"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/01/2020

Jurisprudência estrangeira (34)


Nexo causal;
prova
 

Em Cassazione Civile Ord. Sez. 3 Num. 1169 Anno 2020 refere-se o seguinte:

[...] Sul punto [accertamento del nesso causale], deve muoversi dal rilievo che "in tema di responsabilità professionale dell'avvocato per omesso svolgimento di un'attività da cui sarebbe potuto derivare un vantaggio personale o patrimoniale per il cliente, la regola della preponderanza dell'evidenza o del «più probabile che non», si applica non solo all'accertamento del nesso di causalità fra l'omissione e l'evento di danno, ma anche all'accertamento del nesso tra quest'ultimo, quale elemento costitutivo della fattispecie, e le conseguenze dannose risarcibili, atteso che, trattandosi di evento non verificatosi proprio a causa dell'omissione, lo stesso può essere indagato solo mediante un giudizio prognostico sull'esito che avrebbe potuto avere l'attività professionale omessa" (tra le più recenti, Cass. Sez. 3, sent. 24 ottobre 2017, n. 25112, Rv. 646451-01).
 
 

Jurisprudência 2019 (165)


Penhora;
herança indivisa; registo


1. O sumário de RE 11/7/2019 (318/08.4TBPSR-A.E1) é o seguinte:

A penhora do direito do executado a herança indivisa não está sujeita a registo, ainda que na herança se integrem bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, por não se concretizar em bens certos e determinados.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. No despacho recorrido concluiu-se pela rejeição dos embargos com os fundamentos seguintes:

«Dispõe o artigo 342.º do CPC que: “1- Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro. 2 - Não é admitida a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada no processo de insolvência.”.

Por sua vez, dispõe o artigo 344.º do CPC que “1 - Os embargos são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o ato ofensivo do direito do embargante. 2 - O embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas.”.

Por fim, nos termos do artigo 345.º do Código de Processo Civil, sendo apresentado em tempo e não havendo razões para o imediato indeferimento da petição, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante.

Posto isto, considerando o que foi alegado pela embargante quanto à tempestividade dos embargos, entendemos, por um lado, que a dedução dos presentes embargos foi apresentada em tempo, porquanto aquela refere apenas ter tomado conhecimento da penhora no dia 31.7.2017 e verifica-se que os embargos foram deduzidos em 29.9.2017, estando, assim, cumprido o prazo legal.

Todavia, ao contrário do que alega a embargante, não estão verificados os pressupostos da dedução dos embargos, desde logo porque não existe qualquer ato lesivo do seu direito porquanto não existe qualquer auto de penhora nem está registada qualquer penhora sobre os imóveis em causa (cfr. fls. 45 a 48).

Assim, sendo certo que, nos autos principais, a embargante foi notificada (cfr. fls. 226 e 228) pelo agente de execução de que teria sido penhorado o direito ao seu quinhão hereditário da qual faziam parte os imóveis descritos na CRP de P… sob o n.º 7631 e 1916, a verdade é que tal apreensão ou penhora nunca foi feita, não só porque não existe qualquer auto de penhora nos autos principais quanto a esse direito hereditário ou a esses bens, como não foi inscrita qualquer penhora no registo predial respectivo.

E, assim, invocando a embargante que se verificou a ofensa do seu direito de propriedade em virtude da penhora dos seus imóveis realizada nos autos principais, mas verificando-se que, na verdade, tal penhora não existiu nem foi concretizada (de facto, não se percebe sequer a notificação que lhe foi feita pelo agente de execução), sempre a reacção da embargante é desnecessária e inútil.

*
Por todo o exposto, verificando-se que não existiu qualquer ofensa do direito de propriedade da embargante, rejeito os presentes embargos de terceiro, que são manifestamente improcedentes.»

2. A recorrente discorda deste entendimento, sustentando, em síntese, que os embargos foram considerados como tendo sido apresentados tempestivamente e que a recorrente foi confrontada com a notificação da penhora que atinge o seu direito, pelo que não podia ter-se por extinta a instância só porque a exequente não levou por diante os efeitos da penhora.

Ou seja, no entendimento da recorrente, contrariamente ao decidido, a penhora de direitos indivisos tem-se por efectuada com a “notificação do facto ao administrador dos bens, se os houver, e aos contitulares …”, não sendo registável.

E, afigura-se-nos que lhe assiste razão.

Senão vejamos:

3. Como resulta da notificação dirigida pelo AE à embargante, a mesma reporta-se à penhora do quinhão hereditário da executada EE, na herança ali identificada, da qual fazem parte as quotas correspondentes a ½ dos imóveis que ali também se identificam, sobre os quais a embargante é titular inscrita do direito a ½ de cada um deles (cf. certidões do registo predial juntas aos autos).

No artigo 781º do Código de Processo Civil [correspondente ao anterior artigo 862º] estabelece-se as especialidades do procedimento da penhora que tenha por objecto o quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, prescrevendo-se a este respeito no n.º 1 que: “Se a penhora tiver por objecto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efectuada.”

Como se diz no preceito, a penhora efectiva-se – “unicamente” – por notificação do agente de execução aos contitulares (ao comproprietário, ao cônjuge, ao co-herdeiro) e ao administrador dos bens, caso exista, “com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução”.

Porém, como refere Rui Pinto que «… a penhora de parte, quota ou quinhão hereditário em bem indiviso, móvel ou imóvel, sujeito a registo faz-se segundo o sistema do artigo 755º, aplicável por força do artigo 783º.» (A Ação Executiva, 2018, AAFDL, pág. 613/614)

Mas, como nos dá conta o mesmo autor, em comentário à posição de Remédio Marques (CPex, p. 242), [para quem, “se o objecto do direito numa compropriedade ou num património autónomo for um imóvel, não se segue o regime da penhora de imóveis (…). Esta penhora não é, por conseguinte registável], «… uma coisa é a penhora de parte em património autónomo ou universalidade – bens comuns, herança – onde caibam bens imóveis, outra coisa é a penhora de bens imóveis em compropriedade. Na verdade, é só no primeiro caso que não há lugar a registo, porquanto o que é penhorado é a parte no direito à universalidade, e não as quotas-partes nos direito que a compõe, não se conhecendo se virão a calhar ao executado imóveis ou móveis sujeito a registo – assim, neste sentido e só para esta hipótese, Alberto dos Reis, PEx II, cit, 224-225 e RP 16-1-1974, BMJ 233-243; já no segundo caso, deve ser levado a cabo o registo».

