"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/11/2021

Jurisprudência 2021 (88)


Pedido;
qualificação jurídica


1. O sumário de RG 29/4/2021 (374/19.0T8VVD.G1) é o seguinte:

I- O tribunal, em regra, não só não pode conhecer senão das questões que lhe tenham sido colocadas pelas partes, como também não pode decidir ultrapassando os limites do pedido que foi formulado, sob pena da decisão ficar afetada de nulidade.

II- A nulidade da decisão quando o Tribunal condene em objeto diverso do pedido colhe o seu fundamento no princípio do dispositivo, que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a demanda pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor.

III- Contudo é lícito ao tribunal, “através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter”.

IV- A desistência da empreitada pelo dono da obra, prevista no artigo 1229º do Código Civil, é uma faculdade discricionária que não carece de fundamento e nem de qualquer pré-aviso, apresenta-se como insuscetível de apreciação judicial e tem eficácia ex nunc.

V- Em caso de desistência do dono da obra, assiste ao empreiteiro não só o direito a ser indemnizado dos seus gastos e trabalho mas também do proveito que poderia tirar da obra, pretendendo-se permitir que o dono da obra possa obstar à realização da mesma, mas fazendo-o sem prejuízo do empreiteiro.

VI- Destinando-se a cláusula penal a fixar a indemnização pela mora no pagamento (cláusula penal moratória) não pode cumular-se com os juros de mora.

VII- Contudo, uma vez comprovada a validade e exigibilidade da prestação pecuniária em que se consubstancia a cláusula penal, do seu incumprimento (mora) emerge um dano autónomo, não consumido por ela, e, por isso, ressarcível através dos juros de mora.

VIII- O pagamento de juros de mora sobre o montante da cláusula penal não deve ser entendido como “dano excedente” para efeitos do disposto no artigo 811º do Código Civil, devendo a mora no pagamento da cláusula penal conferir ao credor o direito aos juros moratórios.

IX- Contudo, não tendo a Autora formulado na petição inicial pedido de juros de mora sobre a quantia devida a título de cláusula penal mas apenas sobre o capital, não pode o tribunal condenar os Réus no seu pagamento.

2. No relatório e fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2. Da nulidade da sentença

"O Réu e a Autora vêm arguir a nulidade da sentença recorrida com fundamento, respectivamente, nas alíneas d) e e) e nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil; por uma questão de coerência e economia processual iremos tratar desta questão conjuntamente.

O artigo 615º do Código de Processo Civil prevê de forma taxativa as causas de nulidade da sentença.

Assim, dispõe o n.º 1 deste preceito que:

“1- É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.

Começamos por precisar que as decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respectiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respectiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º.

As causas de nulidade taxativamente enumeradas no artigo 615º não visam o chamado erro de julgamento e nem a injustiça da decisão, ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável, sendo coisas distintas, mas muitas vezes confundidas pelas partes, a nulidade da sentença e o erro de julgamento, traduzindo-se este numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.

Não deve por isso confundir-se o erro de julgamento e muito menos o inconformismo quanto ao teor da decisão com os vícios que determinam as nulidades em causa.

Segundo o invocado pelos Recorrentes estão em causa as nulidades previstas nas alíneas c), d) e e) do referido preceito.

Vejamos então se lhes assiste razão analisando a decisão recorrida e a argumentação dos Recorrentes.

Começando por apreciar a nulidade prevista na alínea c) cumpre referir que a mesma pressupõe que os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Esta nulidade está também relacionada com a obrigação imposta pelos artigos 154º e 607º, n.ºs 3 e 4, ambos do Código de Processo Civil, do juiz fundamentar as suas decisões e com o facto de se exigir que a decisão judicial constitua um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão final seja a consequência ou conclusão lógica da aplicação da norma legal aos factos.

Por outras palavras, “os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, funcionam na estrutura expositiva e argumentativa em que se traduz a sentença, como premissas lógicas necessárias para a formação do silogismo judiciário”. Logo, “constituirá violação das regras necessárias à construção lógica da sentença que os fundamentos da mesma conduzam logicamente a conclusão diferente da que na mesma resulta enunciada” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 14/05/2015, Processo nº 414/13.6TBVVD.G, disponível em www.dgsi.pt).

Como se escreve no sumário do Acórdão da Relação de Évora de 03/11/2016 (Relator Desembargador Tomé Ramião, também disponível em www.dgsi.pt) “(…) 2. A nulidade da sentença a que se refere a 1.ª parte da alínea c), do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil, remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos. 3. A ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, e a obscuridade traduz os casos de ininteligibilidade. A estes vícios se refere a 2.ª parte do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil”.

A Autora entende verificar-se tal nulidade por existir contradição entre o ponto N) dos factos provados e o ponto 1) dos factos não provados, sustentando ainda que este deve ser alterado e merecer resposta positiva nos termos do artigo 662º n.ºs 1 e 2 alínea c) do Código de Processo Civil.

É pois patente a confusão da Recorrente entre a nulidade da sentença e o erro de julgamento da matéria de facto; este deverá ser apreciado em sede de reapreciação da matéria de facto em conformidade com o disposto no artigo 662º do Código de Processo Civil, tal como também reconhece a própria Recorrente, mas nada tem a ver com a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615º.

E, analisada a decisão recorrida não vemos que a mesma padeça de ambiguidade ou obscuridade, que a torne ininteligível, e nem que os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

No que se refere à alínea d), prende-se a nulidade aí prevista com a omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) ou com o excesso de pronúncia (quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento).

A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há-de assim resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Mas, a resolução das questões suscitadas pelas partes não pode confundir-se com os factos alegados, os argumentos suscitados ou as considerações tecidas, e nem tão pouco com meios de prova, não se confundindo, mais uma vez, com o designado erro de julgamento.

Quanto à nulidade prevista na alínea e), isto é, quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, relaciona-se com o previsto no artigo 609º n.º 1 do Código de Processo Civil onde se estabelece que: “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.

O tribunal, por regra, não só não pode conhecer senão das questões que lhe tenham sido colocadas pelas partes, como também não pode decidir ultrapassando os limites do pedido que foi formulado, sob pena da decisão ficar afectada de nulidade.

A nulidade da decisão quando o Tribunal condene em objecto diverso do pedido colhe o seu fundamento no princípio do dispositivo, que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a demanda pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019, Relator Conselheiro Oliveira Abreu, também disponível em www.dgsi.pt).

Como sustenta Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, página 362, apud o citado Acórdão de 21/03/2019) “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art. 660°, n° 2, 2.ª parte), e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art. 661°, n.° 1). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte) ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado [art. 668°, n° 1, al. e)]”.

É incontornável que de acordo com o previsto no artigo 609º n.º 1 do Código de Processo Civil a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido (e da causa de pedir) não podendo o juiz condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (v. António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código se Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, página 728).

A decisão que ultrapassar o pedido formulado, passando a abranger matéria distinta, está ferida da nulidade prevista na referida alínea e).

Com efeito, o pedido dos autores, conformando o objecto do processo, irá condicionar a decisão de mérito: o juiz não pode, na sentença, extravasar os pedidos formulados pelas partes, encontrando-se limitado por eles; a sentença terá de manter-se dentro dos limites definidos pela pretensão do autor ou da reconvenção, se deduzida pelo réu, não podendo o juiz transpor os limites do pedido, quer no que respeita à quantidade, quer quanto ao seu próprio objecto.

Ou seja, através do pedido (cfr. artigo 3.º n.º 1 do Código de Processo Civil) as partes “circunscrevem o thema decidendum, isto é, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se perante a real situação conviria, ou não, providência diversa. Trata-se de uma esfera em que domina o princípio do dispositivo, o qual, em termos paralelos, também vigora em sede da sustentação fáctica da pretensão. Em ambos os casos prevalece a estratégia assumida pelo autor, sem que nela se deva imiscuir o juiz. Consequentemente, a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido (e da causa de pedir), não podendo o juiz condenar (ou fazer a apreciação que corresponder ao tipo de ação em causa) em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” (v. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Filipe Pires de Sousa, ob. cit., página 728).

