"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



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02/06/2020

Jurisprudência 2019 (250)


Decisão interlocutória;
revista*
 

1. O sumário de STJ 17/12/2019 (1237/14.0TBSXL-B.L1.S2) é o seguinte:

I Os recursos continuados de despachos interlocutórios para no Supremo Tribunal de Justiça, seguem o regime específico prevenido no artigo 671º, nº2, alíneas a) e/ou b), do CPCivil.

II Ao recurso de um despacho proferido sobre uma questão questão formal suscitada no segundo grau – o requerimento para junção de documentos - aí decidida interlocutoriamente, pela primeira vez, aplica-se o preceituado no artigo 673º, proémio, do CPCivil, onde se predispõe que «Os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação apenas podem ser impugnados no recurso de Revista que venha a ser interposto nos termos do artigo 671º(…)».

III Tais decisões não são, assim, passíveis de impugnações recursórias autónomas.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos presentes autos de acção de condenação sob a forma de processo comum que AA, Ldª intentou contra BB, Ldª, a Ré com a alegação formulada em sede de recurso de Apelação solicitou a junção aos autos de vários documentos, o que veio a ser indeferido.

Inconformada a Ré veio interpor recurso de Revista excepcional, impugnação essa que não foi admitida pela Formação a que alude o artigo 671º [sic], nº3 do CPCivil - Acórdão que faz fls 902, tendo sido ordenada a distribuição dos autos em sede de Revista normal, para apreciação da sua viabilidade, porque além do mais se entendeu que o seu objecto seria uma decisão interlocutória, insusceptível de tal meio recursório excepcional.

Porque a Relatora entendeu entendi [sic] que se não se poderia conhecer do objecto do recurso interposto, enquanto Revista regra, ordenou a notificação das partes para se pronunciarem e após foi produzida decisão singular julgar findo o recurso por não haver de conhecer do respectivo objecto, vindo agora a Recorrente reclamar para a conferência, nos termos do artigo 652º, nº3 do CPCivil, aplicável por força do disposto no artigo 679º do mesmo Código, aventando a seguinte argumentação, em apertada síntese:

- A decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa não comporta, apenas, a enunciada decisão interlocutória. [...]

- Trata-se ali, com efeito, de duas situações distintas, as quais não devem ser confundidas, sendo que a primeira se prende com a entrega superveniente de documentos[,] os quais foram efectivamente alvo de uma decisão interlocutòria pelo TR Lisboa e;

- A segunda tem a ver com a omissão de pronúncia quer da 1ª Instância quer do TRLisboa, porquanto nem uma nem outra das instâncias se pronunciaram em relação à apresentação de documentos que oportunamente foram requeridos pela Ré (ora Recorrente) à Autora. [...]

A parte contrária não se pronunciou.

Analisemos.

No despacho singular da aqui Relatora, agora posto em crise, alinhou-se a seguinte fundamentação:

«[C]omo deixei consignado no despacho preliminar, o objecto da impugnação recursiva encetada pela Ré não é o Acórdão final, mas antes a decisão interlocutória produzida no mesmo que se pronunciou sobre a inadmissibilidade dos documentos juntos com as alegações de recurso, aliás, na sequência do que foi constatado pelo Acórdão da Formação que não admitiu a Revista excepcional e ordenou a remessa dos autos à distribuição para a apreciação do eventual conhecimento do objecto da impugnação como Revista normal. [...]

Analisemos, então.

Como deflui inequivocamente da fundamentação do Acórdão [da formação] extractado, o mesmo explicitou suficientemente que o que está efectivamente em causa no recurso e que deu origem à impugnação encetada não foi a decisão final do Acórdão, a única que em tese, poderia sustentar a Revista excepcional, pois confirmou a decisão de primeiro grau, mas antes a decisão introdutória [sic] que antecedeu aqueloutra, que ordenou o desentranhamento dos documentos juntos com as alegações de recurso de Apelação,

Essa específica decisão, integrante do Acórdão, mas autónoma em relação ao mesmo, precedendo-o, traduz uma decisão interlocutória incidente sobre a relação processual, passível de recurso apenas nos termos do disposto no artigo 671º, nº 2, alíneas a) e/ou b) do CPCivil, insusceptível, deste modo, de ser passível de Revista excepcional, porquanto se tratou de uma decisão ex novo, produzida pelo segundo grau, afastada do disposto no artigo 671º, nº 3 e 672º, nº1, alíneas a), b) e/ou c), este como aquele do mesmo diploma.

É esta e não outra, a leitura que temos de fazer do Acórdão da Formação: aquele Aresto limitou-se a dizer que não havia qualquer ataque a um Acórdão produzido em dupla conformidade, mas antes a uma decisão interlocutória produzida no seu seio, a ordenar o desentranhamento de documentos dos autos, sendo esta a suscetível de recurso de Revista, não excepcional, mas regra.

Ora, a impugnação recursiva operada pela Recorrente e que visa, apenas e tão só, aquela intercorrência processual, apenas poderia ter como fundamento uma das circunstâncias prevenidas nas alíneas a) ou b) do nº2 do artigo 671º do CPCivil, as quais não foram alegadas, o que obsta ao conhecimento da pretensão da Recorrente.

Destarte, de harmonia com o preceituado no artigo 651º, nº1, alínea h), aplicável ex vi do artigo 679º, ambos do CPCivil, julga-se findo o recurso por não haver que conhecer do respectivo objecto.».

Reanalisando a problemática exposta.

Insiste a Reclamante/Recorrente que a decisão proferida pelo segundo grau não comporta, apenas, a enunciada decisão interlocutória, situação essa já por si tratada, quer nas alegações ainda nas conclusões de recurso de Revista Excepcional, aquando da «Interposição subsidiária do Recurso de Revista no termos do artigo 671,° n.° 1 do CPC» e reitera que estamos perante duas situações distintas, as quais não devem ser confundidas, sendo que a primeira se prende com a entrega superveniente de documentos os quais foram efectivamente alvo de uma decisão interlocutória pelo Tribunal da Relação de Lisboa e, uma segunda, que tem a ver com a omissão de pronúncia quer da primeira quer da segunda Instância, porquanto nem uma nem outra se pronunciou em relação à apresentação de documentos que oportunamente foram requeridos pela Ré (ora Recorrente) à Autora. [...]

Constitui agora uma perplexidade que se não pode deixar passar em claro, a circunstância de a Recorrente, aqui Reclamante, vir inverter os termos da sua interposição de recurso: a mesma interpôs recurso de Revista excepcional arrimada no dispositivo legal referido no artigo 672º, nº1, alínea a) do CPCivil, presumimos que por se estar face a uma dupla conformidade decisória, a mesma entenderia que a questão suscitada deveria ser apreciada por via da sua relevância jurídica que seria claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, aliás, tendo começado nesse preciso e específico sentido a sua motivação, cfr fls 761.

