida as partes são legitimas porque a acção tem acautelado o seu efeito útil com as partes da acção. Não se tendo invocado que os terceiros referidos coloquem em causa a servidão de pé e de aqueduto e presa e atenta a natureza da acção consideramos que a decisão a proferir produz o seu efeito útil quanto aos réus que é cessar a alegada violação dos direitos invocados.

No caso dos autos o que é peticionado pelo autor é o reconhecimento da servidão constituída por destinação do pai de família e usucapião de pé, presa e de aqueduto e a condenação dos réus ao seu reconhecimento e que se abstenham de actos impeditivos da passagem e uso da água e a prática de actos que evitem a obstrução dessa utilização. O autor refere que quem coloca em causa ou obstáculos ao normal exercício das invocadas servidões são os réus referidos e não se invoca que os terceiros estejam a impedir a sua utilização e nessa medida não existe litisconsórcio passivo.

Configurada nestes termos a relação material controvertida, por referência ao pedido concretamente formulado, torna-se evidente que o litígio concreto a dirimir apenas diz respeito aos autores e aos réus.

Neste sentido, vide o AC da RC Processo: 640/13.8TBLMG.C1, Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE Data do Acórdão: 02-04-2019: «Sumário: I – Sendo o objectivo da legitimidade, em última análise, o de que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, de molde a não voltar a repetir-se, a aferência da legitimidade plural terá necessariamente que passar pela natureza e fim da acção.

II – Se, nas acções meramente declarativas, deverão estar em juízo as pessoas que disputam a situação activa ou passiva em causa, e se nas acções constitutivas se requererá a presença de todos os sujeitos da relação jurídica a constituir, modificar, ou extinguir, nas acções de condenação, o normal é que baste à legitimidade plural a presença passiva na lide de quem se encontre a violar o direito do autor.

III- A A. nos presentes autos não pretende uma alteração na ordem jurídica existente, mas apenas que, reconhecendo-se que tem direito à água da barroca pelo instituto da preocupação e à água das duas nascentes pelos institutos da usucapião e destinação do pai de família, esses seus direitos sejam reintegrados com a condenação dos RR. a limparem o rego e a permitir-lhes, a ela e aos seus familiares, o acesso à barroca, mina, rego e poças.

IV – Por isso, basta que a A. intente a acção contra quem se encontra a violar aqueles direitos.

V – Exigir a presença passiva dos proprietários dos prédios em que se situam as nascentes, a barroca, a mina e as poças, bem como a de todos os proprietários por cujos prédios a água passe, implicaria denegar ou dificultar substancialmente direitos…»(sic).

Igualmente, neste sentido, vide o Ac. RG 1428/12.9TBBCL.G2, Relator: EVA ALMEIDA, 11-10-2018: «Sumário: I - A servidão predial define-se como “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente” – art.º1543º do CC. Foi doado aos autores um prédio que beneficia das águas captadas noutro prédio e não as águas, como coisa autónoma (204º nº 1 al. b) do CC), separadas do prédio onde nascem ou são captadas e sem afectação a qualquer outro prédio. No caso e nas palavras da escritura de doação as águas pertencem ao prédio dos autores, são um benefício deste prédio e efectivamente assim vêm sendo fruídas. Estamos por isso perante um encargo sobre um prédio a favor de outro prédio determinado, que foi doado aos autores com esse benefício. O direito às águas está assim estabelecido não a favor dos autores (direito de propriedade), mas sim do respectivo prédio (servidão de águas).

II - O facto do nosso entendimento sobre a natureza do direito à água invocado pelos autores divergir conceptualmente do que consta da sentença recorrida, em nada afecta a sorte da presente acção, em que os autores, como pressuposto dos direitos que aqui pretendem ver reconhecidos (servidão de aqueduto e a adminiculum de passagem) apenas têm de provar o direito à água que é conduzida subterraneamente através do prédio dos réus, sendo indiferente que se trate de um amplo direito de propriedade sobre essas águas ou de um mais limitado direito, de fruírem no respectivo prédio da água captada num determinado prédio de terceiros (servidão de águas).

III - Em qualquer dos casos, é título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões, nomeadamente a usucapião, quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio (art.º 1390º do CC), como é o caso.

IV - Esta acção não é constitutiva, antes se apresentando como uma acção de condenação, na qual os autores, arrogando-se a titularidade de direitos que alegam ter sido violado pelos réus, pretendem se declare a existência e a violação desses direitos e se determine aos réus a realização da prestação (em regra, uma acção mas podendo bem ser uma abstenção ou omissão) destinada a reintegrar os direitos violados ou a reparar de outro modo a falta cometida.

V – Assim, tal como a propósito da desnecessidade de intervenção nesta acção dos proprietários do prédio onde são captadas as águas, também relativamente aos proprietários dos prédios atravessados pelo aqueduto (mina), não se impõe a sua demanda, nem reconhecimento nesta acção das demais servidões de aqueduto constituídas sobre prédios de terceiros, para que os autores vejam reintegrado o seu direito de servidão de aqueduto sobre o prédio dos réus.»(sic).

Igualmente no mesmo sentido vide o AC RG Processo: 76/09.5TBMLG.G1 Relator: MANUEL BARGADO 22-02-2011: « Sumário: 1. Se os autores pedem que o réu seja condenado a reconhecer que aqueles são os proprietários das águas com que irrigam o seu prédio rústico e que o prédio do réu está onerado com uma servidão de aqueduto em benefício do seu prédio, e ainda a sua condenação a desobstruir o rego que corre a céu aberto no seu prédio por forma a permitir que as águas sejam conduzidas até ao prédio dos autores e a abster-se, no futuro, de praticar quaisquer actos que impeçam essa mesma condução da água, não é necessária a demanda do proprietário do prédio onde se situa a poça donde provem aquela água, para que esteja assegurada a legitimidade do réu na acção.

2. O direito à água que nasce em prédio alheio pode ser – conforme o título da sua constituição – um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, ou seja, um direito de propriedade; e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes às necessidades deste, isto é, um direito de servidão.

3. Porém, para a aquisição do direito por usucapião, trate-se da aquisição da propriedade ou de servidão, torna-se ainda necessário, além dos demais requisitos exigidos por lei, este outro: o da construção de obras visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio.

4. Na dúvida quanto aos termos em que se processa a posse, mas sendo seguro que há a intenção de se exercer um direito real, deve concluir-se que se quer possuir em termos de direito de propriedade.».

Conforme se refere no citado acórdão que estamos a acompanhar dado o paralelismo com o caso dos autos: «… Não se vê, pois, considerando a relação material controvertida tal como foi configurada pelos autores/recorrentes, que a decisão a obter só produza o “efeito útil normal” com a presença na lide do proprietário (ou proprietários) do referido prédio da Leira de Canle, e em relação aos quais em momento algum da petição inicial é afirmado que tenham colocado em questão os direitos a que os autores/recorridos se arrogam, sendo certo que também não alegou o réu/recorrido que a obstrução à passagem das águas para o prédio dos recorrentes realizada no seu prédio, tenha sido efectuada por ordem ou com o consentimento desse proprietário, caso em que se justificaria o seu chamamento ao processo através do respectivo incidente de intervenção principal provocada.