4. Ora, no caso em apreço não subsistem dúvidas de que a penhora incidiu, não sob uma quota-parte dos imóveis detidos em compropriedade, mas sobre o quinhão hereditário da executada, do qual fazem parte a quota dos dito imóveis, pelo que, pelas razões acima apontadas se entende que a penhora se efectua por notificação, nos termos previstos no artigo 781º do Código de Processo Civil, não estando sujeita a registo.

Neste sentido, veja-se entre outros, o recente acórdão da Relação de Lisboa, de 11/04/2019 (proc. n.º 171/17.7T8MFR.L1-6), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt, onde se conclui que: «I - A penhora do direito do executado a herança indivisa efectua-se mediante notificação do facto ao cabeça-de-casal e aos demais herdeiros, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação.

II- Esta penhora não está sujeita a registo, ainda que na herança se integrem bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, por não se concretizar em bens certos e determinados, integrando a excepção consagrada na al. c), do nº2, do artigo 5º do Código de Registo Predial.»

Em sentido idêntico, veja-se ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/05/12 (Salazar Casanova), proferido no proc. n.º 1718/03.1TBILH.C1.S1, e de 30/03/06 (Pereira da Silva), proferido no Proc. nº 05B3646; e da Relação do Porto, de 13/05/2003 (Cândido Pelágio Castro Lemos), proc. 0322275, e de 27/04/2004, (Emídio Costa), proc. n.º 0421355).

5. Deste modo, não se pode concluir, como se fez na decisão recorrida, pela inexistência de penhora e pela desnecessidade de recurso da embargante à defesa da sua posse, mediante a dedução dos embargos.

Claro que o exequente poderá ter perdido o interesse na manutenção da penhora, como parece resultar da resposta do AE, mas, como diz a recorrente, não desistiu da penhora, e, por conseguinte, mantendo-se a penhora, não ocorre o invocado fundamento para rejeição dos embargos por manifesta improcedência, como se decidiu.

6. Em consequência, procede a apelação, com a consequente revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita os embargos, prosseguindo os autos os seus termos, se outra causa não sobrevier que a tal impeça."

[MTS]

30/01/2020

Jurisprudência uniformizada (44)


Dupla conforme;
recurso subordinado*

1.  Ac. STJ 1/2020, de 30/1, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

O recurso subordinado de revista está sujeito ao n.º 3 do art.º 671.º do Código de Processo Civil, a isso não obstando o n.º 5 do art.º 633.º do mesmo Código. 

*2. [Comentário] O que, sob um ponto de vista legislativo, já devia ter sucedido era ter actualizado a redacção do n.º 5 do art. 633.º CPC de acordo com o filtro da dupla conforme estabelecido no n.º 3 do art. 671.º CPC. Noutros termos: a redacção do n.º 5 do art. 633.º CPC (resultante do DL 242/85, de 9/7) provém de um tempo em que o único filtro para a admissibilidade da revista era o valor da sucumbência, pelo que não comporta todos os filtros que actualmente estão consagrados no CPC. Isto é: o preceito encontra-se, no que se refere à sua coerência sistemática, manifestamente desactualizado.

Dada a desactualização do n.º 5 do art. 633.º CPC, o que se teria imposto teria sido uma interpretação actualista do preceito, no sentido de considerar que, por imposição do princípio da igualdade das partes, a dupla conforme não podia constituir obstáculo à admissibilidade do recurso subordinado. O Ac. STJ 1/2020 fez exactamente o contrário: construiu um impedimento à admissibilidade do recurso subordinado com base num preceito desactualizado e incoerente em termos sistemáticos. Em suma: salvo o devido respeito, a orientação correcta teria sido aquela que é defendida nos vários votos de vencido.

MTS

Jurisprudência 2019 (164)


Providência cautelar;
erro na forma do processo


1. O sumário de RL 12/9/2019 (2844/19.0T8LSB.L1-2) é o seguinte:

I - Sendo formulado pedido, num procedimento cautelar antecipatório, que se traduz, em caso de procedência, numa satisfação definitiva irreversível dum direito que só pode ser definido num processo declarativo comum, está-se a ignorar o caráter instrumental e provisório do procedimento face à acção principal.

II - Tal pedido só poderia ser apreciado e decidido no seio daquele processo comum, pelo que a sua dedução num procedimento cautelar, implica a nulidade do erro na forma de processo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Apreciemos agora, face a factualidade que resulta apurada – integrando as alterações supra indicadas – as questões que se prendem com a decisão de direito propriamente dita, sendo certo que não se torna fácil a sua dilucidação, face à extensão das conclusões de recurso apresentadas, as quais deveriam constituir a síntese das questões a resolver e não, como verdadeiramente ocorreu, uma elencagem ligeiramente mais resumida do que antes se alegou.

Ora, para a apreciação do que importa conhecer, teremos de ter por base o que foi decidido.

Assim, e sinteticamente, poderemos referir que a Exma. Juíza estribou a sua decisão:

a) na circunstância das providências cautelares apresentarem, em regra, um carácter instrumental e subordinado em relação à acção destinada a tutelar, em definitivo, o direito invocado pelo requerente. Tal circunstancialismo levar a que “uma providência cautelar nunca pode substituir o efeito jurídico que dimanará da acção principal: terá sempre efeitos provisórios cuja subsistência exige a confirmação daquilo que sumariamente se apure relativamente aos requisitos específicos das providências cautelares. De outro modo, estaria descoberto o sistema de, por esta via, dar imediata e directa realização ao direito substancial e alcançar-se a satisfação desse direito que só através da respectiva acção principal se deve concretizar.” Daqui resultará assim (e a decisão recorrida afirma esse entendimento) que o procedimento cautelar visará a adopção de soluções provisórias, não se destinando a obter decisões de fundo, sendo que, na situação em apreço, “face à matéria alegada no requerimento inicial e ao pedido formulado, a requerente pretende obter neste procedimento um fim que é próprio da acção principal.” Segundo a decisão recorrida, “no caso, nada justifica a instauração de uma providência cautelar, para se obterem os apontados fins [Recorde-se que o pedido formulado na presente providência cautelar é o seguinte: «ser ordenada a notificação, por meio expedito, do requerido Novo Banco para proceder ao imediato cumprimento do contrato de depósito bancário, com o processamento das ordens de transferência identificadas nos arts. 8º a 39º do requerimento inicial.»], que são próprios da acção declarativa e apenas dessa acção”;

b) no facto de entender que o requisito da probabilidade séria da existência do direito por parte da requerente, não se regista no caso, posto que, pese embora o contrato de depósito bancário lhe conferisse, em princípio, o direito a dispor livremente do dinheiro que se mostra depositado no Banco Requerido, a circunstância de se registarem dúvidas sobre as instruções ou outras comunicações (ordenando transferências para terceiros), que considerou fundadas, punha em causa a aceitação pura e simples daquele direito.

c) na circunstância de ter considerado que também o requisito da existência de fundado receio de que se registe a violação daquele direito, não terá ficado demonstrado.

