"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/07/2022

Informação (288)


Interrupção das publicações regulares


Como é habitual, o Blog interrompe a partir de hoje as publicações regulares, prevendo-se a sua retoma em Setembro.

MTS


Jurisprudência 2022 (13)


Decisão-surpresa;
consequências


1. O sumário de RL 27/1/2022 (2625/21.1T8CSC-2) é o seguinte:

I– Para suprir a falta de autorização do requerido para que seja intentado um processo de acompanhamento, o juiz, previamente, tem de o ouvir pessoal e directamente, sempre que tal não se mostre impossível.

II– O exercício do contraditório realizado através da citação para os pedidos não é o mesmo que a audição prévia, pessoal e directa do requerido.

III– A falta dessa prévia audição acarreta uma nulidade processual, porque a falta dela implica a falta de um acto que a lei prescreve para que seja proferida decisão sobre o suprimento, pressupondo a importância da audição do requerido para o efeito, e por isso é presumido poder influir na decisão da causa (art. 195/1 do CPC).

IV– Essa nulidade processual tem de ser arguida dentro do prazo de 10 dias a contar do seu conhecimento (artigos 199 e 149 do CPC), embora se tenha vindo a admitir, com assumida falta de rigor, que as nulidades processuais, de que a parte só teve conhecimento com a notificação da decisão judicial que a consome, possam ser arguidas no prazo de recurso dessa decisão e com o recurso da mesma.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dois dos objectivos da reforma do regime das incapacidades foram, segundo Menezes Cordeiro, a primazia da autonomia do visado, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até aos limites do possível, e a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado (em Código Civil Comentado, I, CIDP/FDUL, Almedina, 2020, páginas 392-393).

Por força disso, o requerimento inicial é comunicado ao requerido que lhe pode responder (arts. 895 e 896 do CPC) e, a nível das diligências de prova, o juiz, em qualquer caso, deve proceder sempre à audição pessoal e directa do requerido, deslocando-se, se necessário, ao local onde ele se encontre, o que, para além do mais, visa averiguar a sua situação (arts. 897 e 898 do CPC).

Daqui decorre desde logo, entre o mais, que o contraditório, cumprido com a citação e resposta do requerido, não é o mesmo que a, nem equivale à audição prévia, pessoal e directa do requerido, pelo que a justificação dada pelo tribunal recorrido, a posteriori, para a falta de audição prévia não está certa.

Menezes Cordeiro comentando o disposto no art. 897/2 do CPC, diz, entre o mais, que “O contacto pessoal com o juiz é decisivo, revogando-se [a norma do CPC antes da reforma de 2013] que o dispensava em certos casos. Se o beneficiário estiver internado ou em casa, impedido de se deslocar, o tribunal irá até ele, para se inteirar da situação e confirmar o que lhe seja dito” (obra citada, pág. 396). E mais à frente (pág. 397), em relação à norma do art. 898 do CPC, acrescenta: “A reforma pretendeu […] dar, ao juiz, um máximo de informação para decidir em consciência, em prol do beneficiário.

Por outro lado, o suprimento da falta de autorização pode ocorrer ou “quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal se considere existir um fundamento atendível” (art. 141 do CC).

Note-se que esta norma rege para a decisão do suprimento, não para a dispensa da audição prévia, pessoal e directa, dispensa que, em princípio a lei não permite, embora, natural e logicamente, não a possa impor quando ela for impossível.

Como diz, Miguel Teixeira de Sousa, “[…] Trata-se de um meio de prova que é obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (art. 139/1 do CC; art. 897/2 do CPC), dado que, por razões facilmente compreensíveis, se pretende assegurar que o juiz tem conhecimento efectivo da real situação em que se encontra o beneficiário. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e directa não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art. 6/1 do CPC) e de adequação formal (art. 547 do CPC), não deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição” (O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, de 11/12/2018, em O novo regime jurídico do maior acompanhado, CEJ, 1ª edição, 14/02/2019, página 41).

De qualquer modo, em relação ao suprimento do consentimento, diz Menezes Cordeiro: “O preceito fixa o primado da vontade do acompanhado: está em causa um benefício, de que ele pode ou não querer prevalecer-se. Todavia, em certas situações (anomalia congénita grave, acidente cerebral profundo, depressão total, coma, dependência avançada), o interessado não está em condições de dar uma autorização consciente. A lei poderia enumerar as circunstâncias que possam levar a esse suprimento. A tarefa seria ingrata: ficariam hipóteses de fora sendo que, no fundo, tudo depende do prudente arbítrio do juiz” (obra citada, página 400).

E Miguel Teixeira de Sousa a propósito destas normas (as que se tiram do art. 141 do CC), numa passagem frequentemente citada (e que também o foi pela decisão recorrida), diz: “Isto significa que cabe sempre ao tribunal controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário. [… O qual] deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização” (obra citada, página 38).

Pelo que é possível tirar desta norma o reforço do princípio de que a audição prévia, pessoal e directa, deve ocorrer para, entre o mais, se apurar se é verdade o alegado sobre a situação invocada para pedir o suprimento da falta de autorização e que tal só não deve acontecer se o requerido, pelas razões gravíssimas elencadas, ou equivalentes, não estiver em condições de ser ouvido para o efeito.

Trata-se de uma decisão tomada contra o requerido, que o afecta, pelo que, só em circunstâncias excepcionais, já referidas, se poderia dispensar a audição prévia, pessoal e directa dele sobre os factos alegados para o suprimento da falta de autorização, de acordo, de resto, com o princípio 13, inserido na Parte III, relativa aos princípios processuais, da Recommendation n.º R (99) 4 Of The Committee Of Ministers To Member States, On Principles Concerning The Legal Protection Of Incapable Adults: Right to be heard in person: The person concerned should have the right to be heard in person in any proceedings which could affect his or her legal capacity (na versão em francês: Principe 13 – Droit d'être entendu personnellement: La personne concernée devrait avoir le droit d'être entendue personnellement dans le cadre de toute procédure pouvant avoir une incidence sur sa capacité juridique); ou seja (na tradução do google): Direito de ser ouvido pessoalmente: A pessoa em causa deve ter o direito de ser ouvida pessoalmente em qualquer processo que possa afectar a sua capacidade jurídica.

Ou seja, respeitando a qualquer processo, não deve ser restringido só à questão principal, mas também à questão incidental, tão relevante quanto aquela, da possibilidade do processo se iniciar sem ou contra a vontade do beneficiário.

Ou, como diz o ac. do TRP citado abaixo: “O regime definido para o processo abrange tudo o que o integra, e por isso, também o concreto incidente de suprimento de autorização, o qual merece da parte do juiz uma especial atenção, já que de tal decisão depende, ou não, a promoção do processo e este processo visa salvaguardar e reforçar a defesa dos interesses do beneficiário (art. 140/1 CC).”

Circunstâncias excepcionais que nem sequer estavam indiciadas, pois que, como diz a própria decisão recorrida, “No caso em análise, o requerido foi citado na sua própria pessoa, pelo que o Sr. funcionário não concluiu que aquele estava impossibilitado de perceber o seu conteúdo e alcance. [E o] requerido constituiu mandatário judicial, emitindo a competente procuração.”

A falta desta audição é a omissão de um acto que a lei prescreve, ou seja, uma irregularidade que pode, evidentemente, influir na decisão da causa – pois que a lei prescreve essa audição precisamente para ser tida em conta na decisão – pelo que é uma irregularidade que produz nulidade (art. 195/1 do CPC).

