"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/03/2023

Jurisprudência 2022 (154)


Concentração da defesa;
defesa por excepção*


1. O sumário de RC 28/6/2022 (822/14.5T8CTB.C1) é o seguinte:

I – Na eleição das questões de direito, o juiz não pode ir além do que está contido nos factos alegados, não estando, porém, limitado pela enunciação que delas façam as partes.

II – O princípio da concentração da defesa na contestação impõe ao réu o ónus de, nesse articulado, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória, salvo os casos excecionais legalmente previstos – exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes ou que a lei expressamente admita passado esse momento ou de que se deva conhecer oficiosamente –, com sujeição a efeito preclusivo.

III – É o que ocorre quanto a fundamentos de exclusão da cobertura do seguro não invocados pelo réu (segurador) na sua contestação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. Quanto à exclusão dos danos decorrentes de erros ou omissões profissionais e resultantes da inobservância de disposições legais, regulamentares ou não cumprimento de normas técnicas/Seu (não) conhecimento oficioso.

Nesta particular, decidiu a 1.ª instância:

“Ora, no caso, as autoras lograram demonstrar efectivamente que a actividade desenvolvida pela 1ª ré estava coberta pela 2ª ré no plano da sua responsabilida civil extracontratual, através do sobredito contrato.
 
Por seu turno, no âmbito da contestação, a ré seguradora não invocou a verificação de qualquer cláusula exclusão de responsabilidade (invocou apenas a prescrição do direito à indemnização).

Dito isto, ulteriormente, como resulta do compulso dos autos que após a junção aos mesmos pelos AA., da certidão de decisão instrutória proferida no âmbito do processo com o n.º22/11...., do Tribunal Judicial ..., patenteada nos autos a fls.79-v e seg., a ré, por via do requerimento de 21-09-2015, ponderando que o Mmo. Juiz de Instrução considerou que “o responsável pelo incêndio foi a testemunha CC, nos termos assumidos pelo próprio, enquanto prestava serviços para a empresa V..., Lda.” e “a mando, pelo menos, do Sr. DD, quando eram utilizadas moto roçadoras com discos, num dia de sol, com elevadas temperaturas, num local propício à deflagração de incêndios, dado a vegetação seca que aí se encontrava”;

Invocou que:

Caso venha a demonstrar-se, nos presentes autos, estes factos (os quais – como deixou dito na contestação – a ora requerente desconhece, até por lhe não terem sido participados), aplicar-se-ão as exclusões acordadas entre seguradora (2ª R.) e tomadora do seguro (1ª R.) segundo as quais não se encontram abrangidos pelas garantias do contrato de seguro os “Danos decorrentes de erros ou omissões profissionais” [artigo 3º, nº 1, alínea a) da garantia especial de Responsabilidade Civil Exploração – doc. 1 e doc. 3, página 24, juntos com a contestação da 2ª R.], nem os danos “Resultantes da inobservância de disposições legais, regulamentares ou não cumprimento de normas técnicas” [artigo 3º, nº 1, alínea b) da referida garantia especial – docs. citados];

Isto é, a alegação da verificação daquelas exclusões deu-se em momento processual posterior à apresentação da contestação, sem que nesta se fizesse qualquer referência àquelas ou a outras exclusões.

Nota-se, aliás, que a factualidade trazida à colação pela ré já constava, no essencial, da própria petição dos autores.

Não havia, sequer, pois, superveniência quanto à materialidade subjacente à alegação.

Ora, em sede de processo civil, afirma-se o princípio da concentração dos meios de defesa e a obrigatoriedade de os alegar, sob pena de perda do direito de invocação, preclusão, estando tais princípios ligados à estabilidade das decisões, o que tem a ver com o instituto do caso julgado, e com o dever de lealdade e de litigar de boa fé (processual).

Com efeito, o princípio da preclusão ou da eventualidade é um dos princípios enformadores do processo civil, decorre da formulação da doutrina e encontra acolhimento nos institutos da litispendência e do caso julgado – art. 580º, nº2, do Código de Processo Civil – e nos preceitos de onde decorre o postulado da concentração dos meios de alegação dos factos essenciais da causa de pedir e as razões de direito – art. 552º, nº1, d) – e das excepções, quanto à defesa – art. 573º, nº1, do Código de Processo Civil.

Ora, como notam ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA - In CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, VOL.I 2ª edição, almedina, p.670 - “Do princípio da preclusão resulta que todos os meios de defesa não invocados pelo réu na contestação ficam prejudicados, não podendo ser alegados mais tarde. O princípio da eventualidade significa que, dado o risco de preclusão, o réu há de dispor todos os seus argumentos de maneira a que cada um deles seja atendido no caso (ou na eventualidade) de qualquer dos anteriores improceder.”  

Uma das limitações à regra da concentração da defesa na contestação consiste na defesa posterior/superveniente, ao abrigo do disposto nos artigos 588.º e 589.º, do CPC.

Porém, no caso, como vimos, a factualidade em causa nem sequer era superveniente, objectiva ou subjectivamente (pelo menos no plano da sua admissibilidade teórica, que é como quem diz, na acepção da ré, sem conceder o facto, admitindo a sua ocorrência, então…), dado que, como vimos, a materialidade em causa já constava nos seus traços essenciais da petição inicial.

Não foi, de resto, deduzido formalmente qualquer articulado superveniente, nem tal se justificava, dado que era materialidade já alegada pelos autores.

Outro tanto se diga relativamente à exclusão que tem como base a acepção de que o acto em causa assumiu contornos dolosos.

Ora, como se disse, a ré não invocou em sede de contestação a verificação de qualquer cláusula de exclusão de responsabilidade, apenas o tendo vindo a fazer mais tarde no processo.

Ora, admitir-se que ré pudesse invocar, atempadamente, fundamentos de exclusão da sua responsabilidade, seria contornar o efeito preclusivo da invocação factual e de todos os meios de defesa, desconsiderando-se o princípio da concentração da defesa.

Nem se diga contra o supra plasmado que a ré se limitou a salientar a verificação de exclusões que já constavam das condições gerais e/ou especiais por si oportunamente juntas, a que acresce que toda a factualidade necessária à subsunção das exclusões em causa já constava dos próprios termos da petição inicial, bastando, no fundo, confrontar os factos vertidos na petição inicial (e a final dados como provados), com o texto das exclusões constantes das condições contratuais da apólice de seguros juntas aos autos.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, assim não o cremos.

Ainda que se considere que se trata apenas de subsumir determinada factualidade já constante dos autos às condições contratuais que regem o seguro ajuizado, tal matéria ou juízo qualificativo sobre mesma nunca poderia deixar de ser oportunamente alegado, dado que se trata de matéria de excepção tout court, obrigando o princípio da preclusão à necessidade (ónus) da alegação de todos os meios de defesa na contestação, sob de impossibilidade de valoração.

A regra da concentração dos meios de defesa tanto vale para a alegação de factualidade e conexa subsunção jurídica no plano das excepções, como para a mera alegação de verificação desta ou daquela excepção, sem mais, a reboque até dos próprios termos da alegação da parte contrária.

Repare-se que se assim não for, fica não só beliscado o princípio da preclusão, como o próprio princípio do contraditório, dado que se o réu não alegar a verificação dalguma excepção, o autor nem sequer tem o ensejo processual de responder à excepção em causa, designadamente no quadro do artigo 3.º/4, do CPC, não tendo, por conseguinte, o ensejo processual de, designadamente, contra-alegar as suas razões de direito, como até de alegar factualidade tendente a afastar a verificação da excepção em causa”.  

Correcta a decisão.

Senão vejamos.

Exige a lei que o juiz “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – n.º 2 do artigo 608.º do CPC.

Ao juiz está cominada a imposição legal de tomar conhecimento de todas as questões que tenham sido trazidas e debatidas pelas partes no processo – Sobre o tema, Alberto dos Reis, in “Código Processo Civil Anotado”, Vol. V, págs. 52-58 e 142-143; Jacinto, Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Processo Civil”, Vol. III, Lisboa, 1972, pág. 247 e 228.

As questões controvertidas que tenham sido objecto de alegação por parte dos sujeitos processuais involucrados na acção - às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas - e que estando contidas na causa de pedir e no pedido devem ser conhecidas pelo tribunal sob pena de não fazendo o tribunal se eximir à sua função de julgamento pleno e total - Jacinto, Rodrigues Bastos, in op. loc. cit., pág. 228.