Comecemos por apreciar a questão da insusceptibilidade de utilização da providência cautelar comum para a obtenção da finalidade pretendida.

É sabido que nas providências cautelares antecipatórias haverá a possibilidade de, havendo decisões de sentido contrário – procedência da providência e improcedência da acção principal de que aquela é dependente – potenciar-se o risco de se causar danos ao requerido, os quais, porém, sempre deverão ser passíveis de reparação, designadamente com recurso à devolução do prestado e/ou indemnização.

Sucede, porém, que nem sempre a configuração do conflito em causa, dos direitos que lhes estão subjacentes, o permitirá.

Tal sucederá, designadamente, quando por via da decisão proferida na providência cautelar, não se encontrando fixado em definitivo (logicamente) o direito, se assumam decisões dele dependentes (o deferimento de certos pedidos) e que se revelem irreversíveis.

É o que se nos afigura suceder no caso em apreço.

Na realidade, o que se mostra em causa nesta providência e na acção que lhe corresponderia, é o saber se terá sido legítima a postura do Banco no sentido de não dar cumprimento às ordens de transferência para terceiros que lhe foram transmitidas pela ora Recorrente, no âmbito do contrato de depósito bancário que ambos tinham celebrado. Por via da apreciação dessa questão – que no seu entender lhe deverá ser favorável - pretenderá a Apelante que as transferências que elenca como não cumpridas, o sejam, sendo que caso a providência seja deferida, os fundos existentes na sua conta serão transferidos para entidades terceiras, as quais são em absoluto estranhas à presente litigância.

Ora, nessa eventualidade – procedência da providência cautelar – não estando em definitivo resolvida a questão de fundo (o apurar sobre a tal legitimidade de actuação por parte do Banco), estaria contudo em definitivo definido o pedido em concreto aí formulado pela Recorrente, pois que as transferência para terceiros teriam sido efectuadas, sem possibilidade de retorno e sem que por qualquer forma a decisão futura a proferir na acção principal – se no sentido da sua improcedência, ou seja, legitimidade do Banco para não cumprir as ordens de transferência - pudesse reverter o decidido na providência cautelar. As transferências para terceiros (que não são parte na providência e na acção respectiva) depois de efectuadas são insusceptíveis de serem devolvidas.

Convirá ter presente que, no caso, a questão não seria passível de ser colmatada com indemnizações, pois que o que está aqui em causa não é a inexistência de fundos na conta para as transferências – este existirá – é, sim, a legitimidade para as não determinar.

A decisão que deferisse tal pedido na providência cautelar estaria sempre a antecipar em definitivo o pretenso direito da ora Apelante, traduzindo-se num insustentável pré-juízo de um direito que carece de ser demonstrado em acção própria para o efeito.

Na realidade, o pedido formulado traduz-se na pretensão definitiva de satisfação dum direito da Requerente, ora Apelante, e não na salvaguarda provisória do mesmo, o que contraria a finalidade dos procedimentos cautelares.

Como se refere no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 29/06/2017 [Proc.º 25601/16.1T8PRT.P1, em que foi relator Paulo Dias da Silva], «(…) a providência cautelar, porque não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na acção principal e da qual depende, apenas se justificando para se acautelar o direito invocado no sentido de evitar, durante a pendência da acção principal, a produção de danos graves e dificilmente reparáveis.»

A igual propósito citemos a posição defendida por Rita Lynce, que igualmente foi invocada nas alegações do recorrido:

«A aceitação generalizada das providências cautelares antecipatórias para garantia da tutela judicial efetiva do requerente, todavia, não afasta as reticências colocadas relativamente aos eventuais efeitos definitivos que aquelas possam provocar, tornando inútil a futura ação principal. Ainda que a hipótese de o risco de irreversibilidade se converter em dano para o requerido seja residual, não justificando, por isso, o afastamento da figura da tutela cautelar antecipatória, a simples possibilidade de tal acontecer não pode ser desconsiderada, podendo inclusive chegar a considerar-se que legitima a negação da providencia cautelar antecipatória em certos casos concretos. (...)

Do exposto se pode concluir que a colocação das providências cautelares antecipatórias em igualdade de condições com as medidas de natureza conservatória não pode ser linear. Mesmo que as providências de natureza conservatória também possam implicar ingerência de igual gravidade na esfera jurídica do requerido e produzir efeitos irreversíveis, nunca se traduzirão na atribuição ao requerente de utilidade equivalente aquela que apenas poderia obter por sentença final, transitada em julgado. Por esta via se permite alcançar, através de um meio precário e com uma margem de erro considerável, um resultado próprio de meios judiciais de cognição plena de que resultam decisões definitivas. As considerações expostas exigem que a eventual aceitação de providências cautelares de conteúdo antecipatório dependa de uma reflexão profunda e atenta sobre os respetivos efeitos e consequentes riscos, tarefa que já levamos a cabo. É agora o momento de avaliar, tendo como premissa o facto de que não pode aceitar -se este tipo de conteúdo cautelar com a mesma facilidade com que se aceita a tutela cautelar de conservação, muito embora a sua admissibilidade, como princípio, não deva ser posta em causa.» [“A tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português”, Universidade Católica, Lisboa, 2016, pp. 437-438]

Foi precisamente tendo o cuidado de análise devido a que alude a Ilustra Professora que consideramos que na situação em apreço foi inadequada a utilização da providência cautelar em causa, o que nos reconduz a uma situação de erro na forma de processo.

Na decisão recorrida foi essa também uma das posições assumidas (embora sem que se tivesse qualificado tal entendimento, como erro na forma de processo), ao dizer-se, designadamente: “Nada justifica a instauração duma providência cautelar, para se obterem os apontados fins, que são próprios da acção declarativa e apenas dessa acção.

No caso, nada justifica a instauração de uma providência cautelar, como a presente, porquanto não se visa nem se pretende o decretamento de qualquer concreta providência antecipatória, visando-se com ela obstar a algum prejuízo sério decorrente do retardamento na satisfação do direito invocado e ainda não reconhecido (direito esse que será precisamente o pedido formulado). Visa-se, outrossim, o imediato reconhecimento do direito da requerente deixando sem objecto a acção principal a intentar.”