Contudo, como salientam estes Autores (ob. cit. páginas 728 a 730), a prática judiciária revelou situações cuja resolução implicou alguma atenuação da rigidez desta regra tendo-se admitido, designadamente, a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor considerando-se ser lícito ao tribunal atribuir ao autor, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter, tendo-se em atenção que essa será por vezes, a única forma de resolver o litígio de forma definitiva.

Conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/04/2016 (Proc. n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1, Relator Conselheiro Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt): “1. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado. 2. Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular”.

Tem vindo ainda a ser entendido que a interpretação do pedido não deve cingir-se aos estritos dizeres da formulação do petitório, devendo antes ser conjugada com o sentido e alcance resultantes dos fundamentos da pretensão.

De facto, vem sendo defendida a necessidade de interpretar o princípio do dispositivo em moldes mais flexíveis que, sem violação dos limites expressos no artigo 609º, permita de forma definitiva solucionar o litígio entre as partes, quando o decidido se contenha ainda assim no âmbito da pretensão formulada.

Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/02/2015 (Proc. n.º 607/06.2TBCNT.C1.S1 Relator Conselheiro Abrantes Geraldes disponível em www.dgsi.pt“(…) também o art. 609º, nº 1, carece de um esforço interpretativo, contando, além do mais, com os contributos de diversos Assentos e Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência do STJ.

Entre tais arestos, destaca-se o Assento nº 4/95, in D.R. de 17-5, ao admitir que numa acção em que seja deduzida uma pretensão fundada num contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada o réu seja condenado a restituir o que tenha recebido no âmbito desse contrato, por aplicação do art. 289º do CC, desde que do processo constem os factos suficientes.

A conjugação entre o princípio do dispositivo e os limites do pedido encontra também largo desenvolvimento na fundamentação do ACUJ nº 13/96, in D.R., I Série, de 26-11, ainda que no caso se tenha vedado ao tribunal a actualização oficiosa da quantia peticionada.

Outro importante elemento auxiliar da interpretação emerge do ACUJ nº 3/01, in D.R., I Série-A, de 9-2, que firmou a jurisprudência segundo a qual numa acção de impugnação pauliana em que tenha sido erradamente formulado o pedido de declaração de nulidade ou de anulação do acto jurídico impugnado o juiz deve corrigir oficiosamente esse erro e declarar a ineficácia que emerge do direito substantivo. (…)

Na integração do caso não podem ainda descurar-se os objectivos apontados pelas sucessivas reformas processuais, designadamente quando delas emerge a sobreposição de aspectos de ordem material a outros de ordem formal, ou a necessidade de atribuir ao processo a necessária eficácia que permita alcançar uma efectiva e célere resolução de litígios.

Importa ponderar também o que emana da doutrina que, fazendo coro com os referidos objectivos, aponta para a flexibilização do princípio do pedido, como é defendido por Miguel Mesquita, em anotação a um aresto sobre direitos reais, na RLJ, ano 143º, págs. 134 e segs. intitulada precisamente “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC”.

Assim, se é verdade que a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido, não podendo o juiz condenar (rectius apreciar) nem em quantidade superior, nem em objecto diverso do que se pedir, tal não dispensa um esforço suplementar que permita apreender realmente o âmbito objectivo do pedido que foi formulado na presente acção (…) Tomando de empréstimo as palavras de Miguel Mesquita na mencionada anotação em torno da necessidade de compreender o princípio do dispositivo de um modo mais flexível, ajustado à realidade social e aos avanços que se têm sentido também no processo civil, se acaso a Relação tivesse adoptado a mesma “postura rígida e inflexível relativamente ao pedido, bem ao estilo oitocentista”, acabaria por absolver os RR. do pedido, “decisão que seria, sem dúvida alguma, do imediato agrado dos RR., mas que redundaria numa vitória de Pirro” (pág. 147).

Ora, como refere o mesmo autor, “o interesse público da boa administração da justiça nem sempre coincide com os interesses egoístas das partes, fazendo, pois, todo o sentido, num processo moderno, a intervenção do juiz destinada a alcançar a efectividade das sentenças” (pág. 150). Desiderato que, com muita razoabilidade e bom senso, foi conseguido pela Relação quando, reconhecendo para o muro uma situação de compropriedade, concluiu que se deveria pôr um esclarecedor ponto final no conflito”.

No caso dos autos, a Autora veio pedir, a título principal, que seja judicialmente qualificado o comportamento do Réu marido como de desistência da empreitada e sejam os Réus solidariamente condenados a pagar à Autora a quantia relativa à sua execução no cômputo global de €9.052,94 (nove mil cinquenta e dois euros e noventa e quatro cêntimos); e a título subsidiário que seja judicialmente qualificado o comportamento do Ré marido como mora do credor, seja declarado que assiste justa causa à Autora para a resolução contratual, e sejam os Réus solidariamente condenados a pagar à Autora a referida quantia a título de restituição, ex vi do disposto nos artigos 433º e 289º n.º 1, ambos do Código Civil, por ser impossível a restituição em espécie no caso sub judice.

Peticiona ainda que à quantia que se fixe sejam acrescidos juros de mora vincendos, à taxa legal fixada para as operações de natureza comercial, sobre a quantia de €6.648,15 até à data do efetivo e integral pagamento.

O tribunal a quo veio a julgar a ação parcialmente procedente e condenou os Réus a pagar à Autora a quantia €7.844,82, correspondente à quantia devida pela execução dos trabalhos no montante de €6.648,15 (valor da fatura 2018/94 de 22/10/2018 que a Autora emitiu) acrescida da cláusula penal no montante de €1.196,67, considerando que a Autora cumpriu a sua obrigação e que os Réus, não tendo procedido ao pagamento do preço devido, incorreram em mora.

O Réu sustenta que o pedido de reconhecimento da desistência da empreitada ou, subsidiariamente, que seja judicialmente qualificado o comportamento do Réu marido como mora do credor e que seja declarado que assiste justa causa à Autora para a resolução contratual, definem o objecto da acção e este encerra os limites da sentença, pelo que ao tribunal a quo se impunha apenas conhecer da desistência da empreitada e, sendo tal pedido improcedente, aferir do pedido subsidiário, isto é se existia ou não fundamento para a resolução do contrato.

Entende, por isso, que a sentença recorrida, ao condenar parcialmente na quantia peticionada, não com fundamento na desistência ou na mora do credor, mas no incumprimento do contrato por falta de pagamento do preço, o que não foi pedido pela Autora, conheceu de questão não colocada pela Autora e decidiu em objecto diverso, o que fere a mesma de nulidade.

In casu, o tribunal a quo entendeu que inexistia desistência do Réu e que tendo a Autora cumprido a sua obrigação, realizando a obra a que se propôs, se gerou para os Réus a obrigação de pagamento do preço devido pela execução dos trabalhos, bem como da quantia devida a título de cláusula penal.

Afirma o tribunal a quo que a matéria de facto que apurou é a alegada pelas partes, tendo qualificado juridicamente de forma distinta os factos, condenando os Réus no que havia sido pedido pela Autora: o pagamento da fatura pelo trabalho feito no valor de capital de €6.648,15 e o montante devido a título de cláusula penal.