No mesmo sentido de tudo o que antecede, com fundamentação mais desenvolvida, veja-se o ac. do TRP de 24/09/2020, proc. 16021/19.7T8PRT.P1.

A nulidade afecta a decisão tomada quanto ao suprimento e tudo o que tiver ocorrido posteriormente com base no entendimento de que a requerente tem legitimidade para acção por força desse suprimento (art. 195/2 do CPC), sendo que, nesta parte, tal terá de ser decidido pelo tribunal recorrido por este processo não ter elementos para o decidir.

O prazo para arguição dessa nulidade é de 10 dias a contar do seu conhecimento decorrente da notificação da sentença (artigos 149 e 199/1 do CPC), o que no caso, levaria à intempestividade do recurso, mas tem vindo a ser admitido, “numa compreensão inteligente da razão de ser dos ónus processuais”, embora num entendimento menos rigoroso da lei, que, neste caso, o prazo seja o do recurso e que a questão possa ser levantada no próprio recurso (assim, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2021, reimpressão de 2017, páginas 739-740, anotação 6 ao art. 615 do CPC, com indicação de acórdãos nesse sentido, sendo que desde então se têm multiplicado decisões no mesmo sentido em vários tipos de situações diferentes), entendimento que, dada a sua generalização, não se deve contrariar para evitar desigualdades na aplicação da lei em casos semelhantes (art. 8 do CC)."

*3. [Comentário] No que respeita às consequências da falta de audição do requerido não se pode acompanhar, salvo o devido respeito, o decidido no acórdão, remetendo-se para o seguinte post

O acórdão acaba por construir uma nulidade processual que não segue o regime da nulidade processual: não tem o prazo de arguição da nulidade processual e não é conhecida pelo tribunal com competência para conhecer dela. Afinal, o que resta da nulidade processual?

MTS

28/07/2022

Jurisprudência 2022 (12)


Indicação de testemunhas;
formulário


1. O sumário de RL 27/1/2022 (28044/20.9T8LSB-A.L1-8) é o seguinte:
 
- A norma constante do art. 7/4 da Portaria 280/2013 de 26/8 (indicação das testemunhas no formulário), revela-se excessiva e desproporcional, porquanto prejudica o direito de acção por parte do autor, uma vez que este, na p.i., elencou o rol de testemunhas.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"In casu, impugna a apelante a não admissão do rol de testemunhas pelo facto de a sua identificação não constar do formulário disponibilizado para a apresentação das peças processuais (anexo à p.i.).

Os requisitos da p.i. constam do art. 552 CPC (NCPC), constando do seu nº 2 que no final da mesma o autor deve apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova e, caso o réu conteste, o requerimento probatório pode ser alterado na réplica, caso haja lugar à mesma, ou no prazo de 10 dias a contar da notificação da contestação.

Com a entrada em vigor do NCPC (Lei 41/2013 de 26/6) procedeu-se à revisão de um conjunto de matérias que procedem à sua regulamentação, mormente a tramitação electrónica de processos cuja regulamentação, até aqui, constava da Portaria 114/2008, de 6/2.

Destarte, esta Portaria foi revogada pela Portaria 280/2013 de 26/8 (cfr. art. 37) que introduziu alterações ao regime da tramitação electrónica de processos judiciais, citação edital e regime de regulamentação de comunicações electrónicas entre os tribunais e os agentes de execução (cfr. preâmbulo da Portaria).

No seu art. 1º, sob a epígrafe objecto e âmbito, são elencadas as formas de regulamentação da tramitação electrónica dos processos nos tribunais judiciais – processos, sistema informático, peças processuais, requerimentos, documentos, recursos, etc.

Por seu turno, o art. 6/1 dispõe que a apresentação das peças processuais é efectuada através de formulários disponibilizados no endereço electrónico referido no art. anterior (citius) aos quais se anexam: ficheiros com a restante informação legal exigida, conteúdo material da peça processual e demais informação que o mandatário considere relevante e que não se enquadre em nenhum campo dos formulários, de forma individualizada, os documentos que devem acompanhar a peça processual.

E o nº 2 que a informação inserida nos formulários é reflectida num documento que, juntamente com os ficheiros anexos referidos na alínea a) do nº anterior, faz parte, para todos os efeitos da peça processual.

O nº 3 reporta-se à assinatura digital.

Refere o art. 7/1, que "quando existam campos no formulário para a inserção de informação específica, essa informação deve ser indicada no campo respectivo, não podendo ser apresentada unicamente nos ficheiros anexos."

[O preceito estabelece ainda o seguinte:]

"2 – Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.

3 – O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de a mesma ser corrigida, a requerimento da parte, sem prejuízo da questão poder ser suscitada oficiosamente.

4 – Nos casos em que o formulário não se encontre preenchido na parte relativa à identificação das testemunhas e demais informação referente a estas, constando tais elementos dos ficheiros anexos referidos na alínea a) do nº 1 do art. anterior, a secretaria procede à notificação da parte para preencher, no prazo de 10 dias, o respectivo formulário, sob pena de se considerar apenas o conteúdo do formulário inicial.

5 – Existindo um formulário específico para a finalidade ou peça processual que se pretende apresentar, deve o mesmo ser usado obrigatoriamente pelo mandatário."

Estipula o art. 195 CPC, regras gerais sobre a nulidade dos actos, que fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Tendo em atenção as normas citadas, afastada está qualquer nulidade pelo facto de não constar do formulário o rol de testemunhas, apresentado em anexo (p.i.).

O art. 20 CRP (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) garante a todos o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesse legalmente protegidos impondo igualmente que esse direito se efective, na conformação normativa, pelo legislador e na concreta condução do processo, pelo juiz, através do processo equitativo (due process), contemplando o direito de acção, defesa e probatório.
In casu, tendo em atenção as normas citadas, o preceituado no art. 7/4 da Portaria 280/2013, revela-se excessiva e desproporcional, porquanto prejudica o direito à acção por parte da autora/apelante.

Não se olvide que apesar de nada constar no formulário, o rol consta de p.i., em conformidade com o art. 552 CPC, p.i. esta do conhecimento dos réus/apelantes, aquando da citação, pelo que inexiste qualquer violação do estatuto da igualdade substancial das partes (art. 4 CPC)."

[MTS]


27/07/2022

CPC online (12)

 
CPC online


-- Notas

-- Divulgam-se as actualizações e a novidade relativas ao mês de Julho;

-- Nas versões agora publicitadas foram consideradas as alterações introduzidas pela L 55/2021, de 13/8; sobre a situação criada pela L 55/2021, cf. o post Lei 55/2021, de 13/8: o que pode vir a acontecer? .
 