… Não é uma acção deste tipo que está em causa nos presentes autos: os autores não pretendem que seja constituído um direito de propriedade sobre as águas em questão nem que seja constituída uma servidão de aqueduto sobre o prédio do réu (art. 1550º do Código Civil), mas apenas que se declare a existência de tais direitos, com a consequente condenação do réu no seu reconhecimento e na realização da prestação destinada a reintegrar aqueles direitos violados, mediante a desobstrução do rego a céu aberto que passa no prédio do réu e que este se abstenha, no futuro, de praticar qualquer acto lesivo desses mesmos direitos.

A acção em causa apresenta-se, assim, como uma acção de condenação, na qual o autor, “arrogando-se a titularidade dum direito que afirma estar sendo violado pelo réu, pretende se declare a existência e a violação do direito e se determine ao réu a realização da prestação (em regra, uma acção mas podendo bem ser uma abstenção ou omissão) destinada a reintegrar o direito violado ou a reparar de outro modo a falta cometida” (cfr. Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., revista e actualizada, 1985, pág. 17).

Assim, só faria sentido a demanda do proprietário (ou proprietários) do prédio denominado Leira da Canle, onde se situa a poça donde provêm as águas em causa, se aquele de alguma forma questionasse os direitos dos autores/recorrentes, o que não se verifica in casu, considerando a relação material controvertia apresentada pelos autores…»(sic).

Acompanhando este último acórdão concluímos que atento o teor da causa de pedir e pedidos formulados pelo autor que as partes são legitimas não existindo litisconsórcio necessário em relação aos terceiros referidos."

*III. [Comentário] Embora a RC nunca o referira, a acção pendente é uma acção inibitória, dado que o autor pretende obter a condenação dos réus a absterem-se de perturbar o gozo de uma servidão predial. No âmbito dos direitos reais, a acção inibitória deve ser proposta contra o "perturbador" ou "estorvador" ("Störer", na expressão do § 1004 BGB). Nesta base, a RC decidiu bem.

MTS


29/03/2021

Jurisprudência 2020 (178)


Título executivo; sentença condenatória;
execução nos autos; execução para entrega de coisa


I. O sumário de RL 1/10/2020 (5993/19.1T8LSB-A.L1-8) é o seguinte:

1 - De acordo com o art. 704º nº 1 do C.P.C., a regra é só ser exequível a sentença condenatória transitada em julgado.

2 - Esta regra conhece uma exceção: a sentença condenatória pendente de recurso com efeito meramente devolutivo.

3 - Antes de apresentar requerimento executivo, a exequente deveria aguardar pelo termo do prazo para a interposição do recurso e, não se verificando o trânsito findo esse prazo por ter sido interposto recurso, deveria aguardar pelo despacho sobre o requerimento de interposição do recurso.

4 - É atendível a exequibilidade da sentença condenatória se, sendo posterior à apresentação do requerimento executivo, é anterior à entrega judicial.

5 - O capítulo onde se integra o art. 626º nº 3 do C.P.C. tem a epígrafe “efeitos da sentença” e, naquela disposição legal, o legislador não distingue decisão transitada em julgado de decisão não transitada em julgada, pelo que, na execução de sentença condenatória pendente de recurso com efeito meramente devolutivo, não tem a executada de ser citada antes da entrega judicial.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Conforme resulta do disposto no art. 729º al. a) do C.P.C., aplicável por força do art. 860º nº 1 do C.P.C., a inexistência ou inexequibilidade do título é um dos fundamentos de oposição à execução para entrega de coisa certa baseada em sentença.

Por força do art. 703º nº 1 al. a) do C.P.C., a sentença condenatória pode servir de base à execução.

O art. 704º do C.P.C., com a epígrafe “requisitos da exequibilidade da sentença”, dispõe, no seu nº 1, o seguinte: “a sentença só constitui título executivo depois do trânsito em julgado, salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo”.

A regra é só ser exequível a sentença condenatória transitada em jugado.

Esta regra conhece uma exceção: a sentença condenatória pendente de recurso com efeito meramente devolutivo.

Nos termos do art. 628º do C.P.C., “a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.

Conforme resulta da matéria de facto provada, o requerimento executivo foi apresentado a 14 de março de 2019, ou seja, quando ainda estava a correr o prazo para a interposição do recurso e, portanto, quando a sentença condenatória ainda não era exequível.

A exequente deveria ter aguardado pelo termo do prazo para a interposição do recurso e, não se verificando o trânsito findo esse prazo por ter sido interposto recurso, deveria ter aguardado pelo despacho sobre o requerimento de interposição do recurso (neste mesmo sentido, www.dgsi.pt Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de outubro de 2019, processo 20069/17.8T8LSB-A.L1-4).

A 30 de abril de 2019, a 1ª instância admitiu o recurso com efeito meramente devolutivo.

É certo que resulta do disposto no art. 645º nº 1 do C.P.C. que “a decisão que admita o recurso… e determine o efeito que lhe compete não vincula o tribunal superior”, mas certo é também que, nos termos do art. 654º nº 3 do C.P.C., decidindo a Relação “que à apelação, recebida no efeito meramente devolutivo, deve atribuir-se efeito suspensivo é expedido ofício, se o apelante o requerer, para ser suspensa a execução”.

Assim, a sentença condenatória tornou-se exequível a 30 de abril de 2019.

Nos termos do art. 85º nº 2 do C.P.C., “quando, nos termos da lei de organização judiciária, seja competente para a execução secção especializada de execução, deve ser remetida a esta, com caráter de urgência, cópia da sentença, do requerimento que deu início à execução e dos documentos que o acompanham”.

O requerimento executivo não tem de ser apresentado com certidão judicial da sentença condenatória com nota de trânsito ou, não tendo a sentença transitada, com cópia do despacho que fixou o efeito meramente devolutivo ao recurso.

É o funcionário judicial que tem de remeter ao juízo de execução o título executivo, bastando-se a lei com o envio de cópia da sentença.

Assim, se é certo que, nos termos do art. 10º nº 5 do C.P.C., “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”, certo é também que, na execução de sentença condenatória, o juiz de execução não pode aferir, pela cópia da sentença, a exequibilidade ou não da sentença.

Os presentes embargos foram deduzidos a 24 de outubro de 2019 e, nas alegações de recurso, a embargante refere que a entrega da loja foi feita a 15 de novembro de 2019. Nestas datas, já a sentença condenatória era exequível.

Não há, pois, motivo para não atender à exequibilidade superveniente da sentença condenatória.

Nos termos do art. 859º do C.P.C., “na execução para entrega de coisa certa, o executado é citado para, no prazo de 20 dias, fazer a entrega ou opor-se à execução mediante embargos”.

Contudo, resulta do disposto no art. 626º nº 3 do C.P.C., que, “na execução de decisão judicial que condene na entrega de coisa certa, feita a entrega, o executado é notificado para deduzir oposição, seguindo-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 860º e seguintes”.

O capítulo onde se integra esta disposição legal tem a epígrafe “efeitos da sentença” e, nela, o legislador não distingue decisão transitada em julgado de decisão não transitada em julgado, pelo que não deve o intérprete distinguir.

Assim, não tinha a executada de ser citada antes da entrega da loja."

