"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/10/2022

Jurisprudência 2022 (55)


Erro na forma do processo:
interesse processual*


1. O sumário de RC 8/3/2022 (454/14.8T2OBR.C1) é o seguinte:

I) A cobrança coerciva de alimentos estabelecidos por sentença que regule as responsabilidades parentais pode ser peticionada pelo mecanismo previsto no artigo 48.º do RGPTC ou pela execução especial por alimentos com previsão no artigo 933.º do CPC, cabendo ao credor caberá optar pelo meio processual que se lhe afigurar ser o mais conveniente.

II) Suscitado um incidente de incumprimento reportado a uma concreta situação incumprimento da obrigação de alimentos é nele que devem ser processadas as subsequentes situações de incumprimento que se registem, estando vedado suscitar por cada incumprimento subsequente um novo e autónomo incidente a processar em apenso autónomo.

III) O abuso de direito processual corresponde essencialmente ao exercício impróprio, no plano funcional, do direito à acção, distorcendo o direito fundamental a um processo justo e equitativo, na dimensão de garantia de acesso aos tribunais, mediante uma tutela judicial efectiva, o qual é conformado pela boa-fé processual objectiva.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estando o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso -, a única questão a decidir é:

A decisão recorrida que, em face da falta de interesse processual, indeferiu liminarmente o requerimento formulado, violou os artigos 41.º, n.º 1 - Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos - do RGPTC e 2.º, n.º 1 do Código do Processo Civil?

A 1.ª instância decide assim:

“Da falta de interesse processual

Como afirmam ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO DA NORA in Manuel de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora 1985, p. 179, o interesse processual, interesse em agir ou necessidade de tutela judiciária como lhe chamam respectivamente os autores italianos e germânicos, consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação.

Continuam aqueles Autores que a necessidade de recorrer às vias judiciais não tem que ser uma necessidade absoluta, única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Contudo, não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um puro interesse subjectivo de obter uma pronúncia judicial. Exige-se pois uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação.

Encontra justificação o interesse processual ao evitar que as pessoas sejam precipitadamente forçadas a vir a juízo para organizarem a defesa dos seus interesses numa altura em que a situação da parte contrária o não justifica e ainda na necessidade de não sobrecarregar com acções desnecessárias a actividade dos tribunais, cujo tempo é escasso para acudir a todos os casos em que é realmente indispensável a intervenção jurisdicional.

Concluem ainda os Autores acima citados que se a falta de interesse processual é manifesta na própria petição, deve esta ser liminarmente indeferida com tal fundamento, levando à absolvição da instância.

Revertendo para o caso concreto, verifica-se que foi já julgado o incumprimento da requerida no que toca à falta de pagamento da pensão de alimentos a que ficou obrigada, permitindo ao requerente o recurso quer ao disposto o artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível quer ao Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, como aliás já se encontra em curso.

De igual modo, e em alternativa ao incumprimento, poderá sempre o requerente recorrer à execução por alimentos porque munido de título executivo com a decisão que fixou os alimentos a prestar pela requerida, independentemente de qualquer decisão relativa ao incumprimento do pagamento da pensão de alimentos.

Julgado o incumprimento noutro apenso dos presentes autos, aberta está a porta para a possibilidade de recurso ao disposto o artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível ou ao Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, o que importa realizar em tal apenso, realizando-se diligências nesse sentido, retirando assim o efeito útil da decisão referente ao incumprimento.

Com o devido respeito, tendo em conta o já referido, tramitar e decidir subsequentes incumprimentos, para além de se afigurar como ato inútil e logo proibido por lei nos termos do disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil, poderia alcançar a situação impensável de todos os meses ser requerido o incumprimento do progenitor que não procede ao pagamento da pensão de alimentos, transformando os autos num interminável conjunto de apensos de incumprimento a processar autonomamente e em conflito entre si, em que a sua morosidade e a própria condenação em custas do progenitor incumpridor poderia findar em prejuízo para a criança ou jovem”.