De facto, a Autora peticionou, seja a título principal, seja subsidiariamente, a condenação dos Réus solidariamente a pagar à Autora a quantia relativa aos trabalhos que efectuou, à sanção pecuniária e ao prejuízo por si invocado; na sequência, aliás, do por si alegado: “Em face da posição assumida pelo R., a A. emitiu e remeteu-lhe a Fatura FA 2018/94, datada de 22/10/2018, vencida na mesma data, na quantia global de 6.648,15 €, correspondente aos trabalhos e bens prestados, e enviou-a para a morada do R., solicitando o respectivo pagamento” (cfr. artigo 30º da petição inicial).

Conforme já referimos importa interpretar o princípio do dispositivo em moldes flexíveis para que, sem violação dos limites expressos no artigo 609º, permita de forma definitiva solucionar o litígio entre as partes, quando o decidido se contenha ainda assim no âmbito da pretensão formulada.

E o que caracteriza a pretensão do autor, enquanto elemento individualizador da acção, não é a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico (veja-se que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – cfr. artigo 5º n.º 3 do Código de Processo Civil), mas o efeito prático-jurídico por ele pretendido.

Entendemos, por isso, ser lícito ao tribunal, partindo dos factos alegados pelas partes e julgados provados, alterar a qualificação jurídica, e convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado e, procedendo a “uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido” atribuir ao autor o bem jurídico que ele pretendia obter, ainda que por uma via jurídica distinta da que foi invocada como fundamento da pretensão deduzida, sem que tal constitua o julgamento de objecto diverso do peticionado."

[MTS]


29/11/2021

Jurisprudência 2021 (87)


Personalidade judiciária;
herança jacente


1. O sumário de RC 20/4/2021 (6575/19.3T8CBR.C1) é o seguinte:

I – A herança jacente – herança aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado – é coisa diversa da herança que, não obstante permanecer ainda em situação de indivisão (por não ter sido efetuada a partilha), já foi aceite pelos sucessíveis que foram chamados à titularidade das relações jurídicas que dela fazem parte, sendo que só a primeira detém personalidade judiciária [cf. art. 12º, al. a) do n.C.P.Civil].

II – A herança indivisa ou não partilhada apenas goza de personalidade judiciária enquanto se mantiver na situação de jacente.

III – A existência de “cabeça-de-casal” [ou, sob outro ponto de vista, a aceitação desse cargo], não pressupõe, só por si, a aceitação da vocação sucessória.

IV – Não existindo nos autos elementos que permitam ao julgador concluir, com certeza, que a herança foi aceite, não pode este considerá-la com falta de personalidade judiciária.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Importa no presente recurso aferir e decidir do desacerto da decisão que  julgou as RR. “Herança de …”, representadas por um “cabeça de casal”, partes ilegítimas, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, na medida em que tinha de estar em juízo o conjunto de herdeiros em cada uma delas.

Que dizer?

Desde logo que temos para nós como incontroverso que na presente ação haveria litisconsórcio necessário passivo do conjunto de herdeiros de cada uma das RR. “Herança de …”, no pressuposto de que se tratava de “herança(s) impartilhada(s)”, posto que a personalidade judiciária só foi atribuída por lei à “herança jacente”, que não se confunde com aquela(s) [cf. art. 12º, al.a) do n.C.P.Civil].

Rememoremos, antes de prosseguir, alguns aspetos dogmáticos.

A “herança jacente “– herança aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado – é coisa diversa da herança que, não obstante permanecer ainda em situação de indivisão (por não ter sido efetuada a partilha), já foi aceite pelos sucessíveis que foram chamados à titularidade das relações jurídicas que dela fazem parte, sendo que só a primeira detém personalidade judiciária.

Isto é o que está vertido expressamente em texto de lei [cf. citado art. 12º, al. a) do n.C.P.Civil], constituindo nessa medida uma exceção à regra de correspondência [ou seja, da coincidência ou da equiparação], entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, pois que, o caso da “herança jacente” representa precisamente um caso em que, em certas situações, a lei confere personalidade judiciária a uma entidade carecida de personalidade jurídica.

De referir que nos termos do art. 2046º do C.Civil, «Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado».

Ora, permanecendo sem aceitação ou declaração de vacatura a favor do Estado (art. 2132º do C.Civil), a herança assume nesta situação transitória o lugar do de cujus sendo, pois, titular dos direitos e obrigações.

Todavia, esta personificação judiciária pode não a acompanhar até à partilha, cessando com a aceitação por parte dos sucessores, efetuada nos termos previstos nos arts. 2050º e segs. do C.Civil.

É certo que, com alguma pertinência, se pode questionar a razão de ser para não considerar aplicável à herança, na fase de indivisão [em que a mesma permanece, distinta do património dos herdeiros, e afetada a um fim próprio], a personificação judiciária que dispunha antes da respetiva aceitação por aqueles e, portanto, a possibilidade de ser parte processual ativa e passiva em processo civil.

Nesse sentido se pronunciou o insigne processualista A. Varela [mais propriamente ANTUNES VARELA / MIGUEL BEZERRA / SAMPAIO E NORA, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, a págs. 111, em nota (1)] (como invocado nas alegações recursivas), defendendo, por aplicação analógica do disposto no art. 6º do C.P.Civil ao tempo vigente, a persistência da personalidade judiciária da herança indivisa, estando em curso inventário judicial, com a consequência de as ações tendentes a defender ou a agredir interesses do património hereditário terem de ser intentadas em nome ou contra a herança.

Consideramos, salvo o devido respeito, que esse entendimento não encontra respaldo no atual texto legal, tendo sido expressa opção do legislador do n.C.P.Pivil, reservar a personalidade judiciária à “herança jacente”, que não se confunde, pois, com “herança impartilhada”. [Este é o entendimento igualmente assumido por LOPES DO REGO in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Coimbra, 1999, a págs. 32 e por A. ABRANTES GERALDES, in “Personalidade Judiciária”, ed. do CEJ, 1997, a págs. 8, quando refere que «A personalidade judiciária só foi atribuída por lei à herança jacente, que não se confunde, pois com herança impartilhada»; também como razão justificativa de tal alteração da letra da lei refere LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., 2014, Coimbra Editora, a págs. 40, que «Entendeu-se, por outro lado, que a fórmula proposta pela comissão Varela, que abarcava igualmente a herança já aceite mas ainda não partilhada (art. 2050 CC), ia longe demais na atribuição da personalidade judiciária, que o facto de serem já conhecidos os sucessores tornava redundante. Aliás mesmo depois da herança partilhada, os bens herdados continuam a constituir um património autónomo (2068 CC e 2071 CC), sem que alguma vez se tenha equacionado a questão de lhe ser atribuída personalidade judiciária (TEIXEIRA DE SOUSA, As partes, cit., p.18)».]

A esta luz, seriam de considerar improcedentes os argumentos recursivos e o recurso.

Porém, o presente caso encerra uma especificidade processual que acaba por nos conduzir a solução diversa.

Senão vejamos.

Temos para nós que a existência de “cabeça-de-casal” [ou, sob outro ponto de vista, a aceitação desse cargo], não pressupõe, só por si, a aceitação da vocação sucessória.

Na verdade, já foi a este propósito sublinhado o seguinte em douto aresto [Trata-se do acórdão do TRP de 19.10.2015, proferido no proc. nº 443/14.2T8PVZ-A.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp].

«(…) A lei não define o momento em que se inicia a administração da herança, ao invés do que sucede quanto ao seu termo (artigo 2079.º do Civil).

Como refere Capelo de Sousa [10] a melhor solução para esta questão será o de atender a que a administração em causa está intimamente ligada à figura do cabeçalato [11] e a que o cargo de cabeça-de-casal prioritariamente se defere ex lege (nº 1 do artigo 2080.º do CCivil) a certas categorias de pessoas (que não são necessariamente herdeiras) independentemente quer da sua aceitação de tal cargo [12] quer da aceitação de eventual vocação hereditária. [13]

Existe, pois, aí, uma forma de administração legal de bens com vista à conservação e frutificação e a todos os demais actos de administração ordinária dos bens da herança assim como à realização de interesses de matiz pública, como por exemplo, a satisfação dos credores da herança, o que torna, portanto, o mecanismo administrativo previsto no artigo 2079.º e ss. operacional a partir da data da abertura da sucessão.

