"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



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16/06/2025

Observações conclusivas sobre os “factos conclusivos”



[Para aceder ao texto clicar em M. Teixeira de Sousa]


Nota de actualização

Dando continuidade à orientação que se critica no texto, do sumário do recente acórdão do STJ de 3/6/2025 (1152/23.7T8CTB.C1.S1) consta o seguinte:

A matéria de facto adquirida processualmente não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica, daí que as questões de direito que constem da seleção da matéria de facto provada devem considerar-se não escritas, sendo de afastar na decisão de facto expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial.

Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Impõe-se [...] expurgar da enunciação da matéria de facto (alterada/aditada pelo Tribunal recorrido) os factos jurídicos, que encerram valorações jurídicas constantes do item 46 e item 47 dos factos provados, porquanto [...] integram o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, constituem a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes, invadindo o domínio da questão de direito essencial, qual seja, a consideração do que é considerado como “condutor habitual” para efeitos de anulação do contrato de seguro, importando remeter esta matéria, também por estas razões, para o rol de factos não provados."

Coisa completamente diferente é a questão de saber se do processo constam os elementos necessários para considerar o proscrito facto conclusivo "condutor habitual" como provado. Sobre isso não importa agora fazer nenhuma consideração.

MTS  

 

19/03/2025

Dívida comercial, juros civis - mas porquê?


1. a) O sumário de STJ 19/9/2024 (258/09.0TNLSB-D.L1.S1) é o seguinte:

Mantendo-se a orientação jurisprudencial do STJ, considera-se que, à falta de outros elementos interpretativos, a decisão judicial dada à execução, condenando a ora embargante a pagar à aí autora uma indemnização acrescida de juros calculados à taxa legal, deve ser interpretada como abrangendo o direito a juros de mora à taxa legal prevista para os juros civis.

 b) A fundamentação do acórdão esclarece o que estava em causa:

"5.2. Na acção declarativa que culminou com a decisão judicial dada à execução, foi formulado o seguinte pedido:

«Nestes termos, deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e por via dela, ser a R. condenada a pagar à A. a quantia peticionada de (...), acrescida de juros vincendos, bem como custas e o mais legal. (...)».

Sendo que, no último artigo da petição inicial (artigo 69), a pretensão relativa ao pagamento de juros, foi assim enunciada:

«A esta quantia deverão acrescer juros, à respectiva taxa legal, desde a data da citação até à data do integral pagamento.».

Afigura-se que o segmento decisório do acórdão dado à execução se encontra em conformidade com o teor literal do pedido («condeno a Ré Petrogal a pagar à Autora a quantia de 150.000,00 €, acrescida de juros, calculados à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento»). E, uma vez que se verifica que em momento algum a petição inicial se refere à natureza (comercial ou civil) da obrigação da ré Petrogal, tampouco a utilização, no artigo 69.º da p.i., da expressão «respectiva taxa legal», permite retirar a ilação de que os juros peticionados o foram à taxa comercial.

Temos, assim, que, no caso dos autos, e diversamente do alegado pela recorrente, a directriz interpretativa assente no princípio do pedido não permite chegar a qualquer conclusão segura."

2. O acórdão optou por seguir a jurisprudência do STJ (também largamente maioritária nas instâncias, segundo se supõe): não se conseguindo retirar do pedido do credor de uma dívida comercial se os juros que pede são civis ou comerciais, deve entender-se que o demandante pede juros civis.

Quanto à opção do STJ, nada há a objectar. Na dúvida, deve seguir-se a jurisprudência consolidada, pois que uma 
jurisprudência flutuante origina perplexidade entre as partes e não favorece a confiabilidade do sistema processual. 

Outra coisa completamente diferente é saber se a orientação do STJ é a melhor na matéria e se não se impõe uma mudança da jurisprudência. A formulação escolhida pelo STJ ("Mantendo-se a orientação jurisprudencial deste Supremo Tribunal [...]") pode eventualmente ser interpretada como mostrando algum "desconforto" perante a jurisprudência consolidada, mas isto não passa de uma mera conjectura. 

Talvez possam ser mobilizados alguns outros, mas bastam três argumentos muito simples para questionar a bondade da referida jurisprudência. Talvez se possa adiantar que a solução do problema nada tem a ver com a interpretação do pedido do demandante, mas tão-só com a aplicação da lei pelo tribunal da acção.

3. a) O primeiro argumento é meramente textual. O art. 703.º, n.º 2, CPC dispõe que "consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dela constante". Não está agora em causa o âmbito de aplicação do preceito (talvez indevidamente restringido pelo Ac. STJ 9/2015, de 24/6), mas um outro aspecto: os juros de mora que são abrangidos pelo título executivo são aqueles que respeitam à "obrigação dele constante"; portanto, estão abrangidos juros civis, se a obrigação for civil, e juros comerciais, se a obrigação for comercial. 

Quer dizer: o estabelecido no art. 703.º, n.º 2, CPC é bem claro em relacionar os juros com a obrigação exequenda. Aliás, nada de especial, certamente. Surpreendente seria que o preceito relacionasse os juros a serem cobrados na execução com qualquer coisa distinta da obrigação que consta do título executivo.

Também é nítido que, ao contrário do entendimento da jurisprudência agora em análise, a expressão "juros calculados à taxa legal" não pode significar apenas juros civis. Se assim se entendesse, então a "taxa legal" referida no art. 703.º, n.º 2, CPC estaria a reportar-se, qualquer que fosse a obrigação exequenda, apenas à taxa legal dos juros civis. É manifesto que não é isto que resulta do preceito, já que, como se disse, o preceito relaciona os juros com a obrigação que consta do título.

b) Uma segunda observação é esta: não se encontra na lei (art. 102.º CCom; art. 4.º DL 62/2013, de 10/5) nenhuma base para se entender que o regime dos juros comerciais é supletivo perante o regime dos juros civis, isto é, que os juros comerciais só se aplicam se as partes o estipularem ou se -- que é o que agora interessa -- o demandante o pedir em juízo. A única coisa que se pode retirar desses preceitos é que as partes podem convencionar qual a taxa dos juros comerciais (art. 102.º, § 1.º CCom; art. 4.º, n.º 1, DL 62/2013), taxa que, nesta hipótese, prevalece, com a limitação imposta pelo disposto no art. 102.º, § 2.º, CCom, sobre a taxa legal supletiva (art. 102.º, § 3.º e 4.º CCom).

Os juros civis e os juros comerciais são ambos "juros calculados à taxa legal". A única diferença entre eles é que os juros civis são o regime geral e os juros comerciais correspondem a um regime especial. Ora, que se saiba a aplicação em juízo de um regime especial não depende da vontade das partes: o regime aplica-se, não porque as partes o queiram ou o peçam, mas porque a lei especial derroga a lei geral. Portanto, cumprindo o princípio iura novit curia, os tribunais devem aplicar ex officio qualquer regime especial (incluindo, naturalmente, aquele que respeita à taxa legal definida para os juros comerciais).

Atendendo ao disposto no art. 5.º, n.º 3, CPC não pode ser de outra maneira, já que este preceito determina que "o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito". Ora, a orientação agora criticada faz precisamente o contrário: em clara violação do disposto naquele preceito, faz depender a aplicação do direito da vontade das partes num caso em que esta é totalmente irrelevante.

O regime especial prevalece sobre o regime geral, mas a solução da jurisprudência agora em análise também parece esquecer este elementar princípio. Sem excluir que exista em alguma parte do ordenamento jurídico um regime especial cuja aplicação pelos tribunais esteja dependente da vontade das partes, não se vislumbra que exista qualquer base legal para se entender que qualquer regime comercial esteja dependente de uma expressa vontade das partes, em especial no que respeita aos juros devidos no giro comercial. Portanto, não há nenhum motivo para excluir a matéria dos juros comerciais da aplicação oficiosa pelo tribunal da acção.

Acresce que, a dar-se qualquer relevância à vontade das partes em matéria de juros respeitantes a dívidas comerciais, a hipótese em que tal pode suceder é precisamente a inversa daquela que está em análise: o regime geral dos juros civis só pode ser aplicado em detrimento do regime especial dos juros comerciais se tal resultar da vontade das partes (o que, aliás, se admite como perfeitamente possível). Em contrapartida, para a aplicação pelos tribunais do regime legalmente aplicável nunca é necessária qualquer manifestação de vontade das partes.