Na situação em apreço, sendo inviável a convolação da presente providência numa outra, pois que o que se mostra em causa é a inadequação daquela (ou de qualquer outra) e a necessidade de existência duma acção, há a registar um caso de preclusão e não de convolação."

[MTS]

29/01/2020

Bibliografia (877)


-- Ortega, Hernández / Rolando, Joaquín, Mecanismos alternativos de resolución de conflictos por medios electrónicos (Jose María Bosch Editor: Barcelona 2020)


Papers (437)

 
-- Dikovska, Iryna, Can a Choice-of-Court Agreement Included in a Marriage Contract Meet the Requirements of Both EU Succession and Matrimonial Property Regulations? (SSRN 12.2019) 
 
-- Verbruggen, Paul / Kryla-Cudna, Katarzyna, The Union’s Liability for Failure to Adjudicate within a Reasonable Time: EU Tort Law after Gascogne, Kendrion and ASPLA (SSRN 01.2020)
 
 

Jurisprudência 2019 (163)


Processo penal; arresto preventivo de bens;
competência material


1. O sumário de RG 10/7/2019 (296/13.8TAVVD-O.G1) é o seguinte:

I- A competência traduz-se na medida de jurisdição atribuída a cada tribunal, assentando a competência material apenas na natureza do litígio.

II- A forma base da Organização Judicial interna do Tribunal da Relação relativamente à competência material são as Secções, que detêm competência própria com formações de julgamento segundo a composição determinada nas leis de processo.

III- Sendo a questão colocada nos autos – embora inserida num instituto de natureza processual civil -, de natureza exclusivamente penal, convocando para a sua apreciação e decisão princípios e normas de natureza penal, ela deve ser apreciada e decidida pela secção Penal desta Relação (e não pelas seções cíveis).

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Tendo em consideração a decisão proferida, a questão que se nos impõe desde logo apreciar e decidir é a de saber se esta secção cível é competente para conhecer do objecto do recurso interposto pela embargante, por ele versar, em nosso entender, contrariamente ao decidido pela Exma Relatora da secção penal, sobre matéria de natureza exclusivamente penal.
 
*
 
Está efectivamente em causa apreciar e decidir no presente recurso se a providência decretada no âmbito de um processo penal, instaurando contra o arguido J. N. – de Arresto Preventivo de bens dos quais o arguido era beneficiário, e contra o qual a embargante reagiu mediante embargos de terceiro -, reveste natureza cível ou criminal.

Isto porque, não obstante o expediente processual usado pela embargante – Oposição mediante Embargos de Terceiro – estar inserido no Código de Processo Civil (artºs 342º e ss. daquele diploma legal), haverá que apreciar, à luz do que vem previsto desde logo no artº 342º, se a penhora ou o ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofende a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência de que seja titular quem não é parte na causa, o que nos levará a apreciar quais os direitos do terceiro que são ofendidos pela providência decretada, convocando necessariamente para o efeito as disposições legais do Código Penal, nomeadamente os seus artºs 110º e 111º, intitulados, respectivamente, “Perda de produtos e vantagens” e “Instrumentos, produtos ou vantagens pertencentes a terceiro”.

Estamos em crer por isso que os pressupostos da validade e procedência da oposição deduzida pela embargante são de natureza eminentemente penal e não civil, sendo à luz das normas e dos princípios vigentes no direito penal que a questão deverá ser apreciada.
Ou seja, do que se trata nos presentes autos é de uma questão de natureza exclusivamente penal, pelo que deveria ser uma secção penal desta Relação a apreciar e decidir tal questão (e não uma seção cível).
 
*
 
Fazendo uma abordagem prévia da questão, diremos que a Organização Jurisdicional interna dos tribunais se distribui, no que respeita à sua competência, em razão da matéria, da hierarquia e do território.

Segundo Manuel de Andrade (“Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1976, 94 a 98), a competência em razão da matéria é a competência das diversas ordens de tribunais, dispostas horizontalmente, e prende-se com a atribuição das competências em razão da matéria da causa, isto é, ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação jurídica substancial em litígio.

A competência traduz-se assim na medida de jurisdição atribuída a cada tribunal, assentando a competência material apenas na natureza do litígio.

Como tem sido sublinhado pela doutrina e pela jurisprudência, a distribuição da competência pelos vários tribunais especializados assenta no pressuposto, racional e lógico, da maior idoneidade desse tribunal para a apreciação das matérias que lhe são atribuídas, de forma a que as causas sejam julgadas por magistrados com a preparação específica adequada (cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Processo Civil, Coimbra Editora, vol. I, pg. 107).

Trata-se pois da habilitação funcional do tribunal relativamente a certa matéria (Ac STJ, de 19.3.2004 disponível em www.dgsi.pt).

No que respeita aos tribunais da Relação, aquele pressuposto racional e lógico da distribuição dos processos deve manter-se: as causas devem ser apreciadas e julgadas por Desembargadores com a preparação específica adequada à matéria que lhe é distribuída.

De facto, nos termos da Lei 62/2013 de 26 de Agosto (LOSJ), a forma base da Organização Judicial interna do Tribunal da Relação relativamente à competência material (em razão da matéria) são as Secções, que detêm competência própria, com formações de julgamento segundo a composição determinada nas leis de processo. Segundo o art. 73º alínea a) da citada Lei, compete às secções da Relação, segundo a sua especialização, julgar os recursos.

Ou seja, a dimensão organizativa das secções do Tribunal da Relação parte de um modelo de competência em razão da matéria, existindo secções cíveis, secções criminais e secção social, decidindo cada uma delas as matérias relacionadas com a sua especialidade. Assim, as secções criminais julgam as causas de natureza penal; as secções sociais julgam as causas de natureza cível da competência material dos tribunais de trabalho; e as secções cíveis julgam as causas que não estejam atribuídas a outras secções (artigo 54º e 74º da LOSJ; Ac RP de 08 de Fevereiro de 2017; e Ac. do STJ de 14.07.2010 - a propósito da composição do STJ -, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

O critério adoptado na lei no que respeita à competência em razão da matéria das seções no Tribunal da Relação, consubstanciou-se assim em identificar as causas que compete julgar às secções criminais e sociais, sendo o julgamento das restantes da competência residual das secções cíveis.

Dito de outro modo, a organização segundo um modelo de competência material (em razão da matéria) distribui as competências por especialidade, com enunciação da competência das secções por tipos e espécies de matérias, estando bem definido na lei de Organização Judiciária que as secções criminais julgam as causas de natureza penal, matéria também reforçada no artº 12º nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal, no qual se prevê que às secções criminais das Relações compete julgar recursos “em matéria penal”.
 