Não se olvida que o nosso ordenamento jurídico, reflectindo a situação que é normal de os poderes jurídicos do cabeça-de-casal serem exercidos após a aceitação da herança pelos herdeiros com designação prevalente, regula o capítulo da “Administração da herança”, após os da “Herança jacente” da “Aceitação” e do “Repúdio” da herança e, mesmo, depois do da “Petição da herança”, sendo certo ainda que, na fase da herança jacente o CCivil (artigos 2047.º e 2048.º) preveniu modalidades especiais da sua administração.

Acontece que, os mecanismos administrativos especiais nos casos de herança jacente ou, ainda, de herança abandonada (artigos 2047.º e 2048.º do Civil e 409.º, nº 2 do CPCivil do CPCivil) justificam-se pela específica situação de falta de titularidade subjectiva decertas situações de jacência e não importam a impossibilidade da existência de cabeça-de-casal nessas situações.

Com efeito, o nº 1 do artigo 2047.º apenas atribui uma faculdade jurídica ao sucessível ainda não aceitante ou repudiante (não lhe impondo uma obrigação jurídica (cfr. a expressão “não está inibido” daquela disposição) e apenas no caso de “do retardamento das providências poderem resultar prejuízos”, tudo o que se compagina com a possibilidade da existência, no período de jacência, de cabeça-de-casal, o qual, aliás, pode estar temporariamente impedido de tomar tais providências ou poder tomá-las mas não nas melhores condições.

Também, a nomeação da curadoria à herança jacente (artigo 2048.º, nº 1) só é possível, para além do mais, quando não houver “quem legalmente…administre os bens de tal herança”, do que decorre “a contrario” a impossibilidade dessa nomeação havendo cabeça-de-casal e a legitimidade da existência de cabeça-de-casal na situação de jacência.

[10] In Direito das Sucessões, Coimbra Ed. Vol. II, 2ª Ed. pág. 5 1 e ss.

[11] O primeiro artigo do Capítulo VIII sobre a Administração da herança tem como epígrafe “cabeça-de-casal” a quem a lei atribui a administração da herança até à sua liquidação e partilha.

[12] O cabeça de casal não tem que aceitar o cargo, embora dele se possa escusar desde que se verifiquem certos condicionalismos (artigo 2085.º do CCivil e artigo 22.º da Lei n.º 23/2013, de 05 de Março.

[13] É preciso notar como refere Capelo de Sousa obra citada pág. 52 nota 618 que atentos os latíssimos prazos de caducidade do direito de aceitação da herança (artigo 2059.º do CCivil) a aceitação ou mesmo o repúdio da herança pelos herdeiros pode ter lugar após o início dos exercício das funções de cabeça-de-casal, só cessando tal exercício a partir do momento do repúdio da herança com a perda da qualidade de herdeiro. Aliás de modo semelhante se passam as coisas quanto ao testamenteiro, tendo em conta a sua faculdade de renúncia ao cargo (artigos 2322.º e 2324.º do CCivil). (…)».

Vejamos então.

Temos presente que a questão “Da legitimidade passiva” [das RR. “Herança de …”, representadas por um “cabeça de casal”] era efetivamente uma questão de conhecimento oficioso, pelo que o Exmo. Juiz a quo, em despacho, na fase do saneador, tinha o dever de conhecer, e, sendo disso caso, declarar, uma tal exceção de ilegitimidade.

Acontece que se impõe reconhecer que tal não poderia ter tido lugar, por não haver suficiente suporte probatório, da sua verificação.

Na verdade, essa é uma questão ab limine dependente da ocorrência/verificação de certos pressupostos de facto, como seja e desde logo, que essas RR. eram efetivamente “heranças impartilhadas” [e não meramente “heranças jacentes”].

Atente-se que na p.i., o A. as identificou singela e linearmente como «HERANÇA DE M... representada pelo cabeça-de-casal V...», e como «HERANÇA DE L..., representada pela cabeça-de-casal M...».

E que face ao despacho-convite que lhe foi endereçado no sentido de fazer intervir, na posição de associados dos RR., os restantes herdeiros de M... e de L..., o A. escusou-se a esse cumprimento, invocando que desconhecia esses herdeiros e as suas identidades…

Nada mais foi adquirido ou consta dos autos quanto ao efetivo estádio dessas heranças – no que à respetiva aceitação e/ou partilha diz respeito.

Ora se assim era, à luz do entendimento exposto supra em último lugar [no sentido de que a existência de “cabeça-de-casal” não pressupõe, só por si, a aceitação da vocação sucessória], não vislumbramos como é que, in casu, com segurança e certeza se podia concluir, sem mais – como operado na decisão recorrida – que essas RR. eram “heranças impartilhadas”!

Pois que tal não se pode liminarmente considerar adquirido/provado, na medida em nenhum elemento probatório [de natureza documental ou de outra natureza], se encontra junto aos autos que suporte tal.

O que tudo serve para dizer que o conhecimento oficioso da exceção de ilegitimidade foi prematuro, porque infundamentado.

Nesta ordem de ideias, impõe-se revogar a decisão recorrida, devendo a Exma. Juíza a quo dar a subsequente normal prossecução aos autos, no quadro do art. 567º, nº 2 do n.C.P.Civil, sendo que a persistir-se no conhecimento oficioso da exceção de ilegitimidade passiva em causa, deve previamente ser averiguado e certificado o efetivo estádio dessas heranças [no que à respetiva aceitação e/ou partilha diz respeito], e bem assim a identidade dos seus herdeiros, sendo disso caso, isto à luz  do “Dever de Gestão Processual” que impende sobre o Juiz ex vi do art. 6º do n.C.P.Civil, mormente do nº2 deste preceito.

Nestes termos procedendo o recurso."

[MTS]


26/11/2021

Bibliografia (998)


-- Gühring, Tim, Einstweiliger Rechtsschutz im GmbH-Recht (Duncker & Humblot: Berlin 2021)

-- Höll, Raphael, Prozessuale Handlungsortzurechnung / Eine Untersuchung der internationalen Zuständigkeit am Handlungsort gemäß Art. 7 Nr. 2 EuGVVO sowie gemäß § 32 ZPO am Beispiel arbeitsteilig verwirklichter Kapitalanlagedelikte (Duncker & Humblot: Berlin 2021)


Jurisprudência europeia (TJ) (247)


Reenvio prejudicial – Proteção dos consumidores – Diretiva 93/13/CEE – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Contrato de crédito com hipoteca indexado a uma moeda estrangeira – Cláusula contratual relativa à taxa de compra e venda de uma moeda estrangeira – Exigência de inteligibilidade e de transparência – Poderes do juiz nacional


TJ 18/11/2021 (C‑212/20, M.P. et al./«A.» prowadzący działalność za pośrednictwem «A.» S.A.) decidiu o seguinte:

1) O artigo 5.° da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretado no sentido de que o conteúdo de uma cláusula de um contrato de crédito celebrado entre um profissional e um consumidor que fixa os preços de compra e de venda de uma moeda estrangeira à qual o crédito está indexado deve permitir a um consumidor normalmente informado e razoavelmente atento e avisado compreender, com base em critérios claros e inteligíveis, a forma como é fixada a taxa de câmbio da moeda estrangeira utilizada para calcular o montante das prestações de reembolso, de modo a que esse consumidor possa determinar por si próprio, a qualquer momento, a taxa de câmbio aplicada pelo profissional.