Nestes termos, o equívoco da jurisprudência parece ser de base: admitir que, na falta de um pedido expresso em juízo, se aplicam a dívidas comerciais juros civis quando o que se devia admitir era que, na falta desse pedido, se aplicam a essas dívidas os juros comerciais a que se referem (sem os qualificarem como tal) o art. 102.º CCom e o art. 4.º DL 62/2013. 

Em conclusão: é verdadeiramente estranho que se entenda que, na falta de especificação pelo credor comercial de quais são os juros aplicáveis, se possa entender que o tribunal fica desvinculado de aplicar a lei e tenha de aplicar o regime geral dos juros civis em detrimento do regime especial dos juros comerciais.

c) O terceiro argumento contra a jurisprudência do STJ é ainda mais evidente: se, na falta de estipulação negocial das partes, se aplicam a dívidas comerciais juros comerciais, por que razão, na falta de um pedido que refira que se trata de juros comerciais, se aplicam a dívidas comerciais juros civis?

Esta falta de sintonia entre a solução substantiva e a solução processual contraria tudo o que se diz e ensina sobre a função instrumental do processo civil: essa função proíbe que se construam em processo soluções que contrariam o que vale fora do processo.

4. Em suma: há boas e simples razões para abandonar a jurisprudência que entende que, na falta de especificação dos juros pedidos em juízo quanto a uma dívida comercial, se aplicam a esta dívida juros civis.

MTS

12/03/2025

Wolfram Henckel (1925-2024)


1. Quando, em finais de Outubro, estive em Göttingen tive a oportunidade de me inteirar do estado de saúde de Wolfram Henckel. Fiquei a saber que, apesar da sua avançada idade, se encontrava bem. Na altura recordei a um jovem Colega que Henckel completaria 100 anos em 21/4/2025 e que, como antigo Reitor da Universidade de Göttingen, certamente a data não deixaria de ser assinalada.

Infelizmente, como vim a saber recentemente, Wolfram Henckel faleceu em 10/12/2024. 

2. À semelhança do seu Doktorvater Friedrich Weber, Henckel teve uma importante produção científica na área do direito da insolvência, traduzida muito em especial na sua participação como co-editor e como autor num dos comentários de referência da Insolvenzordnung. 

Para o processualista generalista, Henckel, antes da sua dedicação à área da insolvência, deixou duas obras de referência: uma, que foi a sua Habilitationsschrift em Heidelberg, era dedicada ao problema da conexão entre a teoria das partes e o objecto do processo, com uma incidência natural em temas que são comuns às partes e ao objecto, como a legitimidade das partes e a substituição processual (Parteilehre und Streitgegenstand im Zivilprozeß, Heidelberg: Winter, 1961); a outra, que escreveu durante um semestre sabático, incide sobre o eterno tema das relações entre o direito processual e o direito substantivo (Prozessrecht und materielles Recht, Göttingen: Schwartz, 1970), nela se acentuando a interconexão e a dependência mutua entre os dois ramos do direito.

Ambos os trabalhos são do melhor que se produziu na dogmática processual e, por isso, tornaram-se obras de referência nas matérias que tratam com enorme rigor e profundidade. Não admira por isso que o título do livro de homenagem que foi publicado por ocasião dos 90 anos de Henckel tivesse sido Prozessrecht und materielles Recht (Tübingen: Mohr 2015), certamente uma homenagem tanto ao autor, como a uma das suas obras mais conhecidas.

A ideia do processo como modo de realização do direito foi o Leitmotiv que orientou sempre os trabalhos de Henckel -- o processo não é nem um conjunto de formalidades, nem um fim em si mesmo ("Qualquer definição do fim do processo, que vá para além do próprio processo, coloca o processo em conexão com o direito substantivo"). Cabe lembrar que o discurso que Henckel proferiu por altura da sua tomada de posse como Reitor da Universidade de Göttingen foi dedicado ao valor de justiça das normas processuais (Vom Gerechtigkeitswert verfahrensrechtlicher NormenGottingen: Vandenhoeck & Ruprecht 1966). As normas processuais não podem ficar pelas tecnicidades processuais, antes devem transpor para o processo princípios fundamentais de justiça.

3. A vida só me proporcionou estar com Wolfram Henckel uma vez, mas a sua escola esteve sempre perto de mim através dos contactos frequentes que fui tendo com Bruno Rimmelspacher, um dos seus discípulos mais conhecidos e talvez aquele cuja obra permaneceu mais fiel à lição do seu Mestre.

MTS


24/01/2025

Condições de recorribilidade das decisões sobre pedidos cumulados


1. A parte dispositiva de uma decisão proferida em 1.ª instância é a seguinte:

"A) Julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:

a) Condeno a 1.ª Ré BB a pagar ao Autor AA a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), correspondente ao valor da franquia;

b) Condeno a 2.ª Ré EMP01... COMPANY SE, SUCURSAL EM ..., a pagar ao Autor AA a quantia de € 27.152,50 (vinte e sete mil, cento e cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos em consequência da actuação ilícita da 1.ª Ré ao abrigo do contrato de mandato celebrado entre esta e aquele, acrescida de juros de mora à taxa legal contados da data da citação até efectivo e integral pagamento; 

c) Declaro que o Autor AA sofreu danos não patrimoniais no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) em consequência da actuação ilícita da 1.ª Ré ao abrigo do contrato de mandato celebrado entre esta e aquele e, por decorrência, condeno a 2.ª Ré EMP01... COMPANY SE, SUCURSAL EM ... a pagar-lhe os juros de mora à taxa legal calculados sobre essa importância de € 5.000,00 (cinco mil euros), contados da data da presente sentença até efectivo e integral pagamento;

d) Absolvo as Rés do demais contra si peticionado pelo Autor;

B) Declaro que não há fundamento para a condenação do Autor e das Rés por litigância de má fé."

A decisão que consta da al. c) da letra A ("Declaro que o Autor AA sofreu danos não patrimoniais no valor de € 5.000,00 [...] e, por decorrência, condeno a 2.ª Ré [...] a pagar-lhe os juros de mora à taxa legal calculados sobre essa importância de € 5.000,00" [...], contados da data da presente sentença até efectivo e integral pagamento") não é, pelo menos para alguém que está fora do processo, facilmente compreensível. Seja como for, o que se pode dizer quanto ao recurso desta decisão é o mesmo que se vai dizer quanto ao recurso interposto da decisão que consta da al. a) da mesma letra A.

2. a) Da sentença da 1.ª instância foi interposto recurso de apelação tanto pela 1.ª Ré, como pela 2.ª Ré. O recurso interposto pela 1.ª Ré foi objecto de uma decisão singular do Relator. Contra esta decisão foi deduzida reclamação para a conferência. No acórdão que foi proferido na sequência da reclamação escreveu-se o seguinte:

"[...] A 1.ª ré interpôs recurso de apelação da sentença, sem indicar o respectivo valor, constando do respectivo requerimento o seguinte:

“BB, identificada nos autos, não se conformando com a sentença de fls., em que a condenou a pagar ao A. a quantia de 5.000,00 Euros, correspondente ao valor da franquia, e a 2.ª RÉ., ao pagamento das quantias aí mencionadas, em a), b) e c), em consequência da actuação ilícita da 1.ª RÉ., ao abrigo do contrato de mandato celebrado entre esta e aquele, acrescidas de juros, vem da mesma interpor recurso para o Tribunal da Relação [...], o qual é de Apelação, subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Assim, porque está em tempo e tem legitimidade para tal deve o mesmo ser recebido e processado em seus regulares termos.”

Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, em 22.02.2024, foi proferido despacho ao abrigo do disposto no art.º 652, nº 1, al. b), do NCPC, nos seguintes termos:

“Analisados os autos a fim de preparar a elaboração de projecto de acórdão, constatamos que foi fixado à causa o valor de € 72.798,17, por despacho datado de 27.02.2020, que não mereceu qualquer impugnação.

Foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a acção e a condenar, para além do mais, a 1.ª ré BB a pagar ao autor a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros).

Esta ré veio interpor recurso da sentença, mas não fez qualquer referência no requerimento de interposição de recurso ao valor da sucumbência, para efeitos do disposto no art.º 12.º, n.º 2, do RCP, e apenas comprovou o pagamento de € 102,00 de taxa de justiça.