-- Actualizações

-- 0i CPC online - Nota preambular / Abreviaturas / Introdução geral (vs. 2022.07)


-- 0ii CPC online - L 41/2013 (vs. 2022.01)


-- 01 CPC online - art. 1.º a 129.º (vs. 2022.06)


-- 02 CPC online - art. 130.º a 258.º (vs. 2022.06)


-- 02 CPC online - art. 259.º a 310.º (vs. 2022.07)

 
-- 02 CPC online - art. 311.º a 350.º (vs. 2022.07) 


-- Novidade

-- 02 CPC online - art. 351.º a 357.º (vs. 2022.07)


*

-- Documento único

        -- MTS, CPC online, IG, L 41/2013, art. 1.º a 357.º (vs. 2022.07)



Papers (490)


-- Clermont, K. M., A Theory for Evaluating Evidence Against the Standard of Proof (SSRN: 07.2022)


Jurisprudência 2022 (11)


Apresentação de coisas e documentos;
processo arbitral


1. O sumário de RL 27/1/2022 (22927/20.3T8LSB-B.L1-2) é o seguinte:

I.–Nos termos do art.º 38.º da LAV compete aos tribunais estaduais apoiar a jurisdição arbitral na produção de prova, a pedido da parte interessada, para tal autorizada pelo tribunal arbitral.

II.–A ação especial para apresentação de coisas ou de documentos (art.º 1045.º e seguintes do CPC) pode ser utilizada para forçar a apresentação de documentos do lado da contraparte na ação arbitral.

III.–Inexistem obstáculos ao deferimento da intimação da sociedade requerida para juntar aos autos documentos que foram suficientemente identificados no âmbito do processo arbitral e cuja relevância para o processo arbitral foi previamente apreciada pelo tribunal arbitral.

IV.– A tal não obsta a circunstância de a requerida alegar que alguns dos documentos não existem e/ou que já juntou alguns deles no processo arbitral: caberá à requerida apresentar os documentos que existirem e que ainda não tiver juntado ao processo arbitral.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O art.º 19.º da LAV, sob a epígrafe “Extensão da intervenção dos tribunais estaduais”, anuncia que “nas matérias reguladas pela presente lei, os tribunais estaduais só podem intervir nos casos em que esta o prevê.” Trata-se de “estabelecer, de modo solene, uma regra de tipicidade fechada, relativamente às situações nas quais os tribunais do Estado podem intervir” (Menezes Cordeiro, Tratado da arbitragem, Almedina, 2015 pág. 214). O legislador, ao permitir (arbitragem voluntária) ou impor (arbitragem necessária) o recurso a formas privatísticas de resolução jurisdicional de litígios, por ajuizar que estas têm, em certas circunstâncias, vantagens sobre a jurisdição estadual (celeridade, especialização dos julgadores), pretende que estas não se diluam ou percam com desnecessárias interferências do tribunal estadual.

Uma das situações de intervenção da jurisdição estadual na arbitragem previstas na lei é a enunciada no art.º 38.º da LAV:

Solicitação aos tribunais estaduais na obtenção de provas
1- Quando a prova a produzir dependa da vontade de uma das partes ou de terceiros e estes recusem a sua colaboração, uma parte, com a prévia autorização do tribunal arbitral, pode solicitar ao tribunal estadual competente que a prova seja produzida perante ele, sendo os seus resultados remetidos ao tribunal arbitral.
2- O disposto no número anterior é aplicável às solicitações de produção de prova que sejam dirigidas a um tribunal estadual português, no âmbito de arbitragens localizadas no estrangeiro”.

Socorrendo-nos da terminologia de Manuel Pereira Barrocas, dir-se-á que a intervenção do tribunal estadual no processo arbitral pode assumir duas vertentes: uma, em apoio do processo arbitral; outra, no controlo da legalidade da sua atuação. A primeira é cooperativa com a arbitragem, a segunda é fiscalizadora (cfr. Manuel Pereira Barrocas, Manual de Arbitragem, 2.ª edição, 2013, Almedina, p. 260).

É justamente na dimensão cooperativa ou de apoio do processo arbitral que o tribunal estadual pode ser chamado a intervir na produção de prova no âmbito do processo arbitral, ao abrigo do art.º 38.º da LAV (cfr. Manuel Pereira Barrocas, ob. cit., pp. 265 e 266).

É certo que cabe ao tribunal arbitral “determinar a admissibilidade, pertinência e valor de qualquer prova produzida ou a produzir” (art.º 30.º n.º 4 da LAV).

Porém, no caso de falta de cooperação das partes ou de terceiros na produção da prova, os árbitros veem-se confrontados com a falta de poderes de autoridade (ius imperii) para imporem condutas e executarem ordens manu militari ou cominarem sanções (cfr., v.g., Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 350).

Tal dificuldade poderá ser suprida mediante o recurso aos tribunais estaduais.

A intervenção do tribunal estadual será requerida pela parte nela interessada, mediante prévia autorização do tribunal arbitral. A necessidade dessa autorização prévia justifica-se pela autonomia do tribunal arbitral e pelo caráter meramente instrumental da intervenção do tribunal estadual (cfr., v.g., Mariana França Gouveia, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, 3.ª edição, 2018, reimpressão, Almedina, pág. 256).

Na sua intervenção o tribunal estadual competente aplicará as respetivas normas processuais adjetivas (cfr. Armindo Ribeiro Mendes, in Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, coordenação de Dário da Moura Vicente, Almedina, 3.ª edição, reimpressão, 2018, pp. 120 e 121).

Contrariamente ao que porventura seria desejável, na lei processual civil não se encontra tramitação específica e expressamente desenhada para acorrer a esta intervenção subsidiária e de apoio dos tribunais estaduais aos tribunais arbitrais (criticando esta omissão, cfr. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 352).

De todo o modo, certo é que a parte interessada terá de instaurar no tribunal estadual competente uma ação proposta com esse único fim (cfr. Mariana França Gouveia, ob. cit., pág. 256).

E é perfeitamente equacionável a aplicabilidade, em certos casos, da ação especial de apresentação de coisas ou documentos prevista no art.º 1045.º e seguintes do CPC (cfr. Manuel Pereira Barrocas, ob. cit., p. 285).

Sendo certo que o recurso a essa ação especial autónoma pode justificar-se, como ponderam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, “face a um quadro processual em que se tenham esgotado, sem sucesso, os meios coercitivos processuais normais para obtenção do documento ou exibição da coisa, subsistindo um interesse juridicamente atendível na apresentação do documento ou da coisa” (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, Almedina, pág. 487).

Como decorre do Relatório supra e do factualismo descrito, o CLUBE/requerente/apelado, demandado pela SAD numa ação arbitral, requereu que a SAD/requerida/apelante juntasse aos autos arbitrais determinados documentos e prestasse determinadas informações. Tal requerimento foi deferido pelo tribunal arbitral, que intimou a SAD a juntar ao processo arbitral esses elementos. Não tendo a SAD cumprido essa intimação (a não ser parcialmente), o tribunal arbitral autorizou o CLUBE a recorrer aos tribunais estaduais para obter a efetivação da prestação desses elementos.

Foi com esse objetivo que o CLUBE instaurou a ação sub judice.

A SAD contestou a sua obrigação de prestação dos referidos elementos.

O tribunal a quo rejeitou os obstáculos invocados pela SAD para não prestar os referidos elementos, tendo reconhecido o direito do CLUBE à sua obtenção no seio do processo instaurado pelo CLUBE. Porém, o tribunal quo, no mesmo despacho (datado de 10.5.2021), após notar que “a requerida também suscitou dúvidas quanto à identificação dos documentos cuja apresentação é requeridadeterminou que o CLUBE fosse notificado para “em aperfeiçoamento ao seu requerimento inicial, concretizar devidamente todos os documentos cuja apresentação requer, esclarecendo, designadamente, todas as dúvidas suscitadas pela requerida na sua contestação.” (cfr. n.º 3 do Relatório supra).