2) Os artigos 5.° e 6.° da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que o juiz nacional, que declarou o caráter abusivo de uma cláusula de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, na aceção do artigo 3.°, n.° 1, desta diretiva, proceda à interpretação dessa cláusula para atenuar o seu caráter abusivo, ainda que essa interpretação corresponda à vontade comum das partes no contrato.

 

Jurisprudência europeia (TJ) (246)


Reenvio prejudicial — Estado de direito — Independência do poder judicial — Artigo 19.º, n.° 1, segundo parágrafo, TUE — Regulamentação nacional que prevê a possibilidade de o ministro da Justiça destacar juízes para órgãos jurisdicionais de grau superior e revogar esses destacamentos — Formações de julgamento em matéria penal que incluem juízes destacados pelo ministro da Justiça — Diretiva (UE) 2016/343 — Presunção de inocência


TJ 16/11/2021 (C‑748/19 a C‑754/19) decidiu o seguinte:

O artigo 19.º, n.° 1, segundo parágrafo, TUE, lido à luz do artigo 2.º TUE, e o artigo 6.º, n.os 1 e 2, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, devem ser interpretados no sentido de que opõem a disposições nacionais segundo as quais o ministro da Justiça de um Estado‑Membro pode, com fundamento em critérios que não são tornados públicos, por um lado, destacar um juiz para um tribunal penal de grau superior por tempo determinado ou indeterminado e, por outro, revogar esse destacamento a qualquer momento mediante uma decisão que não é fundamentada, independentemente da duração determinada ou indeterminada do referido destacamento.


Jurisprudência 2021 (86)


Justificação notarial;
impugnação; ónus da prova


1. O sumário de RC 27/4/2021 (711/17.1T8CTB.C1) é o seguinte:

I- As ações populares, que vem sendo consideradas como uma das mais importantes conquistas processuais para a defesa de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, têm por objeto, antes de mais (embora não se esgotem neles), a defesa dos chamados interesses difusos, enquanto interesses de toda uma comunidade, que tanto podem ser de âmbito internacional, nacional, regional ou mesmo local.

II- Interesses esses que são da mais diversa índole, e que têm, nomeadamente, a ver com a defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público.

III- Ações essas (para defesa desses bens) que tanto podem situar-se no âmbito da jurisdição administrativa, como no âmbito da jurisdição comum (civil ou criminal).

IV- Nas ações de impugnação de escritura de justificação notarial, na qual o réu justificante afirmou a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre determinado imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhe ele a prova dos factos constitutivos desse seu aí alegado direito, sem que possa beneficiar da presunção do registo decorrente do artº. 7º do CRPed. .

V- O réu justificante (na prova da aquisição originária, por via da usucapião, do seu invocado direito de propriedade sobre o prédio justificado) pode juntar a sua posse à posse do anterior possuidor - desde que nela tenha sucedido por título diverso da sucessão -, mesmo que naquela escritura não tenha alegado essa acessão da posse.

VI- A impossibilidade de os bens imóveis classificados (vg. nos termos do artº. 15º da Lei nº. 107/2001, de 08/09), ou em vias dessa classificação, poderem ser adquiridos por usucapião, não se estende àqueles que se encontram situados/inseridos nas suas zonas de proteção (vg. das zonas especiais).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2.1.1 Em defesa desse património, os AA. começaram por impugnar a escriturar a que se reporta o ponto 1. dos factos provados, através da qual foi justificada pela sociedade ré a aquisição originária por si, através do instituto da usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio urbano ali descrito e identificado, com o fundamento de que a declaração aí prestada não é verdadeira, pois que a ré justificante não é dona do aludido prédio, não tendo, ao contrário do que ali se afirma, adquirido sua propriedade por via de usucapião, e daí que tenha pedido, desde logo, que se declare que tal declaração não é verdadeira e que o dito prédio justificado nunca pertenceu à referida ré.

Em consequência dessa declaração pediram ainda ao tribunal que anule o contrato de compra e venda que posteriormente foi celebrado entre a sociedade Ré e o Réu J... formalizado escritura pública outorgada no dia 20 de Outubro de 2015 (a que se reporta agora o ponto 7. dos factos provados e que teve por objeto o aludido prédio), bem como de eventuais negócios jurídicos que tenham entretanto sido celebrados com terceiros por qualquer um dos réus, determinando-se ainda o cancelamento dos correspondente registos de aquisição.

Como bem se salientou o tribunal a quo, o primeiro daqueles pedidos é característico de uma típica ação de impugnação de escritura de justificação notarial.

A questão relacionada com tal pedido e que levou à improcedência da pretensão dos AA. foi, adiantamos já, a nosso ver, e de forma exaustiva, devida e acertadamente apreciada e decidida na sentença recorrida, com uma correta subsunção do direito aos factos apurados, e com a convocação para o efeito dos acertados normativos e institutos legais aplicáveis ao caso, socorrendo-se ainda dos contributos de autorizada jurisprudência e doutrina citadas, para ela, assim, nos remetendo.

Não obstante tal, passaremos a apreciar tal questão.

Nos termos do disposto no artigo 89º do Código do Notariado:

1 - A justificação, para os efeitos do nº. 1 do artigo 116º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.

2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião. [...]

Como se sabe, a justificação notarial não constitui em si um ato translativo de propriedade, pressupondo sempre – atenta a invocada aquisição originária por usucapião – a prática de determinados atos anteriores tendentes a conferir à posse características suficientes para conduzir a tal aquisição, atos esses que podem ser impugnados por qualquer interessado (artigo 101º do Código do Notariado).

Como ressalta da referida escritura pública de justificação, e enfatizando, foi nela declarado, e naquilo que para aqui mais releva, ter a sociedade ré adquirido, por usucapião, o aí identificado prédio urbano, na sequência dos atos de posse ali descritos.

Tendo tal escritura sido, como vimos, objeto de impugnação por parte dos AA. que contestam a ali declarada e justificada aquisição do direito de propriedade sobre o dito prédio, competirá então à ré justificante demonstrar, nesta ação, essa aquisição (por via da usucapião).

Na verdade, sendo a ação de impugnação de escritura de justificação notarial (como é esta nessa parte) uma ação de simples apreciação negativa (cfr. artºs. 10º, nºs. 1, 2, e 3º, al. a), do nCPC) competirá aos RR., e sobretudo a ré justificante, nos termos do preceituado no artº. 343º, nº. 1, do CC, fazer a prova dessa alegada aquisição, por via da usucapião, do direito de propriedade sobre prédio ali justificado.

Aliás, isso mesmo foi afirmado pelo STJ no seu acórdão uniformizador de jurisprudência nº. 1/2008, de 04/12/2007 (publicado no D.R., nº. 63, Série I. de 2008-03-31), ao fixar a seguinte doutrina “na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial”. [...]

Posto isto, vejamos então se os RR., e particularmente ré (justificante), lograram demonstrar/provar que última adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio justificado em tal escritura.

Como é sabido, e tal como decorre dos artºs. 1287º e 1316º do CC, a usucapião é, por excelência, uma das formas de aquisição originária dos direitos reais de gozo (nos quais se inclui e destaca o direito de propriedade), cuja verificação depende de dois elementos: a posse (corpus/animus) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características da posse (cfr., nomeadamente, artºs. 1251º e ss., 1256º e ss. e 1294º e ss. do CC).

Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (artº. 1288º do CC), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (artº. 1317º, al. c) do CC).

Como ressalta do atrás referido, constituindo a posse um dos elementos essenciais para aquisição do direito de direito propriedade (tal como para qualquer direito real de gozo), ela consubstancia-se em dois elementos: o corpus (os atos materiais praticados sobre a coisa) e o animus (o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos atos praticados).