Ou seja, procedeu ao pagamento de um valor inferior ao da taxa de justiça devida pela interposição de recurso, atento o valor fixado à causa. [...]

Isto posto, necessário é concluir que a 1.ª ré não pagou a taxa de justiça devida pelo recurso no momento definido, pois o pagamento de um valor inferior ao devido equivale à falta de comprovação do pagamento, conforme determina o n.º 2 do art.º 145.º do NCPC.

E, assim sendo, previamente à admissão do recurso, deveria ter sido cumprido – ou sido ordenado o cumprimento – do disposto previsto no supra citado art.º 641º, n.º 1, do NCPC, o que manifestamente não foi feito.

De todo o modo, tendo em consideração que a decisão que admitiu o recurso não nos vincula (cfr. art.º 641.º, n.º 5, do NCPC), impõe-se, pois, ordenar agora, nesta sede e antes de mais, que a secretaria notifique a 1.ª ré para, em 10 dias, efectuar o pagamento omitido, acrescido de multa de igual montante, mas não superior a 1 Uc nem superior a 5 Uc.

Pelo exposto, e ao abrigo das normas citadas e do disposto no art.º 652º, nº 1, als. b) e d), do NCPC, ordena-se a notificação da aludida recorrente (1.ª ré) nos termos e para os efeitos previstos no art.º 642.º, n.º 1, do mesmo compêndio legal.

Notifique.”

Regularmente notificada, veio a 1.ª ré/recorrente reclamar do aludido despacho, requerendo a reforma do mesmo, a decidir em conferência [...].

b) Decidindo em conferência a reclamação apresentada pela 1.ª Ré, a Relação pronunciou-se, no acórdão acima referido, no seguinte sentido:

"Como já delimitamos, a única questão que importa agora conhecer é a de saber se o disposto no art.º 642.º, n.º 1, do NCPC foi devidamente aplicado no caso, averiguando previamente das consequências da falta de indicação do valor do recurso pela ré/recorrente BB.

A reclamante, embora reconhecendo que, aquando da interposição do recurso e da apresentação das alegações, não procedeu à indicação do valor da sucumbência, defende não só que o podia fazer posteriormente, mas também que deveria ter sido notificada para tal.

Mais defende que o valor da sucumbência a ter em consideração é o valor de € 5.000,00, tendo liquidado correctamente a taxa de justiça devida pela interposição do recurso, ou caso assim não se entenda, dever-se-á ter em consideração para tal efeito o valor de € 32.152,50, indicado pela co-ré no respectivo recurso. [...]

Ora, no caso, a recorrente, ora reclamante, no requerimento de interposição de recurso exarou que pretendia interpor recurso da sentença que julgou parcialmente procedente a acção e condenou as rés em determinadas quantias, pugnando pela absolvição das rés das quantias em quem foram condenadas.

Daqui decorre evidente que, se por um lado, a recorrente não pretende impugnar a sentença apenas relativamente à parte em que foi condenada na quantia de € 5.000,00, por outro, esta tomada de posição será suficiente para delimitar o valor da sucumbência -- e, portanto, do recurso -- no valor global das quantias em que as rés foram condenadas, ou seja, no montante de € 32.152,50, como a própria reclamante acaba por admitir (cfr. artigos 6.º, 7.º e 12.º da reclamação em apreço). 

Com efeito, como vimos, a mesma não se limitou a pedir a revogação da sentença na parte em que a condenou, tendo pugnado pela revogação integral da sentença e pedido a absolvição de ambas as rés (diga-se, aliás, que a ré/reclamante tem evidente interesse em pugnar pela absolvição da ré seguradora, visto que a condenação desta tem como fundamento a conduta ilícita daquela). 

E, assim sendo, forçoso é assentar, como se fez no despacho ora em crise, que a recorrente em causa liquidou a taxa de justiça devida pela interposição do recurso em montante inferior ao devido, sendo aplicável ao caso o disposto no art.º 642.º, n.º 1, do NCPC, conforme também ali determinado e pelas razões aí expressas que nos escusamos de repetir.

Todavia, à luz dos princípios da proporcionalidade e da justiça processual e material, considera-se ajustado que, no caso, seja tomado em consideração não o valor da acção, mas apenas o valor de € 32.152,50, para efeitos de fixação do valor do recurso, a que corresponde a taxa de justiça de apenas € 306,00.

Destarte e sem necessidade de outros considerandos, procede a reclamação, mas tão só nesta medida e, em consequência, determina-se que se proceda a nova liquidação da taxa de justiça e consequente emissão de guia, atendendo ao referido valor do recurso, no montante de € 32.152,50."

3. Salvo o devido respeito, o acórdão da Relação não prima pela felicidade.

A parte recorrente (1.ª Ré) foi condenada a pagar € 5.000, mas a Relação acabou por atribuir ao recurso por ela interposto o valor de € 32.152,50. Importa perceber como se chegou a esta conclusão.

4. A justificação adiantada pela Relação para que o recurso de uma parte que foi condenada a pagar € 5.000 tenha afinal o valor de € 32.152,50 foi a de que "a recorrente não pretende impugnar a sentença apenas relativamente à parte em que foi condenada na quantia de € 5.000,00", ou seja, também pretende impugnar as condenações da 2.ª Ré.

Diferentemente do que parece entender a Relação, a possibilidade de um recorrente impugnar condenações de outras partes não é nada evidente. Bem muito pelo contrário, dado que a parte tem legitimidade para recorrer de uma decisão que lhe é desfavorável (art. 631.º, n.º 1, CPC), mas só em certas situações tem legitimidade para impugnar decisões desfavoráveis a outras partes (art. 631.º, n.º 2, CPC).

Segundo parece, a Relação aplicou, embora sem o citar, o art. 631.º, n.º 2, CPC, dado que afirmou que "a ré/reclamante tem evidente interesse em pugnar pela absolvição da ré seguradora, visto que a condenação desta tem como fundamento a conduta ilícita daquela". Ter-se-ia exigido algo mais da Relação sobre este ponto.

5. a) Sempre que se afere o valor do recurso tem de se considerar o montante na qual a parte recorrente ficou vencida. Quando a parte foi condenada, o valor do recurso é, naturalmente, o montante no qual a parte recorrente foi condenada.

A este propósito cabe referir que não se pode assegurar que a Relação não tenha caído num equívoco. Segundo se percebe, a Relação aceita que o recurso possa ter um valor global correspondente à soma das diferentes condenações das partes, pelo que, como este valor é, no caso sub iudice, superior à alçada da 1.ª instância e ao valor mínimo da sucumbência, nada impede a admissibilidade dos vários recursos interpostos pela 1.ª Ré. 

Ora, é preciso não esquecer que, como resulta da decisão de 1.ª instância acima transcrita, foram formulados pelo Autor três pedidos: um deles foi deduzido contra a 1.ª Ré e dois outros contra a 2.ª Ré (pressupondo que a decisão que consta da al. c) da letra A corresponde a um pedido do Autor). Isto significa que a acção contém uma coligação passiva (que, como se sabe, é uma cumulação objectiva repartida por uma cumulação subjectiva). 

Nas situações de cumulação de pedidos, a pronúncia do tribunal é separada em relação a cada um daqueles pedidos e, por isso, também o recurso interposto dessa pronúncia é separado da impugnação de outras decisões. A decisões separadas correspondem necessariamente recursos separados, pois que os fundamentos da impugnação são sempre específicos para cada uma das decisões e o controlo a realizar pelo tribunal ad quem também é específico para cada uma das decisões impugnadas. Aliás, seria absurdo que o recorrente pudesse utilizar o valor de um dos pedidos cumulados (podendo, em última análise, nem sequer impugnar a decisão sobre ele) para recorrer da decisão sobre um pedido que, em si mesma, não satisfaz as condições constantes do art. 629.º, n.º 1, CPC. 