[MTS]


26/03/2021

Jurisprudência 2020 (177)


União de facto; dissolução;
arrolamento; competência material


1. O sumário de RG 24/9/2020 (1016/20.6T8VCT.G1) é o seguinte:

I - O legislador tem vindo a adotar medidas no sentido da tendencial e progressiva equiparação entre o regime jurídico próprio do casamento e as situações decorrentes da união de facto, com a efetiva proteção dos agregados familiares constituídos fora do vínculo matrimonial e a extensão aos mesmos de diversos direitos inicialmente vigentes apenas no âmbito do casamento.

II - Pese embora esta tendencial equiparação de efeitos entre o casamento e a união de facto, as duas figuras permanecem autónomas e distintas, e as uniões de facto só podem ter os direitos que a lei que as rege especialmente lhes confere, não sendo legítimo estender-lhe as disposições referentes ao casamento.

III - Perante a ausência de estipulação legal sobre a matéria, a união de facto é insuscetível de originar um património comum entre os membros da união de facto que tenha de ser partilhado ou liquidado em caso de dissolução da mesma.

IV - A propriedade dos bens resultante da comunhão de vida e de contribuições patrimoniais ocorridas na vigência da união de facto tem de ser aferida no âmbito das estipulações sobre tal matéria feitas pelos membros da união de facto, no domínio da sua autonomia privada, designadamente para o caso de ocorrer a morte de um deles ou a rutura da união de facto – os denominados “contratos de coabitação – ou, na ausência destas, pelas regras gerais, designadamente pelo regime da compropriedade ou do enriquecimento sem causa.

V- A dissolução da união de facto decorre de forma direta e imediata da mera declaração de vontade de um dos seus membros e apenas tem de ser judicialmente declarada quando se pretendam fazer valer direitos que dela dependam, declaração que deve ser proferida na ação mediante a qual o interessado pretende exercer direitos dependentes dessa dissolução ou em ação que siga o regime processual das ações de estado (art. 8º, nºs 2 e 3, da LUF).

VI - O arrolamento de bens instaurado como preliminar de ação a instaurar contra a requerida para o reconhecimento da compropriedade dos bens após a cessação da união de facto que o requerente considera que integram o património comum pertencente a si e à requerida, e que estão em perigo de dissipação, ocultação ou extravio, não é dependente da existência da ação judicial de declaração da dissolução da união de facto instaurada no Juízo de Família e Menores nem a procedência dessa ação é condição para uma posterior ação de liquidação do património comum. Ao invés, tal arrolamento depende de ação que tem de ser instaurada ao abrigo do direito comum das relações obrigacionais e reais com vista ao reconhecimento da compropriedade dos bens.

VII - Sendo o procedimento cautelar de arrolamento dependente da ação de reconhecimento da compropriedade dos bens, a qual é uma ação declarativa de processo comum, e tendo valor superior a € 50 000, o mesmo enquadra-se na competência do Juízo Central Cível, nos termos do art. 117º, nº 1, al. c), da LOSJ.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como é sabido, o procedimento cautelar em que não foi decretada a inversão do contencioso é sempre dependência de uma ação.

Como regra geral, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado quer como preliminar, quer como incidente de ação declarativa ou executiva. Sendo requerido antes de proposta a ação, é o mesmo apensado aos autos desta logo que a ação seja instaurada e, se a ação vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da ação com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa (art. 364º, nºs 1 e 2, do CPC).

No que toca ao procedimento cautelar de arrolamento, o mesmo é dependência da ação à qual interesse a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas (art. 403º, nº 2, do CPC).

No caso em apreço, o procedimento de arrolamento foi instaurado como preliminar de ação a instaurar contra a requerida para o reconhecimento da compropriedade dos bens, conforme o requerente alega no seu requerimento inicial.

Tem como fundamento a cessação da união de facto que existiu entre si e a requerida e a existência de bens que o requerente considera que integram o património comum pertencente a si e à requerida e que estão em perigo de dissipação, ocultação ou extravio.

Perante este pedido e causa de pedir importa saber qual é a ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas (art. 403º, nº 2, do CPC).

A decisão recorrida considera que o arrolamento é dependência da ação de dissolução da união de facto entretanto proposta no Juízo de Família e Menores (ação nº 1590/20.7T8VCT). E, perante tal entendimento, concluiu, por decorrência lógica, que não se verifica o elemento de conexão previsto no art. 117º, nº 1, alínea c), da Lei 62/2013, de 26.8, (Lei da Organização do Sistema Judiciário, doravante designada por LOSJ), o que acarreta a incompetência material do Juízo Central Cível para a tramitação do arrolamento, em virtude de o mesmo só ter competência para procedimentos cautelares que sejam dependentes de ações para os quais esse Juízo tenha igualmente competência.

Para aferir qual é a ação da qual o arrolamento depende e se, como pressuposto na decisão recorrida, tal ação é a de dissolução da união de facto proposta no Juízo de Família e Menores, importa, ainda que brevemente, atentar no regime jurídico da união de facto.

Nesta matéria, ao longo do tempo, o legislador tem vindo a adotar medidas no sentido da tendencial e progressiva equiparação entre o regime jurídico próprio do casamento e as situações decorrentes da união de facto, com a efetiva proteção dos agregados familiares constituídos fora do vínculo matrimonial e a extensão aos mesmos de diversos direitos inicialmente vigentes apenas no âmbito do casamento.

Assim, a Lei 7/2001, de 11.5 (doravante designada como LUF), que atualmente rege esta matéria, veio adotar medidas de proteção das uniões de facto, qualificando a união de facto como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos (art. 1º, nº 2, da LUF).

No art 3°, a LUF atribui determinados direitos aos membros da união de facto idênticos aos que vigoram no casamento, designadamente ao nível da proteção da casa de morada de família, em matéria laboral no tocante a férias, feriados, faltas e licenças, em matéria fiscal no que concerne ao IRS, em matéria de proteção social na eventualidade de morte, em matéria de prestações devidas por acidente de trabalho ou doença profissional e de pensões por preço de sangue e por serviços excecionais e relevantes prestados ao país.

Pese embora esta tendencial equiparação de efeitos entre o casamento e a união de facto, as duas figuras permanecem autónomas e distintas, e as uniões de facto só podem ter os direitos que a lei que as rege especialmente lhes confere, não sendo legítimo estender-lhe as disposições referentes ao casamento.

Neste mesmo sentido, afirma-se no Acórdão do STJ, de 27.6.2019, Relator Pinto de Almeida (in www.dgsi.pt) que “casamento e união de facto são situações materialmente diferentes, não se justificando, nem havendo fundamento legal para estender a esta situação de facto as normas que disciplinam o casamento e respectivos efeitos”.

Na mesma linha de pensamento, escreveu-se no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 30.5.2018, Relator José Alberto Moreira Dias (in www.dgsi.pt) , que “com efeito, a união de facto não é casamento.

Quem recorre à união de facto faz a sua opção por não celebrar um casamento, constituindo uma intolerável violação da liberdade individual introduzir-se efeitos imperativos na área da união de facto destinados a equipará-la ou aproximá-la do casamento e que não foram queridos pelos cidadãos que recorreram a este meio informal de constituir família e que, de contrário, caso quisessem ser equiparados aos cônjuges, sem dúvida alguma teriam contraído matrimónio.