Ora, tendo a Recorrente interposto Revista excepcional, como interpôs, os autos foram distribuídos pela Formação a que alude o normativo inserto no artigo 672º, nº3, para apreciação da bondade do pressuposto invocado, o que foi feito, cfr Acórdão de fls 902 e verso, não lhe tendo sido admitida a impugnação, uma vez que ali se entendeu que, atentas as alegações e conclusões produzidas, o que estaria em causa, não era a substância do Aresto, a se, mas a decisão que este encerrava de não admissibilidade dos documentos que aquela pretendeu juntar com as alegações do recurso de Apelação.

Naquele Aresto, pressupôs-se, como a Relatora igualmente pressupôs no seu despacho inicial, que se estaria perante um despacho interlocutório em recurso continuado, sendo-lhe aplicável o preceituado no artigo 671º, nº 2, alíneas a) e/ou b) do CPCivil, e, não como acontece, revisitados que foram os autos, perante um despacho sobre uma questão formal, suscitada no segundo grau – o requerimento para junção de documentos - aí decidida interlocutoriamente, pela primeira vez, ao qual se aplica o preceituado no artigo 673º, proémio, do CPCivil, onde se predispõe que «Os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação apenas podem ser impugnados no recurso de Revista que venha a ser interposto nos termos do artigo 671º,(…)».

Ora, para além da decisão proferida sobre a inadmissibilidade dos documentos fazer parte integrante do Acórdão produzido, constituindo uma questão prévia, ela constitui o cerne da própria decisão de mérito, agora impugnada em sede de Revista, não sendo a mesma passível de recurso autónomo.

O recurso interposto, incide sobre uma decisão que confirmou a decisão de primeira instância, pelo que estamos face a uma situação de dupla conformidade decisória, a qual não permite qualquer impugnação a título normal, artigo 671º, nº3 do CPCivil e por isso a Revista regra interposta a título subsidiário não tem aqui cabimento.

Assim sendo, há que inverter o decidido singularmente, embora por razões diversas das então aventadas, já que, tendo em atenção o preceituado no artigo 673º e 671º, nº3 do CPCivil, o recurso de revista normal não pode ser conhecido, porque a tal se opõe a identidade das decisões em tela.

Contudo, tendo em atenção aquele mesmo artigo 673º do CPCivil, supra enunciado, face à dupla conformidade decisória e ao fundamento invocado para o efeito pela Recorrente, o preceituado no artigo 672º, nº1 alínea a) do mesmo diploma normativo, cuja verificação é da competência da Formação, nos termos do nº3 deste último ínsito, deverão os autos voltar a esse colégio para apreciar a problemática em causa, dilucidados que estão os respectivos parâmetros, se assim for entendido por bem.

III Destarte, indefere-se a reclamação apresentada, embora com fundamentos diversos, altera-se o despacho reclamado e ordena-se a remessa dos autos de novo à Formação, para apreciação da verificação do pressuposto invocado, fundamento da Revista excepcional interposta, após trânsito, caso se entenda que há ainda lugar a tal conhecimento."
 
*3. [Comentário] O acórdão constitui um verdadeiro hard case interpretativo, pelo menos para quem toma contacto pela primeira vez com a questão nele tratada. 

Segundo pareceria (mas é capaz de não ser assim...), depois de a formação enunciada no art. 672.º, n.º 3, CPC ter decidido que não se trata de um caso de dupla conformidade, mas antes de um recurso de uma decisão interlocutória da RL, só haveria que decidir este recurso nos termos do art. 673.º CPC. 
 
No entanto, por razões que não são nada claras, o acórdão não aprecia esta questão e volta a remeter o processo para a formação, argumentando que, "tendo em atenção o preceituado no artigo 673º e 671º, nº 3 do CPCivil, o recurso de revista normal não pode ser conhecido, porque a tal se opõe a identidade das decisões em tela". A conjugação, na mesma frase, do art. 673.º CPC com a "identidade das decisões" origina uma enorme dificuldade interpretativa das razões que justificam a nova remessa do processo para a formação.

MTS
 

01/06/2020

Jurisprudência 2019 (249)


Hipoteca; 
alienação do bem dado em garantia; inopobilidade


1. O sumário de STJ 17/12/2019 (3294/11.2TBBCL.G1.S1) é o seguinte:

Se, à data da celebração do contrato de mútuo com hipoteca, a pessoa que assume a posição de garante não tiver legitimidade para alienar o bem dado em garantia, esta é ineficaz em relação ao titular do respectivo direito sobre esse bem.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6. Na presente ação, o autor pediu, no que releva para a decisão desta revista, que se declare a falsidade/nulidade/anulação de dois contratos de mútuo, com hipoteca, que a 1ª ré, em nome próprio e em representação do autor, celebrou com o Banco EE, SA. E que, em consequência, se ordene o cancelamento das inscrições hipotecárias efetuadas com base naqueles títulos.

Na 1ª instância, foi declarada a ineficácia dos aludidos contratos em relação ao autor, por terem sido celebrados pela 1ª ré com base em procuração que se provou ser falsa. No tocante às hipotecas foi igualmente declarada a sua ineficácia, em relação ao património comum do ex-casal, constituído pelo autor e pela 1ª ré, tudo por aplicação do n° 1 do art. 268° do Código Civil.

A Relação, porém, julgando nesta parte procedente o recurso de apelação interposto pelo autor, declarou a nulidade das hipotecas e ordenou o cancelamento dos respectivos registos, ao abrigo do disposto no art. 280º, do CC, por entender que recaíam sobre objeto legalmente impossível.

Nesta revista, o Banco EE não questiona a verificação de uma situação de representação sem poderes relativamente ao autor, mas apenas, no que toca às hipotecas constituídas, a consequência jurídica a extrair por quem não tinha legitimidade substantiva para onerar o bem dado em garantia. Pretende, assim, a revogação do acórdão recorrido, nessa parte, repristinando-se o decidido na 1ª instância.

Afigura-se-nos que a razão está do lado da recorrente.

Com efeito:

Decorre da factualidade provada que o autor e a 1ª ré casaram entre si em 8.1.1995, no regime de comunhão de adquiridos, divorciando-se em 3.2.2003 (cf. ponto 1, dos factos provados).

Provou-se também que, em 13.11.2008, a 1ª ré, por si e como procuradora do autor, celebrou os contratos de mútuo com hipoteca com o Banco EE, S.A., confessando-se ambos devedores da quantia neles referida e dando de hipoteca, para garantia do pagamento, o prédio urbano identificado nos autos (cf. ponto 13, dos factos provados).

Ficou ainda provado que o património comum do ex-casal, não partilhado à data da celebração dos aludidos contratos de mútuo, era constituído pelo prédio urbano sobre o qual incidiram as hipotecas (cf. pontos 1 e 2, dos factos provados).