*
 
Definidas as regras legais enunciadas - também elas subjacentes, cremos, à decisão proferida pela Exma Relatora da secção penal a quem foi distribuído o processo ora em análise –, resta-nos aferir se a matéria do recurso que temos em mãos é ou não de natureza penal.

Estamos convencidos que sim.

Efetivamente, analisada a questão colocada nos autos, cremos que a causa a apreciar e julgar é de natureza exclusivamente penal, a ser apreciada e decidida pela secção Penal desta Relação (e não pelas seções cíveis), cientes que estamos ser aqui irrelevante a circunstância de a decisão recorrida ter sido proferida num processo apenso a um processo criminal, pois como acima afirmamos, o critério definidor da competência é apenas o da natureza da causa (Cf. neste sentido os Acs. do STJ de 14.07.2010 e de 26/04/2012 e o Ac. do TRC de 03.02.2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Como se refere no citado Ac do STJ de 14.07.2010 – a cuja tese aderimos -, o que releva para aferir da competência material do tribunal (e das secções dos tribunais superiores, sejam da Relação, sejam do Supremo), é a matéria que está em causa no objecto do recurso, vista no sentido de questão, determinação, controvérsia, objecto e matéria -, e não no sentido adjectivo e formal de tipo ou espécie de processo.

Ou seja, estamos cientes que não é a circunstância de a decisão recorrida ter sido proferida num processo penal que determina nem a natureza da «causa» nem a matéria sobre que versa. A espécie de processo em que foi proferida a decisão recorrida não é, para este efeito, relevante; a competência, sendo material, sobrepõe-se ao processo.

Olhamos portanto tão somente para a decisão recorrida, nomeadamente para os institutos jurídicos ali apreciados e respectivos preceitos legais; para as alegações de recurso da apelante; e para a resposta do MºPº às alegações de recurso. E delas concluímos com segurança que a relação jurídica subjacente ao presente recurso, ou seja, a matéria a ser nele apreciada e dirimida, é de natureza exclusivamente penal."
 
[MTS]
 
 

28/01/2020

Legislação (185)


Procedimento de injunção

P 21/2020, de 28/1: Aprova o modelo de requerimento de injunção e revoga a Portaria n.º 808/2005, de 9 de setembro

Jurisprudência europeia (TJ) (211)


Reenvio prejudicial — Art. 267.º TFUE — Conceito de “órgão jurisdicional nacional” — Critérios — Independência do organismo nacional em causa — Inamovibilidade dos membros — Inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial



TJ 21/1/2020 (C‑274/14, Banco de Santander) decidiu o seguinte:


"Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

51 Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para apreciar se o organismo de reenvio em causa tem a natureza de «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.° TFUE, questão que deve ser decidida unicamente no âmbito do direito da União, o Tribunal de Justiça toma em consideração um conjunto de elementos, como a origem legal do organismo, a sua permanência, o caráter vinculativo da sua jurisdição, a natureza contraditória do processo, a aplicação, pelo órgão, das regras de direito, bem como a sua independência (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de junho de 1966, Vaassen‑Göbbels, 61/65, EU:C:1966:39, p. 395; de 31 de maio de 2005, Syfait e o., C‑53/03, EU:C:2005:333, n.º 29; e de 16 de fevereiro de 2017, Margarit Panicello, C‑503/15, EU:C:2017:126, n.º 27 e jurisprudência aí referida).

52 Os elementos que figuram nos autos submetidos ao Tribunal de Justiça não permitem pôr em causa que o TEAC, organismo de reenvio no presente processo, satisfaz os critérios relativos à sua origem legal, à sua permanência, ao caráter vinculativo da sua jurisdição, à natureza contraditória do seu processo e à aplicação, por esse organismo, de regras de direito.

53 Em contrapartida, coloca‑se a questão de saber se o TEAC preenche o critério de independência.

54 A este respeito, no n.º 39 do Acórdão de 21 de março de 2000, Gabalfrisa e o. (C‑110/98 a C‑147/98, EU:C:2000:145), o Tribunal de Justiça declarou que a legislação espanhola relativa aos TEA, como aplicável ao processo que deu origem a esse acórdão, garantia uma separação funcional entre, por um lado, os serviços da Administração Fiscal encarregados da gestão, da cobrança e da liquidação do imposto e, por outro, os TEA, os quais decidem das reclamações apresentadas contra as decisões tomadas pelos referidos serviços sem receberem qualquer instrução da Administração Fiscal. No n.º 40 do referido acórdão, o Tribunal de Justiça precisou que essas garantias conferiam aos TEA a qualidade de terceiro em relação aos serviços que adotaram a decisão que era objeto da reclamação e a independência necessária para poderem ser considerados órgãos jurisdicionais, na aceção do artigo 267.º TFUE.

55 Ora, como também sustentou a Comissão nas suas observações escritas, estas considerações devem ser reapreciadas tendo em conta, nomeadamente, a jurisprudência mais recente do Tribunal de Justiça relativa, em particular, ao critério de independência que qualquer organismo nacional deve respeitar para ser qualificado de «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.º TFUE.

56 Neste contexto, cumpre sublinhar que a independência dos órgãos jurisdicionais nacionais é essencial para o bom funcionamento do sistema de cooperação judiciária que representa o mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º TFUE, na medida em que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, recordada no n.º 51 do presente acórdão, esse mecanismo só pode ser acionado por uma instância, encarregada de aplicar o direito da União, que satisfaça, designadamente, esse critério de independência (Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, C‑64/16, EU:C:2018:117, n.º 43).

57 De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o conceito de «independência» comporta duas vertentes. A primeira, de ordem externa, pressupõe que o organismo em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar submetido a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja e sem receber ordens ou instruções de qualquer origem, e esteja, assim, protegido contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões (Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, C‑64/16, EU:C:2018:117, n.° 44 e jurisprudência referida).

58 Ainda no que diz respeito à vertente externa do conceito de «independência», importa recordar que a inamovibilidade dos membros da instância em causa constitui uma garantia inerente à independência dos juízes, na medida em que visa proteger a pessoa daqueles cuja função é julgar (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de setembro de 2006, Wilson, C‑506/04, EU:C:2006:587, n.º 51, e de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, C‑64/16, EU:C:2018:117, n.º 45).