No aludido despacho o tribunal a quo não analisou as supostas dúvidas, limitando-se à transcrita referência genérica, sem individualização dos aspetos que careceriam de esclarecimento.

Fica a impressão de que o tribunal a quo quis, sobretudo, dar ao CLUBE/requerente a possibilidade de se pronunciar sobre as supostas dúvidas, adiantando, se fosse o caso, qualquer explicitação que julgasse relevante.

E, na verdade, o que o CLUBE fez na sua resposta, supratranscrita no n.º 4 do Relatório, foi reiterar os elementos que já havia solicitado e cuja junção já havia sido determinada pelo tribunal arbitral, nada adiantando de verdadeiramente relevante para além do que já fora determinado, mais realçando que o que fora pedido era claro e não justificava quaisquer dúvidas por parte da SAD.

Após o que o tribunal a quo, dando execução ao que já havia decidido no aludido despacho de 10.5.2021, proferiu o despacho ora recorrido, no qual se limitou a fixar prazo para que a SAD apresentasse nos autos “os documentos indicados pelo requerente” (cfr. n.º 6 do Relatório supra).

Ora, do exposto resulta que o despacho ora recorrido se limitou a dar cumprimento ao que fora autorizado pelo tribunal arbitral, não ocorrendo nenhuma indevida substituição do tribunal arbitral na indicação da prova a ser produzida, prova essa que estava claramente identificada.

De resto, no acórdão da 6.ª secção da Relação de Lisboa, datado de 04.11.2021, a decisão de 10.5.2021 foi parcialmente confirmada, tendo sido excluídos do âmbito da ação tão só os pedidos de apresentação de informações e respetivos documentos de suporte (cfr. n.º 5 do factualismo provado). Ficou assim assente nos autos, com força de caso julgado, que a SAD estava obrigada à apresentação neste processo dos documentos solicitados pelo CLUBE, com exceção dos documentos de suporte das mencionadas informações. Isto é, ficou assente que a SAD não terá de prestar, neste processo, as informações peticionadas sob os n.ºs 2, 3, parte do n.º 7 e n.º 8. Isto porque nesse acórdão se considerou que a espécie processual utilizada pelo CLUBE (ação especial de apresentação de coisas ou documentos) não se coadunava com a obrigação de prestação de informações.

Permaneceram, pois, como objeto deste processo os seguintes documentos, mencionados nos n.ºs 1, 4, 5, 6 e parte do n.º 7 do despacho n.º 10 do Tribunal Arbitral (cfr. n.º 4 do factualismo dado como provado), a saber:

1.-Cópia dos mapas financeiros apresentados na Liga Portuguesa ..... ..... respeitantes aos jogos em casa da Autora com o B....., S..... e P..... nas épocas 2014/2015, 2015/2016, 2016/2017 e 2017/2018.

4.-Cópia de todos os contratos, qualquer que seja a sua natureza, que tenham sido celebrados com os atletas (…), mesmo aqueles que já não estejam em vigor, nomeadamente por terem sido modificados ou revogados.

5.-Cópia de todos os contratos, qualquer que seja a sua natureza, incluindo de transferência, agenciamento, comparticipação em negócio ou outro, que tenham sido celebrados com terceiros e que digam respeito aos atletas (…), incluindo (mas sem limitar) os que digam respeito aos respetivos direitos de formação desportiva, direitos económicos, direitos de imagem, mesmo aqueles que já não estejam em vigor, nomeadamente por terem sido modificados ou revogados.

6.-Cópia de todas as faturas, recibos ou quaisquer outros elementos contabilísticos integrados na contabilidade da Autora, emitidas pela Autora ou por terceiras entidades e que digam respeito às realidades referidas em 4. e 5., independentemente de existir contrato escrito.

7.-Cópia de todos os contratos, de todas as faturas, de todos os recibos respeitantes à utilização, pela Autora, do Complexo Desportivo ..... (relvado principal e adjacentes, bem como zonas técnicas ou outras) e do Estádio B..... (em S_____) durante as épocas 2017/2018 e 2018/2019."

[MTS]


Bibliografia (1032)


-- Bogarín Díaz, J., Formación léxica y conceptualización jurídica: el vocablo «excepción» (Dykinson: Madrid 2021) [OA]


26/07/2022

Bibliografia (1031)


-- Stürner, M., Valoración y estándar de la prueba en las reglas de proceso civil Europeas Eli/Unidroit, RePro 329 (2022), 423
 
 

Jurisprudência 2021 (239)


Procedimento de injunção;
âmbito de aplicação; cláusula penal*


1. O sumário de RP 15/12/2021 (17463/20.0YIPRT.P1) é o seguinte:

I - O processo de injunção é inadequado para o exercício de direitos decorrentes de responsabilidade civil contratual subsequente ao incumprimento de um contrato de crédito, pelo mutuário, designadamente os correspondentes ao recebimento dos valores de todas as prestações não pagas e declaradas vencidas, de juros e de cláusula penal.

II - Sendo esses pedidos de valor inferior a 15.000,00€, mesmo após distribuição do processo e sua tramitação como acção declarativa para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, é esta forma de processo especial inadequada para a apreciação do direito à obtenção daquelas prestações.


2. Na fundamentação do acórdão alegou-se o seguinte:

"Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC, é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.

No caso, as questões a decidir são as seguintes:

1 – Se os valores pedidos pelo B… constituem uma obrigação pecuniária, para efeitos do disposto no art. 1.º do DL 269/98 de 01 de Setembro;
2 –Se a circunstância de o processo ter sido distribuído e passado a tramitar como processo declarativo determina a superação da eventual desadequação da inicial forma de processo injuntivo.
3 - Se, na hipótese de a forma processual sob a qual tramitaram os autos ser inadequada para a apreciação de algum dos pedidos, poderia habilitar ao conhecimento dos demais.

*

A análise das questões que acabam de se enunciar exige que se tenham presentes a causa de pedir e os pedidos formulados pelo autor, no seu requerimento de injunção.

Uma tal causa de pedir foi descrita como um contrato de crédito pessoal nos termos do qual o B… entregou a C…, por empréstimo, a quantia de 8.558,25€, com a estipulação de que, pela utilização do capital mutuado, esta pagaria juros sobre o capital em dívida, de acordo com a taxa de juro fixada no contrato e que, em caso de mora, seria acrescida de uma sobretaxa de 3% a título de cláusula penal. Tal valor haveria de ser pago em prestações mensais e sucessivas nas demais condições constantes do contrato. Porém, a Mutuária não pagou ao Banco as prestações vencidas após 01.10.2018, o que determinou o vencimento de todas as restantes, por cujo pagamento é responsável também o requerido D…, em virtude de fiança que prestou.

Em razão desta causa de pedir, pretende o Banco o pagamento do valor do capital em dívida, num total de 6.972,71€, acrescida dos juros de mora, contados dia a dia, à taxa contratual em vigor de 9,88%, acrescida de uma sobretaxa de 3%, a título de cláusula penal, que se calculavam em 1.267,16€ à data da instauração do procedimento injuntivo.

A adequação do procedimento de injunção, ou do procedimento declarativo especial previstos no DL 269/98, de 1/9, para a cobrança de valores em dívida em resultado de determinado tipo de negócios jurídicos está definida no respectivo art. 1º, que dispõe: “É aprovado o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15.000, publicado em anexo, que faz parte integrante do presente diploma.