Ora, a alienação e oneração de bens imóveis comuns dos cônjuges carece da intervenção de ambos (por si ou representados por procurador, munido de poderes de representação) ou de um só deles, desde que obtido o consentimento do outro (art. 1682º-A, do CC).

Por sua vez, a sanção para a infração ao disposto no art. 1682º-A do CC, está prevista no art. 1687º, do mesmo Código, ao prescrever que os actos praticados são anuláveis, nos termos ali mencionados.

Este mesmo regime se deve aplicar após o divórcio e enquanto os bens se mantiverem numa situação de indivisão, pois, não obstante a extinção do vínculo conjugal implicar o fim das relações patrimoniais entre os cônjuges (arts. 1788º e 1789, nº1, do CC), os bens comuns mantêm essa qualidade até à liquidação e partilha, pois só ela põe termo à comunhão. [Neste sentido, Cristina M. Araújo Dias, “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões”, Coimbra Editora.] [...]

Por seu turno, relativamente à hipoteca voluntária (art. 712º, CC), estabelece-se no art. 715º, do CC que “só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respectivos bens”.

É, portanto, de concluir que a 1ª ré, sem a intervenção ou o consentimento do ora autor, seu ex-marido, e sem dispor de poderes de representação, como se provou ter acontecido no caso dos autos, não podia ter constituído as hipotecas sobre o imóvel que integrava o património comum do ex-casal.

Assim, em conformidade com o disposto no art. 268º, do CC, e independentemente da boa fé do beneficiário do direito real de garantía, o negócio jurídico da hipoteca é, face ao detentor da legitimidade substantiva para alienar/onerar, «res inter alios acta», ou seja, insusceptível de produzir quaisquer efeitos sobre o património em causa. Em suma: ineficaz. [Sobre esta problemática, cf., entre outros, os acs do STJ de 6.5.2008, proc. nº 08A1056 (Alves Velho), in www.jusnet.com e de 29.3.2012, proc.2441/05 (Hélder Roque), in ECLI:PT:STJ:2012:2441.05.8TBVIS.C1.S1.3E]

É que, enquanto a nulidade é uma forma de ineficácia, em sentido amplo, pressupondo uma falta ou irregularidade, quanto aos elementos internos ou essenciais do negócio (falta de capacidade, falta ou defeito da declaração de vontade, impossibilidade física ou legal do objeto), a ineficácia, em sentido estrito, baseia-se na falta ou irregularidade de outra natureza [Cf. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, pág. 411.], não já de uma falta ou irregularidade dos elementos internos do negócio, mas antes de alguma circunstância extrínseca que, conjuntamente com o negócio, integra a situação de facto produtiva de efeitos jurídicos (falta de titularidade do direito de que se dispôs ou onerou, falta de registo relativamente a terceiros, etc.) [Cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2005, 4ª edição, págs. 615 a 617].

Diga-se, por fim, que muito embora a hipoteca de coisa alheia se reja, essencialmente, pelo regime da venda de coisa alheia, a celebração do negócio constitutivo da hipoteca sobre o prédio urbano nestes autos, não se encontra sujeita à aplicação do estipulado no artigo 892º, do CC (ex vi do art. 939º, do mesmo Código), desde logo porque a 1ª ré não é a única titular do respectivo direito sobre o imóvel hipotecado, nem interveio nos actos de constituição de hipoteca nessa qualidade."

[MTS]


29/05/2020

Jurisprudência 2019 (248)


Prova pericial; perito;
idoneidade e competência

1. O sumário de RG 17/12/2019 (21/16.1T8VPC-B. G1) é o seguinte:

I. Sendo o objecto legal da prova pericial a percepção ou apreciação de factos que exigem conhecimentos especiais que o julgador não possui, só podem ser peritos as pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa.

II. A aferição da idoneidade e da competência de perito, quando a lei não a pré-defina de forma imperativa (v.g. reservando a realização da perícia a certas entidades ou estabelecimentos, ou aos detentores de determinados títulos ou habilitações), fica na disponibilidade do juiz.

III. Não sendo a segunda perícia uma nova e distinta perícia, mas apenas uma repetição da primeira, o seu objecto coincidirá com o daquela, isto é, com as questões de facto - indicadas pelas partes ou de iniciativa oficiosa -, a que tenha sido antes circunscrito.

IV. A obrigação legal do juiz denunciar crime de que tome conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas só existe quando o mesmo tem por verificado o dito crime, e não quando esteja perante condutas susceptíveis de preenchem apenas alguns (mas não todos) dos seus elementos constitutivos, objectivo e subjectivo.

V. Uma diligência de prova só será impertinente (devendo, por isso, ser indeferida) se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

4.1.2.1. Concretizando, verifica-se que, tendo o Requerido (D. C.) alegado nos autos a indivisibilidade (por múltiplas e distintas causas) dos oito prédios rústicos dele objecto, e requerido a realização de uma perícia que a comprovasse - a que os Requerentes (A. C. e mulher, A. P.) anuíram -, veio a mesma a ser ordenada, sob a forma colegial.

Mais se verifica que, indicando cada uma das partes o seu perito - o dos Requerentes uma engenheira topógrafa, e o dos Requerido um engenheiro agrícola -, o Tribunal a quo viria a escolher como perito próprio pessoa simultaneamente licenciada em engenharia florestal e em engenharia agronómica, e que ainda frequentou a acção de formação «Avaliação de Propriedades Rústicas», ministrada pela Ordem dos Engenheiros, região Norte (tudo conforme alegado nos autos, e não impugnado por qualquer das partes).

Por fim, verifica-se que, não obstante ter sido inicialmente indicado pela secretaria como sendo «engenheiro agrónomo» (no «TERMO DE NOTIFICAÇÃO» de fls. 23 dos autos), e tendo assinado o requerimento de junção do relatório pericial na qualidade de «Engº Agrónomo»), o perito indicado pelo Tribunal a quo esclareceu depois que nunca se inscreveu em qualquer das ordem profissionais que representam os engenheiros no nosso país, não obstante dispor de habilitações académicas idóneas para o efeito; e ter essa omissão radicado exclusivamente no seu entendimento de que a dita inscrição não seria «condição necessária para executar qualquer função ou para me candidatar a qualquer concurso ou proposta de emprego», não se onerando com o pagamento de «uma jóia e cota anual».

Será esta falta de inscrição na Ordem dos Engenheiros, ou na Ordem dos Engenheiros Técnicos, do perito nomeado pelo Tribunal a quo, suficiente para que se possa afirmar que não possui idoneidade e competência para a matéria dos autos ?