Nos casos de cumulação de pedidos (conjugada, ou não, com a coligação), o que é correcto é que a recorribilidade seja apreciada separadamente para cada um dos pedidos formulados e decididos pelo tribunal a quo. Pode recorrer-se de todas as decisões, mas também se pode recorrer apenas de uma ou de algumas delas. 
Sendo assim, não é aceitável que a apelação interposta pela 1.ª Ré tenha um valor global resultante da soma das condenações pronunciadas pelo tribunal de 1.ª instância.

b) Sendo assim, pode concluir-se o seguinte:

-- A condenação da 1.ª Ré em € 5.000 não admite recurso, dado que não se cumpre o disposto no art. 629.º, n.º 1, CPC (recordando-se que o valor da alçada dos tribunais de 1.ª instância é precisamente de € 5.000: art. 44.º, n.º 1, LOSJ));

-- O mesmo há que concluir quanto ao recurso da (algo enigmática) decisão que consta da al. c) da letra A, dado que o montante que pode ser considerado desfavorável à 2.ª Ré não excede os € 5.000 (como é claro, a condenação em juros nunca releva para a aferição da recorribilidade da decisão);

-- A única decisão que era recorrível era aquela que condenou a 2.ª Ré a pagar ao Autor a quantia de € 27.152,50. 

6. Do exposto resulta que, a pressupor-se que a 1.ª Ré tinha legitimidade para recorrer, ao único recurso por ela interposto que podia ser considerado admissível só poderia ser atribuído o valor de € 27.152,50.

MTS


03/12/2024

A prática do acto preclude a sua repetição durante a pendência do prazo?


1. Este pequeno apontamento pretende dar resposta ao seguinte problema: em que condições a prática de um acto pela parte preclude a repetição do acto durante a pendência do prazo de que essa parte dispõe para a sua realização?

Esta pergunta pressupõe que se trata de um acto que integra um procedimento e, portanto, para o qual a lei fixa um prazo para a sua realização. Como é claro, não importa cuidar de saber se a parte pode repetir um acto que, por não pertencer a um qualquer procedimento, nunca devia ter sido realizado e cuja prática constitui uma nulidade processual (art. 195.º, n.º 1, CPC). 

A resposta à pergunta acima formulada merece uma resposta distinta para duas diferentes situações.

2. Uma primeira situação a considerar é esta: o acto foi regularmente praticado e produziu efeitos em processo (acto constitutivo) ou foi deferido pelo tribunal (acto postulativo), mas a parte ainda dispõe de prazo para a sua prática. Nesta hipótese, a pergunta que se coloca é a seguinte: pode a parte voltar a praticar o acto, revogando assim o acto anterior? Num caso mais concreto: a parte que não esgotou o prazo de contestação pode voltar a apresentar uma nova contestação no prazo que a lei lhe concede para o efeito?

Não é impossível dar uma resposta positiva a esta questão -- o direito comparado demonstra-o (Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozessrecht (2018), § 71, 22) --, mas essa resposta contradiria uma orientação que se julga estar bem assente na prática forense portuguesa. Por isso a resposta é a seguinte: se a parte praticou regularmente um acto processual, não pode voltar a praticar o acto, mesmo que ainda dispusesse de prazo para o efeito e mesmo que visasse apenas completar, corrigir ou alterar o acto praticado. Assim, por exemplo, a parte que contestou ou que apresentou as alegações de recurso não pode voltar a apresentar nova contestação (mesmo que pretenda agora formular uma reconvenção que antes não deduzira) ou novas alegações (ainda que pretenda diminuir as decisões impugnadas).

3. Para além da situação anterior, há que considerar uma outra: a parte praticou o acto, mas o mesmo não produziu efeitos (acto constitutivo) ou não pôde ser deferido pelo tribunal (acto postulativo) por padecer de uma irregularidade ou da falta de um pressuposto subjectivo ou objectivo. Nesta hipótese, a pergunta é a mesma que acima se colocou: depois de sanar a irregularidade ou a falta do pressuposto do acto, a parte pode voltar a praticar o acto dentro do prazo de que ainda dispõe?

Para uma situação distinta impõe-se uma resposta também distinta. Nesta última circunstância, nada impede que a parte repita o acto. No fundo, o que prevalece é a faculdade de a parte sanar a irregularidade ou a falta do pressuposto sobre a preclusão da repetição do acto. Se a parte tem prazo para a prática do acto, nada pode impedir que a parte o repita depois de sanar o vício de que o mesmo padecia. 
Por exemplo: (i) suponha-se que, na audiência final, a parte não apresenta o articulado superveniente de forma oral (art. 589.º, n.º 2, CPC); enquanto a audiência final não estiver encerrada, a parte pode apresentar, de novo, esse articulado respeitando o disposto neste preceito; (ii) admita-se que a parte requereu a prova por declarações (art. 466.º, n.º 1, CPC), embora sem indicar os factos sobre os quais a prova vai incidir (art. 466.º, n.º 2, e 452.º, n.º 2, CPC); enquanto a parte dispuser de prazo para o fazer (art. 466.º, n.º 1, CPC), a parte pode requerer, de novo, a prova por declarações.

A regra que importa enunciar é, pois, esta: durante o prazo para a realização de um acto, a parte pode repetir o acto, se a parte aproveitar a repetição para sanar uma irregularidade ou a falta de um pressuposto do acto. A solução é equilibrada, dado que não permite a repetição do acto com base num mero arrependimento da parte, mas aceita essa repetição se esta servir para sanar uma irregularidade ou a falta de um pressuposto do acto. Para procurar ser ainda mais claro: a justificação para a repetição do acto durante a pendência do prazo não é a mudança da vontade da parte, mas antes a criação das condições para que o acto possa produzir efeitos ou possa ser deferido. Se estas condições estiverem preenchidas, a repetição do acto é admissível e a parte pode, além de sanar o vício, completar, corrigir ou alterar o acto praticado; se essas condições não estiverem preenchidas, a repetição não é admissível e o que releva é o acto anterior.

Pode compreender-se que um acto que produziu efeitos (perante a contraparte e o tribunal) ou que foi deferido pelo tribunal não possa ser repetido. Mais difícil é compreender que um acto que não produziu efeitos, que não foi deferido ou que não está em condições de o ser por uma irregularidade ou pela falta de um pressuposto não possa ser repetido durante o prazo de que a parte dispõe para a sua prática.

MTS

Nota de actualização: no acórdão da RE de 21/11/2024 (1154/22.0T8EVR-E.E1) defende-se, em relação ao exercício do direito de remição por um terceiro, a orientação que, alguns dias depois, se propugnou no post.

23/10/2024

Afinal, havia dois bons caminhos para chegar a uma boa decisão (2)


Esclarecimento


O Senhor Desembargador que foi Relator do acórdão analisado no post intitulado "Afinal, havia dois bons caminhos para chegar a uma boa decisão" fez o favor de esclarecer que, apesar de tal não constar do relatório do acórdão, o proferimento deste foi antecedido da audição das partes.

Fica assim sem justificação a referência ao carácter de decisão-surpresa do acórdão que, sem conhecimento desse facto, se fez no post.

MTS

21/10/2024

Afinal, havia dois bons caminhos para chegar a uma boa decisão


1. O sumário de um acórdão de uma das Relações é o seguinte:

I - As partes podem confessar factos ou confessar o pedido, dispondo do direito, mas não podem confessar ou acordar a conclusão jurídica que está em discussão na acção.

II - Numa acção de responsabilidade civil as partes não podem acordar que a ré é responsável pelos danos que se vierem a provar e a acção prosseguir apenas para julgamento dos danos.

III - Se da fundamentação de facto da sentença não constam os factos atinentes aos restantes pressupostos da responsabilidade civil, a sentença deve ser anulada para ampliação da matéria de facto aos factos atinentes a esses pressupostos.

 
2. Para melhor se perceber o problema em causa, transcreve-se o essencial da fundamentação do acórdão:

"O presente recurso evidencia uma situação insólita que, com todo o devido respeito, não podia ocorrer.

A sentença recorrida, com efeito, não possui a fundamentação de facto necessária ao preenchimento dos pressupostos do instituto da responsabilidade civil que constitui o fundamento do pedido de indemnização. Não se alcança como foi possível proferir-se uma sentença a condenar a ré a pagar à autora uma indemnização com fundamento no artigo 483.º do Código Civil quando não existe na sentença absolutamente nenhum facto que permita o preenchimento dos requisitos do aludido instituto, com excepção apenas do requisito do dano.

É certo que na acta da audiência consta o seguinte: «foi acordado pelas partes, através dos seus ilustres mandatários presentes, de que a ré assume a obrigação de indemnização à autora por pelos danos a apurar e a liquidar na presente audiência que apresentem em nexo de casualidade adequada com o acidente em discussão nos autos».

Todavia, ao assinalarem isto os mandatários lavraram num manifesto erro, indevidamente tolerado pelo tribunal.