Nos termos desta norma, só é admissível a utilização de tais formas processuais quando a causa de pedir seja o incumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15.000,00€.

Diversa doutrina e jurisprudência têm sido produzidas sobre a matéria, não deixando já dúvidas sobre o conteúdo de tal conceito de “obrigações pecuniárias emergentes de contratos”.

Como refere Paulo Duarte Teixeira (“Os Pressupostos Objectivos e Subjectivos do Procedimento de Injunção», em “Themis”, VII, nº 13, pgs. 184-185), essas obrigações são “(…) apenas aquelas que se baseiam em relações contratuais cujo objecto da prestação seja directamente a referência numérica a uma determinada quantidade monetária (…) daqui resulta que só pode ser objecto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias directamente emergentes de contrato, mas já não pode ser peticionado naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil. O pedido processualmente admissível será, assim, a prestação contratual estabelecida entre as partes cujo objecto seja em si mesmo uma soma de dinheiro e não um valor representado em dinheiro».”

Em sentido idêntico se pronuncia Salvador da Costa (Injunções e as Conexas Ação e Execução, 5ª ed. atual. e ampl., 2005, pág. 41), afirmando que “o regime processual em causa só é aplicável às obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contratos, pelo que não tem a virtualidade de servir para a exigência de obrigações pecuniárias resultantes, por exemplo, de responsabilidade civil, …”.

Adoptando este entendimento, podem ver-se, entre outros, os Acs. do TRP de 15/1/2019, proc. nº 141613/14.0YIPRT.P1; de 24/5/2021, proc. nº 2495/19.0T8VLG-A.P1, de 25/5/2021, proc. nº 113862/19.2YIPRT.L1-7.

No caso em apreço, o pedido corresponde, tal como apreciado nos acórdãos anteriormente citados, não ao cumprimento de uma obrigação pecuniária stricto sensu, mas ao exercício da responsabilidade civil contratual subsequente à resolução de um contrato por incumprimento, com todas as consequências: vencimento imediato de todas as prestações previstas, contabilização de juros de mora e aplicação de uma taxa a título de cláusula penal.

Por conseguinte, cumpre afirmar, em concordância com a decisão recorrida, que o procedimento de injunção é um expediente processual impróprio para obter satisfação dos pedidos do autor, já que estes não são subsumíveis ao conceito de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de um contrato.

*
Esta conclusão conduz-nos de imediato para a análise da seguinte: no caso em apreço, por não ter sido conseguida a notificação do requerido D…, o processo foi distribuído. E passou a seguir os termos de um processo declarativo. Por isso, afirma o apelante, deixaram de se verificar os obstáculos referidos à tramitação da pretensão do autor sob a forma de injunção. Deve esquecer-se essa fase, pois que a distribuição do processo como acção declarativa fez nascer toda uma nova tramitação processual, à qual não podem ser opostos os condicionamentos que impediam o recurso ao processo de injunção.

O apelante cita até jurisprudência, nas suas conclusões XXVIII a XXXIII, onde tal solução se enuncia, isto é, que “tendo-se migrado para contexto processual completamente distinto do inicial, são irrelevantes as limitações anteriores por nos encontrarmos perante um distinto contexto técnico e diversas finalidades (…). Assim, (…) há que patentear que as acções declarativas comuns não podem ser rejeitadas por falta de pressupostos ou contextos processuais relativos a processado já desaparecido, inexistente e inaplicável.”

Acontece, porém, que nesse caso (Ac. do TRL, de 11/2/19, no proc. n.º 69245/17.0YIPRT-A.L1-6), tal como no outro exemplo que cita, a distribuição do processo conduziu à respectiva tramitação sob a forma de processo comum, nos termos do nº 2 do art. 10º do DL 62/2013, de 10 de Maio (como acção sob a forma ordinária, no caso do processo mais antigo, a que se reporta o Ac. do STJ citado). Foi por cada um desses processos ter passado a tramitar como processo comum, onde se não verificam compressões dos direitos processuais da parte contrária, maxime quanto a prazos e à instrução probatória da causa, que ali se entendeu – como não devia deixar de ser, também a nosso ver – inexistir qualquer obstáculo para a apreciação de pedidos para os quais fora inadequado o processo de injunção.

No caso em apreço, é diferente a situação: é que, por o respectivo valor ser inferior a 15.000,00€, a distribuição deste processo, consequente à ausência do requerido D…, deu azo a que o mesmo tivesse passado a tramitar como acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, nos termos do nº 4 do art. 1º e dos arts. 3º e 4º do regime anexo ao DL. 269/98, em cumprimento do disposto no art. 17º. E, para esta forma de processo, ali se estabelece um regime processual expedito, com prazos, actos e provas restringidos ao essencial, em homenagem a interesses de agilidade e celeridade.

Ora, esse regime processual, nos termos do art. 1º do D.L. 269/98, continua reservado à mesma espécie de obrigações que as injunções: obrigações pecuniárias decorrentes do incumprimento de contratos de valor inferior a 15.000,00€. E, como já vimos anteriormente, esse não é o caso das obrigações decorrentes do contrato de mútuo que integra a causa de pedir alegada pelo B….

Por consequência, diferentemente do que aconteceria no caso de a distribuição do processo de injunção se executar em cumprimento do art. do nº 2 do art. 10º do DL 62/2013, de 10 de Maio, por o pedido ser superior a 15.000,00€ (o que exigiria a verificação de outros pressupostos, que aqui não interessa discutir), originando a sua tramitação como processo comum, sem restrições especiais, na situação sub judice a distribuição do processo levou a que o mesmo observasse a tramitação célere e aligeirada especificamente prevista para um tipo de casos diferente daquele que os autos consubstanciam.

É, por isso, impossível afirmar que, com a transmutação do processo injuntivo em acção declarativa, desapareceram as razões e as consequências que justificavam a inadmissibilidade do processo injuntivo para a tutela da pretensão do requerente. Pelo contrário, essas razões, constituídas pelas especificidades da tramitação deste processo declarativo especial, mantêm-se, justificando que não se possa aplicar o respectivo regime a outro tipo de obrigações para além das previstas no art. 1º do D.L. 269/97, designadamente às decorrentes de responsabilidade civil contratual, como é o caso dos autos.

Improcedem, por isso, as razões do apelante também em relação à segunda questão.

*
Por fim, alega o apelante que a discussão sobre a admissibilidade desta forma de processo para a tramitação e apreciação dos seus pedidos deve ser repartida em função da diferente natureza de cada um deles e, se ela for tida por inadmissível no tocante à aplicação da cláusula penal e cobrança do respectivo valor, a essa parte do pedido se deve limitar a decisão de absolvição da instância. E isso porquanto as demais obrigações cujo cumprimento vem exigir são emergentes do próprio contrato.

Não tem, porém, razão. Como se referiu antes, nenhum dos pedidos formulados pelo B… consubstancia uma obrigação pecuniária stricto sensu. Aliás, é o próprio requerente, ora apelante, que na sua conclusão XI esclarece que a sua pretensão decorre da resolução do contrato de crédito celebrado com a requerida C…, com o que pede não o pagamento de cada uma das prestações previstas, no seu próprio tempo, conforme contratualmente estabelecido, mas todo o seu valor, acrescido de quantias indemnizatórias por mora e a título de cláusula penal, por as considerar imediatamente vencidas na totalidade. Trata-se, como se referiu, do exercício de um direito fundado na responsabilidade civil contratual, relativamente a todo e cada um dos pedidos, e não do cumprimento da obrigação de entrega de uma quantia específica, correspondente à contraprestação de uma outra prestação satisfeita pelo banco.