Dir-se-á, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que para se poder concluir desse modo seria necessário que, no caso dos autos, a lei imperativamente reservasse a realização da perícia em causa a quem detivesse o título de engenheiro; ou que a lei expressamente afirmasse que a apreciação da divisibilidade ou indivisibilidade de prédios rústicos constituísse um acto próprio e exclusivo de uma qualquer engenharia, que identificasse.

Ora, e compulsada nomeadamente a legislação citada pelo Requerido (D. C.) para o efeito, faz-se da mesma outra interpretação, isto é, se bem que afirme que a prática de actos de engenharia está reservada a engenheiros (isto é, a quem, dispondo de uma prévia habitação académica para o efeito, se haja inscrito numa das respectivas ordens profissionais), e que aqueles «são os constantes da Lei n.º 31/2009, de 3 de Julho, e de outras leis que especialmente os consagram» (conforme art. 7.º, n.º 2 da Lei n.º 123/2015, de 2 de Setembro), não define em qualquer preceito como acto próprio e exclusivo da actividade de engenharia os implicados na perícia em causa nos autos.

Por outras palavras, se bem que se contenha na actividade própria de um engenheiro «a aplicação das ciências e técnicas respeitante às diferentes especialidades de engenharia nas atividades de investigação, conceção, estudo, projeto, fabrico, construção, produção, avaliação, fiscalização e controlo de qualidade e segurança, peritagem e auditoria de engenharia, incluindo a coordenação e gestão dessas atividades e outras com elas relacionadas» (conforme art. 7.º, n.º 1 da Lei n.º 123/2015, de 2 de Setembro), não está dito que a determinação da indivisibilidade de prédios rústicos integre necessariamente aquela actividade; e, mais importante, que lhe fique reservada de forma exclusiva (por mais nenhum outro saber ou especialidade - que não uma qualquer engenharia - ser idóneo ou competente para o efeito).

Dir-se-á ainda que o facto da Ordem dos Engenheiros, região Norte, ter ministrado uma acção de formação em avaliação de propriedades rústicas (aberta à frequência de engenheiros, e não engenheiros) inculca precisamente o contrário, pois não faria sentido que, cobrando por essa formação, e de forma acrescida a não engenheiros, defendesse que o formando que integrasse este último grupo não poderia depois rentabilizar os conhecimentos ministrados e adquiridos, em eventual prestação por ele próprio de um tal serviço a terceiros.

Dir-se-á, igualmente, que as respostas da Ordem dos Engenheiros (fls. 108), e da Ordem dos Engenheiros Técnicos (fls. 111, verso) juntas ao autos se limitam, respectivamente, a concluir que se está «igualmente perante a prática de um ato de engenharia sem a devida competência para tal», e que o perito nomeado pelo tribunal não preenche as condições para «efeitos de candidatura como perito judicial», precisamente por falta de inscrição em qualquer uma destas ordens profissionais; mas fizeram-no de forma absolutamente conforme com a concreta e precisa questão que, prévia e exclusivamente no que ora nos interessa) lhes foi colocada pelo Requerido (D. C.), isto é, se «esse mesmo cidadão, não obstante não se encontrar inscrito na Ordem dos Engenheiros [ou na Ordem dos Engenheiros Técnicos], está habilitado à realização de perícias no âmbito de um processo judicial».

Ora, reitera-se, o que está em causa nos autos não é a qualidade de perito judicial (isto é, dos que integram lista oficial da Relação a que pertence o Tribunal a quo, e limitada a perícias de engenharia civil e arquitectura), mas sim o carácter necessariamente reservado a uma qualquer engenharia (isto é, dela imperativamente exclusiva) da concreta perícia realizada; e, quanto a isso, nada foi esclarecido pelas informações prestadas pelas duas ordens profissionais em causa.

Concorda-se, assim, com o ajuizado no despacho recorrido, quando no mesmo se afirma que «não é legalmente exigido – ao contrário do que ocorre nos casos previstos no artigo 467.º, n.º 3 do CPC - em lado algum que o perito tenha o grau de engenheiro, mas apenas que tenha “idoneidade e competência na matéria em causa”».

Ora, considerando que o perito indicado possui, não uma, mas uma dupla licenciatura em engenharia - florestal e agronómica -, que qualquer delas está relacionada com a exploração de prédios rústicos, e que beneficiou ainda de uma formação em avaliação de propriedades rústicas, ministrada pela delegação do Norte da Ordem dos Engenheiros, não se tem por demonstrada a alegada falta de idoneidade e competência para intervir na perícia colegial realizada nos autos.

Dir-se-á ainda que, importando «aferir (…) se o referido perito se encontra habilitado, face às suas reais qualificações, para proceder à realização da perícia efectuada no âmbito dos presentes autos» (Ac. da RC, de 08.11.2016, Moreira do Carmo, Processo n.º 918/12.8TBCBR.C1), independentemente da sua não inscrição em qualquer uma das ordens profissionais que representam os engenheiros no nosso país, não se crê aqui aplicável o único acórdão citado pelo Requerido (D. C.) em abono da sua posição (precisamente, o acabado de reproduzir).

Com efeito, o que nele estava em causa era a intervenção, como perito, de um «mero agente técnico de engenharia e arquitectura», em confronto com dois engenheiros civis, e não alguém duplamente licenciado em engenharia, sendo que qualquer delas com óbvio reporte à matéria objecto da perícia.

Não se vê, assim, razão para revogar a decisão do Tribunal a quo, quando o mesmo concluiu pela idoneidade e competência para a matéria da causa do perito que antes nomeara para intervir em seu nome a perícia colegial realizada nos autos."

[MTS]



28/05/2020

Jurisprudência 2019 (247)

 
Acção popular;
legitimidade activa
 
 
I. O sumário de RG 17/12/2019 (6324/17.0T8GMR-A.G1) é o seguinte:

1- Apenas as pessoas colectivas referidas nos artºs 52º da CRP e 2º, nº 1 da Lei 83/95 têm legitimidade para proporem a acção popular civil.

2- O artº 2º, nº 1 (parte final) não amplia as categorias das pessoas colectivas com legitimidade para a acção popular.


II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Banco (…) Sa, intentou acção com processo comum, do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz 5, da comarca de Braga, contra (…) e esposa, (..) que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca DE (…)

Pediu:

“a) Ser reconhecida à A., como parte interessada e legítima neste pedido, nos termos do n.º 2 do artigo 1281.º do Código Civil, o direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1.º deste articulado, condenando-se os RR. no reconhecimento desse direito;

b) Serem os RR. condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A., a demolir o muro construído no mesmo caminho e a abster-se de praticar quaisquer outros factos que impeçam ou condicionem o acesso ao prédio do A., assim cessando a violação do direito de propriedade e posse do A.; [...]

Em 27.11.2018 foi proferido despacho:

“Nos presentes autos propostos como acção comum, a Autora pede, entre outras coisas, sejam os Réus …condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A. (…).