A lei permite às partes confessar factos (artigos 352.º e seguintes do Código Civil) ou confessar pedidos (artigo 283.º do Código de Processo Civil).

Também é possível o reconhecimento de qualidades jurídicas, mas isso apenas quando essas qualidades jurídicas não são precisamente o objecto do processo, nem são determinantes para a solução do caso.

O réu pode assim confessar factos ou confessar o pedido, dispondo do direito, mas não pode confessar a conclusão jurídica que está em discussão na acção.

Numa acção de responsabilidade civil, por exemplo, pode admitir-se que o réu reconheça que o autor é proprietário da coisa danificada, mas já não que o réu reconheça que a responsabilidade pelos danos provocados é sua. A responsabilidade pelos danos resultará sempre da aplicação do direito aos factos, o que é tarefa do tribunal.

Com efeito, desde que na sequência da instauração da acção e na falta de transacção das partes sobre o respectivo objecto, a decisão do conflito esteja confiada ao tribunal, como nessa tarefa o tribunal é livre (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), o tribunal não pode ser forçado pelas partes a tirar a conclusão jurídica que corresponde à interpretação de qualquer das partes ou de ambas. [...].

Não se compreende igualmente que na sequência daquela declaração feita para a acta o Mmo. Juiz a quo tenha, no relatório da sentença, escrito que «a assunção pela ré da obrigação de indemnizar a autora pelos danos decorrentes do acidente, cuja determinação será objecto de julgamento constitui uma confissão parcial do pedido. Considerando a disponibilidade do objecto e a qualidade da declarante, homologo a confissão parcial formulada em audiência, nos termos dos arts. 290.º, n.ºs 1 e 3, e 283.º, do CPC.» [...]

Nesse sentido, jamais o Mmo. Juiz podia fazer o que fez, ou seja, decidir que «não se pronunciar(ia) sobre a factualidade respeitante ao acidente e respectivo juízo de culpa e ainda a atinente ao contrato de seguro, limitando-se a apurar os danos decorrentes e respectivo nexo de causalidade com o acidente

Qual a consequência deste erro técnico-jurídico para efeitos do processo?

A consequência é a de que a sentença recorrida não possui a fundamentação de facto indispensável para permitir a esta Relação conhecer do objecto dos recursos. [...]

Quando a fundamentação de facto é insuficiente para a apreciação do mérito da causa em relação a algum dos pedidos, a Relação é obrigada a determinar a ampliação da matéria de facto, nos termos da alínea c) dos n.ºs 2 e 3 do artigo 662.º do Código de Processo Civil. [...]

Em suma, impõe-se anular a sentença recorrida para se proceder à indispensável ampliação da matéria de facto, procedendo-se à discussão e julgamento dos factos alegados pelas partes e atinentes aos restantes pressupostos do instituto da responsabilidade pelas consequências do acidente (o facto, a ilicitude, a culpa ou risco e o nexo de causalidade), elaborando-se de seguida sentença de cuja fundamentação."

 
3. a) Salvo o devido respeito, o acórdão lavra num equívoco e não esgotou as hipóteses de análise do problema.

O acórdão enquadrou a questão no âmbito da confissão de factos (art. 352.º ss. CC; art. 452.º ss. CPC), mas o que estava em causa era uma confissão parcial do pedido (art. 283.º, n.º 1, CPC), como, aliás, se entendeu na 1.ª instância. 

A Relação considera que assim não se pode entender com a seguinte argumentação:

"O pedido formulado pela autora não é «que a ré seja condenada a reconhecer que é responsável pelo pagamento de uma indemnização à autora». O pedido é o da «condenação da ré pagar-lhe a indemnização de 54.180,87 €, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal de 4% ao ano, desde a instauração da até pagamento, e a indemnização que vier a ser fixada em decisão ulterior ou em incidente de liquidação».

Na declaração dos mandatários registada na acta não há nenhuma confissão deste pedido, ainda que parcial, tanto mais que, inclusivamente, o que resulta dessa declaração é que a obrigação de pagamento da indemnização dependia ainda do que se viesse a provar quanto aos danos; ou seja, nem sequer é uma assunção em definitivo da responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização."

Salvaguardada toda a consideração, não se pode acompanhar esta argumentação. No processo em análise, ocorreu efectivamente uma confissão parcial do pedido, dado que a Ré confessou ser responsável pelos danos, ficando apenas por quantificar o seu montante. O que daqui resulta é que a confissão não é total, mas apenas parcial.

A seguir-se a orientação da Relação (que parece entender que a confissão parcial do pedido exige a confissão de uma parte quantificada do pedido), também não seria uma confissão parcial do pedido o reconhecimento pelo réu de que, tal como se formula no pedido, tem de entregar a habitação, se essa parte acrescentar que ainda não se completou o prazo para essa entrega
. Na orientação da Relação, quem queira confessar que tem de entregar uma coisa tem também de aceitar que a entrega é imediata; se não aceitar a entrega imediata, não há nenhuma confissão do pedido e o dever de entrega tem de ser averiguado na acção pendente.

Convém ainda recordar que, no processo pendente, o resultado que foi obtido com a confissão parcial do pedido também seria atingido se a Ré tivesse apenas impugnado os factos relativos aos danos e seus montantes, não se pronunciando sobre os factos relativos aos demais pressupostos da responsabilidade civil (que assim ficariam admitidos por acordo: art. 574.º, n.º 2, CPC). Porque é que a admissão por acordo de todos os factos relativos aos pressupostos da responsabilidade civil, com excepção daqueles que respeitam aos danos, não suscita nenhumas dúvidas, mas não se aceita que a ré confesse a parte do pedido que se refere a esses mesmos pressupostos?

Também não parece muito feliz a argumentação da Relação de que 

"O réu pode assim confessar factos ou confessar o pedido, dispondo do direito, mas não pode confessar a conclusão jurídica que está em discussão na acção".

Cabe perguntar: não é a confissão de uma conclusão jurídica o que ocorre em toda e qualquer confissão do pedido? Se o réu confessa o pedido de pagamento de uma dívida, não está a confessar uma "conclusão jurídica"? Pode até afirmar-se que é por aí que passa a diferença entre a confissão de factos e a confissão do pedido: (i) a confissão de factos não é a confissão de uma "conclusão jurídica", pois que o tribunal continua a ter a liberdade de qualificar o facto confessado (art. 5.º, n.º 3, CPC); (ii) a confissão do pedido é necessariamente a confissão de uma "conclusão jurídica" ("o autor é proprietário"; "sou devedor do autor"; "a dívida está paga"); é, aliás, isto que permite que o tribunal se limite a condenar "nos [...] precisos termos" da confissão realizada pelo réu (art. 290.º, n.º 3, CPC).

Do acórdão consta a seguinte afirmação:

"Se quiser assumir a responsabilidade, independentemente da sua culpa ou contra esta, o demandado poderá confessar o pedido ou os factos que o suportam, mas, nesta hipótese, fica sempre sujeito ao que for entendido como resultante da aplicação do direito aos factos confessados (que, independentemente da opinião das partes, podem ser ou não suficientes para alicerçar o juízo de responsabilidade formulado pelo autor)."

A interpretação da afirmação não é isenta de dificuldades, dado que não é claro se o "nesta hipótese" se refere apenas à confissão de factos ou também à confissão do pedido. Admitindo que a afirmação respeita apenas à confissão de factos, então, a contrario sensu, na confissão do pedido o demandado "não fica sempre sujeito ao que for entendido como resultante da aplicação do direito aos factos confessados" (o que, aliás, é absolutamente correcto). Só que isto é precisamente o contrário do que se defende no acórdão, como resulta do seguinte trecho dele constante:

"Numa acção de responsabilidade civil, por exemplo, pode admitir-se que o réu reconheça que o autor é proprietário da coisa danificada, mas já não que o réu reconheça que a responsabilidade pelos danos provocados é sua. A responsabilidade pelos danos resultará sempre da aplicação do direito aos factos, o que é tarefa do tribunal".

Não é difícil concluir que, se assim fosse, a confissão do pedido ficaria sem campo de aplicação. Note-se que não é impossível o tribunal da causa rejeitar a homologação de uma confissão do pedido por motivos relacionados com o próprio pedido. No entanto, isso só pode suceder nos raros casos em que o pedido seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes. Fora destes restritos casos, o tribunal deve homologar a confissão do pedido.