De resto, dentro do princípio da autonomia privada, onde se insere a liberdade contratual (arts. 405º do CC), esses cidadãos que recorrem à união de facto como modo de constituir família, podem, querendo, regular as suas relações jurídicas, designadamente em caso de morte de um dos elementos da união de facto ou de rutura desta, mediante a celebração de acordos a que a doutrina designa de “contratos de coabitação”.

Ora, no plano dos efeitos patrimoniais, o legislador, diversamente do que sucede no casamento, preferiu não estabelecer um regime patrimonial geral relativamente aos bens dos membros da união de facto, nem definir regras sobre a administração e disposição desses bens ou sobre as dívidas contraídas e a liquidação e partilha do património em virtude da dissolução da união de facto.

Como referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (in Curso de Direito da Família págs. 71 e 72), “não há aqui um regime de bens, nem têm aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento independentes do regime de bens, o chamado regime primário (artigos 1678º - 1697º do C.C.): administração dos bens dos cônjuges, dívidas dos cônjuges e bens que respondem por elas, partilha dos bens do casal, etc. Os membros da união de facto em princípio são estranhos um ao outro, ficando as suas relações patrimoniais sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais”.

Finda a união de facto, e não tendo aplicação o disposto nos artigos 1688º e 1689º do CC, pois, ao contrário do que se passa no casamento, não há bens comuns sujeitos a partilha, então, as regras a aplicar serão as que eventualmente tenham sido acordadas e, na sua falta, o direito comum das relações obrigacionais e reais.

Por conseguinte, perante a ausência de estipulação legal sobre a matéria, conclui-se que a união de facto é insuscetível de originar um património comum entre os membros da união de facto.

Como tal, a propriedade dos bens resultante da comunhão de vida e de contribuições patrimoniais ocorridas na vigência da união de facto tem de ser aferida no âmbito das estipulações sobre tal matéria feitas pelos membros da união de facto, no domínio da sua autonomia privada, designadamente para o caso de ocorrer a morte de um deles ou a rutura da união de facto – os denominados “contratos de coabitação – ou, na ausência destas, pelas regras gerais, designadamente pelo regime da compropriedade ou do enriquecimento sem causa.

O que é ponto assente, reafirma-se, é que a união de facto não gera ela própria qualquer património comum que tenha de ser partilhado ou liquidado em caso de dissolução da mesma.

No que concerne à dissolução da união de facto, a mesma ocorre com o falecimento de um dos membros, com o casamento de um dos membros ou por vontade de um dos seus membros (art. 8º, nº 1 da LUF).

Não há, por isso, necessidade de declaração judicial da dissolução da união de facto para que a mesma produza os seus efeitos dissolutórios, os quais decorrem de forma direta e imediata da mera declaração de vontade de um dos membros da união.

A dissolução por vontade de um dos seus membros apenas tem de ser judicialmente declarada quando se pretendam fazer valer direitos que dependam dela e tal declaração deve ser proferida na ação mediante a qual o interessado pretende exercer direitos dependentes dessa dissolução ou em ação que siga o regime processual das ações de estado (art. 8º, nºs 2 e 3, da LUF).

Não havendo que aplicar à união de facto as normas relativas ao regime do casamento, também não lhe é de aplicar o art. 409º, nº 1, do CPC, referente aos arrolamentos especiais, que prevê a possibilidade do arrolamento de bens comuns como preliminar ou incidente de ação de divórcio. Nem tal faria sentido pois, como explanado, não há necessidade de declaração judicial da dissolução da união de facto.

Logo, e contrariamente ao entendimento sufragado na decisão recorrida, o arrolamento de bens peticionado nestes autos não é dependente da existência da ação judicial de declaração da dissolução da união de facto que corre termos no Juízo de Família e Menores, nem a procedência dessa ação é condição para uma posterior ação de liquidação do património comum.

Tal solução implicaria a aplicação analógica à união de facto do regime de dissolução do casamento, do regime matrimonial quanto aos bens e subsequente necessidade de partilha do património comum, o que não é legítimo pois as duas figuras são distintas sendo que, reafirma-se, só se aplicam à união de facto o direitos e deveres que a lei especialmente lhe atribui e já não os decorrentes do regime jurídico do casamento.

Por conseguinte, o requerente pode instaurar a ação de reconhecimento de compropriedade dos bens e na mesma pedir a declaração de cessação da união de facto. Não tem que propor ação prévia e autónoma a pedir a declaração de dissolução da união de facto e o arrolamento não depende da ação 1590/20.7T8VCT que corre termos no Juízo de Família e Menores.

Naturalmente que a existência dessa ação 1590/20.7T8VCT em que é pedida a declaração de dissolução da união de facto pode levantar a questão da existência de causa prejudicial e originar a suspensão da instância relativamente à ação de reconhecimento de compropriedade em que também seja pedida a declaração de cessação da união de facto; mas tal questão não interfere nem com a determinação da ação de que o arrolamento depende nem com a determinação da competência do Tribunal.

Como tal, e ao contrário do entendimento perfilhado na decisão recorrida, o arrolamento não depende da procedência da ação de declaração judicial da cessação da relação de união de facto que o requerente intentou no Juízo de Família e Menores (1590/20.7T8VCT).

Ao invés, depende de ação que tem de ser instaurada ao abrigo do direito comum das relações obrigacionais e reais com vista ao reconhecimento da compropriedade dos bens.

Dispõe o art. 117º da LOSJ que:

1 - Compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;
b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.

O presente arrolamento tem o valor de € 80 513,51.

Das disposições conjugadas do art. 117º, nº 1, als. a) e c), da LOSJ, resulta que os juízos centrais cíveis são competentes para os procedimentos cautelares se forem igualmente competentes para as ações de que tais procedimentos dependem.

Sendo o procedimento cautelar de arrolamento dependente da ação de reconhecimento da compropriedade dos bens, a qual é uma ação declarativa de processo comum, e tendo valor superior a € 50 000, o mesmo enquadra-se na competência do Juízo Central Cível, nos termos do art. 117º, nº 1, al. c), da LOSJ.

Assim sendo, conclui-se que o recurso procede e a decisão recorrida tem que ser revogada, devendo os autos prosseguir os seus termos normais, com a apreciação da oposição deduzida."

[MTS]


25/03/2021

Jurisprudência 2020 (176)


Divórcio sem consentimento do outro cônjuge;
procedimento cautelar; erro na forma do processo*


1. O sumário de RL 24/9/2020 (1155/20.3T8CSC-C.L1-8) é o seguinte:

I. Na pendência da acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, o pedido de atribuição provisória do uso exclusivo da casa de morada de família deve ser requerido na própria acção de divórcio, nos termos do n.º 7 do art. 931.º do CPC, se não for objecto de acordo das partes na tentativa de conciliação ou oficiosamente fixado.

II. Entre o procedimento cautelar comum para tutela de direitos de personalidade do Requerente, como o direito à privacidade e inviolabilidade do seu domicílio, e a acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge por apenso à qual foi instaurado, não se verifica a relação de dependência e instrumentalidade que é matricial ao procedimento cautelar, de acordo com o art. 364.º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"III.2. Do mérito do recurso

Na pendência e por apenso à acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, o Requerente veio pedir que a Requerida seja condenada a entregar-lhe as chaves das duas casas do casal e a abster-se de abrir a porta ou de aí se introduzir sem a sua autorização, e que lhe seja atribuído, em exclusivo, o uso daquelas duas casas que identifica como de morada de família.