O pedido de solução de uma determinada questão, de facto ou de direito, solicitada a um órgão jurisdicional contém, de ordinário, um núcleo de factos cuja verificação probatória pode, ou não, vir a ser subsumível a um suposto normativo que encerra uma afirmação preceptiva e da qual o ordenamento jurídico faz derivar uma consequência jurídica. É este núcleo referencial e típico que se constitui como questão a eleger pelo tribunal para solução do litígio que opõe dois ou mais sujeitos.

Ou seja, para que a questão possa ser avaliada, torna-se necessário que se confira uma identidade entre o que é pedido e o que é julgado, entre o que o tribunal elegeu e definiu, na interpretação que fez do conjunto de factos alinhados pelos sujeitos nas respectivas peças processuais, com o que a final veio a tomar conhecimento e a dar pronúncia. Na eleição das questões de direito o juiz não pode ir além do que está contido nos factos aportados pelos sujeitos, não estando, porém limitado pela enunciação que delas façam as partes.

Deve, pois, na decisão ocorrer uma congruência entre as questões que o sujeito trouxe a juízo para obter uma resolução jurisdicional e aquelas que efectivamente devem ser resolvidas pelo tribunal. Esta congruência ou necessidade de coincidência significativa entre o que é pedido e o que é solucionado traduz-se numa concordância de decisão jusprocessual que torna o veredicto assumido conforme às exigências que devem vertidas numa sentença. [...]

Ora, tal matéria, foi, desde logo, alegada nos Pontos 9º (Sendo que as referidas tarefas eram executadas, essencialmente, pelo uso de máquina – moto-roçadora movida a motor e composta, além do mais, por discos metálicos, rígidos e cortantes); 10º (Sendo que tais discos trabalham a grande rotação); 11º (Na altura, como era época de Verão, verificavam-se temperaturas que rondavam os 40º C e as ervas e outros combustíveis encontravam-se em estado de muito secos), todos da petição inicial, pelo que, seria a contestação o momento, processualmente falando, para a alegação de tais excepções, o que não aconteceu – a 21.7.2015 foi proferido o seguinte despacho :” A fim de nos pronunciarmos sobre a excepção da prescrição invocada pela Ré “Fidelidade, Companhia de Seguros, SA”, notifique os AA para exercerem o competente contraditório, no prazo de 10 dias.

A concentração dos meios de defesa e a obrigatoriedade de os alegar, sob pena de perda do direito de invocação, preclusão, estão ligados à estabilidade das decisões, o que tem a ver com o instituto do caso julgado, e como o dever de lealdade e de litigar de boa fé (processual). Não faria sentido que a seguradora, impugnando a sua responsabilidade no sinistro, dispondo de factos idóneos a paralisar esse pedido, não concentrasse nessa defesa todos os argumentos de facto e de direito de que dispusesse - deverá por razões de litigância transparente, invocá-los de uma só vez, cooperando para a resolução definitiva do litígio. [...]

Por isso, como decidiu o Juízo Central Cível ..., “o tribunal não pode atender às invocações/exclusões em causa."

*3. [Comentário] A RC decidiu bem, embora não tanto pelo aspecto da alegação extemporânea de factos pela demandada, mas antes pelo da falta da alegação tempestiva da excepção por essa parte. Efectivamente, o que origina a preclusão é a não alegação pela demandada da exclusão da sua responsabilidade perante o tomador do seguro.

MTS

30/03/2023

Jurisprudência 2022 (153)


Taxa de justiça;
taxa de justiça remanescente; dispensa


1. O sumário de RL 7/7/2022 (9677/15.1T8LSB.L1-2) é o seguinte:

I.− O n.º 8 do art.º 6.º do RCP (dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente quando o processo termine antes de concluída a fase de instrução) não se aplica a recursos.

II.− O regime decorrente do disposto no art.º 6.º n.º 7 do RCP, conjugado com o disposto no art.º 31.º do RCP, nos termos do qual se nega à parte o direito de requerer a dispensa ou a redução da taxa de justiça remanescente, na sequência da notificação da conta de custas, é materialmente constitucional.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na conta reclamada entendeu-se que pelo recurso de revista, interposto pela requerente do acórdão proferido pela Relação em 10.11.2016 (cfr. n.ºs 14 e 15 do Relatório), era devida, ao abrigo da Tabela I-B do RCP, taxa de justiça no valor de € 109 446,00. Pelo que, tendo a recorrente pago, aquando da interposição do recurso, taxa de justiça no valor de € 816,00, estava em dívida o montante de € 108 630,00. Na conta mencionou-se a decisão do STJ quanto a custas, constante a fls 1333 do apenso de recurso (cfr. n.º 17 do Relatório). E na informação prestada pela secretaria na sequência da reclamação apresentada, exarou-se que “a taxa de justiça é devida pelo impulso processual, conforme o disposto no art.º 6.º do Regulamento das Custas Processuais. Ora, assim sendo, afigura-se-nos que em ambos os recursos deverá ser considerado o remanescente da taxa de justiça, previsto no art.º 6.º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais, já que o mesmo não foi dispensado.”

Na decisão recorrida concordou-se com a secretaria.

A apelante defende que não há lugar a tributação correspondente ao recurso de revista, porque não chegou a haver recurso, uma vez que ele não foi admitido. Admite, porém (agora, em sede de apelação, que não em sede de reclamação da conta), que a tramitação ocorrida constitui um incidente, devendo ser tributado como tal.

Paralelamente, à semelhança do alegado na reclamação da conta, a apelante invoca, como fundamento para a desoneração do pagamento de taxa de justiça remanescente, o disposto no art.º 14.º, n.º 9, do RCP, na redação introduzida pela Lei n.º 27/2019, de 28.3, e o disposto no art.º 6.º n.º 8 do RCP, na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 86/2018, de 29.10.

Vejamos os três argumentos.

Como é sabido, a taxa de justiça é o montante legalmente devido por um sujeito processual em virtude de um determinado ato ou impulso processual (artigos 529.º n.º 2 e 530.º n.º 1 do CPC; art.º 6.º n.º 1 do RCP).

A taxa de justiça deve ser paga no momento do respetivo impulso processual, em uma ou duas prestações (artigos 13.º e 14.º do RCP), por meio de autoliquidação da parte.

Nos recursos, a taxa de justiça é fixada nos termos da tabela I-B (art.º 6.º n.º 2 do RCP) e é paga pelo recorrente, numa única prestação, com a apresentação da respetiva alegação (art.º 7.º n.º 2 do RCP).

Uma vez que o valor tributário do recurso excedia € 275 000,00, o recorrente pagou apenas o correspondente a esse limite, no valor de € 816,00, nos termos do art.º 6.º n.º 7 do RCP.

Desde logo se conclui que o enquadramento tributário dos recursos se faz na tabela I-B, que não na tabela II, que se aplica, nomeadamente, aos incidentes (art.º 7.º n.º 4 do RCP).

A apelante destrinça entre uma fase de “interposição do recurso”, que na apelação está prevista nos artigos 644.º a 651.º do CPC e que na revista se contém nos artigos 671.º e 678.º e uma fase de “julgamento do recurso”, que na apelação é versada nos artigos 652.º a 670.º e na revista está prevista nos artigos 679.º a 685.º. Segundo a recorrente esta destrinça teria efeitos ao nível da tributação. Apenas haveria recurso, para efeitos de taxa de justiça, se este fosse admitido a julgamento.

O problema, no caso destes autos, é que o recurso foi admitido no Tribunal da Relação e deu entrada no STJ onde seguiu tramitação que, na linha do apontado pelo apelante, se integra já na fase processual de julgamento. Na sequência dessa tramitação a Exm.ª Relatora entendeu pôr-lhe termo, por entender que o recurso não era admissível (por considerar que entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento não ocorria contradição relevante) julgando-o findo, nos termos da al. h) do n.º 1 do art.º 652.º (segundo o qual compete ao relator, nomeadamente “Julgar extinta a instância por causa diversa do julgamento ou julgar findo o recurso, por não haver que conhecer do seu objeto”). E, assim julgando e decidindo, na mesma decisão houve pronúncia quanto a custas: “Custas pela recorrente”.

Dúvidas não há que a espécie processual sub judice não se configurou, nem foi configurada como tal na decisão do STJ que lhe pôs termo, como incidente … mas sim como recurso.