É claro que a confissão do pedido é um acto unilateral do réu que não necessita de nenhuma concordância do autor. A circunstância de, no caso concreto, a confissão do pedido ser apresentada como um acordo das partes não deve ser motivo de confusão. No fundo, o que as partes disseram foi que estão de acordo quanto à confissão parcial do pedido pela Ré. A formulação não é feliz, mas não isenta a Relação de interpretar o verdadeiro sentido jurídico da afirmação.

b) Em conclusão: salva a devida consideração, nada havia a censurar na totalmente defensável sentença recorrida.

4. Pode admitir-se que a Relação não se sentisse confortável com o enquadramento do caso sub iudice na confissão parcial do pedido. Havia então um outro enquadramento que a Relação devia ter considerado.

Recorde-se que, segundo se transcreve no acórdão, 

«foi acordado pelas partes, através dos seus ilustres mandatários presentes, de [sic] que a ré assume a obrigação de indemnização à autora por pelos danos a apurar e a liquidar na presente audiência que apresentem em nexo de casualidade adequada com o acidente em discussão nos autos».

Não é impossível interpretar esta afirmação como referida a um contrato probatório, em concreto como um contrato probatório sobre o objecto da prova: as partes acordam sobre o que consideram assente e, portanto, não carecido de prova e sobre o que entendem controvertido e, portanto, necessitado de prova. Nada no disposto no art. 345.º CC obsta à validade desse contrato.

A favor da validade deste contrato está certamente a circunstância de nada impedir que as partes tivessem celebrado esse mesmo contrato probatório antes da instauração da acção. Certamente ninguém diria que esse contrato celebrado antes da pendência da causa não seria válido por "
o tribunal não pode[r] ser forçado pelas partes a tirar a conclusão jurídica que corresponde à interpretação de qualquer das partes ou de ambas".


5. O resultado prático do acórdão -- a baixa do processo à 1.ª instância para que nesta se amplie a matéria de facto "no que respeita aos factos essenciais alegados pela autora nos artigos 1.º a 115.º da petição inicial" -- também é bastante discutível. Vai-se obrigar a 1.ª instância a proceder ao julgamento de matéria de facto sobre a qual as partes estão de acordo? Não é isso um bom exemplo de desperdício de recursos?

Se as partes mantiverem o espírito de colaboração, a situação pode ser "salva" através da confissão pela Ré dos factos respeitantes aos pressupostos da responsabilidade civil, com excepção daqueles que se referem à quantificação dos danos. Em todo o caso, trata-se de um expediente que apenas se torna necessário, porque a Relação esteve longe de ser feliz na decisão que proferiu.

Convém ainda referir que o recurso principal da Ré e o recurso subordinado da Autora se referem exclusivamente a questões relacionadas com a quantificação dos danos. O acórdão da Relação conclui pela anulação do julgamento da matéria de facto realizado em 1.ª instância, algo que não é referido em nenhum dos recursos interpostos por ambas as partes. Isto significa que as partes foram verdadeiramente surpreendidas (e talvez não só em termos jurídicos) com uma decisão com que não podiam contar. Como não consta do acórdão que as partes tenham sido previamente ouvidas sobre a referida nulidade, o acórdão da Relação constitui uma decisão-surpresa e, consequentemente, é nulo por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), e 666.º, n.º 1, CPC).

MTS

02/10/2024

Acção popular e "processo estrutural"


1. Foi recentemente divulgado o acórdão do STJ de 19/9/2024 (28650/23.0T8LSB.S1)cujo sumário é o seguinte:

I - O pedido de condenação do Estado Português a adoptar as medidas necessárias e suficientes para assegurar, em relação aos valores de 2005, uma redução até 2030 de, pelo menos, 55% da emissão de gases de efeito de estufa (não considerando o uso do solo e florestas), as quais devem ser especificadas e calendarizadas no prazo de três meses a contar da data em que a sentença produza efeitos, é um pedido genérico, mas não ininteligível.

II – Recai sobre as autoras o ónus de o concretizar, visto que este pedido não se ajusta a nenhum dos casos em que é permitido formular pedidos genéricos (alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 556.º do CPC) e não é sobre o demandado que impende tal ónus.

O acórdão foi proferido no âmbito de uma acção popular proposta por três associações contra o Estado português.

2. a) Não cabe neste momento analisar o acórdão do STJ, mas antes chamar a atenção para a particularidade da acção popular que se encontra pendente. Note-se que não se procede a nenhuma apreciação sobre o mérito da acção. Do que agora se trata é apenas de saber como, numa perspectiva processual, se deve encarar a referida acção (algo que constitui, se assim se pode dizer, uma questão prévia) e como, na hipótese de a mesma passar da fase liminar em que se encontra, se deve enfrentar os problemas que ela suscita.

A acção popular agora pendente corresponde ao que, na terminologia da doutrina brasileira, se chama um "processo estrutural". Na opinião de três abalizados Autores (e Colegas), para se compreender o que é um "processo estrutural", há que ter presente, antes de tudo o mais, a noção de "problema estrutural":

"O problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada – uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação)" (Didier Jr., F./Zanetti Jr., H./Alexandria de Oliveira, R., Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro, RMPRJ 75 (2020), 104).

Nesta base, sobre o "processo estrutural" é afirmado o seguinte: 

"O processo estrutural se caracteriza por: (i) pautar-se na discussão sobre um problema estrutural, um estado de coisas ilícito, um estado de desconformidade, ou qualquer outro nome que se queira utilizar para designar uma situação de desconformidade estruturada; (ii) buscar uma transição desse estado de desconformidade para um estado ideal de coisas (uma reestruturação, pois), removendo a situação de desconformidade, mediante decisão de implementação escalonada; (iii) desenvolver-se num procedimento bifásico, que inclua o reconhecimento e a definição do problema estrutural e estabeleça o programa ou projeto de reestruturação que será seguido; (iv) desenvolver-se num procedimento marcado por sua flexibilidade intrínseca, com a possibilidade de adoção de formas atípicas de intervenção de terceiros e de medidas executivas, de alteração do objeto litigioso, de utilização de mecanismos de cooperação judiciária; (v) e, pela consensualidade, que abranja inclusive a adaptação do processo (art. 190, CPC)" (Didier Jr., F./Zanetti Jr., H./Alexandria de Oliveira, R.RMPRJ 75 (2020), 107 s.).

b) O interesse da doutrina brasileira pela matéria relativa aos processos estruturais não é de admirar. No fundo, trata-se de uma evolução lógica a partir da tutela colectiva, um instituto que a doutrina brasileira muito estudou e fez avançar. Depois da tutela colectiva, os processos estruturais poderão vir a ser a segunda contribuição brasileira significativa para a evolução, a nível mundial, do processo civil.

3. Perante o que acima se descreveu, é fácil concluir que a acção popular agora pendente constitui para o sistema processual civil português um verdadeiro stress test. Perante uma acção popular que não é "como as outras", está lançado um verdadeiro desafio a esse sistema processual. 

Como já se referiu, o mais importante, neste momento, é saber enquadrar devidamente a acção popular. Trata-se de reconhecer que a acção popular agora pendente tem características que a distinguem das comuns acções populares. Uma vez que a acção ainda se encontra numa fase liminar, ainda se está a tempo de reconhecer as suas especificidades. Lembre-se que, no regime processual português, não há nenhuma regra de tipicidade das acções que podem ser propostas nos tribunais (e dos pedidos que nelas podem ser formulados).

Enquadrada a acção popular atendendo às suas características essenciais, é então que surgem os verdadeiros problemas. No entanto, não se pode dizer que o sistema processual civil português se encontra "desarmado" perante esses problemas. Se é verdade que se pode encontrar pouco apoio na actual (e, entretanto, "envelhecida") Lei da Acção Popular, também é verdade que o juiz da acção popular tem ao seu dispor o poder de gestão processual (consagrado no art. 6.º, n.º 1, CPC) e o poder de adequação formal (estatuído no art. 547.º CPC). Sem querer fazer futurologia, será praticamente impossível que a acção popular pendente possa vir a tramitar sem um forte recurso a esses poderes do tribunal (de preferência, utilizados em constante diálogo com as partes).