Casa de morada de família é aquela onde, de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges e unidos de facto (art. 10.º, n.º3 da Lei n.º83/19, de 3.09; e conforme resulta do disposto no art.º 1672.º do Código Civil – neste sentido o Ac. do TRC de 20.06.2017, 1747/14.0T8LRA.C1) devendo a sua utilização no período de pendência do processo de divórcio ser regulada nos termos do art. 931.º do CPC: por acordo das partes na tentativa de conciliação (n.º2) ou em qualquer altura do processo, por iniciativa do Juiz ou a requerimento de alguma das partes, se o Juiz considerar conveniente e realizando previamente as diligências que entender necessárias (n.º7).

Quanto ao pedido de atribuição, em exclusivo, do uso das casas de morada de família, mostra-se correcto o entendimento da decisão recorrida no sentido de que tal deve ser requerido na própria acção de divórcio, de acordo com o n.º 7 do art. 931.º do CPC, se não for objecto de acordo das partes na tentativa de conciliação ou oficiosamente fixado.

A fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio, distinto do processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família, configurando o primeiro uma antecipação dos efeitos da composição definitiva do litígio que se alcançará no último.” - Ac. do STJ de 23.11.2017, proc. 1448/15.1T8VNG.P2.S2. Tendo “sempre subjacente um juízo prudencial e casuístico, enquanto baseado em critérios de oportunidade e conveniência, típicos da jurisdição voluntária” – Ac. do STJ de 13.10.2016, proc. 135/12.7TBPBL-C.C1.S1.

Alega o Requerente que não se trata de regular a atribuição do uso da casa de morada de família e que o que está em causa é a tutela do seu direito à privacidade e à inviolabilidade do seu domicílio.

Ora, como resulta expressamente da terceira providência cautelar requerida, pretendendo o Requerente que lhe seja atribuído o uso exclusivo das duas casas que identifica como de morada de família, está, de facto, em causa regular a atribuição do uso dessas casas na pendência de uma acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, à margem do incidente previsto no art. 931.º do CPC e antes sequer da tentativa de conciliação no processo de divórcio, a pretexto da tutela de direitos de personalidade do Requerente. Sem ter em conta – sem sequer alegar, na realidade – nomeadamente, as circunstâncias ou necessidades de cada um dos cônjuges e dos filhos, o regime estabelecido quanto à regulação das responsabilidades parentais, critérios a que deve atender-se na regulação, mesmo provisória, do uso da casa de morada de família por um dos cônjuges.

Quanto aos pedidos de que a Requerida seja condenada a entregar ao Requerente as chaves das suas casas de morada de família e a abster-se de abrir a porta ou de aí se introduzir sem a sua autorização, a decisão recorrida considerou que se tratam [sic] de medidas que visam impedir o seu uso pela e que a tutela do direito à intimidade no concreto espaço das casas de morada de família pressupõe que, de alguma forma, o seu uso estivesse atribuído ao Requerente.

De acordo com o alegado no requerimento inicial, Requerente e Requerida são casados entre si e têm dois filhos, de 19 meses da idade, que ficaram com o Requerente quando a Requerida, em 7 de Abril, saiu das casas onde viviam.

O recorrente contesta que os dois imóveis a que respeita a providência sejam ainda casa de morada de família da Recorrida, uma vez que ela saiu de casa em circunstâncias demonstrativas de que havia abandonado a casa comum do casal, para passar a residir noutro local. O facto de a Requerida ter saído da casa onde morava com o Requerente e os filhos não significa que a casa de morada de família tenha deixado de o ser, em termos jurídicos, para efeitos da sua atribuição no âmbito do processo de divórcio e da regulação provisória do seu uso por um dos cônjuges na pendência do processo de divórcio.

Mas o que o Requerente invoca para pedir as providências requeridas, de entrega das chaves e abstenção de se introduzir nas casas onde ficou a viver com os filhos e onde, por vezes, os seus pais também permanecem, é a necessidade de tutela efectiva dos seus direitos à privacidade e inviolabilidade do seu domicílio.

De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional (v. ac. de 10.12.2008, proc. n.º 397/08, 2ª Secção) o conceito constitucional de domicílio, cuja inviolabilidade a Constituição da República Portuguesa consagra como direito fundamental no art. 34.º, é dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar, e como tal conjugado com o disposto no n.° 1 do artigo 26. ° da CRP.

A inviolabilidade do domicílio tem tutela penal, dispondo o artº 190º nº 1 do Código Penal que, “Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias”.

O bem jurídico protegido é a privacidade/intimidade, traduzindo-se o elemento objectivo na entrada ou permanência em habitação alheia, conjugada com a falta de consentimento por parte de quem (independentemente da questão que se prende com o direito de propriedade) tem o domínio e a disposição sobre a habitação – Ac. do TRP de 25.03.2015, proc. 270/12.1GAILH.P1, citado nas alegações do recorrente.

“Habitação é o espaço físico fechado onde o ofendido se aloja e pernoita. Pode tratar-se de um local de alojamento temporário, periódico ou intermitente. (…) Condição essencial é a de que o espaço físico seja efectivamente ocupado pelo ofendido, nele fazendo a sua vida e nele tendo os seus pertences. (…)” - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, p. 513.

Após ocorrer a separação de facto, não deve mais falar-se em domicílio do casal ou em domicílio comum, por se ter verificado a cessação da comunhão de cama, mesa e habitação; por isso, a introdução na casa morada de família do cônjuge que a havia abandonado, levada a efeito sem consentimento ou contra a vontade daquele que ali continuou a residir, mesmo que a este último não tenha sido atribuída a casa morada de família, viola a sua intimidade – Ac. do STJ de 14.07.2011, proc. 24/08.0TRPRT.S1.

O art. 70.º do Código Civil consagra uma cláusula geral de tutela da personalidade, dispondo que:

1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

Independentemente, portanto, da responsabilidade penal e civil que no caso couber, a pessoa ameaçada (e, no caso, o Requerente alega sê-lo) pode requerer o decretamento das providências cautelares adequadas para tutela dos seus direitos de personalidade, como são o direito à privacidade e inviolabilidade do seu domicílio, a habitação ou habitações onde o Requerente alega viver com os filhos após a saída da mulher.

Visando dar concretização ao disposto no art. 70.º, n.º2 do CC, o CPC prevê nos arts. 878.º e ss. um processo especial para tutela da personalidade (“Pode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e directa à personalidade física ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida”).

Para além deste processo especial para específica tutela de direitos de personalidade física e moral do ser humano, o interessado pode intentar um procedimento cautelar comum, nos termos do art. 362.º e ss. do CPC, compatível com a invocação de qualquer direito, independentemente da sua natureza.

No caso foi instaurado um procedimento cautelar comum para tutela do direito do Requerente à privacidade e inviolabilidade do seu domicílio, na pendência e por apenso à acção de divórcio.