Pelo que, nesta perspetiva, a conta elaborada não merece censura, ao reclamar da recorrente o remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no n.º 7 do art.º 6.º do RCP.

Porém, a apelante também aventa, como se disse, a aplicação ao caso da previsão do art.º 14.º, n.º 9, do RCP, na redação introduzida pela Lei n.º 27/2019, de 28.3.

Vejamos.

Como se sabe, a filosofia subjacente ao RCP é a de que os sujeitos processuais deverão pagar taxa de justiça pelo serviço de prestação de justiça que desencadeiem, independentemente do sucesso ou insucesso da tutela judicial pretendida, ou seja, independentemente do seu decaimento ou vencimento no processo respetivo. O vencedor deverá reclamar do vencido aquilo que ele, tutelado, suportou a título de taxa de justiça (além de outros elementos das custas).

Na versão inicial do RCP, nas tabelas I-A, I-B e I-C previa-se um limite máximo para o valor da taxa de justiça exigível.

Com este sistema, segundo consta no Preâmbulo do Dec.-Lei n.º 34/2008, “o valor da taxa de justiça não é fixado com base numa mera correspondência face ao valor da acção.” Partindo da constatação de que “o valor da acção não é um elemento decisivo na ponderação da complexidade do processo e na geração de custos para o sistema judicial”, procurou-se “um aperfeiçoamento da correspectividade da taxa de justiça”, estabelecendo-se “um sistema misto que assenta no valor da acção, até um certo limite máximo, e na possibilidade de correcção da taxa de justiça quando se trate de processos especialmente complexos, independentemente do valor económico atribuído à causa.” Assim, segundo o legislador, visou-se “adequar[-se] o valor da taxa de justiça ao tipo de processo em causa e aos custos que, em concreto, cada processo acarreta para o sistema judicial, numa filosofia de justiça distributiva à qual não deve ser imune o sistema de custas processuais, enquanto modelo de financiamento dos tribunais e de repercussão dos custos da justiça nos respectivos utilizadores.”

O Dec.-Lei n.º 52/2011, de 13.4, alterou, de forma significativa, as referidas tabelas. O legislador apresentou tais alterações pela seguinte forma: “…as tabelas, anexas ao Regulamento das Custas Processuais, são alteradas no sentido de prever algumas situações que estavam omissas. Constatou-se que a taxa de justiça nalguns casos não estava adequada à complexidade da causa, pelo que se prevê um aumento progressivo da taxa de justiça a partir do último escalão da tabela, embora os valores se mantenham muito inferiores aos do regime anterior ao do Regulamento.”

Assim, as tabelas (I-A, I-B e I-C) deixaram de prever um montante máximo da taxa de justiça. A tabela I-A, por exemplo, passou a ter, como escalão mais elevado expressamente previsto, o correspondente aos processos com valor de € 250 000,01 a € 275 000,00, a que caberá a taxa de justiça equivalente a 16 UC e, para além daquele valor de € 275 000,00, ao valor da taxa de justiça acrescerá, “a final”, 3 UC por cada € 25 000,00 ou fração. Ou seja, por exemplo, aquando da propositura da ação o autor, numa ação com valor superior a € 275 000,00, autoliquidará taxa de justiça correspondente a 16 UC, e a final pagará o correspondente ao remanescente.

Tal solução passou a determinar que em ações de valor muito elevado fossem cobradas taxas de justiça por vezes exorbitantes, sem qualquer correspondência com o serviço de administração de justiça prestado. Esse regime foi, por isso, qualificado de materialmente inconstitucional, por ofensa ao princípio da proporcionalidade (ou de proibição do excesso), decorrente do princípio do Estado de Direito (artigos 2.º e 18.º n.º 2, 2.ª parte, da CRP) e da tutela do direito de acesso à justiça (art.º 20.º da CRP) – cfr., v.g., acórdão do TC, n.º 421/2013, de 15.7.2013.

Consequentemente, a Lei n.º 7/2012, de 13.02, alterou o art.º 6.º do RCP, adicionando o atual n.º 7:

Nas causas de valor superior a € 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.”

Simultaneamente, em coerência com o princípio de que a taxa de justiça é devida ao Estado independentemente do vencimento ou decaimento na causa, a Lei n.º 7/2012 acrescentou ao art.º 14.º do RCP um n.º 9, com a seguinte redação:

9- Nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º e o responsável pelo impulso processual não seja condenado a final, o mesmo deve ser notificado para efectuar o referido pagamento, no prazo de 10 dias a contar da notificação da decisão que ponha termo ao processo.”

Isto é, a parte que não fosse julgada (total ou parcialmente) responsável pelas custas deveria, na mesma, pagar a taxa de justiça remanescente que se mostrasse em falta e que correspondesse ao respetivo “impulso processual”. Depois, a parte poderia reclamar da parte contrária a taxa de justiça que pagara a mais (de acordo com a responsabilidade em custas que lhe fosse atribuída pela decisão final – artigos 527.º, 607.º n.º 6 do CPC), a título de custas de parte, até cinco dias após o trânsito em julgado da decisão condenatória (art.º 533.º n.º 1, n.º 2 alínea a) e n.º 3 do CPC; artigos 25.º n.º 1 e n.º 2, alíneas b) e e) e 26.º, n.ºs 1, 2 e 3 alínea a) do RCP, na redação introduzida pela Lei n.º 7/2012; atualmente, o prazo foi alargado para dez dias, nos termos das alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 86/2018, de 29.10).

Esta exigibilidade da taxa de justiça remanescente face a quem havia obtido ganho de causa no processo, sujeitando-o ao encargo de posteriormente diligenciar do vencido o respetivo reembolso mereceu do Tribunal Constitucional um juízo de desconformidade com a Constituição da República Portuguesa, por comprimir “excessivamente o direito fundamental de acesso à justiça, previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, impondo um ónus injustificado face ao interesse público em presença em violação do princípio da proporcionalidade decorrente do artigo 18.º, n.º 2º, da Constituição” (TC 615/2018, de 21.11.2018).

Foi na sequência de tal juízo de inconstitucionalidade que a Lei n.º 27/2019, de 28.3, alterou a redação do mencionado n.º 9 do art.º 14.º, o qual passou a ter a seguinte redação:

Nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º, o responsável pelo impulso processual que não seja condenado a final fica dispensado do referido pagamento, o qual é imputado à parte vencida e considerado na conta a final.”

No caso sub judice, a norma em causa (que reputamos ser imediatamente aplicável a todos os processos pendentes, nos termos previstos no art.º 11.º do Código Civil) beneficia não a requerente/apelante/vencida no recurso de revista, mas sim o 3.º requerido, que, tendo contra-alegado no recurso de revista, e como tal tendo pago € 816,00 de taxa de justiça, face ao novo regime não é chamado – como não foi - a pagar a taxa de justiça remanescente.

Assim, esta norma não é aplicável à apelante, não a dispensando do pagamento do referido acréscimo tributário.

Finalmente, cabe apreciar o terceiro argumento apresentado pela apelante. Segundo a apelante, ao caso deveria aplicar-se o disposto no art.º 6.º n.º 8 do RCP, na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 86/2018, de 29.10.

A redação do aludido n.º 8, introduzido no art.º 6.º do RCP pelo Dec.-Lei n.º 86/2018, é a seguinte:

8- Quando o processo termine antes de concluída a fase de instrução, não há lugar ao pagamento do remanescente.”

O Dec.-Lei n.º 86/2018 contém normas de direito transitório, inscritas no art.º 4º, de que se destacam as alíneas a), b) e d):

a)-Relativamente aos processos pendentes, as alterações apenas se aplicam aos atos praticados a partir da entrada em vigor do presente decreto-lei, considerando -se válidos e eficazes todos os pagamentos e demais atos regularmente efetuados ao abrigo da legislação aplicável no momento da prática do ato, ainda que a aplicação do Regulamento das Custas Processuais, com a redação dada pelo presente decreto-lei, determine solução diferente;
 
b)-Todos os montantes cuja constituição da obrigação de pagamento ocorra após a entrada em vigor do presente decreto-lei, nomeadamente os relativos a taxas de justiça, a encargos, a multas ou a outras penalidades, são calculados nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais, com a redação dada pelo presente decreto-lei;
 
d)-Nos processos em que há lugar ao pagamento da segunda prestação da taxa de justiça e o mesmo ainda não se tenha tornado exigível, o montante da prestação é fixado nos termos da redação que é dada ao Regulamento das Custas Processuais pelo presente decreto-lei, ainda que tal determine um montante diverso do da primeira prestação”.