Como acima se disse, não cabe agora averiguar as possibilidades de êxito da acção popular pendente. Importa referir, no entanto, que, numa época em que se tem assistido a um claro abuso no recurso à acção popular, a acção agora pendente, qualquer que venha a ser a decisão sobre o seu mérito, volta a dignificar o instituto.

4. A temática dos processos estruturais no âmbito do processo civil não é nova na bibliografia disponível em Portugal. Pedindo-se antecipadamente desculpa por qualquer falha, divulga-se a seguinte bibliografia:

-- Costa e Silva, P., Perturbação dos contratos e processo estrutural, Ius Dictum 01 (2020), 5
 
-- Fernandez, E., Teoria das Decisões Estruturantes: Primeira Aproximação, Ius Dictum 06 (2022), 33

-- Fernandez, E., A segunda aproximação aos processos estruturais – Fundamentos iniciais para um contencioso de políticas públicas, Ius Dictum 09 (2023), 33

-- Vitorelli, E., A resolução estrutural de litígios: uma nova fase do processo civil coletivo brasileiro, Ius Dictum 09 (2023), 27

MTS 

27/09/2024

"As outras nulidades da sentença cível" -- resposta a uma crítica


1. Foi recentemente publicado na revista Julgar Online um artigo do Des. Paulo Ramos de Faria e do Dr. Nuno de Lemos Jorge intitulado "As outras nulidades da sentença cível". O artigo estabelece um diálogo profundo, além do mais, com a minha orientação sobre o regime das decisões-surpresa.

Os Autores -- que, aliás, me dirigem muito simpáticas palavras -- tiveram ainda a amabilidade de me enviar o texto do artigo antes da sua publicação. As linhas que se seguem retomam e desenvolvem (embora apenas na medida do indispensável) a resposta que então enviei aos Autores. 

2. Vou começar por uma memória pessoal. Eu não tive nenhuma intervenção na Reforma de 1995/1996, mas participei em várias sessões de divulgação da Reforma por esse país fora. Numa delas, fui mesmo apelidado de "eminência parda da Reforma" (coisas como esta nunca se esquecem!).

A matéria das decisões-surpresa era, naturalmente, um tema obrigatório nessas sessões e cedo comecei a ouvir que a violação do disposto no art. 3.º, n.º 3, CPC/61 originava uma nulidade processual inominada (art. 201.º, n.º 1, CPC/61). De imediato me pareceu que não podia ser assim, dado que isso originava que, antes de interpor qualquer recurso da decisão, havia que, primeiro, invocar a referida nulidade perante o tribunal que tinha proferido a decisão-surpresa (art. 202.º CPC/61). Como é claro, na perspectiva pragmática de que não faz sentido defender soluções sem sentido prático, a complicação era inaceitável.

A alternativa estava à vista: o vício tinha de ser analisado na perspectiva da decisão-surpresa e como um vício inerente à própria decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é, ela própria, uma decisão viciada, pelo que há que estudá-la, não na perspectiva da consequência da nulidade processual decorrente da omissão de um contraditório prévio, mas antes na óptica de uma decisão que padece de um vício próprio. Como abaixo se referirá, há que considerar a distinção entre o vício que afecta a sentença como trâmite e o vício que a atinge como acto.

Porque o vício respeita à decisão, o problema a enfrentar era a taxatividade do disposto no (então) art. 668.º CPC/61. A solução foi a de qualificar a decisão-surpresa como uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 668.º, n.º 1, al. d), CPC/61), dado que nenhuma outra das nulidades (nominadas) da sentença parecia aplicável. O modo de impugnação da decisão-surpresa (recurso ou reclamação) era então determinado pelo disposto no art. 668.º, n.º 4, CPC/61.

Embora mantendo sempre a posição inicial, ao longo dos tempos fui procurando aperfeiçoar no Blog a minha posição. O enquadramento legal só permitia uma solução, mas importava procurar encontrar a melhor justificação para a enquadrar no disposto no actual art. 615.º CPC (correspondente ao art. 668.º CPC/61). Uma coisa são diferenças de opinião (que se combatem com argumentos), outra coisa são "ilogicidades processuais" (que se combatem sem mais). Foi uma destas "ilogicidades" que motivou o post "Por que se teima em qualificar a decisão-surpresa como uma nulidade processual?

Importa acrescentar que, para o estudo do problema das decisões-surpresa não é fácil encontrar apoio no direito comparado. Isso sucede, não porque as decisões-surpresa sejam desconhecidas de outras ordens jurídicas (art. 101 c.p.c.; § 139 (2) ZPO; § 182a öZPO), mas antes porque não se encontra nesse direito nada de semelhante ao disposto no art. 668.º CPC/61 (actual art. 615.º CPC), o que, como bem se compreende, faz toda a diferença. Nomeadamente, na Alemanha as decisões-surpresa são impugnadas em recurso (Berufung, Revision) como uma (qualquer) decisão que contém um Verfahrensmangel decorrente da violação do direito das partes à sua audição prévia (por exemplo, MüKommZPO/Fritsche (2020), § 139, 41) É coerente (e tem até implicações constitucionais), mas não tem nada a ver com o que se passa no ordenamento processual português.

3. a) Passa-se agora a analisar a orientação que os Autores propõem no seu artigo. As divergências estendem-se a outros pontos da sua orientação, mas vou concentrar-me no essencial e deixar de lado o acessório.

Começo pelos pontos de convergência (que não deixam de ser significativos):

-- O vício de que padece a decisão-surpresa é um vício próprio desta decisão: "Não existe nenhuma irregularidade processual prévia à prolação da decisão-surpresa" (2.-2.1.); "Inexiste omissão de contraditório prévio à decisão; o que existe é uma decisão sem o contraditório prévio devido" (2.-2.1.; também 2-2.3.1.); foi sempre a posição que se defendeu no Blog;

-- "No processo civil, não existem «irregularidades retroativas», designadamente omissões retroativas" (2.-2.1.); também se defendeu a mesma orientação no Blog.
 
Terei, no entanto, de voltar a estes pontos, porque, se bem compreendi a posição dos Autores, estes acabam por abandonar estes postulados a favor da qualificação da decisão-surpresa como uma decisão que é nula por padecer da nulidade processual inominada estabelecida no art. 195.º, n.º 1, CPC.

b) Segundo se julga ter percebido, os principais argumentos dos Autores são o de que a decisão-surpresa decorre de um erro no "julgamento pressuponente" sobre a "decisão de decidir" (1.-1.6., 1.-1.9., 2.-2.3., 2.-2.3.1., 2.-2.3.2. e 3.-3.2; também 4.-1.1.) e o de que a decisão-surpresa contém um erro julgamento processual, que os Autores qualificam como um "erro na decisão de decidir" (4.-3.7.). 

O problema é que, no direito processual civil português, há uma diferença legal (e não apenas doutrinária) entre a decisão que padece de um error in iudicando -- que é a que contém um erro na decisão -- e a decisão que contém um error in procedendo -- que, em minha opinião, é precisamente o que acontece quando, para utilizar a (feliz) expressão dos Autores, há um "erro na decisão de decidir".

O sistema português não é unitário, mas antes dual, dado que impõe que se distinga, nomeadamente, entre uma pronúncia errada (erro na decisão) e uma omissão ou excesso de pronúncia ou uma pronúncia ultra petitum ("erro na decisão de decidir"). Tome-se como exemplo a apreciação de uma questão de competência jurisdicional. Uma coisa é o tribunal apreciar a questão da competência e (eventualmente) decidi-la mal: trata-se de um error in iudicando; outra coisa é o tribunal não apreciar a questão da competência que devia ter apreciado; trata-se de um error in procedendo (omissão de pronúncia).

Quer dizer: o sistema processual português opera com uma solução dual que distingue entre o que é decidido (bem ou mal) e o que é decidido (necessariamente mal) quando não pode ser decidido ou o que não é decidido (novamente, necessariamente mal) quando devia ter sido decidido.

4. a) A distinção entre o error in iudicando e o "erro na decisão de decidir" -- e, portanto, a impossibilidade de reconduzir este erro àquele error -- não devia suscitar nenhumas objecções. Sempre que um qualquer órgão tem uma competência decisória, pode ocorrer um error in iudicando -- quando o órgão decide mal -- ou um "erro na decisão de decidir" -- quando o órgão entende que tem competência para decidir (quando a não tem) ou quando esse órgão entende que não tem de decidir (quando não pode deixar de decidir). No fundo, a diferença é entre o erro decorrente do exercício do poder de decisão (error in iudicando) e o erro sobre o próprio poder de decisão ("erro na decisão de decidir"). Uma coisa é exercer mal um poder que se tem; outra é exercer um poder que não se tem ou deixar de exercer um poder que se tem de exercer.