De acordo com o disposto no art. 364.º, n.º1 do CPC, sem prejuízo das especificidades resultantes dos casos em que seja decretada a inversão do contencioso, é matricial ao procedimento cautelar a relação de dependência e de instrumentalidade relativamente a alguma acção ou execução que vise o reconhecimento ou a satisfação do direito em causa. Esta relação de instrumentalidade impõe que o procedimento vise a tutela antecipada ou a conservação do concreto direito cuja efectividade se pretende por via da acção principal (António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, CPC Anot., Vol. I, Almedina, 2019).
Relação que não se verifica entre este procedimento cautelar e a acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, da competência do Juízo de Família e Menores, não se mostrando meio adequado para a tutela cautelar dos direitos invocados pelo Requerente à privacidade e inviolabilidade do seu domicílio.

A falta de um adequado nexo de instrumentalidade entre o procedimento e a acção de divórcio levará à improcedência da pretensão cautelar (op. cit, p. 423). Pelo que deve ser confirmada a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a petição apresentada."

*3. [Comentário] A seguir-se a orientação (que não é indiscutível) da RL, então o que se verifica é um erro na forma do processo: foi utilizado um procedimento cautelar comum quando deveria ter sido utilizado o procedimento "especialíssimo" do art. 931.º, n.º 7, CPC. Assim, deveria ter-se aplicado o disposto no art. 199.º CPC, em especial o estabelecido no seu n.º 3.

MTS


24/03/2021

Jurisprudência 2020 (175)


Audiência prévia;
dispensa; conhecimento do mérito*

1. O sumário de RL 24/9/2020 (15273/18.4T8SNT-A.L1-6) é o seguinte:

I - Estando clausulado que o capital mutuado deveria ser pago em prestações conjuntamente com os juros, o prazo de prescrição aplicável a cada prestação é de 5 anos, conforme decorre do art. 310º al e) do Código Civil.

II - Não tem apoio na cláusula 21.1 do contrato nem no art. 781º do CC o entendimento de que o prazo de prescrição do crédito se inicia a partir da data em que o credor podia ter comunicado ao devedor o vencimento imediato das prestações vincendas. Trata-se de uma faculdade concedida ao credor e não de uma imposição a este, pois até pode não ter interesse em exigir o vencimento antecipado.

III - Daí que, não comunicando o credor ao devedor que considera imediatamente vencidas todas as prestações vincendas, mantem-se inalterado o plano de pagamentos, pelo que o referido prazo de prescrição quanto a cada uma delas só começa a correr se não for paga na data fixada naquele plano.


2. Sem reflexo no respectivo sumário, na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II - Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:

- se foi praticada nulidade processual por ter sido julgada a excepção de prescrição sem que as partes a tenham discutido em audiência prévia [...].

*

III - Fundamentação

A) Na sentença recorrida vem dado como provado:

a) Por documento particular rubricado e subscrito pelas partes, datado de 19 de Julho de 2012, foi firmado um acordo, designado «Contrato de Mútuo», que aqui se dá por integralmente reproduzido, através do qual a Caixa Geral de Créditos, S.A., declarou emprestar a C…, Lda., aí designada «Devedora» ou «Cliente», a quantia de €60.000,00, que esta última se obrigou a restituir no prazo de 84 meses, através do pagamento de prestações, mensais, sucessivas e iguais, de capital e juros, contabilizados à taxa de juros correspondente à média aritmética simples das taxas Euribor a 6 meses, acrescida de um spread de 7%.

b) Os embargantes intervieram no referido acordo, declarando, além do mais, que se constituem «FIADORES solidários e principais pagadores de todas as quantias que sejam ou venham a ser devidas à CAIXA pela CLIENTE no âmbito do presente contrato, quer a título de capital, quer de juros, remuneratórios ou moratórios, comissões, despesas ou quaisquer outros encargos e dão antecipadamente o seu acordo a prorrogações do prazo e a moratórias que forem convencionadas entre a CAIXA e a CLIENTE».

c) As prestações mensais que se venceram a partir de 19/06/2013, inclusive, não foram pagas.

d) A exequente, ora embargada, intentou a acção executiva a que estes autos estão apensos em 01/09/2018.

e) Os embargantes foram citados para os termos da referida execução em 17/09/2018.

*

B) Da alegada nulidade processual

Visto que o tribunal proferiu despacho declarando ser desnecessária a convocação de audiência prévia para apreciar a excepção de prescrição, o meio adequado para o impugnar é o recurso e não a reclamação (cf. art. 627º nº 1 do CPC).

Por isso, não têm razão os apelados ao sustentarem que a nulidade, a existir, está sanada por não ter sido arguida no prazo de 10 dias.

*

Em 14/05/2019 foi proferido o seguinte despacho:

«Para realização de audiência prévia, nomeadamente com vista à conciliação das partes, nos termos do artigo 594º do Código de Processo Civil, designo o próximo dia 17 de Setembro de 2019, pelas 10:00 horas (não antes por impossibilidade de agenda).».

Nessa diligência foi requerida pelas partes a suspensão da instância pelo período de 15 dias, tendo sido então proferido o seguido despacho: «Em face da pretensão formulada pelos Ilustres Mandatários das partes e considerando o disposto no artigo 272, nº 4, do CPC, defiro o requerido e, consequentemente, determino a suspensão pelo período acordado. Após, caso nada seja requerido, conclua.».

O saneador-sentença está precedido pelo seguinte despacho:

«Afigura-se que o estado do processo permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação da excepção peremptória de prescrição deduzida pelos embargantes, o que se fará de seguida, como autorizado pelas normas conjugadas dos artigos 593.º, n.º 1, artigo 591.º, n.º 1, alínea d), e 595.º, n.º 1, alínea b), todos do CPC, considerando que as partes já se pronunciaram sobre tal matéria nos articulados.».

Decorre do art. 593º nº 1 e 2 al. a) em conjugação com o disposto no art. 591º nº 1 al. d) e 595 nº 1 al. b),todos do CPC (Código de Processo Civil) que o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação de alguma excepção peremptória.

A 1ª instância entendeu não ser necessária a produção de prova para julgar a excepção peremptória de prescrição nem haver necessidade de facultar às partes a discussão de facto e de direito sobre essa questão por ter sido debatida nos articulados. Impõe-se concluir, pois, que não foi praticada a alegada nulidade processual.

Questão diversa é a de saber se a matéria de facto julgada provada é bastante para proferir a decisão sobre a excepção de prescrição.

Improcede, pois, este fundamento do recurso."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se acompanha a decisão (maioritária) tomada pela RL quanto à dispensa da audiência prévia. A razão está com o voto de vencida.

No acórdão, afirma-se que "q
uestão diversa é a de saber se a matéria de facto julgada provada é bastante para proferir a decisão sobre a excepção de prescrição". A bem dizer, não se trata de uma "questão diversa", mas antes da própria questão decidenda.

A audiência prévia destina-se, além do mais, a facultar às partes a discussão de facto quando o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa (art. 591.º, n.º 1, al. al. b), CPC). É, por isso, contraditório admitir que a matéria de facto pode não ser bastante para apreciar a excepção de prescrição e, ao mesmo tempo, aceitar a dispensa da audiência prévia por nada haver a discutir sobre essa matéria.