Destas normas se deduz que a obrigação de pagamento de taxa de justiça se regula pelo regime que estiver em vigor à data da sua exigibilidade. No caso do vencido em custas, a exigibilidade da taxa de justiça remanescente só surge com a notificação da conta de custas, pelo que a referida alteração legislativa deve ser levada em consideração aquando da elaboração da conta, na medida em que a lei já esteja em vigor.

In casu, a conta de custas foi elaborada em 17.10.2019, pelo que já se regeu por este diploma.

A apelante defende que este preceito (n.º 8 do art.º 6.º do RCP) é aplicável ao recurso de revista sub judice, na medida em que o processo terminou antes de qualquer fase correspondente à fase de instrução.

Este preceito visou aplicar, em sede de pagamento de taxa de justiça remanescente, a mesma solução que vigorava e vigora quanto ao pagamento da segunda prestação da taxa de justiça, prevista nos artigos 13.º n.º 2 e 14.º n.º 2 do RCP (defendendo esta equiparação entre o regime da segunda prestação da taxa de justiça e o da taxa de justiça remanescente, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 21.01.2020, processo 12080/16.2T8LRS.L2-7, ponto IV-2, consultável, tal como todos aqueles que adiante se citarem, em www.dgsi.pt).

Nos processos mencionados nesses artigos, de que estão excluídos os recursos (desde logo, o art.º 13.º n.º 2 não menciona a tabela I-B), a segunda prestação de taxa de justiça deverá ser paga no prazo de 10 dias a contar da notificação para a audiência final (art.º 14.º n.º 2). Porém, nos termos do art.º 14.º-A, não há lugar ao pagamento da segunda prestação da taxa de justiça, além de outros que estão mencionados no artigo, nos seguintes casos:

b)-Ações que não comportem citação do réu, oposição ou audiência de julgamento;

c)-Ações que terminem antes de oferecida a oposição ou em que, devido à sua falta, seja proferida sentença, ainda que precedida de alegações;

 d)-Ações que terminem antes da designação da data da audiência final.

A atenuação do rigor tributário, justificado pela simplificação processual referida, é considerada tão só em processos que correm em primeira instância, como resulta da tramitação mencionada no preceito (note-se que, para efeitos tributários, considera-se processo autónomo cada ação, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso – art.º 1.º n.º 2 do RCP).

Também o n.º 8 do art.º 6.º do RCP tem em vista a tramitação dos processos em primeira instância, únicos em que há lugar à fase da instrução (Título V do Livro II do CPC). Deste preceito resulta que, além da dispensa de pagamento da segunda prestação, nos casos em que o processo termine antes da passagem à fase da discussão e julgamento será dispensado o pagamento da taxa de justiça remanescente. Trata-se de um incentivo ao termo precoce do processo - o que faz pouco (ou muito menos) sentido em sede de recurso.

Entende-se, pois, que o aludido preceito também não é aplicável à situação sub judice."

[MTS]


29/03/2023

Jurisprudência 2022 (152)


Recurso de revisão; 
falsidade de depoimento


1. O sumário de STJ 14/7/2022 (602/15.0T8AGH.L1-A.S1) é o seguinte:

I - O recurso extraordinário de revisão de sentença pode incidir sobre qualquer decisão judicial, apenas se exigindo que ela tenha transitado em julgado, independentemente da sua natureza ou objeto, e da categoria do tribunal de que emana, não dependendo nem do valor da causa e nem do grau de sucumbência, estando ainda vedado às partes, por tal colidir com os interesses de ordem pública que lhe estão subjacentes, renunciar antecipadamente ao mesmo.

II - Recurso esse que dever ser interposto dentro dos prazos plasmados no artº. 697º do CPC, onde se estabelecem dois prazos:

a) Um primeiro prazo de 5 anos, que é absoluto e que em circunstância alguma – salvo quando envolver matéria relacionada com os direitos de personalidade - pode ser excedido, contando-se a partir da data do trânsito em julgado da decisão revidenda.
 
b) E um segundo prazo, mais curto, de 60 dias, que funciona dentro daquele, e cujo início de contagem depende do fundamento de revisão que for invocado.
 
III - Prazos esses que são de caducidade e de conhecimento oficioso.

IV - Fundamentando-se esse recurso na falsidade de depoimento, prestado no decurso da audiência de julgamento realizada na ação em que foi proferida a decisão revidenda, não constitui requisito de exigência legal que o requerimento de interposição de recurso seja instruído por sentença judicial, proferida em processo autónomo prévio, que ateste/declare o alegado falso testemunho (podendo a discussão dos pertinentes factos ocorrer no âmbito do próprio processo do recurso de revisão).

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3. Quanto à 2ª. questão.

A segunda questão tem, no fundo, a ver com o saber se verificam ou não, desde logo, ou seja, ab initio, motivos legais que impedem o prosseguimento o recurso de revisão e que conduzem à sua rejeição de imediata, ou seja, seja, ao seu indeferimento liminar.

O tribunal a quo entendeu que sim, ao contrário do entendimento perfilhado pela recorrente (cuja razões de discordância constam das conclusões do seu recurso que atrás se deixaram transcritas).

Apreciemos.

Encontramo-nos perante um recurso extraordinário de revisão de sentença (neste caso de um acórdão da Relação proferido, em 11/02/2018, no âmbito do processo/ação nº. 99/..., acima melhor identificado) que a recorrente instaurou/interpôs. [...]

O recurso de revisão interpõe-se por meio de requerimento, no tribunal onde foi proferida a decisão revidenda onde se aleguem os fundamentos, taxativamente plasmados nas diversas alíneas do artº. 696º do atual CPC (que reproduz o artº. 771º do anterior CPC, na redação que foi dada pelo DL nº. 303/2007, de 24/08) constituindo entendimento prevalecente que a sua apreciação deverá ser feita à luz da norma vigente no momento em que foi proferida a decisão revidenda.

Recurso esse que dever ser interposto dentro dos prazos plasmados no artº. 697º do CPC, onde se estabelecem dois prazos: um prazo absoluto de 5 anos sobre o trânsito em julgado da decisão (revidenda) - excluindo-se dele quando estão em causa direitos de personalidade -, e um prazo relativo de 60 dias, que se contem dentro daquele e que se inicia consoante os fundamentos invocados,

Na verdade, e como decorre da leitura de tal preceito legal, estabelece-se um primeiro prazo limite de 5 anos, contado da data em que transitou em julgado a sentença revidenda, que não pode, em caso algum, ser excedido – salvo tratando-se de matéria que diga respeito a direitos de personalidade -, funcionando depois dentro desse prazo um outro, mais curto, de 60 dias, cujo início de contagem, para a interposição do recurso, depende do fundamento invocado para a revisão da sentença.

Muito embora a lei não o diga expressamente, constitui entendimento pacífico que estamos perante prazos de caducidade, que são de conhecimento oficioso, o que, decorre, por um lado, da natureza indisponível do direito que se pretende exercitar e, por outro, do facto de o artº. 699, nº. 1, do CPC determinar a aplicação do artº. 641º, que incumbe ao juiz apreciar a oportunidade do requerimento de interposição do recurso. (No sentido que se deixou exposto, vide, por todos, Abrantes Geraldesin “Ob. cit., págs. 566 e 567” e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, in “Ob. cit., págs. 862/863”).

Requerimento de recurso que deve ser, desde logo, indeferido, quando, além do mais (e naquilo que para aqui importa), se reconheça de imediato que não há motivo para a revisão requerida, ou seja, e por outras palavras, que o recurso não possa proceder (cfr. artº. 699º do CPC).

Posto isto, reportemo-nos ao caso que nos foi submetido a apreciação.

No caso do presente recurso invocou-se como fundamento do mesmo o previsto na al. b) do artº. 696º do CPC, e, grosso modo, mais concretamente por existência de falsidade do depoimento prestado pela “legal representante” da Ré (a administradora da Massa Insolvente acima identificada) no processo onde veio a ser proferida a decisão que ora se pretende rever e que foi determinante para essa decisão, e do qual teve conhecimento nas circunstâncias que aduz nas conclusões acima transcritas do seu requerimento do recurso.