Por isso, a nenhum dos pedidos formulados pelo Banco cabe o regime processual da injunção, nem tão-pouco o da acção declarativa especial em que o processo injuntivo se transmutou, pelo que em relação a nenhum deles poderia o tribunal a quo proferir decisão de mérito.

*
Ao detectar a inadmissibilidade do conhecimento de todos e de cada um dos pedidos do autor – o que se nos afigura sobressair com clareza da decisão recorrida, não se justificando as reservas a esse propósito enunciadas no presente recurso – o tribunal qualificou-a como excepção dilatória inominada, absolvendo os RR. da instância.

Certo é que o fez tardiamente, praticando antes uma quantidade de actos inúteis, que vão desde a realização do próprio julgamento até à elaboração da sentença pois que, apreciando a existência dessa anomalia antecipadamente, bem deixaria de apreciar a factualidade sob discussão, de enunciar os factos tidos por provados ou de motivar esse juízo. Em qualquer caso, apesar de ter afirmado, em sede de saneamento, que a instância se mostrava regular, isso não passou de um despacho tabelar, sem expressa pronúncia sobre qualquer matéria, não tendo constituído caso julgado formal sobre uma tal regularidade que, logo de seguida, veio rejeitar.

Por outro lado, nem o apelante suscita tal questão, nem tem utilidade discutir se, em vez de uma excepção dilatória inominada, a situação sub judice consubstancia uma nulidade processual, tal como previsto nos arts. 193º e 196º do CPC.

Com efeito, mesmo nesta última hipótese, tendo a utilização do expediente processual previsto nos arts. 1º, 3º e 4º do regime anexo ao D.L. 269/98 resultado ab initio na compressão de direitos de defesa dos RR., nenhum acto processual se poderia aproveitar, designadamente para se convolar este processo num típico processo comum e se aproveitar qualquer dos actos nele praticados. Por isso, sempre haveriam de ser os RR. absolvidos da instância como foram."


*3. [Comentário] Com o devido respeito, não se encontra justificação para recusar que o procedimento de injunção e a AECOP possam ser utilizados para exigir o cumprimento de uma cláusula penal. Recorde-se a noção de cláusula penal que consta do art. 810.º, n.º 1, CC: "As partes podem, porém, por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal".

MTS


25/07/2022

Papers (489)


-- Kim, Matthew, Exclusionary Rule and Judicial Integrity: An Empirical Study of Public Perceptions of the Exclusionary Rule (SSRN 07.2022

-- Wright, R. George, Burdens of Production As Unproductive (SSRN 06.2022)


Jurisprudência 2021 (238)


Decisão-surpresa;
excesso de pronúncia; nulidade da decisão


1. O sumário de STJ 16/12/2021 (4260/15.4T8FNC-E.L1.S1) é o seguinte:

I – Encontrando-se a nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido), o meio adequado para invocar essa infracção às regras do processo é o recurso contra a decisão de mérito, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo.

II – O conhecimento do pedido, em fase de saneamento dos autos obriga, de forma imperativa, o juiz à designação de audiência prévia, a realizar nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, facultando às partes a possibilidade de alegarem de facto e de direito sobre a matéria de que irá conhecer.

III – Havendo o juiz contrariado a tramitação processual até aí seguida (a audiência prévia foi designada várias vezes e entretanto adiada), procedido à (implícita) dispensa da realização da audiência prévia sem se encontrarem reunidos os respectivos requisitos processuais indispensáveis para esse mesmo efeito e passado ao conhecimento imediato do mérito da causa, a respectiva sentença é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte do Código de Processo Civil.

IV – A violação das regras processuais que consiste na omissão ilegal da realização de uma diligência obrigatória que deveria ter tido lugar nos autos (a audiência prévia), comunica-se à decisão de mérito subsequente que é proferida fora do momento próprio, numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria.

V – Tal decisão de dispensa da audiência prévia, que era no caso obrigatória, constituiu uma verdadeira decisão surpresa entendida enquanto “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”, surpreendendo as partes com o conhecimento que não poderia ter tido lugar antes de as mesmas exercerem o seu direito ao debate da matéria de fundo, de facto e de direito, não se circunscrevendo ao limitado e estrito âmbito da mera irregularidade procedimental, invocável nos comuns termos do artigo 195º, do Código de Processo Civil.

VI – A análise da situação e suas consequências seria completamente diferente se o juiz a quo houvesse, antes de proferir a decisão de mérito, notificado as partes, informando-as deste seu propósito e advertindo-as de que o faria na ausência de oposição destas, o que, a verificar-se, significaria, nessas circunstâncias, a sua anuência a esta agilização do processado, bem como o seu reconhecimento quanto à desnecessidade de alegarem de facto e de direito antes da prolação decisão que, conhecendo do fundo da causa, definiria a sorte do pleito.

VII - A dispensa pelo juiz da realização da audiência prévia, nos casos em que é obrigatória, nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como forma de proporcionar às partes o exercício de faculdades processuais concedidas por lei, está ela própria igualmente sujeita ao contraditório, evitando-se assim decisões surpresa, expressamente vedadas pelo artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.

VIII – O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que especialmente lhe incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3 – Dispensa da realização da audiência prévia, obrigatória nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, com o imediato conhecimento da procedência de excepção de caducidade, sem que o juiz a quo tenha justificado a sua opção face à anterior designação, por várias vezes, de audiência prévia, entretanto sucessivamente adiada. Consequências. Nulidade processual geral (artigo 195º do Código de Processo Civil) e nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil). Pretensa desnecessidade face ao debate da matéria jurídica da excepção peremptória nos articulados. Salvaguarda do princípio do contraditório e da proibição de decisões surpresa (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil). 

Pode resumir-se da seguinte forma a situação processual em análise:

1º - A A. instaurou acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente contra a Ré.

2º - A Ré impugnou, suscitando a excepção peremptória da caducidade do direito a instaurar a presente acção (artigos 9º a 31º da sua contestação).

3º - A A. respondeu pugnando pela improcedência dessa excepção peremptória (artigos 18º a 32º da sua resposta).

4º - Em fase de saneamento dos autos, o juiz de 1ª instância designou, em 18 de Setembro de 2019, audiência para o dia 10 de Outubro de 2019, para os fins enunciados no artigo 591º, nº 1, alíneas a), b), c), d), e), f) e g), do Código de Processo Civil, com o posterior esclarecimento de que a diligência seria realizada presencialmente, onde se inclui a obrigação do juiz “facultar às partes a discussão de facto e de direito, (...) quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”.

5º - Houve lugar entretanto ao adiamento da diligência face à iminência da concretização de acordo, tal como foi pedido pelas partes; [...]

6º - Em 19 de Janeiro de 2021, sem qualquer aviso, diligência ou outro pronunciamento, foi proferida sentença que julgou procedente a excepção peremptória de caducidade, antecedida do seguinte introito: “o estado do processo permite, sem necessidade de mais prova, a apreciação total dos pedidos deduzidos, o Tribunal decide conhecer imediatamente do mérito da causa, nos termos dos artigos 591.°, n.° 1, alínea d) e 595.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 17.°, n.° 1, do CIRE”.