Na sequência de convite dirigido pelo tribunal por despacho de 11.09.2018, veio a Autora aperfeiçoar a sua petição inicial (fls. 73 e ss.) alegando os pressupostos de facto de que depende a qualificação do caminho em apreço como público.

Uma vez que a pretensão a Autora compreende o reconhecimento da natureza pública de um caminho, questão que se encontra protegida pela previsão legal do n.º 2 do artigo 1º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto que regula o direito de participação procedimental e de acção popular, o processo deve seguir as especificidades previstas neste diploma legal.

Termos em que, ao abrigo do disposto no art.º 6º, n.º 2 do C.P.C., determino:

- a alteração da espécie dos presentes autos para acção popular; [...]”.
Cumpre decidir. [...]

A acção popular tem como fim a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções de interesses previstas no nº 3 do artigo 52º da Constituição (artº 1º, nº 1 da Lei 83/95, de 31.08) ou, ainda, nas palavras daquele normativo, a promoção, o asseguramento e a defesa dos mesmos.

Quem está legitimado para promover a acção popular, a par da participação procedimental em procedimentos administrativos, segundo o disposto no artº 2º da Lei 83/95, de 31.08, sob a epígrafe “Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular”, são os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras de interesses previstos quer no artº 52º, nº 3 da CRP quer no artº 1ª da mesma lei.

Os interesses prosseguidos pelo artº 52º, nº 3 da CRP, sob a epígrafe “Direito de petição e direito de acção popular” são: a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural, a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.

Na Lei 83/95, directamente, identificam-se grosso modo os mesmos interesses, ainda que de forma não taxativa e inteiramente coincidente em termos nominais: a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.

Este é o objecto da tutela da acção popular.

Mas o que da conjugação destas normas resulta seguramente, depois do nº 1 do citado artº 52 referir-se a “todos os cidadãos” e no seu nº 3 a “a todos, pessoalmente” é que para além dos cidadãos, pessoas singulares no gozo dos direitos civis e políticos apenas as pessoas colectivas que representem aqueles, as referidas no nº 3 do preceito constitucional e do nº 1 do artº 2º estão autorizadas a instaurar e mover esta espécie processual, ou seja, “associações de defesa dos interesses em causa” ou “as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior”, consoante o preceito, e, atento à natureza de alguns desses interesses naturalmente, segundo o nº 2 do artº 2º, “as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”.

Acresce, no domínio da tutela dos interesses difusos, a legitimidade para a as acções e procedimentos cautelares é configurada em termos idênticos no artº 31º do CPC.

Segundo ele, sob a epígrafe “Acções para a tutela de interesses difusos”:

“Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei.”.

Desta previsão especial resulta que apenas secundariamente viria ao caso aludir ao disposto no artº 30º do CPC que define o conceito de legitimidade em termos genéricos, assim, para qualquer procedimento judicial.

No despacho em que se decidiu pela improcedência da nulidade arguida pelo recorrente, reconhece-se a legitimidade da A para propor a acção popular através da causa de pedir que alegou, embora a considere uma sociedade comercial e não um cidadão, nem uma associação ou fundação defensora do interesse na manutenção da utilização do caminho.

Para o efeito, socorre-se do artº 2º, nº 1 (parte final) que legitima a titularidade do direito procedimental de participação popular e do direito à acção popular independentemente de se ter ou não interesse directo na demanda:

“Efectivamente, a leitura atenta da parte final do n.º 1 do artigo 2º da Lei 83/95, onde consta …independentemente de terem ou não interesse direto na demanda… dá-nos um vislumbre da intenção do legislador que, por força do especial interesse público na tutela dos valores protegidos pela acção popular, entendeu atribuir legitimidade a entidades que não poderiam propor a acção se nos ativéssemos ao regime mais estrito previsto pelo artigo 30º do CPC, onde se exige um interesse próprio e directo do autor na demanda judicial.

Por isso, as regras sobre legitimidade previstas pela Lei 83/95 devem ser tidas como complementares do regime previsto no artigo 30º do Código de Processo Civil, conferindo a possibilidade de zelar pela tutela jurídica de interesses supra individuais, não apenas aos interessados directos que, como o Autor, têm simultaneamente um interesse no reconhecimento da condição pública do caminho, também a outros cidadãos e entidades públicas (associações, fundações, órgãos da administração local e também ao M.ºP.º, entre outros).

Este é, salvo mais avisado entendimento, o sentido que melhor se adequa à letra e ao espírito do artigo do n.º 3 do artigo 52º da Constituição da República Portuguesa – que alude “…a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa…” [...], sem distinguir entre pessoa singular ou colectiva - e da Lei n.º 83/95 que, como bem lembra o M.º P.º no artigo 13º da douta contestação, abriu “… portas larguíssimas ao exercício de acção popular para protecção dos interesses previstos no n.º 2 do artigo 1º da LAP” [...].”


Não podemos concordar com estas asserções.

É que nesta parte do normativo o legislador não amplia as categorias de pessoas colectivas com legitimidade para a acção popular.

Unicamente confere legitimidade a quem directamente refere e que não tendo qualquer benefício pessoal com a tutela do interesse difuso não deixa de prosseguir um interesse pluri-subjectivo como fim primeiro e principal.

Nos termos do decidido no acórdão do STA de 12.07.2016, (procº 0838/16;www.dgsi.pt):

“Expõe-se, lapidarmente, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.04.2003, processo n.º 047545:

“I - A acção popular traduz-se, por definição, num alargamento da legitimidade processual activa dos cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa.

II - O objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos. A acção popular tem sobretudo incidência na tutela de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.

II - Sobre um determinado bem pode incidir um interesse individual, ou seja, um direito subjectivo ou interesse específico de um indivíduo, um interesse público ou interesse geral, subjectivado como interesse do próprio Estado e de outras pessoas colectivas, um interesse difuso, que é a refracção em cada indivíduo de interesses da comunidade e um interesse colectivo, quando se trata de um interesse particular comum a certos grupos e categorias.”

O mesmo se defende no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2005, no processo n° 05B2578:

“Não é, portanto, qualquer interesse meramente individual e egoístico que pode estar na base de uma acção popular.

Muito embora a lei atribua legitimidade processual a qualquer pessoa singular para intentar tal acção popular, os direitos que se pretende ver tutelados deverão ter um carácter comunitário, ou seja, um valor pluri-subjectivo e os interesses subjacentes devem assumir um cunho meta-individual.”

Ou seja, a expressão “independentemente de terem ou não interesse directo na demanda” significa que o autor pode não ter interesse directo na demanda. Não significa que só o autor tenha um interesse directo da demanda.

Pressuposto essencial para poder ser usado o meio “acção popular” é que haja um interesse difuso ou colectivo a defender que pode coincidir ou não com o interesse individual.

O simples interesse individual legitima o uso de outros meios processuais que não a acção popular.