Como é sabido, nesse domínio, o nosso ordenamento jurídico aderiu à conceção ou corrente (savignyana) subjetivista da posse (cfr. artºs. 1251º e 1253º do CC). Nesses termos, como elementos da posse fazem parte o corpus, que, como elemento externo, se identifica com a prática de atos materiais sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes de facto sobre o objeto, de modo contínuo e estável, e o animus que, como elemento interno, se traduz na vontade ou intenção do autor da prática de tais atos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente a esses atos realizados. Elementos esses cuja presença simultânea se exige permanentemente, para que possa haver, na sequência da prática reiterada e contínua de atos materiais de posse, a aquisição, por via da usucapião, do correspondente direito ao exercício de tais atos.

É que se só se verificar a presença daquele primeiro elemento (o corpus) a situação configura apenas uma mera detenção (precária), insuscetível de conduzir à dominialidade, ou seja, ao direito real de gozo que se reclama (cfr. artº. 1253º).

Porém, considerando a dificuldade que muitas vezes existe em demonstrar a posse em nome próprio, ou seja, do referido animus, a lei estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o corpus tem também o animus (cfr. artº. 1252º, nº. 2, e assento, hoje acórdão uniformizador de jurisprudência, do STJ de 14/5/96, in “DR, II S, de 24/6/96, e ainda acórdãos do STJ de 9/1/97 e de 2/5/99, respetivamente, in “CJ/STJ, T5 – 37” e “CJ/STJ, T2 – 126”).

Pelo que, assim, podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa (cfr. ainda artº. 1268º, nº. 1, do CC sobre a presunção da titularidade do direito de que goza o possuidor, desde que não existe a favor de outrem presunção fundada em registo anterior).

A posse, por seu turno, segundo o artº. 1258º do CC, pode ser titulada ou não titulada, de boa fé ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta.

Sendo a posse titulada quando e “fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico” (artº. 1259º, nº. 1, do CC); de boa ou má fé consoante o possuidor ignorava ou não, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (artº. 1260º, nº. 1, do CC); pacífica quando foi adquirida sem violência – considerando-se violenta quando para obtê-la o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 255º - (artº. 1261º, nºs. 1 e 2, do CC), e pública quando é exercida de modo a poder se conhecida pelos interessados (artº. 1262º do CC).

Como já transparece do atrás referido, os carateres da boa ou má fé ou da titulação ou não da posse somente influem no prazo necessário à verificação da usucapião (sendo que a posse titulada faz presumir uma posse de boa fé e a não titulada de má fé – artº. 1260º, nº. 2, do CC).

Posse essa que o possuidor atual pode juntar à posse do seu antecessor, desde que nela tenha sucedido por título diverso da sucessão por morte (artº. 1256º, nº. 1, do CC)

Na falta de registo do título ou da mera posse, a usucapião de imóveis pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (artº. 1296º).

Diga-se, por fim, que, nos termos do artº. 1297º do CC, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde a cessação da violência ou desde que a posse se torne pública, daí que ela deva ser pacífica e pública.

Posto isto, da conjugação dos pontos 3, 4, 6, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 31, 32, 33, 34 e 35 dos factos provados (que neste recurso não foram objeto de impugnação) ressalta que o prédio urbano que foi objeto de justificação através da sobredito escritura notarial foi utilizado, ininterruptamente, pela R..., CRL, desde o final da década de 1980 até ao dia ao dia 13/08/2001, e desde altura pela Ré M..., Unipessoal, Lda. – data em que esta foi constituída e aquela transferiu para ela o seu património/atividade, no qual se incluía do dito prédio - até hoje (e mais concretamente até pelo menos o dia 20/10/2015, data em que por esta foi vendido ao seu legal representante, o 2º. R.), praticando sobre ele os mais diversos atos materiais de posse, à vista de todos, sem qualquer oposição (violência), e sempre na convicção de que o mesmo então lhes pertencia.

Ou seja, durante aqueles períodos de tempo consecutivos, cada uma das referidas entidades coletivas (primeiro a R..., CRL., e depois a sociedade ré) foi utilizando o dito prédio (que foi objeto justificação notarial), praticando sobre ele os correspondentes atos materiais de posse (corpus, e com animus possidendi, isto é, como se fossem então os seus verdadeiros donos), fazendo-o de forma pública (à luz do dia, ou seja, à vista de todos) e pacífica (sem qualquer oposição/violência).

Posses essas que, in casu, à luz do acima citado artº. 1256º, nº. 1, do CC podem ser juntas, ou seja, a ré justificante pode juntar a sua posse àquela imediatamente anterior exercida pela R..., CRL, pois que, como vimos, nela sucedeu por título diverso da sucessão por morte. Não sendo a posse exercida pela R..., CRL, titulada, e presumindo-se a mesma de má fé (pois que essa presunção não se mostra ilidida), essa acessão da posse pela ré justificante ter-se-á de dar dentro dos limites daquela exercida pela sua antecessora (nº. 2 do artº. 1256º do CC), o que significa que, in casu, e aquisição originária do direito de propriedade, pela via usucapião, só poderia dar-se no termo de 20 anos do exercício de posse (artº 1296º do CC). (Sobre esta problemática da acessão/sucessão da posse vide, para mais e melhor desenvolvimento, entre outros, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil, Vol. III, 2ª. ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, págs. 13/15”; José Oliveira Ascensão, in “Direito Reais, 4ª. ed. refundida, Coimbra Editora, págs. 118/119”, Dias Marques, in “Prescrição Aquisitiva, Vol. II, págs. 6 a 97”; Manuel Rodrigues, in “A Posse, nº. 55”, Menezes Cordeiro in “A Posse, Perspectivas, 1997, pág. 136”, e o Ac. do STJ de 05/02/2012, proc. 1588/06.8TCLRS.L1.S1, disponível em dgsi.pt).

Sendo assim, juntando aquelas duas posses facilmente se constata que na data em que foi celebrada a sobredita escritura de justificação notarial já se havia completado o prazo de vinte anos (a que alude o artº. 1296º do CC), o que permite à ré justificante a aquisição, por via da usucapião, do direito de propriedade sobre o referido prédio nela justificado, pois que logrou provar, como lhe competia, todos os pressupostos legais exigidos para o efeito.

E não se diga, e salvo sempre o devido respeito, como defendem os apelantes, que a tal obsta o facto de a ré justificante não ter alegado/invocado na referida escritura a sucessão/acessão da sua posse à posse anterior que foi exercida pela R..., CRL, e nem mesmo que não tenha provado a aquisição derivada (por via de compra efetuada à ali identificada M...), pois o que tão só se lhe exige nesta ação é que prove/demonstre (como veio a fazer) ter - na altura da celebração da escritura e conforme o aí alegado - adquirido originariamente, por via da usucapião, o direito do propriedade sobre o prédio que ali justificou.

Em conclusão, estão, assim, à partida, preenchidos todos os pressupostos legais (que os RR. lograram provar) que permitiam à sociedade ré adquirir originariamente, por via da usucapião, o direito de propriedade que justificou ter sobre o prédio urbano a que se reporta a sobredita escritura de justificação notarial outorgada no dia 16/04/2010."

[MTS]


25/11/2021

Jurisprudência uniformizada (52)


Prestação de contas;
revista

-- Ac. 5/2021, de 25/11, fixou a seguinte jurisprudência:

O acórdão da Relação que, incidindo sobre a decisão de 1.ª instância proferida ao abrigo do n.º 3 do artigo 942.º do CPC, aprecia a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas, admite recurso de revista, nos termos gerais.

 

Brevíssimo comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/2021

 

[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]


Jurisprudência 2021 (85)


Providência cautelar;
periculum in mora


1. O sumário de RL 29/4/2021 (22121/20.3T8LSB.L1-2) é o seguinte:

I- Não se verifica ambiguidade na decisão pelo uso de expressões como «medidas necessárias e adequadas», «designadamente proceder ao reforço da estrutura» e «proceder aos trabalhos que se mostrem necessários» num procedimento cautelar comum que tem como fito evitar a ruína de um prédio e que dificilmente chegaria a «bom porto», ou seja, a uma decisão justa em prazo razoável, se houvesse que aguardar pela concretização em termos técnicos e precisos, designadamente com o recurso a prova pericial e documental abundante, de todos os passos necessários a evitar os gravíssimos danos que se avizinham.