Apreciando:

A questão jurídica essencial que se discute na presente revista tem a ver com a licitude ou ilicitude da opção assumida pelo juiz a quo, contrariando a tramitação até aí coerentemente seguida nos autos (e por si determinada enquanto seu titular) quanto à designação de audiência prévia nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, ao dispensar de surpresa, implicitamente, tal diligência processual, sem notificação ou aviso às partes, com o singelo fundamento de que “tendo em conta que o estado do processo permite, sem necessidade de mais prova, a apreciação total dos pedidos deduzidos, o Tribunal decide conhecer imediatamente do mérito da causa, nos termos dos artigos 591.°, n.° 1, alínea d) e 595.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 17.°, n.° 1, do CIRE”,  passando a conhecer, em termos finais, do mérito da causa.

Nestas circunstâncias, não procedendo à prévia comunicação às partes para que estas pudessem tomar a posição que bem entendessem, e sem aguardar pela sua reacção, o juiz a quo fê-lo com directa e imediata violação da lei processual aplicável, afrontando o princípio do contraditório, expresso no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.

Com efeito, não havendo lugar ao prosseguimento dos autos pelo facto de o juiz a quo ter entendido não ser necessária a produção de prova, habilitando os elementos recolhidos nos autos a proferir, conscienciosamente, saneador-sentença conhecendo do objecto do litígio, a lei processual obrigava-o, expressa e imperativamente, à prévia designação de audiência prévia, conforme resulta do disposto no artigo 591º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, onde se prevê, inequivocamente, que a mesma servirá para “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpre apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”.

E, de resto, foi o que fez, com toda a naturalidade, durante um ano e três meses (de 18 de Setembro de 2019 a 19 de Janeiro de 2021).

Com efeito, como se refere in “Código de Processo Civil Anotado. Volume I. Parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1º a 702º”, de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, página 687:

“É de toda a conveniência que o juiz não decida, no todo ou em parte, aspectos materiais do litígio sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais acerca do mérito da causa”.

(No mesmo sentido, vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Janeiro de 2021, 4ª edição, a página 650).

A dispensa de realização de audiência prévia, nos termos do artigo 593º, nº 1, não abrange a situação prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 591º do Código de Processo Civil (incluindo tão somente as situações previstas nas alíneas d), e) e f) do nº 1 do artigo 591º, e pressupondo sempre que “a acção haja de prosseguir”).

É assim inquestionável que o juiz a quo omitiu, sem qualquer tipo de justificação séria ou fundamentação adequada, a realização de uma diligência processual que estava estritamente vinculado a designar nestas circunstâncias, havendo simultaneamente procedido à (implícita) dispensa da realização da audiência prévia sem se encontrarem reunidos os requisitos processuais indispensáveis para esse efeito.

Importa, portanto, apurar se tal violação das regras do processo corresponde, tal como o recorrente lhe aponta, a uma nulidade da própria sentença, que desse modo foi inquinada pelo vício formal do excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte do Código de Processo Civil, ou se se trata de um mera e comum nulidade processual, enquadrável na previsão genérica do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil, e invocável no prazo de dez dias sob pena de sanação (conforme entendeu o acórdão recorrido).

Vejamos:

É sabido que quando está em causa o cometimento de uma nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido), o meio adequado para invocar tal infracção às regras do processo é o recurso contra essa decisão, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo. [...]

Ora, a conduta processual do juiz a quo quanto à não realização da audiência prévia que era suposto ter tido lugar, e que já fora devidamente por si designada em obediência à tramitação legal adequada, dispensando-a sem mais e passando a proferir decisão antes do momento em que tal lhe era processualmente permitido, constitui, sem dúvida alguma, uma falta processual traduzida, simultaneamente, na omissão de um acto que a lei prescreve e no cometimento de outro que a lei lhe proíbe (promoveu e determinou a ausência de uma diligência processual de natureza obrigatória – audiência prévia – e produziu um acto de julgamento que a lei, naquele concreto momento, ainda não lhe permitia).

Trata-se, de resto, de um exemplo perfeito e acabado de um acto ferido de nulidade que é totalmente coberto pelo despacho judicial através do qual o juiz de 1ª instância, a destempo, optou por conhecer de mérito, sem se importar com o direito especialmente conferido às partes de, previamente, alegarem de facto e de direito sobre a questão de fundo que foi determinante para a sorte da lide.

Simultaneamente, nestas especiais circunstâncias, a nulidade cometida comunica-se ao despacho saneador-sentença, inquinando-o, ficando a decisão judicial (que não deveria ter sido proferida), contaminada por um vício que atinge o próprio acto jurisdicional de julgamento.

Neste contexto, não é razoável o sistema jurídico impedir a parte vencida, que se vê inesperadamente confrontada (note-se que estava em curso a designação, já ordenada por várias vezes, da audiência prévia) com a decisão de mérito que a desfavoreceu, fazendo-a perder a causa, de impugnar em termos gerais, através da interposição do competente recurso, o erro de julgamento que consistiu no conhecimento processualmente abusivo da procedência da excepção peremptória da caducidade do direito a instaurar a acção.

Não se trata de invocar, através de reclamação, uma simples irregularidade no processamento dos autos, que aliás nunca foi expressamente assumida pelo juiz a quo (o mesmo nada referiu que explicasse a razão pela qual, ao contrário do que havia feito até aí, não reconheceu às partes o direito processual conferido na alínea b) do nº 1 do artigo 591º do Código de Processo Civil), mas do exercício do direito a impugnar a única verdadeira decisão que foi efectivamente tomada: a procedência da excepção peremptória antes de as partes terem a possibilidade de a discutir, contraditoriamente e em sede própria, para além do que referiram a este propósito nos articulados. [...]

In casu, o acto nulo é o acto de julgamento em si, com a definição final do direito aplicável à relação material controvertida, e não propriamente qualquer decisão interlocutória (que inexiste formalmente) que se debruçasse sobre a obrigação ou dispensa de realização da audiência prévia.

De modo que a reacção da apelante terá que passar pela inerente interposição de recurso de apelação contra a decisão proferida, integrando, nos respetivos fundamentos, a arguição da referida nulidade ao abrigo do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil. [...]

Com efeito e como se disse, o tribunal a quo ao decidir como decidiu, sem que antes tivesse levado a cabo a diligência processual a que se encontrava vinculado, conheceu de matéria (excepção peremptória de caducidade que constitui o fundo da causa) que, naquele exacto momento e nesse concreto circunstancialismo, não lhe competia conhecer, excedendo manifestamente os seus poderes de cognição.

 Nessa altura, faltava dar a oportunidade às partes, no âmbito da audiência prévia que já tinha sido para esse preciso efeito várias vezes designada, de discutir de facto e de direito a matéria substantiva em causa, influenciando por essa via a posição a adoptar pelo julgador, enquanto lídima expressão do princípio do contraditório que o legislador exigiu, em termos imperativos, que fosse respeitado naqueles exactos termos (e não noutros).

Ao não o fazer, ignorando e desvalorizando o preceito legal indicado, o juiz de 1ª instância avançou para a pronúncia que a lei lhe vedava, extravasando e torpedeando nitidamente os limites dos poderes de cognição que a lei lhe concedia.