Em concreto em relação às pessoas colectivas — e em consonância com a ideia mestra de que a acção popular serve para defender em juízo interesses difusos ou colectivos - a lei refere que só têm legitimidade activa as pessoas colectivas que, tendo personalidade jurídico, “incluírem nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate” – alíneas a) e b) do artigo 3º da Lei 83/95, de 31.08.

O que não é o caso da autora Construções A..., Lda., uma sociedade industrial, com fins lucrativos e que, por isso, não tem por objecto social a defesa de interesses difusos ou colectivos.

A lei exclui, de resto, do leque de pessoas colectivas com legitimidade para intentarem a acção popular as que exerçam “qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais” — alínea c) do artigo 3º da Lei 83/95, de 31.08.

O que bem se compreende, para evitar que sob o capa da defesa de interesses colectivos se vise, em exclusivo, a defesa de interesses particulares, concorrentes com outros igualmente particulares, beneficiando das vantagens que a acção popular traz, em particular no que diz respeito a custas – artigo 20º da Lei 83/95.”. [...]

Ora, a A é uma sociedade comercial cujo objecto social principal é a actividade bancária, obviamente com intuito lucrativo.

Por seu turno, na acção está em causa a alegada existência de caminho público de acesso ao seu prédio e a construção pelos RR de um muro e a colocação pelos mesmos de um portão nesse domínio público que condiciona o trânsito de pessoas e viaturas a esse prédio.

Ainda que assim seja, o reconhecimento da existência desse caminho é meramente instrumental do interesse e fim prosseguido pelo A que se esgota na sua esfera privada: manter incólumes as faculdades que o direito de propriedade lhe pode proporcionar, como, de resto, o confirma a ultima pretensão no sentido da compensação económica em virtude da violação estrita desse direito. Por um lado constata-se o intuito e o objectivo de se exercer e efectivar um direito individual, subjectivo. Por outro lado, sem qualquer cunho comunitário, colectivo ou supra individual, como exige o objecto de tutela da acção popular.
Por tudo isto a A nunca teria legitimidade para intentar qualquer acção popular civil (artº 12º, nº 2 da Lei 83/95) com os fundamentos que arrolou.

Pelo exposto deve ser julgado procedente o recurso na parte em que pretende a revogação do primeiro despacho recorrido, sendo certo que o conhecimento da segunda parte do recurso encontra-se prejudicado já que a respectiva pretensão é formulada subsidiariamente (artºs 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, in fine, do CPC)."

[MTS]

 

27/05/2020

Jurisprudência 2019 (246)



Acidente de trabalho;
competência material*

 
1. O sumário de RE 19/12/2019 (435/19.5T8STR-A.E1) é o seguinte:
 
I – Visando a autora com a ação a condenação da ré no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais causados pela privação de atos sexuais com o marido que, por ter sido vítima de acidente de trabalho, sofreu lesões que se agravaram e lhe causaram disfunção eréctil, o facto que constitui a causa de pedir da qual a autora faz derivar o seu direito à indemnização é o acidente de trabalho sofrido pelo seu marido.

II - A aptidão para o tratamento das questões específicas relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais encontra-se deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº 1, alínea c) da LOSJ.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais [Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 88 e 89]. [...]
 
No caso em apreço, a questão suscitada tem a ver com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.

Dispõe o artigo 64° do CPC [...] que «[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional», acrescentando o artigo 65°, do mesmo Código, que «[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada».

Como é sabido e constitui jurisprudência constante quer do Tribunal de Conflitos, quer do STJ, quer do STA, a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a ação é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, isto é, no confronto entre o respetivo pedido e a causa de pedir, sendo que em sede da indagação a proceder em termos de se determinar a competência material do tribunal é irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente á viabilidade da ação, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão [Cfr., inter alia, o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, proc. 07/12 e os acórdãos do STJ de 13.03.2008, proc. 08A391, e 12.02.2009, proc. 09A0078].

Nestas condições, importa recortar, com precisão, o efeito jurídico que a recorrente pretende obter com a ação e o ato ou facto – a causa petendi – de que, no seu entender, o direito indemnizatório alegado procede.

A autora/recorrida visa com a ação a condenação da ré/recorrente, no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais causados pela privação de atos sexuais com o marido que, por ter sido vítima de acidente de trabalho, sofreu lesões que se agravaram e lhe causaram disfunção eréctil.

Escreveu-se na decisão recorrida:

«Da análise do pedido e da causa de pedir, não resulta que a A. configure a acção como emergente de acidente de trabalho, mas como de responsabilidade civil, em que o acidente de trabalho sofrido pelo marido fundamenta o pedido que deduz contra a seguradora responsável pelos danos decorrentes do acidente. Neste caso, afigura-se irrelevante os termos em que ocorreu o acidente de trabalho (já decidido no âmbito do processo próprio), mas apenas as sequelas que dele derivaram e que terão reflexo na esfera jurídica da A., e que serão geradoras de danos.»

Salvo o devido respeito, não é assim.

O facto que constitui a causa de pedir da qual a autora faz derivar o seu direito à indemnização é efetivamente o acidente de trabalho sofrido pelo seu marido.

Na verdade, percorrendo a petição inicial, verificamos que até ao artigo 20º a autora se limita a descrever o evento ocorrido com o seu marido e as circunstâncias que caracterizam o mesmo como acidente de trabalho, nos artigos 21º a 41º refere as repercussões que a incapacidade atribuída ao marido (disfunção eréctil) teve na relação do casal, e nos restantes artigos quantifica os danos alegadamente sofridos.

Ou seja, a autora peticiona uma indemnização por danos não patrimoniais que fundamenta nas lesões e sequelas sofridas pelo marido em consequência de acidente de trabalho, da responsabilidade da recorrente, sem que alegue um único facto ilícito gerador de responsabilidade civil nos termos do artigo 483º do Código Civil.

Não se trata aqui da análise de uma situação autonomizada – o direito de indemnização reclamado pela autora - em relação a toda a factualidade consubstanciadora que conduziu a esse direito, isto é, o acidente de trabalho.

E que assim é, foi reconhecido pelo próprio Tribunal a quo, quando na audiência preliminar, a respeito da identificação do objeto do litígio, fez consignar que «[a] presente acção destina-se a responsabilizar a CC – Companhia de Seguros, S.A., pelos danos não patrimoniais causados em consequência do acidente de trabalho de que foi vítima o marido (da autora), …, e que lhe causou disfunção eréctil» [...].

Só assim se compreende, outrossim, que a autora tenha demandado a ré seguradora, por via da transferência das responsabilidades através da celebração obrigatória do contrato de seguro havido com a entidade patronal em sede de acidentes de trabalho.

Ora, a aptidão para o tratamento das questões específicas relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais encontra-se deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº 1, alínea c) da LOSJ.