II- Considera-se enquadrável no conceito de atividade perigosa, previsto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, todo o processo construtivo de um megaempreendimento de construção civil, de grande volumetria, desde logo patente pela profundidade das escavações com seis níveis de caves, e de elevada potencialidade para causar danos de acentuada «agressividade» para as construções vizinhas, em que se verifica a contiguidade com edifícios com mais de 100 anos.

III- A Seguradora apenas pode ser condenada com base no princípio indemnizatório previsto no artigo 128.º da LCS e tendo presente as cláusulas do contrato de seguro celebrado, sendo a empreiteira quem assume a responsabilidade extracontratual, nos termos dos artigos 483.º e 493.º, n.º 2, do Código Civil.

IV- A providência cautelar decretada não passava pela condenação da Seguradora a proceder a obras de construção civil.

V- O artigo 362.º, n.º 1, do CPC exige que a providência seja «concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado».

VI- A lei atribui ao juiz, subsidiariamente, um poder cautelar geral, contrariamente ao que sucede com as diversas medidas cautelares nominadas, em que se prevê, para cada periculum in mora em concreto, uma providência específica adequada para garantir aquela situação.

VII- Perante um sistema cautelar misto como o nosso, em que o legislador não tem a pretensão de abarcar todas as realidades carecidas de tutela e em que a ponderação pelo juiz da adequação da medida solicitada ao afastamento da situação de perigo é fundamental, o artigo 376.º, n.º 3, do CPC, permite a concessão de medida diferente da requerida, precisamente no sentido de possibilitar uma real adequação à situação de perigo existente.

VIII- Imperativos de ordem constitucional convidam o intérprete e aplicador do direito a adotar uma posição mais flexível que permita o recurso, com maior amplitude, à tutela cautelar, que não pode ser vista como uma tutela excecional.

IX- Podem considerar-se dificilmente reparáveis aquelas lesões que não sejam suscetíveis de reintegração específica ou cuja reintegração in natura seja difícil, nomeadamente, porque a valoração dos danos é muito difícil ou porque, devido à situação económica do lesante, não é possível obter a reconstituição no caso concreto.

X- Cabe no âmbito do poder cautelar geral do juiz, decretar uma providência que antecipe o pagamento de uma quantia indemnizatória para evitar um dano dificilmente reparável.

XI- Perante a ameaça de derrocada iminente do prédio do Requerente e tudo o que de muito grave e irreparável tal significa, em face da insolvência da empreiteira que, por isso, não é demandada para a reparação in natura dos danos do prédio, consideramos que é de decretar a providência cautelar, mas reduzindo-a e adequando-a ao objeto da obrigação de indemnizar da seguradora.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"c) Entrando no âmbito da adequação da providência cautelar decretada, há que atentar no disposto no artigo 376.º, n.º 3, do CPC que prevê que «o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida.»

Esta mitigação do princípio do pedido no domínio da tutela cautelar é apanágio do procedimento cautelar comum, mas não deixa de ser um exemplo claro da «flexibilização do pedido à luz do moderno Processo Civil» de que nos dá conta Miguel Mesquita, in Revista de Legislação de Jurisprudência, Ano 143.º, nov./dez. de 2013, p. 138.

Será possível a adequação da providência decretada?

No que respeita à ação, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do CPC, «A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde uma ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação».

Sem embargo, «a composição provisória realizada através das providências cautelares pode prosseguir uma de três finalidades: ela pode justificar-se pela necessidade de garantir um direito, de definir uma regulação provisória ou de antecipar a tutela pretendida ou requerida. No primeiro caso, tomam-se providências que garantem a utilidade da composição definitiva; no segundo as providências definem uma situação provisória ou transitória; no terceiro, por fim, as providências atribuem o mesmo que se pode obter na composição definitiva […] A diferença qualitativa entre a composição provisória e a tutela atribuída pela acção principal decorre dos seus pressupostos específicos e, nomeadamente da suficiência da probabilidade da existência do direito acautelado» Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pp. 227 e 228.

Nesse quadro de princípios, expressa a lei, a propósito do âmbito das providências cautelares não especificadas, por um lado, que se alguém mostrar fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito pode requerer uma providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado, e que o procedimento cautelar é dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado (artigos 362.º, n.º 1, e 364.º, n.º 1, do CPC).

As providências conservatórias visam acautelar o efeito útil da ação principal, assegurando a permanência da situação existente quando se espoletou o litígio ou aquando da verificação de periculum in mora.

As providências antecipatórias visam, atenta a urgência da situação carecida de tutela, a antecipação da realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal e será objeto de execução.

Na situação em apreço, foi decretada uma providência cautelar antecipatória, a qual se integra na previsão da lei.

A propósito do artigo 381.º do CPC de 1961 (atual artigo 362.º), Lopes do Rego escreveu que a redação do preceito inculca expressamente que a matriz essencial da justiça cautelar é o asseguramento do princípio da efetividade da tutela jurisdicional, considerando mesmo que as providências cautelares não especificadas são uma verdadeira «acção cautelar geral», visando a tutela provisória de quaisquer situações de «periculum in mora» (cf. Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 1999, p. 274).

Perante as diferentes formas de indemnização de que as lesões podem ser objeto, quais se devem subsumir, afinal, no conceito de dificilmente reparáveis?

Em última análise, trata-se de saber quais os direitos que devem ser, ou não, imediatamente acautelados.

Rita Lynce de Faria, citando Paolo Biavati, indicou duas categorias de direitos subjetivos: os tuteláveis e os não tuteláveis em sede de urgência («A Tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português, Um difícil equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade», Universidade Católica Editora, Lisboa, 2016, p. 147).

Ser titular dos primeiros significa poder reagir imediata e eficazmente perante uma violação eventual; ser titular dos segundos significa dever esperar pacientemente que a máquina da justiça exerça o seu papel.

A dúvida persiste quando estejam em causa situações em que a lesão só possa ser compensada através do pagamento de uma indemnização sucedânea do valor do dano que não permite a plena restitutio in integrum.

Uma interpretação mais restritiva conduzirá à exclusão do âmbito da tutela cautelar daquelas lesões suscetíveis de reintegração por equivalente pecuniário.

Deverá ser admitida providência cautelar para evitar um dano suscetível de, posteriormente à lesão, ser reparado através de indemnização em dinheiro?

Neste contexto, alguma jurisprudência tem aderido, para este efeito, a um critério de difícil reparação subjetivo, assente, não apenas no tipo de direito, mas, sobretudo, em elementos referentes à situação concreta a acautelar.

Em particular, a jurisprudência tem fundado o respetivo critério de difícil reparação na análise da capacidade económica do requerido.

Neste sentido, vide os acórdãos do TRL de 1.2.2007 (p. 9500/06-2), de 26.6.2008 (p. 4959/2008-2), de 19.10.2010 (p. 1600/10.6TBCSC-A.L1-1), e de 27.7.2009 (p. 1004/07.8TYLSB.L1-8) e o acórdão do TRC de 28.4.2010 (p. 319/10.2BPBL.C1), todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Em sentido contrário se pronunciou o acórdão do STJ de 18.3.2010 (p. 1004/07.8 TYLSB.L1.S1, www.dgsi.pt), que chama a atenção, para além de outros fatores, para a dificuldade que tal prova negativa implicaria.

A propósito, Rita Lynce de Faria dá-nos conta dos exemplos brasileiro, italiano e francês (ibidem, p. 148).