Em suma, tal excesso de pronúncia – que é no fundo do que se trata – integra-se de pleno na situação típica prevista no artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil, não se limitando a uma simples omissão de uma diligência que deveria ter tido lugar e que, por falta imputável ao juiz da causa, não sucedeu. (sobre este ponto, vide Miguel Teixeira de Sousa in https://blogippc.blogspot.com, em comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Setembro de 2020, versando uma situação de que a presente é praticamente um decalque).

No acórdão recorrido, embora se tenha reconhecido que a realização da audiência prévia era, neste caso, obrigatória, e que a sua omissão constituía uma indiscutível nulidade processual, acabou por concluir-se também que tal nulidade processual se encontrava sanada pela não arguição tempestiva (no prazo geral de dez dias a contar do seu conhecimento).

Consignou-se quanto a este ponto:

“A decisão proferida, apreciando da exceção de caducidade do direito de instaurar a acção e resolvendo o litígio, exclusivamente, por via da apreciação dessa exceção perentória, não constituiu, em absoluto, qualquer surpresa para as partes que, no processo, já tinham expendido as posições respetivas sobre essa questão. Aliás, a autora apelante pronunciou-se duplamente sobre a matéria, fazendo-o na petição inicial, em impugnação antecipada e, posteriormente, respondendo à contestação, em articulado que o tribunal admitiu, exatamente considerando que sempre teria que ser salvaguardado o princípio do contraditório, conforme despacho a que supra se fez referência no relatório.

Ou seja, no caso em apreço, não pode configurar-se a sentença como uma decisão judicial proferida em excesso de pronúncia: o juiz podia, manifestamente, decidir o pleito com base na referida exceção, como fez, pois os intervenientes processuais já tinham exercido o direito de audição sobre a mesma, não podendo invocar qualquer prejuízo atinente à falta de audição ou violação do contraditório, ou que foram confrontados inopinadamente com uma decisão que fundamentou a sua análise em questão que nunca se tinha deparado às partes.
 
O ponto é que a sentença foi proferida no momento processual errado, à margem da tramitação devida porquanto, como se viu, se impunha, previamente, a realização de um ato processual, a audiência prévia; em bom rigor, a situação corresponde ao “exemplo” “académico” dado por Miguel Teixeira de Sousa e a que se fez referência.

Conclui-se que estamos perante uma hipótese de nulidade do processo e não de nulidade de sentença. Aquela segue o regime previsto no art. 195.º, nº1 e devia ter sido arguida pela apelante, parte interessada (art. 197.º, nº1) nos dez dias subsequentes à notificação da sentença (art. 199.º, nº1) e não em sede de recurso pelo que, não tendo a apelante reclamado, em devido tempo, dessa nulidade, tem que considerar-se a mesma como sanada.
 
Assim sendo, e não tendo a apelante suscitado qualquer outra questão a esta Relação, mais não resta senão considerar que improcedem as conclusões de recurso”.

Discorda-se.

A omissão da realização de uma diligência obrigatória que deveria imperativamente ter tido lugar nos autos (a audiência prévia), constituindo de facto uma evidente violação das leis do processo que, sendo qualificada como nulidade processual nos termos do artigo 195º do Código de Processo Civil, é logicamente comunicável à decisão de mérito subsequente.

A prática do acto em referência aconteceu fora do momento próprio e numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria (mérito do pedido).

O conhecimento da excepção peremptória de caducidade teria que ser obrigatoriamente discutida e apreciada no âmbito da audiência prévia, como impõe o preceito legal referido – artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil - e nunca – sem a anuência das partes - fora dela.

Não se vislumbra, assim, de que forma a ausência de arguição pela parte interessada da nulidade, nos termos do artigo 195º do Código de Processo Civil, no prazo de dez dias consignado nos artigos 199º, nº 1 e 149º, nº 1, do mesmo diploma legal, possa de algum modo obstar – e muito menos sanar – à gritante e manifesta ilegalidade cometida pelo juiz ao conhecer de mérito da causa na fase do saneamento, fora dos exactos limites que lhe foram legalmente impostos para o efeito, com supressão, totalmente incompreensível e arbitrária, de uma diligência judicial de realização obrigatória, que se destinaria, no fundo, à possibilidade de prévia discussão contraditória – perante o juiz em sede audiência prévia e não em qualquer outro momento processual – acerca da suficiência dos elementos reunidos para a decisão imediata da causa e das razões de direito que em todo o caso a condicionariam.(sobre este ponto, vide Miguel Teixeira de Sousa in https://blogippc.blogspot.com, em 12 de Outubro de 2021, subordinada ao título “Por que se teima em qualificar a decisão-surpresa como uma nulidade processual”, em comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9 de Setembro de 2021, proferido no processo nº 1883/20.3T8STR.A.E1, publicado in www.dgsi.pt., onde mais uma vez se sublinhou que: “a orientação segundo a qual o proferimento de uma decisão surpresa constitui uma nulidade processual conduz ao proferimento pelos tribunais de recurso de decisões que são inevitavelmente nulas por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), e 685º do Código de Processo Civil”).

Por outro lado, e em termos decisivos para a sorte da presente revista, cumpre assinalar que a sentença impugnada constituiu efectivamente uma verdadeira decisão surpresa entendida enquanto “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”(cfr. Miguel Teixeira de Sousa in https://blogippc.blogspot.com, (Jurisprudência 2020 -163), em comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 2000, proferido no processo 496/13.0TVLSB.L1.S1).

E este vício, intrínseco ao acto de julgamento em que são exorbitados os poderes de cognição do julgador, surpreendendo as partes com o conhecimento que não poderia ter tido lugar antes de as mesmas exercerem o seu direito ao debate sobre a matéria de fundo, de facto e de direito, não se circunscreve ao limitado e estrito âmbito da mera irregularidade procedimental, invocável nos comuns termos do artigo 195º, do Código de Processo Civil. (vide Miguel Teixeira de Sousa in https://blogippc.blogspot.com, Jurisprudência 2021 (29), onde enfatiza que: “não há que confundir o caso em que o tribunal se pronunciou (em qualquer dos sentidos possíveis) sobre a nulidade processual com o caso em que o tribunal, através da sentença que profere, comete ele próprio uma nulidade (da sentença) pela falta da audiência prévia das partes e pela pronúncia de uma decisão-surpresa (artigo 3º, nº 3, CPC). No fundo, importa distinguir entre a pronúncia do tribunal sobre uma nulidade processual e a pronúncia do tribunal que implica a nulidade da sua decisão”).

Por isso mesmo é que a reacção da parte contra tal violação do seu direito ao contraditório – que é disso que substantivamente se trata – tem o seu lugar próprio perante o tribunal superior e não junto do juiz a quo que lhe deu causa, sob forma de mera reclamação.

O que efectivamente provocou a nulidade em apreço foi a pronúncia sobre o mérito da causa do juiz de 1ª instância, sem respeitar o contraditório (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil) consubstanciado no debate a realizar em audiência prévia das partes, tendo decidido em momento no qual a lei não lhe permitia proferir sentença, culminando numa verdadeira e proibida decisão surpresa, e não qualquer outra – não formalmente assumida - passível da invocação de nulidade nos termos gerais. [...]

Ou seja, e em suma, a dispensa pelo juiz da realização da audiência prévia, nos casos em que é obrigatória, nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como forma de proporcionar às partes o exercício de faculdades processuais concedidas por lei, está ela própria igualmente sujeita ao prévio contraditório, evitando-se assim decisões surpresa, expressamente vedadas pelo artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil. [...]"

[MTS]