Como se escreveu no acórdão do STJ de 30.04.2019 [...], «[c]onsagra-se, assim, o princípio da absorção das competências, o que equivale a dizer que tendo os Tribunais de trabalho a competência exclusiva para a apreciação das problemáticas decorrentes dos acidentes de trabalho, a eles competirá, mutatis mutandis, igualmente, o conhecimento de todas as questões cíveis relacionadas com aqueles que prestem apoio ou reparação aos respectivos sinistrados».

O recurso merece, pois, provimento."
 
*3. [Comentário] O art. 126.º, n.º 1, al. c), LOSJ estabelece que "compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível [...] das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais". Os danos indirectos provocados num terceiro não são necessariamente "questões emergentes de acidentes de trabalho". No entanto, o mais importante é uma constância jurisprudencial sobre a questão, evitando discussões infindáveis sobre soluções que não são inequívocas nem num sentido, nem no outro.
 
MTS

26/05/2020

Jurisprudência 2019 (245)


Causa de pedir;
nulidade da sentença


I. O sumário de RE 17/12/2019 (240/18.6T8BJA.E1) é o seguinte:

1 – A causa de pedir é o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido e exerce uma função individualizadora deste último para o efeito da conformação do objecto do processo.

2 – Sendo dentro dos limites fixados pela causa de pedir que o tribunal exerce os seus poderes de cognição, a sentença não pode basear-se em causa de pedir não invocada pelo autor, sob pena de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

3 – Alegando o autor, como causa de pedir, a celebração de um contrato de compra e venda com o réu e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço por parte deste, se não se provar a celebração daquele contrato nem, logicamente, o referido incumprimento, está vedado, ao tribunal, condenar o réu no pagamento da quantia peticionada a título de restituição de quantia emprestada pelo autor em consequência da nulidade de contrato de mútuo.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nas conclusões 1 a 7, o recorrente sustenta que a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC, porquanto o condenou com fundamento em causa de pedir diversa daquela que o recorrido invocou. Mais precisamente, o recorrido alegou ter vendido um tractor ao recorrente e que este incumpriu parcialmente a obrigação de pagamento do preço, sendo essa a causa de pedir; consequentemente, estava vedado, ao tribunal a quo, condenar o recorrente com fundamento na nulidade de um contrato de mútuo cuja celebração, entre aquele e o recorrido, julgou provada.

Antecipando esta crítica, o tribunal a quo, na sentença recorrida, considerou-se livre para proferir aquela condenação argumentando que, nos termos do n.º 3 do artigo 5.º do CPC, não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Em momento posterior da sentença recorrida, o tribunal a quo acrescentou que o próprio recorrente alegou a celebração de um contrato de mútuo com o recorrido. [...]

Sendo estes os termos em que a questão se encontra colocada, mostra-se necessário revisitar o conceito de causa de pedir. [...]

No caso dos autos, a causa de pedir é constituída pelo contrato de compra e venda que o recorrido alegou ter celebrado com o recorrente e pelo incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço a cargo deste último. Foi assim que o recorrido configurou a causa de pedir na petição inicial e não a alterou no decurso da acção. Note-se, a propósito, que a circunstância de o recorrente não se ter limitado a negar pura e simplesmente a veracidade dos factos integradores da causa de pedir e, em vez disso, se ter defendido através de impugnação motivada [...], contextualizando as entregas de dinheiro alegadas pelo recorrido à luz de um contrato diverso, em nada alterou a causa de pedir. Esta última resulta exclusivamente da alegação do autor e não também da impugnação levada a cabo pelo réu.

Sendo a causa de pedir a acima referida, é dentro dos limites dela decorrentes que o tribunal tem de exercer os seus poderes de cognição. “Por isso, o tribunal tem de a considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (art. 608-2), sob pena de nulidade da sentença (art. 615-1-d)” [JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p. 53. Este autor explicita o seu pensamento através do seguinte exemplo: “não pode, por exemplo, em acção em que se pretenda o reconhecimento do direito de propriedade adquirido por um contrato de compra e venda, reconhecê-lo com fundamento na aquisição por testamento; ainda que a ocorrência e o conteúdo deste tenham sido introduzidos no processo pelas partes, só a sua elevação a nova causa de pedir (subsidiária ou substitutiva da primeira), nos termos em que a lei a consente, permitiria ao juiz tal decisão.”] [...]

Identificada da forma descrita a causa de pedir desta acção e esclarecidos os limites que a mesma impõe aos poderes de cognição do tribunal, bem as consequências legais da violação desses limites, importa analisar se a sentença recorrida se conteve dentro dos mesmos limites ou, ao invés, os ultrapassou.

O tribunal a quo entendeu que a condenação do recorrente com fundamento, não no parcial incumprimento da obrigação de pagamento do preço decorrente do contrato de compra e venda alegado pelo recorrido, mas na obrigação de restituição do dinheiro ainda não reembolsado pelo recorrente ao recorrido, obrigação esta decorrente da nulidade de um contrato de mútuo entre estes celebrado, se traduz numa mera diferença de enquadramento jurídico da factualidade dada como provada, legalmente admissível porquanto o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC.

Discordamos.

É indiscutível que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Di-lo expressamente o artigo 5.º, n.º 3, do CPC, à semelhança do artigo 664.º, 1.ª parte, do CPC anterior. Ensinava, a propósito, ALBERTO DOS REIS que “As partes fornecem os factos ao juiz; mas a sua qualificação jurídica, o seu enquadramento no regime legal, é função própria do magistrado, no exercício da qual ele procede com a liberdade assinalada na 1.ª parte do art. 664.º.” No entanto, logo advertia: “É livre o tribunal na qualificação jurídica dos factos, contanto que não altere a causa de pedir.” [Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), páginas 93-94]

Ora, o fundamento da condenação do recorrente nada tem a ver com a causa de pedir invocada pelo recorrido. Como anteriormente referimos, o recorrido invocou, como causa de pedir, um contrato de compra e venda de um tractor e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço por banda do recorrente. O tribunal a quo condenou o recorrente com fundamento na nulidade de um outro contrato, que qualificou como mútuo. Ao fazê-lo, o tribunal a quo extravasou claramente da causa de pedir invocada pelo recorrido.

Não se tratou de um mero enquadramento jurídico diverso dos factos invocados como causa de pedir. Isso teria acontecido, por exemplo, se o tribunal a quo tivesse julgado provada a celebração do contrato alegado pelo recorrido, mas tivesse qualificado esse contrato, não como compra e venda, mas como pertencendo a outro tipo legal, por exemplo como contrato de mútuo. Então sim, o contrato seria o mesmo e o tribunal a quo, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 5.º do CPC, ter-lhe-ia dado um enquadramento jurídico diverso. Contudo, aquilo que o tribunal a quo fez foi diferente: julgou não provada a celebração do contrato de compra e venda invocado pelo recorrido (n.º 16), julgou provada a celebração de um outro contrato entre este e o recorrente, qualificando-o como mútuo, julgou que este último contrato é nulo por inobservância da forma legalmente prescrita e condenou o recorrente a restituir ao recorrido o montante mutuado que ainda não fora pago. É evidente que a causa de pedir invocada pelo recorrido não ficou demonstrada e que a condenação se baseou em causa de pedir por aquele não invocada [...].