59 O princípio da inamovibilidade, cuja importância decisiva importa sublinhar, exige, designadamente, que os juízes possam permanecer em funções enquanto não atingirem a idade obrigatória de aposentação ou até ao termo do seu mandato, quando este tiver uma duração determinada. Embora não tenha caráter absoluto, o referido princípio só pode sofrer exceções quando motivos legítimos e imperiosos o justifiquem, no respeito do princípio da proporcionalidade. Assim, é comummente aceite que os juízes possam ser destituídos se não estiverem aptos a continuar a exercer as suas funções em razão de uma incapacidade ou de falta grave, desde que sejam respeitados os procedimentos adequados [Acórdão de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal), C‑619/18, EU:C:2019:531, n.º 76].

60 A garantia de inamovibilidade dos membros de um órgão jurisdicional exige, assim, que os casos de destituição dos membros desse organismo sejam previstos por uma regulamentação especial, através de disposições legais expressas que ofereçam garantias que ultrapassem as previstas pelas regras gerais do direito administrativo e do direito do trabalho aplicáveis em caso de destituição abusiva (v., neste sentido, Acórdão de 9 de outubro de 2014, TDC, C‑222/13, EU:C:2014:2265, n.os 32 e 35).

61 Por seu turno, a segunda vertente do conceito de «independência», que é de ordem interna, está ligada ao conceito de «imparcialidade» e visa o igual distanciamento em relação às partes no litígio e aos seus interesses respetivos, tendo em conta o objeto deste. Este aspeto exige o respeito pela objetividade e a inexistência de qualquer interesse na resolução do litígio que não seja a estrita aplicação da regra de direito [Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, Margarit Panicello, C‑503/15, EU:C:2017:126, n.º 38 e jurisprudência referida].

62 Assim, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o conceito de «independência», que é inerente à missão de julgar, implica, acima de tudo, que a instância em questão tenha a qualidade de terceiro em relação à autoridade que adotou a decisão que é objeto de recurso (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de março de 1993, Corbiau, C‑24/92, EU:C:1993:118, n.º 15, e de 9 de outubro de 2014, TDC, C‑222/13, EU:C:2014:2265, n.º 29 e jurisprudência referida).

63 Estas garantias de independência e de imparcialidade postulam a existência de regras, designadamente no que respeita à composição da instância, à nomeação, à duração das funções, bem como às causas de abstenção, de impugnação da nomeação e de destituição dos seus membros, que permitem afastar qualquer dúvida legítima, no espírito dos particulares, quanto à impermeabilidade da referida instância em relação a elementos externos e à sua neutralidade relativamente aos interesses em confronto (Acórdão de 9 de outubro de 2014, TDC, C‑222/13, EU:C:2014:2265, n.º 32).

64 No caso em apreço, há que declarar, em primeiro lugar, que, segundo a regulamentação nacional aplicável, nomeadamente o artigo 29.º, n.º 2, do Real Decreto 520/2005, o presidente e os membros do TEAC são nomeados por real decreto adotado em Conselho de Ministros, sob proposta do ministro da Economia e das Finanças, por tempo indeterminado. Segundo esta mesma disposição, tanto o presidente como os membros do TEAC podem ser destituídos de acordo com o mesmo procedimento, a saber, por real decreto adotado em Conselho de Ministros, sob proposta do ministro da Economia e das Finanças.

65 Quanto aos membros dos TEA regionais, há que salientar que, segundo o artigo 30.º, n.º 2, do Real Decreto 520/2005, os mesmos são nomeados pelo ministro da Economia e das Finanças, entre os funcionários que figuram numa lista, e podem ser destituídos por esse mesmo ministro.

66 Ora, sendo embora certo que a legislação nacional aplicável prevê regras que regulam, nomeadamente, a abstenção e a impugnação da nomeação do presidente, bem como dos outros membros do TEAC, ou ainda, no que respeita ao presidente do TEAC, regras em matéria de conflitos de interesses, de incompatibilidades e de deveres de transparência, em contrapartida é pacífico que o regime de destituição do presidente e dos outros membros do TEAC não é determinado por uma regulamentação especial que conste de disposições legislativas expressas, como as que são aplicáveis aos membros do poder judicial. Os membros do TEAC, quanto a este último aspeto, apenas são abrangidos pelas regras gerais de direito administrativo e, em particular, pelo estatuto de base dos agentes da função pública, como confirmou o Governo espanhol na audiência no Tribunal de Justiça. Esta mesma conclusão impõe‑se relativamente aos membros dos TEA regionais e locais.

67 Por conseguinte, a destituição do presidente e dos outros membros do TEAC, bem como dos membros dos outros TEA, não está limitada, como exige o princípio da inamovibilidade recordado no n.º 59 do presente acórdão, a determinadas hipóteses excecionais que traduzem motivos legítimos e imperiosos que justificam a adoção de tal medida, no respeito do princípio da proporcionalidade e dos procedimentos adequados, como a hipótese de uma incapacidade ou de um incumprimento grave que torne as pessoas em causa inaptas para prosseguirem as suas funções.

68 Daqui resulta que a legislação nacional aplicável não garante que o presidente e os outros membros do TEAC estejam protegidos de pressões externas, diretas ou indiretas, suscetíveis de pôr em causa a sua independência.

69 Embora seja verdade que, nos termos do artigo 228.º, n.º 1, da LGT, os membros dos TEA exercem as suas competências «de forma funcionalmente independente» e que, em conformidade com o artigo 29.º, n.º 9, e com o artigo 30.º, n.º 12, do Real Decreto 520/2005, exercem «com total independência e sob a sua responsabilidade» as funções que lhes são legalmente atribuídas, não é menos verdade que a revogação ou anulação da sua nomeação não é acompanhada de garantias especiais. Ora, tal sistema não é suscetível de impedir eficazmente as pressões indevidas do poder executivo sobre os membros dos TEA (v., por analogia, Acórdão de 31 de maio de 2005, Syfait e o., C‑53/03, EU:C:2005:333, n.° 31).

70 Neste ponto, a situação dos membros dos TEA e, designadamente, do TEAC distingue‑se, por exemplo, da do organismo de reenvio no processo que deu origem ao Acórdão de 6 de outubro de 2015, Consorci Sanitari del Maresme (C‑203/14, EU:C:2015:664), no sentido de que, como resulta dos n.os 11 e 20 desse acórdão, os membros deste organismo gozam, ao contrário dos membros dos TEA, de uma garantia de inamovibilidade, durante o período do seu mandato, que só pode ser derrogada por causas expressamente enumeradas na lei.

71 De igual modo, os TEA e, nomeadamente, o TEAC distinguem‑se do organismo de reenvio no processo que deu origem ao Acórdão de 24 de maio de 2016, MT Højgaard e Züblin (C‑396/14, EU:C:2016:347). Com efeito, como resulta dos n.os 29 a 31 desse acórdão, embora este organismo inclua membros peritos que não beneficiam da proteção especial reservada aos magistrados por uma disposição constitucional, é igualmente composto por magistrados que beneficiam, por sua vez, dessa proteção e que dispõem, em qualquer circunstância, da maioria dos votos e, por conseguinte, de um peso preponderante na tomada de decisão do referido organismo, o que é suscetível de garantir a sua independência.