A distinção entre o erro na decisão e o "erro na decisão de decidir" também não é alheia à vida quotidiana. Suponha-se que um cinéfilo vai ver um filme, porque está convencido de que o filme ganhou o Oscar da melhor canção; depois disso, o cinéfilo verifica que estava em erro sobre o filme que tinha ganho o Oscar; trata-se de um erro na decisão (error in iudicando). Suponha-se agora que um grupo de cinéfilos combina que todos os meses vão ver juntos um filme e que este será escolhido rotativamente por um dos membros do grupo; um destes membros informa os demais do filme do mês que escolheu; sucede, no entanto, que esse membro está em erro sobre a sua vez, dado que, nesse mês, não lhe cabe a escolha do filme; noutros termos, esse membro está em "erro na decisão de decidir".

b) Ilustrando com a observância do contraditório e, em especial, com o disposto no art. 3.º, n.º 3, CPC sobre o contraditório prévio, a dualidade constituída pelo error in iudicando e pelo error in procedendo implica o seguinte:

-- Uma coisa é o tribunal decidir que a questão já se encontra suficientemente discutida entre as partes e dispensar qualquer outro contraditório; neste caso, sucedem duas coisas: há um (eventual) error in iudicando e não há qualquer decisão-surpresa;

-- Outra coisa é o tribunal não se pronunciar sobre o exercício do contraditório e decidir a questão (processual ou material): neste caso, também sucedem duas coisas, mas totalmente diferentes: há um error in procedendo e há uma decisão-surpresa.

Do sumariamente referido já se pode concluir onde reside a minha objecção à construção dos Autores: ela dá a mesma solução a duas situações que o sistema processual impõe que se considerem distintas. Em concreto: a omissão da concessão do exercício do contraditório às partes não é tratada da mesma forma que a pronúncia errada sobre o exercício desse contraditório. Recorrendo à terminologia dos Autores: o sistema processual impõe precisamente uma distinção entre o erro na decisão e o "erro na decisão de decidir" (que, aliás, é uma óptima expressão quando utilizada em referência às nulidades da sentença).

5. a) Comungando do ponto de partida dos Autores de que a decisão-surpresa é um vício próprio e autónomo e de que não há "irregularidades retroativas", não é sem surpresa que se vê os Autores aceitarem a conjugação da decisão-surpresa com a nulidade processual inominada estatuída no art. 195.º, n.º 1, CPC (1.-1.6. e 2.-2.3.1.: "[...] o ato decisório praticado em violação do disposto na segunda parte do n.º 3 do art. 3.º, é um ato que a lei não admite, em si mesmo. Podendo esta viciação influir no exame ou na decisão da causa, a sua subsunção à fatispécie do n.º 1 do art. 195.º não deve merecer grandes reservas [...]"). 

O caminho trilhado pelos Autores fica assim claro, mas, com toda a consideração, levanta muitas dificuldades:

-- A decisão-surpresa é uma decisão que padece de um "erro na decisão de decidir", que os Autores identificam com um error in iudicando;

--
Quando se pensava que o problema estava resolvido, eis que se descobre que, afinal, a decisão-surpresa é uma decisão nula porque preenche uma das previsões da regra constante do art. 195.º, n.º 1, CPC.

Os Autores justificam esta combinação referindo que, "[e]m suma, a decisão-surpresa encontra-se viciada por um error in procedendo e compreende um error in judicando" (2.-2.3.1.). Salvo o devido respeito, trata-se de uma afirmação que em nada clarifica a análise do problema, dado que o error in procedendo e o error in iudicando não podem incidir sobre o mesmo vício, sob pena de, para além do mais, se retirar qualquer espaço para a generalidade das nulidades da sentença referidas nos art. 615.º, n.º 1, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC.

b) A indecisão sobre a qualificação da decisão-surpresa pelos Autores torna-se patente quando os mesmos tratam da forma de impugnação dessa decisão:

-- "A prevalência da apelação como meio impugnatório [...] explica que a decisão-surpresa não caia inevitavelmente nas malhas do regime de arguição previsto no art. 195.º e seguintes, quando o recurso é admissível. Desta decisão cabe recurso (normal) por error in judicando no julgamento pressuponente (a decisão de decidir)" (2.- 2.3.2.; também 4.-2.1.);

-- "Não sendo a decisão recorrível, por a causa o não admitir, cessa o concurso aparente de meios de impugnação, sendo aplicável sem dificuldade o regime da nulidade (art. 195.º e segs.), podendo a parte prejudicada dela reclamar para o juiz do processo (art. 197.º)" (2.-2.3.2.; também 4.-2.2.).

Salvo o devido respeito, o vício de que padece a decisão -- error in iudicando ou nulidade processual -- não pode ser distinto em função do respectivo meio de impugnação. O correcto é precisamente o contrário: o meio de impugnação da decisão-surpresa é definido em função do vício de que a mesma padece. Assim, se a decisão-surpresa é nula porque preenche o estabelecido no art. 195.º, n.º 1, CPC, tem de se ser coerente e extrair todas as consequências (também ao nível do modo de impugnação) que decorrem dessa qualificação.

c) Apenas um apontamento suplementar. Como bem acentuam os Autores, eu não entendo que toda a decisão proferida sem a audição prévia das partes é uma decisão-surpresa. Se (num exemplo meramente académico), o juiz decide a reconvenção deduzida pelo réu antes de o autor poder ter apresentado a sua réplica, essa sentença é efectivamente nula nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC, dado que é proferida num momento da tramitação em que tal não é permitido. Em contrapartida, a posição dos Autores conduz a identificar, ao nível do enquadramento jurídico, uma decisão que é proferida quando a lei não o permite com uma decisão que é proferida no momento legalmente estabelecido, mas que, atendendo à falta de audição prévia das partes, conhece de matéria de que não podia conhecer. 

A verdade é que a melhor solução é aquela que não confunde um problema relativo à decisão como trâmite (nulidade processual) com um problema respeitante à decisão como acto (nulidade da decisão). Aliás, só esta distinção permite autonomizar as nulidades da sentença das nulidades processuais, o que também impede que, ao contrário do que é defendido pelos Autores, se possa entender que o que não "cabe" nas nulidades da sentença enunciadas nos art. 615.º, n.º 1, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC possa "caber" nas nulidades processuais inominadas reguladas no art. 195.º, n.º 1, CPC. As nulidades processuais não constituem o género do qual as nulidades da sentença são uma espécie, pelo que não se pode transitar entre umas e outras.

6. O artigo em análise constitui o estudo mais completo e mais profundo sobre a problemática das decisões-surpresa realizada pela doutrina (ou pela "jurisprudência"?) portuguesa. 

No entanto, para além do que acima se referiu e sem querer utilizar um argumento ad terrorem, a construção dos Autores sobre a recondução do "erro na decisão de decidir" a um erro de julgamento, a ser transposta para outras situações previstas no art. 615.º, n.º 1, CPC, conduziria a suprimir muitas das nulidades da sentença. Afinal, não é verdade que, a propósito, da omissão de pronúncia, do excesso de pronúncia ou do julgamento ultra petitum se pode dizer que ocorre um erro de julgamento em matéria processual no sentido que os Autores dão a esta expressão, ou seja, no de um "erro na decisão de decidir"?

O artigo leva a pensar e a repensar a problemática das decisões-surpresa, mas, em minha opinião, não abala a solução coerente e simples que tenho vindo a defender: a de que a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC). Além disso, a divergência defendida pelos Autores no referido artigo em nada se reflecte em termos práticos, dado que a dualidade de modos de impugnação da decisão-surpresa -- o recurso, quando admissível, ou a reclamação, quando o recurso não for admissível -- coincide totalmente com aquela que resulta da caracterização da decisão-surpresa como uma decisão nula por excesso de pronúncia e da consequente aplicação do disposto no art. 615.º, n.º 4, CPC.

Em suma: em comparação com a orientação que venho defendendo, aquela que é preconizada pelos Autores do artigo tem uma muito discutível fundamentação teórica e acaba por fornecer uma solução que, em termos práticos, em nada difere daquela venho propondo.


MTS