Afirmámos anteriormente que a circunstância de o recorrente, em vez de se limitar a negar a veracidade dos factos integradores da causa de pedir, se ter defendido através de impugnação motivada, invocando, como justificação para as entregas de dinheiro que fez ao recorrido, a celebração de um contrato de mútuo mediante o qual este último lhe emprestou a quantia de € 11.000,00, não alterou a causa de pedir. Consequentemente, ao contrário daquilo que a propósito se refere na sentença recorrida, é indiferente, para a problemática que vimos analisando, que o recorrente se tenha defendido da forma descrita. Sempre estaria vedado, ao tribunal a quo, condenar o recorrente com fundamento em causa de pedir diversa daquela que o recorrido invocou.

Porém, há mais. O contrato com fundamento em cuja nulidade o tribunal a quo condenou o recorrente também não é aquele que este último invocou na contestação e que qualificou – bem, considerando o conteúdo que lhe atribuiu – como mútuo. Isso resulta do cotejo dos factos alegados nos artigos 2.º, 3.º, 5.º e 6.º da contestação, completamente diversos daqueles que foram julgados provados na sentença recorrida, boa parte deles factos principais não alegados por qualquer das partes (n.ºs 2, 2.ª parte, 3, 8 e 9) e cujo conhecimento estava, por isso, vedado ao tribunal a quo, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º do CPC [Leia-se, sobre esta matéria, RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª edição, páginas 24 a 34]. Aliás, o tribunal a quo nem sequer se pronunciou, em sede de decisão sobre a matéria de facto, acerca da celebração do contrato de mútuo alegado pelo recorrente. Julgou não provados os factos alegados nos artigos 2.º e 6.º da contestação (n.ºs 17 e 18 da sentença recorrida), mas, quanto ao conteúdo dos artigos 3.º e 5.º do mesmo articulado, não o julgou, nem provado, nem não provado.

Portanto, o tribunal a quo julgou provada a celebração, entre recorrente e recorrido, não do contrato de compra e venda que constitui a causa de pedir ou do contrato de mútuo alegado pelo recorrente na contestação, mas de um outro contrato, que descreve na matéria de facto provada e que qualificou como mútuo [...], contrato esse não alegado por qualquer das partes. Com fundamento na nulidade deste último contrato e tendo como pressuposto a sua qualificação como sendo de mútuo, condenou o recorrente nos termos já repetidamente descritos. Por tudo aquilo que anteriormente afirmámos, o tribunal a quo não o podia fazer.

Ao transpor, nos termos expostos, os limites decorrentes da causa de pedir, o tribunal a quo conheceu de questão que lhe estava vedada, nos termos do artigo 608.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, e condenou o recorrente com fundamento diverso da mesma causa de pedir. Consequentemente, a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do mesmo código.

O artigo 665.º, n.º 1, do CPC, estabelece que, anulada a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação. No caso dos autos, perante aquilo que afirmámos até aqui, pouco mais há a fazer que concluir. Não se provou a celebração do contrato de compra e venda e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço que o recorrido invocou como causa de pedir. Consequentemente, a acção terá de improceder.

Fica, assim, prejudicado o conhecimento das restantes questões acima enunciadas como constituindo objecto do recurso."

[MTS]

22/05/2020

Jurisprudência 2019 (244)

 
Falta de sumário;
nulidade do acórdão*
 
 
I. O sumário de STJ 17/12/2019 (1386/15.8T8PVZ.P1.S1) é o seguinte:

A falta do sumário a que se refere o art. 663.º, n.º 7, do CPC, não acarreta qualquer nulidade ou irregularidade, não sendo também possível arguir a nulidade do sumário elaborado pelo relator.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. Importa conhecer da aventada nulidade do acórdão, tal como expresso no requerimento da recorrente.

O artigo 613º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe (Extinção do poder jurisdicional e suas limitações), preceitua o seguinte:

“1. Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

2. É lícito, porém, ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.

3…”.


O artigo 615º (Causas de nulidade da sentença) preceitua o seguinte:

1 - É nula a sentença quando:

a) (…).

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
 
São estas as alíneas onde a requerente se baseia para invocar a nulidade do acórdão, sempre com referência à alínea (ii) do Sumário, que tem a seguinte redacção:

“Constitui ofensa ilícita do direito ao repouso (que se integra no direito à integridade física e a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado e, através destes no direito à saúde e qualidade devida de acordo com os artigos 64º e 66º da Constituição) a actividade de um posto de lavagem de veículos do tipo “Jet Wash” causadora de ruído incomodativo, de carácter permanente e que se verifica das 07h até às 22h a que estão sujeitos os autores, proprietários do prédio contíguo”.

De acordo com o disposto no artigo 663º nº 7 do CPC, aplicável por força do artigo 679º, “o juiz que lavrar o acórdão deve sumariá-lo”.

O sumário a que se refere o artigo 663º nº 7 é da exclusiva responsabilidade do relator e não do colectivo.

A sua falta não acarreta qualquer nulidade ou mera irregularidade, mas também não é possível arguir a nulidade do sumário.

Assim, sem mais delongas, conclui-se que o acórdão não padece dos três vícios apontados, não havendo violação do disposto no artigo 615º nº 1 alíneas b), c) e d) do Código de Processo Civil.

4. Assim, nos termos conjugados dos artigos 666º nºs 1 e 2, 615º nº 1 alíneas b) c) e d) e 679º, todos do Código de Processo Civil, não há que suprir qualquer nulidade, indeferindo o requerimento da recorrente.

Custas pela requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs."
 
III. [Comentário] O assunto tratado no acórdão é certamente um daqueles que pode ser integrado nas curiosidades processuais e jurisprudenciais. 
 
É claro que o STJ decidiu bem. 
 
Talvez porque a atenção dispensada ao assunto foi proporcional à justificação da alegação da nulidade do acórdão, o STJ não se alongou na sua fundamentação. Sempre se pode acrescentar que poderia ter sido transposto para a rejeição (óbvia) da alegação da nulidade do acórdão o argumento retirado do disposto no art. 195.º, n.º 1, CPC quanto às nulidades processuais: a falta de elaboração do sumário pelo relator nunca pode constituir uma nulidade do acórdão, dado que a sua omissão em nada influencia o exame ou a decisão da causa.
 
MTS