Sobre esse fundamento dispõe-se naquele citado normativo legal (artº .696º, al. b)) que:

«A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando:

a) (…)

b) – Se verifique a falsidade do documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objecto de discussão no processo em que foi proferida. »

Esse fundamento respeita à chamada “formação do material instrutório” e a sua procedência depende da verificação cumulativa de três requisitos: (i) A alegação de falsidade de documento ou ato judicial, depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros; (ii) O nexo de causalidade entre a falsidade e a decisão a rever, ou seja, que o ato/depoimento falso tenha “determinado a decisão a rever”; (iii) A matéria da falsidade não tenha sido objeto de discussão no próprio processo.

Como primeiro fundamento do indeferimento liminar, aduziu o tribunal a quo o facto de, da factualidade alegada no requerimento inicial, não constar que a invocada falsidade do aludido depoimento se mostrar atestada por qualquer (prévia) decisão judicial transitada em julgada, o que, desde logo, hipoteca a possibilidade de concluir se a referida depoente/declarante faltou à verdade (sobre os factos a que alude a recorrente), e daí considerar que aquela factualidade alegada não preenche o citado normativo legal (al. b) do artº. 696º).

Mas será assim?

Ou seja, será que a invocada falsidade de depoimento deve estar previamente atestada/declarada por decisão judicial para que o fundamento previsto na al. b) do citado artº. 696º possa ser preenchido e conduzir ao êxito da pretensão do(a) recorrente?

Entendemos que não, e pelo seguinte:

No artº. 771º do anterior CPC de 61 (na redação que lhe foi dada pelo artº. 1º do DL nº. 329-A/95 de 12/12, no âmbito da chamada Reforma de 95), sobre os fundamentos do recurso de revisão, dispunha-se nos seguintes termos:

« A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão nos seguintes casos:

a) (…)

b) Quando se apresente sentença já transitada que tenha verificado a falsidade de documento ou acto judicial, de depoimento ou declarações de peritos, que possam em qualquer dos casos ter determinado a decisão a reverA falsidade de documento ou acto judicial não é, todavia, fundamento de revisão, se a matéria tiver sido discutida no processo em que foi proferida a decisão a rever; » [...]

Donde resultava, de tal normativo, a expressa exigência de que o requerimento de interposição do recurso de revisão com o fundamento previsto na citada al. b) fosse instruído/acompanhado de certidão de sentença, transitada em julgado – proferida em qualquer processo, fosse de natureza civil ou criminal -, que tenha declarado/afirmado/verificado a falsidade de documento, do ato judicial, do depoimento ou das declarações que se alegue ter determinado o sentido da decisão a rever, a não ser que, no que concerne aos documentos ou atos judiciais (que aqui não estão em causa), a matéria (relativa à sua falsidade) tivesse já sido discutida no processo em que foi proferida a decisão que se pretendia rever.

Porém, com a redação posteriormente introduzida ao referido normativo legal pelo DL nº. 38/2003, de 08/03, tal requisito deixou de ser exigível nos recursos de revisão tendo por base tal fundamento de falsidade.

Na verdade, essa exigência deixou, com o aludido Dec.-Lei, de fazer da parte da citada al. b) do artº. 771º, como se pode observar do texto que passou a ter:

«A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão nos seguintes casos:

« a) (…)

b) Quando se verifique a falsidade do documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever. A falsidade de documento ou acto judicial não é, todavia, fundamento de revisão, se a matéria tiver sido discutida no processo em que foi proferida a decisão a rever; »

Inexigibilidade essa que continuou a manter-se na redação dada depois ao citado artº. 771º, pelo Dec.- Lei nº. 303/07, de 24/08, ao preceituar- se:

«A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando:

a) (…)

b) – Se verifique a falsidade do documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objecto de discussão no processo em que foi proferida. »

Redação esta que depois se transpôs na integra para o acima também transcrito artº. 696º al. b) do nCPC, o que bem demonstra, a nosso ver, a real intenção de legislador de não constituir exigência legal que a falsidade que se invoca – nomeadamente dos depoimentos, e tendo em conta o caso sub judice –, como fundamento da decisão a rever, tenha sido previamente declarada/atestada em outro processo judicial, num claro sinal de opção de que essa discussão devesse ter lugar no âmbito do próprio processo/recurso de revisão.

No mesmo sentido, aponta Abrantes Geraldes (in “Ob. cit., pág. 558”), quando, a esse propósito, e em comentário ao citado artº. 696º do CPC, afirma que “Ao contrário do que emergia da primitiva a redação do preceito, não se torna necessário instruir o requerimento com qualquer sentença confirmativa da falsidade, tendo-se optado por integrar a discussão dos factos pertinentes no âmbito da revisão.” (sublinhado e negrito nossos). (No mesmo sentido, vide, entre outros, Amâncio Ferreira, in “Ob. cit., pág. 339” e Ac. do STJ de 13/12/2017, proc. nº. 2178/04, disponível em www.dgsi.pt, e em sentido contrário, cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 14/07/2016, proc. nº. 241/10.2TVLSB.L1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt.).

E perante o que se deixou exposto, falece o primeiro fundamento/argumento a aduzido pelo tribunal a quo para indeferir liminarmente o requerimento do recurso extraordinário de revisão.

Porém, o tribunal a quo erigiu ainda outro fundamento para indeferir liminarmente o requerimento de interposição do recurso de revisão: caducidade do direito de o fazer.

Na verdade, entendeu também que essa caducidade ocorreu por já ter decorrido o prazo de 60 dias previsto no nº. 2 do citado artº. 697º do CPC, quando a ora recorrente interpôs o aludido recurso de revisão.

Caducidade essa que o tribunal a quo fundamentou nos seguintes termos que se deixam transcritos:

«(…) Com efeito, tendo o requerimento do recurso extraordinário de revisão sido apresentado em 26/3/2021, e aí afirmando a recorrente ter tomado conhecimento da referida falsidade das declarações prestadas em 28/1/2016 através da declaração constante do requerimento apresentado no seu PER em 20/11/2019, mais alegando que foi com tal conduta declarativa que a referida CC preencheu todos os elementos do crime de falsidade de depoimento, levando a recorrente a apresentar a correspondente participação criminal em 5/8/2020, impõe-se a conclusão de que, pelo menos em 5/8/2020, a recorrente havia tomado conhecimento da imputada falsidade de depoimento. Pelo que quando em 26/3/2021 apresentou o requerimento do recurso extraordinário de revisão, há muito se havia esgotado o referido prazo de 60 dias, contado da referida data de 5/8/2020.

Ou, dito de outra forma, mesmo admitindo que o facto fundante da revisão não é a existência de decisão proferida em acção autónoma e prévia que aprecie (e declare) a falsidade do depoimento, mas tão só a específica materialidade fáctica de onde se pode concluir pela verificação da falsidade em questão, então tal materialidade corresponde, segundo o alegado pela recorrente, à actuação de 20/11/2019 da depoente, e que em 5/8/2020 confessadamente a recorrente já conhecia (pois que denunciou criminalmente a mesma), sendo irrelevante, para este fim (da verificação da caducidade do direito da recorrente), o conhecimento subsequente da actuação de 4/3/2021. Aliás, a afirmação da recorrente de que a verificação judicial das falsas declarações, "como têm entendido os Tribunais Superiores certamente que resulta da condenação pelo correspondente crime, mas não se esgota aí e pode, como no caso sujeito, resultar de certidão emanada por virtude de decisão judicial proferida no processo próprio, para esses fins", carece de todo e qualquer fundamento, desde logo porque a referida certidão onde se comprova a actuação de 4/3/2021 não corresponde a qualquer "verificação judicial (dada a natureza, conteúdo e origem do documento) das falsas declarações", mas apenas e tão só à certificação da resposta a um pedido de prestação de informações formulado no processo de insolvência da recorrida, fora da tramitação própria daquele tipo de processo. E, nessa medida, essa actuação processual não tem a relevância factual e funcional que a recorrente lhe pretende atribuir, designadamente para fazer desconsiderar o conhecimento anterior da materialidade fáctica relevante para a verificação da falsidade em questão.

O que faz concluir que, ainda que por esta via da afirmação da desnecessidade de existência de decisão proferida em acção autónoma e prévia que aprecie (e declare) a falsidade do depoimento, sempre haveria igualmente que rejeitar liminarmente o requerimento em apreço, através do conhecimento oficioso da caducidade do direito da recorrente a lançar mão do recurso extraordinário de revisão.»