MTS


23/03/2021

Jurisprudência 2020 (174)


Procedimento cautelar; 
auto-suficiência do procedimento; litigância de má fé*


1. O sumário de RL 24/9/2020 (19727/18.4 SLSB-A.L1-6) é o seguinte:
  
I - Tendo sido julgada extinta a instância, por deserção, e tendo sido formulado pelo Réu/Requerido pedido de indemnização por litigância de má-fé da Autora/Requerente, a correspondente apreciação/julgamento e eventual condenação, constitui objecto de pretensão de que o juiz não pode deixar de conhecer, sob pena de nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do CPC.

II - Em sede de procedimentos cautelares, a condenação por litigância de má-fé apenas poderá fundar-se em má-fé instrumental ou, no caso de má-fé substancial, quando respeite a factos que não hajam de ser objecto de apreciação na acção principal.

III - Podendo suceder que o destino da acção principal não seja concordante com o do procedimento cautelar, apresenta-se como mais prudente e sensato deixar para aquela acção o juízo definitivo sobre a existência ou não de má-fé substancial.

IV - O juízo sobre a má-fé instrumental ou processual, também deve ser relegado para a decisão final a proferir na acção principal quando a conclusão sobre o alegado “uso manifestamente reprovável” da providência cautelar, com o “fim de conseguir um objectivo ilegal” (art.º 542.º/2-d) não dispensa a prova dos factos alegados indicadores da má-fé substancial.


2. Na fundamentação do acórdão é o seguinte:

"O art.º 542.º n.º 2 do CPC, classifica como litigante de má-fé, aquele que, com dolo ou negligência grave:

“a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
“b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
“c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
“d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”

Resulta pois do preceito, que a litigância de má-fé pressupõe, uma actuação dolosa ou com negligência grave, consubstanciada, objectivamente numa das diversas situações previstas nas quatro alíneas do n.º 2 do normativo legal transcrito.

No fundo, pode afirmar-se que a má-fé se traduz na violação dos deveres de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias.

A má-fé tanto pode ser material ou substancial (diz respeito ao fundo da causa – als. a) e b) como instrumental (diz respeito à relação jurídica processual – als. c) e d)). Naquele caso, “o litigante espera obter uma decisão de mérito que não corresponde à realidade”; neste caso, “procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta” – Prof. J. A. dos Reis, CPC anotado, anotação ao art.º 465.º.

Teremos porém que ser algo cautelosos quando confrontados com situações que tendem a espelhar determinadas teses jurídicas e que factualmente se não confirmam.

Como se escreveu no acórdão do STJ de 11/12/2003 (in, www.dgsi.pt) “...a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art.º 456.º [hoje 542.º], do CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a) e b) do n.º 2”.

Na realidade, a ousadia de apresentação duma determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa-fé e da cooperação, havendo por isso que ser-se prudente no juízo a fazer sobre a má-fé substancial.

No regime actual vigente, a condenação por litigância de má-fé pode fundar-se, além da situação de dolo, em negligência grave.

A negligência grave verifica-se nas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida.

Há, porém, que não olvidar, como é referido no acórdão do STJ de 20-03-2014[3], “(…) que hoje a condenação como litigante de má fé deve ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária sendo esta última aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição “cuja falta de fundamento não devia ignorar”, ou seja, não é agora necessário, para ser sancionado, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão”, pois é suficiente a demonstração de lhe ser exigível essa consciencialização.(…).»

Uma questão é a alegação factual, outra bem diferente, é a prova alcançada. No caso concreto, os factos invocados pelo Requerido na oposição, que suportam o pedido de condenação da Requerente como litigante de má-fé, ou seja, o invocado “alterar a verdade dos factos”, “omitir factos” e “omitir documentos”, não foram fixados e valorados pela 1.ª instância e subsistem, na sua maioria, controvertidos.

Alega o Requerido e Recorrente que a Requerente/Recorrida instaurou uma acção de alimentos definitivos, alegando basicamente que tinha tido uma diminuição da remuneração, por estar de baixa médica;

- que alegou, igualmente, que tinha um processo pendente de inventário, que também lhe tinha tirado liquidez;

- que omitiu que não paga habitação, nem paga veículo, nem qualquer outra despesa relevante, por estarem a ser suportadas pelo cabeça-de-casal, enquanto despesas de aquisição e manutenção de bens comuns;

- que omitiu que não paga telemóvel, nem seguro de saúde, que são suportadas pela empresa, uma vez que CONTINUA A SER DIRECTORA DE QUALIDADE DA EMPRESA, apesar de não comparecer ao seu local de trabalho;

- que omitiu também que basicamente só paga água, electricidade, gás e TV a cabo, como ainda despesas com cabeleireiro, depilação, restaurantes e outras do género, que não são essenciais à sobrevivência, como quer dar a entender;

- que omitiu ainda que como directora recebe a quantia de aproximadamente 1.800 Euros líquidos;

- que omitiu que além disto desenvolvia actividade paralela de organização e promoção de eventos.

Alega, por fim, que todos estes factos foram reportados na contestação do processo principal e que o Tribunal Recorrido não podia deixar de conhecer dos mesmos.

E que, apesar de todo essa realidade invocada pelo Réu e Requerido, em meados de Agosto de 2019, a Autora/Requerente/Recorrida não se coibiu de instaurou um procedimento cautelar de alimentos provisórios invocando sucintamente os mesmos factos acima descritos.

Tendo pedido alimentos provisórios, para as necessidades essenciais do ser humano, sensivelmente uma semana antes de ir passar férias de verão com a filha na Alemanha (22 de Agosto de 2019).

Com efeito, o Tribunal Recorrido ignorou o pedido de condenação da Requerente como litigante de má-fé, não tendo sequer feito qualquer referência a esta factualidade alegada pelo Requerido, aqui Recorrente, que será essencial para o apuramento da existência, ou não, duma situação de litigância de má-fé, sendo que só o prosseguimento do processo, com vista ao apuramento desses factos controvertidos, com excepção do referente à situação de baixa médica que está provado por documento idóneo, permitirá que se profira decisão em que se elenquem os factos dados como provados e como não provados, para então se decidir de direito sobre esta específica questão da má-fé.

A apreciação do pedido de condenação da Requerente, formulado na oposição pelo Requerido, só poderá ser feita com base na avaliação que se faça de toda a prova produzida/existente nos autos, quanto aos factos atinentes à má-fé, sendo que a decisão a proferir terá que elencar, quer os que resultem provados, quer os que não se provarem e, só então concluir com decisão final.

Assim sendo, numa primeira apreciação - e porque tendemos a subscrever a primeira tese enunciada supra -, poderíamos ser tentados a concluir, como nos Acórdãos desta Relação de Lisboa, de 09-01-2020, proc. n.º 2487/17.3T8VFX.L1-2 e de 21-11-2013, proc. n.º 1063/11.9TVLSB.L1-, disponíveis em www.dgsi.pt., pela revogação da decisão recorrida, por afectada de nulidade, e consequente determinação que os autos prosseguissem os seus termos no Tribunal Recorrido exclusivamente para apreciação, de facto e de direito, da invocada questão da litigância de má-fé da Requerente.