72 No que respeita, em segundo lugar, à exigência de independência, na perspetiva da sua segunda vertente, que é de ordem interna, referida no n.º 61 do presente acórdão, importa salientar que, na verdade, no Ministério da Economia e das Finanças existe uma separação funcional entre, por um lado, os serviços da Administração Fiscal encarregados da gestão, da cobrança e da liquidação do imposto e, por outro, os TEA, que decidem das reclamações apresentadas contra as decisões tomadas pelos referidos serviços.

73 No entanto, como também observou o advogado‑geral nos n.os 31 e 40 das suas conclusões, algumas características do processo de recurso extraordinário perante a Sala Especial para la Unificación de Doctrina (Secção Especial para Uniformização de Jurisprudência, Espanha), processo que se rege pelo artigo 243.º da LGT, contribuem para lançar a dúvida sobre o facto de o TEAC ter a qualidade de «terceiro» relativamente aos interesses em conflito.

74 Com efeito, cabe exclusivamente ao diretor‑geral dos Impostos do Ministério da Economia e das Finanças interpor um recurso extraordinário das decisões do TEAC com as quais não concorda. Ora, esse diretor‑geral faz, ele próprio, oficiosamente parte da formação composta por oito pessoas que é competente para conhecer desse recurso, tal como o diretor‑geral ou o diretor do departamento da Agência Estatal da Administração Fiscal a que pertence o órgão autor do ato visado pela decisão que é objeto do recurso extraordinário em causa. Assim, quer o diretor‑geral dos Impostos do Ministério da Economia e das Finanças, que interpôs o recurso extraordinário de uma decisão do TEAC, quer o diretor‑geral ou o diretor da Agência Estatal da Administração Fiscal do qual emana o ato visado por esta decisão têm assento na Secção Especial do TEAC que conhece desse recurso. Daí resulta uma confusão entre a qualidade de parte no processo de recurso extraordinário e a de membro do órgão competente para conhecer desse recurso.

75 De resto, a perspetiva da interposição desse recurso extraordinário pelo diretor‑geral dos Impostos do Ministério da Economia e das Finanças contra uma decisão do TEAC é suscetível de exercer pressão sobre este e de, assim, lançar dúvidas sobre a sua independência e a sua imparcialidade, não obstante o facto, invocado pelo Governo espanhol na audiência no Tribunal de Justiça, de resultar do artigo 243.º, n.º 4, da LGT que esse recurso extraordinário só produz efeitos para o futuro e não tem incidência nas decisões já adotadas pelo TEAC, incluindo a que é objeto do referido recurso.

76 Assim, estas características do recurso extraordinário para uniformização da jurisprudência que pode ser interposto contra as decisões do TEAC realçam as relações orgânicas e funcionais existentes entre este organismo e o Ministério da Economia e das Finanças, em particular o diretor‑geral dos Impostos desse ministério, bem como o diretor‑geral da direção de onde emanam as decisões impugnadas perante si. A existência dessas ligações opõe‑se a que seja reconhecida ao TEAC a qualidade de terceiro em relação a essa Administração (v., por analogia, Acórdão de 30 de maio de 2002, Schmid, C‑516/99, EU:C:2002:313, n.os 38 a 40).

77 Por conseguinte, o TEAC não cumpre a exigência de independência própria de um órgão jurisdicional, considerada na sua vertente interna.

78 Importa acrescentar, por um lado, que o facto de os TEA não constituírem «órgãos jurisdicionais», na aceção do artigo 267.º TFUE, não os dispensa da obrigação de garantir a aplicação do direito da União aquando da adoção das suas decisões e de não aplicar, se necessário, as disposições nacionais que se revelem contrárias a disposições do direito da União dotadas de um efeito direto, uma vez que tais obrigações vinculam, efetivamente, todas as autoridades nacionais competentes e não apenas as autoridades jurisdicionais (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.os 30 a 33; de 14 de outubro de 2010, Fuß, C‑243/09, EU:C:2010:609, n.os 61 e 63; e de 4 de dezembro de 2018, Minister for Justice and Equality e Commissioner of An Garda Síochána, C‑378/17, EU:C:2018:979, n.os 36 e 38).

79 Por outro lado, o facto de existirem vias de recurso jurisdicionais perante a Audiencia Nacional (Audiência Nacional, Espanha) e perante o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) contra as decisões dos TEA tomadas na sequência do procedimento económico‑administrativo de reclamação permite garantir a efetividade do mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º TFUE e a unidade de interpretação do direito da União, uma vez que tais órgãos jurisdicionais nacionais dispõem da faculdade ou, se for caso disso, são obrigados a submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça se for necessária uma decisão sobre a interpretação ou validade do direito da União (v., por analogia, Acórdão de 31 de janeiro de 2013, Belov, C‑394/11, EU:C:2013:48, n.º 52).

80 Tendo em conta as considerações precedentes, há que declarar que o pedido de decisão prejudicial apresentado pelo TEAC é inadmissível, uma vez que este organismo não pode ser qualificado de «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.º TFUE."

[MTS]


Bibliografia (876)


-- Caporusso, S., I vizi di capacità e di rappresentanza nel regime del sanatorie proccessuali (E.S.I.: Napoli 2019)

 

Jurisprudência 2019 (162)


Recurso de revista;
impugnação da matéria de facto

I. O sumário de STJ 11/7/2019 (121/06.6TBOBR.P1.S1) é o seguinte:

1. Não cabe no âmbito do recurso de revista a reapreciação de documentos sem força probatória plena (artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2).

2. Cabe ao apelante que pretende impugnar a decisão de facto o ónus de delimitar o respectivo objecto, indicando com precisão os pontos concretos que questiona, e de fundamentar o recurso, apontando os meios probatórios que impunham decisão diversa e que decisão deveria ter sido tomada.

3. Estes ónus têm de ser entendidos à luz da respectiva função e não ser entendidos de forma desproporcionalmente exigente.

4. Necessário é que o recorrido disponha dos elementos necessários para se pronunciar sobre a impugnação e que o tribunal tenha os dados necessários para apreciar o recurso, no que toca à prova gravada e aos pontos de facto indicados.

5. No caso, o recorrente indicou o princípio e o fim dos depoimentos que questiona, por referência ao suporte onde estão gravados, os pontos de facto (da então base instrutória) para cuja prova foram indicados e sintetizou o respectivo conteúdo, o que se considera suficiente.