Também no Brasil, no âmbito da tutela cautelar antecipatória, tem prevalecido este entendimento subjetivo referente à capacidade económica do requerido (cf. Frederico Almeida Neves, Tutela jurisdicional antecipada, p. 74).

Embora não colocando o acento tónico na situação patrimonial do requerido, doutrina e jurisprudência italianas também têm considerado de excluir a concessão da tutela cautelar em caso de obrigações pecuniárias ou no caso de danos suscetíveis de serem reparados por ressarcimento pecuniário (cf. Edoardo Ricci, Interventi, pp. 107 e 108).

Por seu turno, o exemplo francês do référé-provision vai no sentido contrário, ao admitir a concessão de tutela cautelar com conteúdo de intimação de pagamento de uma certa quantia pecuniária.

Tal como a Autora (ibidem, p. 149), aderimos totalmente ao acórdão do STJ de 18.3.2010, assim sumariado:

«Nada na lei autoriza a que se exija do requerente do procedimento cautelar comum que faça prova de que o Requerido não poderá pagar-lhe uma indemnização correspondente ao bem ou direito lesado, sob pena de recusa das providências requeridas, por falta do elemento “dificuldade de reparação”. Se assim fosse, ficariam sem tutela da ordem jurídica bens, serviços e direitos de relevantíssimo interesse social, não apenas por dificuldade de tal prova, mas também porque o lesante, em geral, poderia cobrir, mediante uma presumida importância pecuniária e segundo um juízo de probabilidade, todos os prejuízos materiais advenientes da lesão».

Neste âmbito, a Autora não deixou de entrar numa reflexão que se aproxima mais do presente caso, ao afirmar o seguinte:

«Note-se que, ao contrário do que acontecer nesta situação, muitas vezes a indemnização em dinheiro constitui a forma de restauração natural, já que a obrigação original devida se traduzia, ela própria, numa obrigação pecuniária. Não obstante, casos existem em que, apesar disso, a antecipação cautelar se justifica, pois, o pagamento adiado daquela quantia pode vir a provocar danos que, esses sim, são insuscetíveis de restauração natural. Nesse caso, a providência cautelar, para evitar o dano dificilmente reparável, antecipa essa quantia, como forma de evitar danos decorrentes do atraso no pagamento. Assim acontece, nomeadamente, com os alimentos provisórios ou o arbitramento de reparação provisória(…)» ibidem, p. 153, nota 346).

Preceitua o artigo 20.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa que:

«Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.»

Assim, imperativos de ordem constitucional convidam o intérprete e aplicador do direito a adotar uma posição mais flexível que permita o recurso, com maior amplitude, à tutela cautelar, que não pode mais ser vista como uma tutela excecional.

O direito a uma tutela jurisdicional efetiva tem de traduzir-se numa eficácia plena da decisão judicial na esfera jurídica do particular.

Assim, podem considera-se dificilmente reparáveis aquelas lesões que não sejam suscetíveis de reintegração específica ou cuja reintegração in natura seja difícil, nomeadamente, porque a valoração dos danos é muito difícil ou porque, devido à situação económica do lesante, não é possível obter a reconstituição no caso concreto (ibidem, p. 163).

O artigo 362.º, n.º 1, do CPC exige que a providência seja «concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado».

Daqui resulta que a adequação da providência cautelar apenas é constatável em concreto, dependendo da natureza do pedido a que o direito do requerente esteja sujeito.

A importância deste requisito da adequação cautelar aumenta exponencialmente num sistema jurídico cautelar como o nosso, em que grande parte da tutela cautelar é concedida ao abrigo da cláusula geral do citado artigo 362.º.

Aí se atribui ao juiz, subsidiariamente, um poder cautelar geral, contrariamente ao que sucede com as diversas medidas cautelares nominadas, em que se prevê, para cada periculum in mora em concreto, uma providência específica adequada para garantir aquela situação, no âmbito da tutela cautelar não especificada o juízo de ponderação desempenha um papel fundamental na escolha da providência concreta.

Como escreveu Rita Lynce de Faria, «Muito embora o recurso à tutela cautelar comum apenas tenha lugar subsidiariamente, quando ao caso não caiba uma medida especificada, a verdade é que a ideia de que aquela aplicação será residual é totalmente ilusória. Na prática, o âmbito de atuação daquelas providências é extremamente alargado, dada a panóplia de situações que permite cobrir na sociedade atual, em que as hipóteses de risco se multiplicam a um ritmo desenfreado, ultrapassando com frequência a previsibilidade das restantes estatuições concretas. Em suma, pode afirmar-se que a tutela cautelar não especificada possui um conteúdo caracterizado pela elasticidade.» (ibidem, p. 168).

Perante um sistema cautelar misto como o nosso, em que o legislador não tem a pretensão de abarcar todas as realidades carecidas de tutela e em que a ponderação pelo juiz da adequação da medida solicitada ao afastamento da situação de perigo é fundamental, o artigo 376.º, n.º 3, do CPC, permite a concessão de medida diferente da requerida, precisamente no sentido de possibilitar uma real adequação à situação de perigo existente.

O julgador goza assim de um poder de adequação material que lhe permite aferir da idoneidade da medida requerida para afastar o periculum in mora concreto e, em caso negativo, escolher uma medida apta àquela função.

Estamos perante um poder-dever de decretar a providência mais adequada.

O entendimento deste poder-dever de convolação da medida requerida, atribuído pelo artigo 376.º, n.º 3, do CPC, não é pacífico na doutrina.

Como explica Rita Lynce de Faria, «a não adstrição do tribunal à medida concretamente requerida pode ser interpretada como uma derrogação do princípio do dispositivo em matéria cautelar, ou pode ser vista como uma simples manifestação da regra geral do iura novit curia que permite ao julgador alterar a qualificação jurídica no sentido de viabilizar o pedido cautelar.» (ibidem, p. 170)

«Não faria sentido a disposição do preceito se a intenção do legislador não fosse a de consagrar, em matéria cautelar, solução diferente da já resultante do artigo 5.º, n.º 3.» (ibidem)

Entendemos que, ainda que o juiz não esteja vinculado pelo pedido concreto de providência cautelar, ele está, no entanto, vinculado pelo sentido do pedido, ou seja, pela vontade manifestada pelo Requerente no sentido do afastamento de uma situação de perigo concreta.

Neste sentido, Rui Pinto designa este limite ao poder de regulação do juiz de «finalidade concreta do pedido» (A questão de mérito na tutela cautelar - A Obrigação Genérica de não Ingerência e os Limites da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2009, pp. 642 e 643).

Revertendo ao caso concreto, à luz das considerações expendidas, perante a ameaça de derrocada iminente do prédio do Requerente e tudo o que de muito grave e irreparável tal significa, em face da insolvência da empreiteira que, por isso, não é demandada para a reparação in natura dos danos do prédio, consideramos que é de decretar a providência cautelar, mas reduzindo-a e adequando-a ao objeto da obrigação de indemnizar da seguradora.

Isto sem olvidar que o Requerente atribuiu ao procedimento cautelar o valor de 750 000,00 €, que considera corresponder a um cálculo provável dos custos da reparação do edifício necessários a evitar o periculum in mora.

d) Deve, assim, reduzir-se e adequar-se o comando da providência cautelar ao seguinte:

- Condenação da Requerida a custear as obras de reparação necessárias e adequadas à eliminação dos deslocamentos verticais verificados na estrutura do prédio do Requerente, designadamente através do reforço da estrutura de contenção instalada em agosto de 2020 e dos trabalhos que se mostrem necessários para o reforço e a consolidação das suas fundações, mediante a entrega das quantias monetárias necessárias, dentro dos limites do seguro e até ao montante de 750 000,00 € indicado pelo Requerente no requerimento inicial.

[MTS]