Posto isto, diremos que nos revemos inteiramente nos argumentos esgrimidos pelo tribunal a quo para chegar à conclusão sobre a caducidade do direito da recorrente interpor o sobredito recurso de revisão, e nessa medida nos remetemos para a referida fundamentação e respetiva decisão."

[MTS]



28/03/2023

Jurisprudência 2022 (151)


Caso julgado;
excepção de caso julgado; autoridade de caso julgado*


1. O sumário de STJ 13/7/2022 (176/21.3BEBRG.G1) é o seguinte:

1) Há que distinguir entre exceção de caso julgado e autoridade de caso julgado;

2) A autoridade de caso julgado visa a tutela do prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objeto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta;

3) A autoridade de caso julgado não exige, assim, a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 498º do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Levanta-se a questão de saber se deverá ser alterada decisão que julgou procedente a exceção de caso julgado. [...]

Atualmente o caso julgado constitui uma exceção dilatória (artigo 577º alínea i) do NCPC), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigo 576º nº 2 NCPC).

A exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, conforme resulta do artigo 580º NCPC.

Quanto aos requisitos do caso julgado (e da litispendência) diz-nos o artigo 581º NCPC que:

“1. Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”

Conforme se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 28/09/2010, no Processo 392/09.6TBCVL.C1, relatado pelo Desembargador Jorge Arcanjo, disponível em www.dgsi.pt, “A expressão “caso julgado“ é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado“, ou seja, caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega.

Neste contexto, pode distinguir-se ambos os institutos da seguinte forma:

A exceção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas;

A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica). [...]
 
Na verdade, considerando que a força e autoridade do caso julgado visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal e que possui também um valor enunciativo, que exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada e exclui todo o efeito incompatível (…) mas estando judicialmente decidido, por trânsito em julgado, isso mesmo, não pode voltar a apreciar-se tal questão, por se lhe impor a primeira decisão sobre a relação material controvertida, com força obrigatória dentro e fora do processo ou seja com a autoridade de caso julgado (arts.671º nº 1 e 673º do CPC).” [...]

“A propósito dos limites subjetivos do caso julgado, muito embora a regra seja a vinculação entre as partes (eficácia relativa), há casos em que a sentença se projeta na esfera jurídica de terceiros, vinculando-os. Daí que tanto a doutrina, como a jurisprudência, tenham vindo a acolher a distinção entre “eficácia direta” e “eficácia reflexa” do caso julgado.

Neste contexto, assumem eficácia reflexa ou ultra partes, por exemplo as sentenças de anulação ou declarativas da nulidade de negócios, as proferidas em questões de estado, as formadas sobre uma relação jurídica que surge como fundamento de pretensões em ações posteriores (cf., por ex, António Cunha, Limites Subjetivos do Caso Julgado, pág. 14 e segs.).

Para Teixeira de Sousa (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág.588 e segs.), a eficácia reflexa vincula qualquer sujeito a aceitar aquilo que foi decidido entre todos os sujeitos com legitimidade processual, isto é, “quando a ação decorreu entre todos os interessados diretos (quer ativos, quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores (na expressão do art. 2503º § único, CC/1867) deve ser aceite por qualquer terceiro”.

No caso que nos ocupa, não há qualquer dúvida quanto à verificação da identidade dos sujeitos em ambas as ações, entendendo o apelante que nem a causa de pedir, nem o pedido são idênticos nas duas ações.

A este propósito, refere-se na decisão recorrida que “Relativamente aos pedidos, são exatamente os mesmos, com exceção da parte final do pedido do ponto II (“violando ostensivamente o alvará de loteamento”) e pedido efetuado em IV (condenação à construção de um novo muro).

Todavia, nesta parte entendemos (à semelhança da posição adiantada no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 16.03.2017) que há identidade de pedidos, pois, apesar de não haver total coincidência, os pedidos da presente ação estão numa relação de decorrência lógica face aos pedidos da outra ação.”  ( … )

“E aqui chegados, qual é a causa de pedir em ambas as ações?

É exatamente a mesma! Trata-se da factualidade relativa à construção de um muro por parte dos réus, que alegadamente invade uma faixa de terreno da propriedade do autor.

Se tal ocupação do terreno é ilegal ou ilegítima porque viola o direito de propriedade do autor ou porque viola as normas administrativas urbanísticas relativas ao plano de loteamento, já se trata de matéria de direito, ou seja, trata-se das “razões de direito que servem de fundamento à ação”.

Vejamos. [...]

A identidade de pedidos pode, aliás, ser apenas parcial e, ainda assim, ser bastante para que se considerem verificadas a exceção de litispendência ou de caso julgado. Por exemplo, em face de uma anterior sentença que julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre um determinado prédio, com base num determinado fundamento, (ação de simples apreciação positiva), existe repetição da causa se for proposta uma ação de reivindicação na qual, com base no mesmo fundamento, se pretenda ainda a condenação do réu na restituição do bem.”

A identidade de causas de pedir verifica-se quando as pretensões deduzidas nas ações derivam do mesmo facto jurídico, analisado à luz da substanciação consagrada no nº 4. No que tange à noção operativa de causa de pedir para efeitos de litispendência, Mariana França Gouveia, A causa de Pedir na Ação Declarativa, defende que se identifica com o conjunto de factos principais que permitem preencher determinada norma jurídica, de modo que apenas quando noutra ação se aleguem normas que impliquem, pelo menos, um facto principal diferente será diversa a causa de pedir (p. 508). Continua a mesma autora que só haverá exceção de litispendência quando, na segunda ação, não são alegados factos principais diferentes dos alegados na primeira (p. 512) e que, para efeitos de exceção de caso julgado, a causa de pedir será definida “através do conjunto de todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada (p. 497), daqui derivando que um mesmo acontecimento histórico possa ser reapreciado com base noutra norma jurídica quando algum dos factos que permitem a aplicação dessa norma não tenha sido apreciado pelo juiz. [...]"

Serve tudo para concluir que bem decidiu a 1ª instância quando considerou verificada a exceção de caso julgado. [...]

De resto cumpre esclarecer que relativamente à conclusão b) da apelação refere o apelante que “a causa de pedir no presente processo consubstanciou-se na invocação de factos, que se subsumem na alínea a) do nº 3 do artigo 13º do Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação e no nº 5 do artigo 76º do Plano Diretor Municipal de ..., que conferem ao recorrente um direito subjetivo de caráter real, que acresce ao direito de propriedade e ao direito de usufruto de que é titular” trata-se, manifestamente, de lapso, na medida em que por força do princípio estabelecido no artigo 1306º nº 1 do Código Civil “não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional.”

Aliás basta ler os normativos indicados para se perceber a falta de razão do apelante.

Com efeito, os limites de afastamento construções em prédios vizinhos pertencentes a donos diferentes já constam do Código Civil, pelo que a invocação nesta ação de Regulamentos Municipais ou de Planos Diretores Municipais, não tem a virtualidade de extravasar do âmbito da anterior causa de pedir.

Assim sendo, verificando-se, entre a anterior ação e a presente, a identidade dos sujeitos, dos pedidos e da causa de pedir, daí resulta que se mostra verificada a exceção dilatória de caso julgado, que tem como consequência a absolvição dos réus da instância (artigos 576º, 577º i), 580º e 278º nº 1 e) NCPC).

De resto, ainda que assim não fosse – e é – sempre haveria lugar à invocação da autoridade do caso julgado, que se traduziria no mesmo resultado."


*3. [Comentário] A RG decidiu bem o problema da excepção de caso julgado.

No entanto, aproveita-se o ensejo para procurar desfazer algumas confusões quanto à autoridade de caso julgado. No sumário do acórdão escreveu-se o seguinte:

2) A autoridade de caso julgado visa a tutela do prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objeto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta;

3) A autoridade de caso julgado não exige, assim, a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 498º do Código de Processo Civil.

Estas afirmações têm de ser vistas com muito cuidado.

Há efectivamente situações em que o que se encontra decidido numa acção é vinculativo para terceiros, ou seja, para quem não foi parte nessa acção. Lembre-se, por exemplo, o disposto no art. 622.º CPC quanto aos efeitos das decisões relativas a estados pessoais e o estabelecido no art. 522.º CC quanto à extensão a todos os devedores solidários de uma decisão absolutória proferida quanto a um deles.