6. Não incorre em incumprimento de um acórdão da Relação que determinou que o julgamento fosse repetido, mas sem que essa repetição abrangesse “a parte da decisão não viciada, podendo no entanto o tribunal a quo apreciar outros pontos da matéria de facto provada com a finalidade exclusiva de evitar contradições”, o juiz de 1ª instância que despacha no sentido de que lhe está vedada a possibilidade de reapreciação da prova produzida, por não ter sido quem realizou o julgamento, uma vez que não afirmou ter detectado contradições que não tem a possibilidade de resolver.
 

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 

"3. Pelo Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 1495, foram julgados os recursos de apelação e de agravo interpostos pelos réus. Foi decidido conceder provimento parcial ao recurso de BB e, portanto, decidido:
 
– Negar provimento ao agravo interposto da decisão de apensação dos processos;
 
– Alterar um quesito (o 17º), mantendo embora a resposta de “provado” e aditar questões à base instrutória, anulando a sentença e ordenando “a repetição do julgamento que não abranja a parte da decisão não viciada, podendo no entanto o tribunal a quo apreciar outros pontos da matéria de facto provada com a finalidade exclusiva de evitar contradições”; [...]

A fls. 1780 foi proferida nova sentença, mantendo o decidido na anterior. Os réus recorreram, agora para o Tribunal da Relação do Porto., que, pelo acórdão de fls. 1202, negou provimento aos recursos. [...] 

4. Os réus recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça. [...] 

Também recorreram CC e mulher, que concluíram as alegações desta forma: [...]

20. - Salvo o devido respeito, o TRP não entendeu a questão sob julgamento e, por essa razão, acabou por não julgar essa parte do recurso.

Simplesmente, não é essa a questão, a questão que se lhe colocou a julgamento não era essa - que, assim retratada, como no acórdão recorrido, emerge quase "La Paliciana".

21. - Escreveu-se o seguinte na sentença da primeira instância, a fls. 16ª (atenta a paginação da própria decisão) pode ler-se o seguinte:

"Desde já se consigna que, não obstante o douto Tribunal da Relação de Coimbra ter decidido que se podia alterar a factualidade já dada como provada, com o intuito de evitar contradições, o certo é que o julgamento inicial não foi por nós realizado, pelo que se nos afigura que nos está vedado a possibilidade de reapreciação da prova produzida e que conduziu à resposta à matéria de facto já proferida nos autos."

23.- Ora, a serem assim as coisas, não se trata da Mma. Juiz a quo poder ou não poder, caso necessite ou venha a ser necessário..., como vai escrito no acº. proferido pelo TRP.

24. - Trata-se sim da Mma. Juiz a quo, do tribunal de primeira instância, ter entendido que não podia julgar essa matéria, não obstante o TRC ter entendido que sim e a ter mandatado nesse sentido, isto é, na prática, se ter recusado a julgar essa matéria. Sendo que, o que está em causa não é esse segundo momento de não ter sido necessário a modificação dessa matéria de facto.

25. - Continuando a ressalvar o muito respeito devido, como os recorrentes escreveram no seu recurso agora conhecido pelo TRP, o que está em causa é a negação e a recusa pela Mma. Juiz da primeira instância do uso desse mandato e do julgamento da nova matéria ter ficado absolutamente condicionado por esse entendimento.

26. - Por sua vez, por esse pré-juízo origina a que não tenha podido haver um verdadeiro julgamento sobre tais factos, tendo ocorrido uma "desobediência" absoluta do mandato para o acto de julgar aquela matéria (assente no diferente entendimento, como se escreveu na sentença).

27. - Este entendimento configura violação de caso julgado material e um verdadeiro não julgamento, que conduziu a uma verdadeira não decisão (a da primeira instância, validada nessa parte pelo acórdão agora sob recurso), ficando o "acto de julgar" absolutamente condicionado e inquinado "ab initio", e constituindo nulidade insuprível por violação dos Arts.l 52°n°.l, 411°, 602°n°.l e 620° do CPC [...]

A autora contra-alegou, sustentando a decisão recorrida. [...]

Nas contra-alegações correspondentes ao recurso interposto por CC e mulher, DD, concluiu assim: [...]

E) Só no caso de a Sra. Juiz que presidiu ao segundo julgamento encontrar contradições entre a matéria de facto que resultava provada após a realização deste e a matéria de facto já provada anteriormente, a mesma podia (e devia) proceder às alterações necessárias, mas não havendo qualquer contradição, como efetivamente não houve, então não havia necessidade de se alterar a matéria de facto já provada que, assim, se manteve.

F) Ao contrário do pretendido pelos recorrentes, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra não conferiu propriamente um segundo grau de jurisdição à Sra. Juiz que presidiu ao segundo julgamento.

G) Por outro lado, os recorrentes omitiram o dever que sobre si impendia de alegar e de demonstrar quais as contradições entre a matéria de facto provada após o aditamento à base instrutória e aquela que já o havia sido, evidenciando de que forma, e com base em quê, a anterior matéria de facto deveria ser alterada.

H) Não se verifica por isso qualquer omissão de pronúncia (isto, em resposta ao teor da conclusão 20 das alegações a que se responde) nem outro qualquer vício do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto.» [...]

7. Estão assim em causa neste recurso:

No recurso interposto pelos réus CC e mulher, DD: [...]

c)– incumprimento, pelo tribunal de 1ª instância, de determinações do Tribunal da Relação de Coimbra quanto `à apreciação de matéria de facto; [...] 

9. Recurso interposto pelos réus CC e mulher, DD: [...] 

c) – Incumprimento, pelo tribunal de 1ª instância, de determinações do Tribunal da Relação de Coimbra quanto `à apreciação de matéria de facto;
 
O que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto decidiu a este respeito não merece qualquer censura.
 
Com efeito, com a anulação da primeira sentença, em virtude da determinação da ampliação da matéria de facto, o Tribunal da Relação de Coimbra deliberou que fosse repetido o julgamento, mas sem que essa repetição abrangesse “a parte da decisão não viciada, podendo no entanto o Tribunal a quo apreciar outros pontos da matéria de facto provada com a finalidade exclusiva de evitar contradições”.


O juiz que elaborou a segunda sentença não afirmou que detectou contradições depois de repetido o julgamento e que, apesar disso, não podia reapreciar a “prova produzida e que conduziu à resposta à matéria de facto já produzida nos autos” (fl. 1795). 

Improcede, por isso, a alegação de incumprimento do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra."

[MTS]