Na verdade, como se ponderou no Ac. desta Relação de Lisboa, de 26/06/2014, proc. n.º 1524/10.7TBCSC.L1, acessível em www.dgsi.pt., “o apuramento e a fixação das ocorrências materiais sobre que pretende assentar-se a existência de má-fé é uma questão de facto que apenas o juiz que assistiu ao seu desenrolar pode valorar para decidir se efectivamente essas ocorrências traduzem ou não má-fé.”

Não obstante, depois de uma maior ponderação, que levou em consideração a natureza cautelar do presente processo, ou seja, as especificidades do caso concreto, entendemos ser outra a orientação a seguir por este Tribunal de Recurso no caso sub judice, na linha, aliás, do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25-01-2005, proc.º n.º 3913/04, disponível no sítio www.dgsi.pt., de cuja fundamentação, na parte que aqui releva e à qual aderimos, se pode ler:

“Apesar da indiscutível natureza de provisoriedade das providências cautelares (cfr. art.º 381º e 392º do Cód. Proc. Civil), nada na lei afasta a aplicabilidade do instituto da má fé em sede dos procedimentos conducentes ao decretamento de tais providências Ac. STJ de 19/10/99, relatado pelo Ex.mo Cons. Ferreira Ramos, in www.dgsi.pt/jstj e Ac. Rel. Coimbra de 27/01/2004, relatado pelo Ex.mo Des. Jorge Arcanjo, in www.dgsi.pt/jtrc., sendo até sustentado no Ac. do STJ de 06/06/2000 que, nesses casos, basta que o requerente não actue com a prudência normal BMJ, nº 498, pág. 179. No acórdão em questão afirma-se textualmente: “Nas providências cautelares bastará, até, que o requerente não tenha agido com a prudência normal, pois neste caso, se a providência for considerada injustificada, o requerente responde pelos danos culposamente causados ao requerido - artigo 390.°, n.° 1”.
Contudo, se bem vemos, também aqui há que distinguir.

Os procedimentos cautelares bastam-se com uma averiguação sumária e provisória (sumaria cognitio) da provável ou aparente existência do direito ameaçado (fumus boni iuris), com vista a evitar, enquanto a acção principal não define a situação, a sua lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora).

Por isso, sendo o processo mais célere e a produção da prova menos aprofundada e segura, é habitual, na decisão de facto, aludir-se a “factos indiciados” e não a “factos provados”. E a improcedência do procedimento cautelar não significa necessariamente a improcedência da acção principal que poderá vir a ser total ou parcialmente procedente Ac. do STJ de 19/10/1999, já referido.

Como escreve Abrantes Geraldes Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 2ª edição, págs. 81/82., são requisitos gerais para o decretamento de providências cautelares não especificadas a probabilidade séria da existência do direito invocado, o fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; a adequação da providência à situação de lesão iminente; e a não existência de providência específica que acautele aquele direito.

No caso da restituição provisória de posse, são pressupostos do decretamento da providência a posse, o esbulho e a violência (art.º 393º do CPC), sendo, pois, a posse, o direito cuja probabilidade séria de existência constitui requisito indispensável.

A circunstância de, em sede de procedimento cautelar, não só não resultar indiciada a existência da posse alegadamente esbulhada, como até resultar indiciada a sua inexistência não implica necessariamente que o mesmo venha a suceder na acção principal.

E a contradição entre a factualidade alegada pelo requerente no que tange à probabilidade da existência do seu direito e a factualidade nessa matéria indiciada no procedimento cautelar, mesmo aliada a indícios de dolo ou negligência grave do requerente, não poderá, se bem vemos, conduzir à condenação imediata por litigância de má fé, sob pena de, finda a acção principal, poder chegar-se à conclusão de que tal condenação foi precipitada e injusta.

Ou seja, afigura-se-nos que em sede de procedimentos cautelares, a condenação por litigância de má fé apenas poderá fundar-se em má fé instrumental ou, no caso de má fé substancial, quando não respeite a factos (designadamente à existência ou não do direito alegadamente ameaçado ou violado) que hajam de ser objecto de apreciação na acção principal.”

Ora, no caso dos presentes autos, a má-fé indiciada, alegada pelo Requerido, é, essencialmente, de natureza material ou substancial, pois os factos alegados que suportam o pedido de condenação da Requerente ou da sua Ilustre Patrona como litigante de má-fé, respeitam ao invocado “alterar a verdade dos factos”, “omitir factos” e “omitir documentos”.

Trata-se de factos que hão-de ser objecto de apreciação mais aprofundada e segura na acção principal de alimentos, afigurando-se, assim, como prudente e mais sensato deixar para aquela acção o juízo definitivo sobre a existência, ou não, da alegada má-fé material ou substancial da Requerente, mas também sobre a má-fé instrumental ou processual, já que, no caso em apreço, a conclusão sobre o alegado “uso manifestamente reprovável” do processo e da providência cautelar, com o “fim de conseguir um objectivo ilegal” (art.º 542.º/2-d) não dispensa a prova dos factos alegados indicadores da má-fé substancial.

Entende-se, assim, que a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia e, suprindo tal nulidade, decide-se que o juízo definitivo sobre a alegada má-fé da Autora/Requerente e da sua Ilustre Patrona, Sra. Dra. Susana …., dever ser relegado para a acção principal, mantendo-se, consequentemente, a declarada extinção da instância, por deserção."

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, discorda-se da solução defendida pela RL.

b) O que sucedeu foi o seguinte:

-- Foi proposto um procedimento cautelar; na contestação a este procedimento, o requerido pediu a condenação da requerente como litigante de má fé;

-- O procedimento cautelar não chegou a ser julgado quanto ao mérito, dado que a instância se extinguiu por deserção;

-- O tribunal de 1.ª instância não se pronunciou sobre o pedido de condenação da requerente como litigante de má fé;

-- A RL detectou a nulidade da sentença da 1.ª instância, mas entendeu que a decisão sobre a litigância de má fé só pode ser tomada em função do que venha a obter-se na acção principal.

c) Com a devida consideração, esta solução não é aceitável. Qualquer processo -- e mesmo qualquer procedimento cautelar -- rege-se por um princípio de auto-suficiência: tudo o que é pedido nesse processo tem de ser apreciado no próprio processo. Há apenas uma excepção: aquela em que a apreciação de um pedido depende da apreciação de um outro pedido prejudicial que não pode ser apreciado na acção (nomeadamente, porque esse pedido já se encontra formulado numa outra acção já pendente).

É aceitável que o tribunal conclua que não há elementos para condenar a parte como litigante de má fé. O que não é aceitável é que o tribunal conclua que, saber se a parte actuou como litigante de má fé no processo que está pendente perante ele, depende do que venha a ser obtido num outro processo.

O critério também vale para os procedimentos cautelares. Não é aceitável que se relegue para a acção principal qualquer juízo sobre a litigância de má fé num daqueles procedimentos. A seguir-se este critério, seria mesmo impossível qualquer condenação do requerente de um procedimento cautelar sempre que o mesmo venha a ser julgado improcedente, porque, afinal, nunca se sabe o que pode vir a ser provado por esse mesmo requerente na acção principal.

Acresce que, sempre que o procedimento cautelar tenha terminado sem a apreciação do mérito ou com uma decisão de improcedência, a apreciação da litigância de má fé do requerente daquela providência é relegada para uma acção principal que, muito provavelmente, nunca virá a ser instaurada. 

MTS