No entanto, não se pode dizer que a autoridade de caso julgado dispensa sempre "a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 498º do Código de Processo Civil". A regra é precisamente a inversa: atendendo à garantia do contraditório, a regra é a de ninguém pode ser atingido pelos efeitos de uma decisão proferida num processo em que não foi parte. Dando um exemplo simples (e em relação ao qual há, por vezes, algumas confusões): o que foi definido entre o lesado e o lesante numa acção não pode ser oposto, numa acção posterior instaurada pelo lesante condenado, à sua companhia seguradora.

MTS

27/03/2023

Legislação (221)


Regras sobre a distribuição


-- P 86/2023, de 27/3: Procede à alteração das regras relativas à distribuição, por meios eletrónicos, dos processos nos tribunais judiciais e nos tribunais administrativos e fiscais


Nota: 

Já houve a oportunidade de deixar alguns apontamentos críticos sobre a L 55/2021, de 13/8 (clicar aqui). Se a L 55/2021 não vier a ser alterada antes da entrada em vigor ou da aplicabilidade da P 86/2023 (cf. art. 8.º P 86/2023) -- o que se antevê como muito pouco provável, porque a sua alteração implicaria uma nova regulamentação --, entrarão mesmo em vigor alterações ao CPC que, além de discutíveis em si mesmas, decorrem de uma deficiente e descuidada actividade legislativa.

MTS

Jurisprudência 2022 (150)


Reconvenção subsidiária;
admissibilidade; conexão objectiva*


1. O sumário de RG 30/6/2022 (1216/21.1T8VRL-A.G1) é o seguinte:

I. Se numa acção de preferência intentada pelos locatários relativamente à venda do prédio arrendado, os réus, para obstarem ao exercício deste direito pelos autores e obterem a improcedência da acção e absolvição do pedido, entre outras excepções peremptórias, invocam a de abuso de direito (artº 334º, CC) na modalidade de venire contra factum proprium e, simultaneamente, peticionam, através de reconvenção deduzida a título subsidiário, isto é, para o caso de a acção proceder a despeito da referida excepção peremptória (e das demais), que os autores reconvindos sejam condenados no pagamento de certas quantias, ora a título de despesas efectuadas ora de preços que alegadamente terão de satisfazer relativos a contratos de empreitada e de prestação de serviços entretanto celebrados, jamais este pedido subsidiário poderá lograr acolhimento.

II. Com efeito, procedendo tal defesa (julgando-se ilegítimo o exercício da preferência) e, consequentemente, improcedendo a acção, o negócio efectuado permanecerá incólume. Logo, não haverá fundamento para a reconvenção por inexistência dos prejuízos/danos alegados e peticionados subsidiariamente.

III. Mas se, pelo contrário, improceder tal defesa e, por isso, proceder a acção (julgando-se legítimo o exercício daquele direito), então também não haverá qualquer actuação ilícita por parte dos autores arrendatários que fundamente a imputação e consequente responsabilização dos mesmos por aqueles alegados danos/prejuízos.

IV. Na verdade, constituindo o abuso de direito o facto ilícito gerador do invocado direito de indemnizar e não podendo ele não ser (resultar não provado como excepção) e ser (resultar provado como um dos elementos da causa de pedir – o facto ilícito – complexa relativa à responsabilidade civil indemnizatória) ao mesmo tempo, ou seja, na mesma instância e relativamente ao objecto dela eventualmente modificado, soçobrar em sede de exceptio e renascer e prevalecer em sede de acção reconvencional, segue-se que este pedido, com tal fundamento e formulado naqueles termos, se apresenta ilógico, incoerente e inviável.

V. É que, sendo pressuposto do pedido reconvencional deduzido como subsidiário a improcedência da defesa exceptiva (do abuso de direito) e, portanto, a procedência da acção, a falha daquele (do inerente facto ilícito) implica a necessária e consequente impossibilidade de preenchimento do primeiro dos pressupostos fundamentadores da responsabilidade civil enquanto modalidade “sancionatória” da conduta contraditória e violadora da boa fé e da confiança.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A matéria da admissibilidade da reconvenção, eternamente controversa em função das múltiplas especificidades de cada caso concreto e dos motivos e objectivos com que as partes lançam mão dela, está vastamente escalpelizada na Doutrina e na Jurisprudência.

Apenas se relembra, porque se considera estulto, inútil e fastidoso aqui repetir, o que se explana a tal propósito, v.g., nos Acórdãos desta Relação de Guimarães, de 10-07-2018 [8], da Relação do Porto, de 18-11-2019 [---], e de 10-02-2020 [---], da Relação de Coimbra, de 17-03-2020 [---] e, mais recentemente, no Acórdão da Relação de Lisboa, de 10-03-2022 [---].

Neste, como, v.g., já nos anteriores Acórdãos da Relação do Porto, de 05-07-2011 [---], de 21-11-2019 [---] e de 13-10-2020 [---], abertamente se defende, em linha com os Mestres aí citados, a admissibilidade de dedução do pedido reconvencional em termos subsidiários, eventuais ou condicionais (para o caso de o pedido originário do autor ser julgado procedente).[---]

Observa-se, porém, como sinal de que nem sempre as coisas se apresentam assim tão simples e, portanto, aquele entendimento dotado de aptidão indiscutível para ser aplicado genérica e linearmente sem considerar as específicas diversidades apresentadas em função de cada caso concreto, que no Acórdão da Relação do Porto, de 18-06-2020 [---] se entendeu que “Não é admissível reconvenção condicional ou subsidiária, para a hipótese de procedência da acção, libertando-se o réu, por meio de compensação, da obrigação que o vinculava ao autor, tendo ele negado a existência do crédito que este tinha sobre si”.

Salienta-se, para tal, a incongruência que a dedução de uma tal reconvenção/compensação encerra [---], o que mostra que, para ser admissível o recurso a tal mecanismo, não basta a verificação das conexões estabelecidas na lei, sendo necessário que a subsidiariedade desta também com elas juridicamente se harmonize e apresente como viável.

Seja como for, o certo é que nos termos dos artºs 583º e 266º, CPC, o réu pode deduzir, em reconvenção, pedidos contra o autor, além de outras hipóteses de admissibilidade que não vêm ao caso:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida.

Nos presentes autos, pretendem os réus, a título principal, que a acção de preferência proposta pelos alegados arrendatários de imóvel, a quem alegadamente não terá sido facultado o exercício do direito de preferirem na respectiva venda, seja julgada improcedente e, portanto, se decrete a sua absolvição total do pedido.

Entre os vários fundamentos (exceptivos e impugnatórios) aduzidos para sustentar essa pretensão, avulta o do abuso de direito, previsto no artº 334º, do CC, no caso invocado quanto à sua dimensão relativa à violação dos princípios da boa fé, na modalidade de venire contra factum proprium, e da confiança. [...]

Ora, como se viu, os réus apelantes, para obstaculizarem o exercício do direito de preferência e obterem a improcedência da acção e absolvição do pedido, entre outras excepções, designadamente peremptórias, alegaram a de “manifesto e gritante” abuso de direito (artº 334º, CC) na modalidade de venire contra factuam proprium “em combinação” com a violação da confiança: os autores tê-los-ão feito acreditar, com a sua conduta, activa ou omissiva e comunicações expressas, que eles não pretendiam exercer o direito de preferência e os réus, sobretudo a 1ª, crentes e confiantes na seriedade que tal postura aparentemente revelava, orientaram as suas decisões e acções em conformidade.

Contrariando, porém, as suas expectivas assim frustradas e lesando os seus interesses conjecturados e já implementados, afinal apresentaram-se aqueles, através da presente acção, a invocar a titularidade do direito de preferência e a pretender exercitá-lo judicialmente.

Configurando-se, assim, tal exercício como, em face de tais circunstâncias, “ilegítimo”, a proceder tal alegação, deverá improceder a acção.

É isso que pedem os réus apelantes a título principal na contestação.

E se tal pretensão for assim entendida, designadamente se o for com base no alegado abuso de direito por conduta contraditória, de má fé e violadora da confiança, isso significa que terá operado a primeira modalidade de sancionamento consequente à responsabilidade dos autores por desrespeito pelas expectativas geradas, qual é a de ficaram obrigados à conduta por eles assumida como “autovinculativa” e, portanto, terem de abrir mão do direito de preferência e do correspondente direito de acção a exercitá-lo, devendo o tribunal reconhecer como legítima e fundada a oposição dos réus à procedência do pedido.

Se assim for, isto é, se vingar a alegada tese do abuso de direito, permanecerá incólume a venda e inerte o direito de preferência. Logo, nenhuma pretensão mais, seja a relativa a despesas seja a prestações que a 1ª ré alega que teria de pagar “na mesma” em caso de desistência da empreitada “seja qual for a razão” ou do contrato de prestação de serviços, poderia, logicamente, pretender fazer repercutir sobre os autores.

Mas se assim não for e, portanto, para o caso de a acção proceder a despeito dessa excepção peremptória e das demais e, em resultado disso, terem de abrir mão da propriedade do imóvel, então pedem eles, subsidiariamente, através da reconvenção, que os autores sejam condenados no pagamento da quantia de 1.032,30€, a título de despesas, e mais 150.000,00€, quanto à empreitada e à prestação de serviços.

Ora, diz-se, em geral, subsidiário ou eventual o pedido, no caso reconvencional, que é apresentado ao Tribunal para ser tomado em consideração no caso de não proceder um pedido anterior (aqui, o principal), ou seja, o de improcedência total da acção à cabeça formulado pelos réus (artº 554º, do CPC).

O pedido reconvencional é fundamentado pelos reconvintes, como se viu, na tal segunda modalidade de sancionamento da conduta abusiva e de má fé – responsabilidade pela indemnização por danos causados.

Sucede, contudo, que a não procedência do pedido principal dos réus (de improcedência da acção) e a consequente procedência do pedido dos autores (o de preferência, exercitado através da acção) pressuporá necessariamente a falência em toda a linha da defesa por excepção peremptória (a arquitectada nos itens 1 a 204 da contestação) e, por isso mesmo, do alegado abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium e da correspondente violação do princípio da confiança.

Ao invés, a procedência desta defesa por excepção peremptória implicará a improcedência da acção e, portanto, a inexistência dos prejuízos/danos alegados e peticionados subsidiariamente.

Constituindo este abuso o facto ilícito gerador do invocado direito de indemnizar e não podendo ele não ser (resultar não provado como excepção) e ser (resultar provado como um dos elementos da causa de pedir – o facto ilícito – complexa relativa à responsabilidade civil indemnizatória) ao mesmo tempo, ou seja, na mesma instância e relativamente ao objecto dela eventualmente modificado, soçobrar em sede de exceptio e renascer e prevalecer em sede de acção reconvencional, segue-se que este pedido, com tal fundamento e formulado naqueles termos, se apresenta ilógico, incoerente e inviável.

Sendo pressuposto do pedido deduzido como subsidiário a improcedência da defesa exceptiva (do abuso de direito) e, portanto, procedência da acção, a falha daquele (do inerente facto ilícito) implica a necessária e consequente impossibilidade de preenchimento do primeiro dos pressupostos fundamentadores da responsabilidade civil enquanto modalidade “sancionatória” da conduta contraditória e violadora da boa fé e da confiança.

Logo, o pedido subsidiário jamais poderá, por inconcludência, ser tomado em consideração no caso de não obter acolhimento o principal de improcedência da acção e de, portanto, os réus serem condenados no pedido.

Apesar de ele emergir de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, pressupondo a sua viabilidade, nos termos da contestação, que a acção proceda, tal fundamento necessariamente haverá, então, de soçobrar e resultar inapto para obstar a esta procedência, pelo que, assim sendo, jamais poderão os autores ser condenados nas alegadas despesas de 1.032,30€ e prestações contratuais a terceiros de 150.000,00€ a título de responsabilidade civil sancionatória da violação dos princípios da boa fé e da confiança uma vez que na procedência da acção estará compreendido o reconhecimento do seu direito a preferirem e a negação aos réus da pretensão de tal impedirem.

Não é, pois, por a causa de pedir reconvencional invocada pela ré “nada ter a ver com a formulada pelos autores” que o pedido é inadmissível. Na verdade, ao fundamentar-se a “compensação visada” na violação da confiança que o exercício da preferência pelos autores apelados alegadamente representa, o nexo com o objecto da acção existe.

Nem deixa de o ser por aquela “assentar em relações contratuais com terceiros”. Com efeito, do exercício da preferência sempre poderia resultar a frustração daquelas bem como os inerentes prejuízos, situação que não existiria se não fosse a conduta abusiva e violadora da confiança.

Só que, alegando-se, a título principal aquela violação, no caso de a mesma proceder, não procederá a acção e, em consequência de tal resultado, subsistindo a venda efectuada pelos 2ºs à 1ª ré, não se verificará a condição (“não proceder o pedido anterior”) de que depende o pedido subsidiário. [...]

Contrariamente, se eles improcederem, subsistirá o direito de preferência. Porém, mesmo que se verifiquem os alegados prejuízos, jamais poderão ser eles causalmente atribuídos a tal facto ilícito e imputáveis aos autores na medida em que, então, será lícita e não censurável a sua actuação.

Daí que, mesmo tendo em conta as vantagens normalmente referidas ao mecanismo da reconvenção (celeridade, economia, concentração da prova e solução mais justa e coerente do litígio num só processo), não se vê como, seja à luz da alínea a), seja da parte final da alínea b), do nº 2, do artº 266º, CPC, possa, subsidiariamente à procedência da acção e à improcedência da defesa exceptiva, com base, ainda, na violação da boa fé e da confiança, admitir-se o pedido reconvencional indemnizatório respeitante àquelas quantias.

Em suma, a pretensão recursiva formulada a título principal não tem o mérito de reverter a decisão recorrida, devendo ser julgada improcedente.

E quanto à pretensão recursiva formulada subsidiariamente?

Argumentam os apelantes que, no caso de procedência da acção de preferência tal implicará a substituição ex tunc do comprador pelos preferentes e que, por isso, tomando estes o lugar daquele, aproveitam das aludidas “despesas diversas” no total de 1.032,30€, isto é, as relativas a “DPA, Depósito, Cópias Certificadas e Registo” (672,30€) e as de imposto de selo (360,00€).

Concluem que delas devem ser reembolsados ao abrigo das regras do enriquecimento sem causa.

Amparam-se no que a Doutrina e a Jurisprudência do Supremo terão alegadamente já entendido e este decidido.

Ora, aceitando-se que efectivamente aquela “substituição” no contrato de compra e venda é a consequência da procedência da acção, já não se aceita que, a pretexto do invocado regime do enriquecimento, a reconvenção seja admissível ao menos quanto a tais despesas.

Desde logo, além das do registo e do imposto, não se sabe ao que respeitam exactamente as demais nem o documento (nº 15) apresentado pelo Agente de Execução tal elucida.

Depois, não apontam, afinal os apelantes um único aresto concreto nem citam qualquer consideração doutrinária em que tal possibilidade se defenda e afirme.

Também não justificam eles como “enriquecem” e se “locupletaram” com tais despesas “indevidamente recebidas” os autores, nem “à custa” de quem se dá o empobrecimento e deve “restituir”.

Muito menos alegam eles que inexista outro meio de serem indemnizados ou restituídos (artºs 473º e 474º, CC), de modo a convencer que há lugar à aplicação subsidiária do instituto do enriquecimento, nem como se coaduna tal invocação com a alínea a), do nº 2, do artº 266º, CPC, preconizada como base da admissibilidade do pedido com aquele fundamento.

Na verdade, os autores, a proceder a acção, ter-se-ão limitado a exercer o seu direito de preferência, daí não lhes advindo qualquer outra responsabilidade traçada na lei senão a de depositarem o preço (que jamais se refere a outras despesas).

Por outro lado, também a ser reconhecida a preferência, tal significará que na conduta dos obrigados a dá-la (e não na do preferente) residirá a causa dos prejuízos do adquirente preterido e que, portanto, é na relação entre ambos que o eventual direito a ser por eles indemnizado deve ser discutido."


*3. [Comentário] Os réus deduziram uma reconvenção subsidiária. A RG nada opôs à admissibilidade da reconvenção subsidiária qua tale (como, aliás, se impõe), mas considerou que entre essa reconvenção (deduzida para o caso de procedência da acção) e esta procedência não existe nenhuma conexão objectiva. Nesta base, a RG decidiu bem.

MTS