Com todo o respeito pela alegação da apelante, o Juízo de Família e Menores de Coimbra proferiu a decisão acertada.

Senão vejamos.

A nossa Lei Fundamental, através do seu artigo 36.º, n.º 5 e no âmbito da família e filiação, confere aos pais um direito e dever constitucional de educação e manutenção dos filhos, sendo o primeiro dirigido ao Estado, e o segundo essencialmente em benefício dos filhos. A Convenção dos Direitos da Criança de 1989 (DR I, n.º 211, 12/09/1990), de acordo com o artigo 18.º, n.º 1, consagra igualmente que os pais têm a responsabilidade suprema e primacial de assegurar a educação e desenvolvimento dos seus filhos, afiançando os interesses destes. Tal só não sucederá se os pais não tiverem capacidade para o efeito.

Por sua vez, o Código Civil, mediante o artigo 1874.º, n.º 1 estipula que “Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência”, acrescentando no n.º 2 que “O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar”.

Este dever de assistência e de prestação de alimentos, não só existe quando pais e filhos mantêm uma vida em comum - artigos 1874.º, n.º 2; 1878.º, n.º 1 Código Civil-, mas também nas situações de vida em separado - artigo 1905.º Código Civil.

Assim e muito embora seja comum referenciar o dever e direito a alimentos como sendo estruturalmente obrigacional, o mesmo não deixa de representar uma dimensão essencial dos deveres e direitos constitucionais da filiação.

O titular desse direito a alimentos no âmbito das relações familiares entre os pais, por um lado, e os filhos menores, por outro lado, são estes últimos e não aqueles, como seja o progenitor a quem o menor está confiado.

No entanto, este último progenitor tem legitimidade para demandar o progenitor obrigado à prestação de alimentos. E essa legitimidade adjetiva ocorre igualmente no caso de incumprimento, tal como resulta do artigo 41.º, n.º 1 do RGPTC.

Deste modo e no âmbito das relações jurídicas alimentares entre pais e filhos, enquanto o progenitor a quem o menor está confiado tem a devida legitimidade processual para demandar o outro progenitor, designadamente por incumprimento do dever de alimentos por parte deste, apenas o menor é titular desse direito a alimentos, o que lhe confere a legitimidade substantiva desse direito.

Como sabemos, a cobrança coerciva de alimentos estabelecidos por sentença que regule as responsabilidades parentais, pode ser acionada por via do mecanismo previsto no artigo 48º do RGPTC, ou da execução especial por alimentos, com previsão no artigo 933º do CPC. Ao credor caberá optar pelo meio que se lhe afigurar ser o mais conveniente.

Ora, da norma do artigo 48.º do RGPTC, resulta:

1 - “Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte: (…)

2 - As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las.

Diz o apelante “que tem interesse em suscitar judicialmente, tantos incidentes e incumprimentos quantos incumprimentos houver por parte do progenitor relapso, tanto mais quando também requer, cumulativamente, que seja arbitrada indemnização a seu favor e do menor a seu cargo, que é condenação que não pode obter por via da decisão que homologou o acordo”.

Ora, como escreve o ilustre magistrado do Ministério Público, o “primeiro incidente de incumprimento instaurado pelo Recorrente ainda está pendente.

Neste processo foi tentada a cobrança coerciva dos alimentos e, na sua impossibilidade, determinada a intervenção do FGADM, em substituição da progenitora.

A renovação da prova de que se mantém os pressupostos para intervenção do FGADM é feita anualmente.

A todo o tempo, caso venha a ser conhecido trabalho por conta de outrem, subsídio ou o recebimento de qualquer outra prestação à devedora, serão desencadeados os mecanismos de cobrança coerciva, nos termos do art. 48º do RGPTC, para cobrança dos alimentos vencidos e vincendos.

A instauração de novo incumprimento, no presente circunstancialismo, mostra-se desnecessária, bastando ao Recorrente dar conta dos outros montantes em dívida no processo já pendente para tais verbas poderem ser consideradas logo que viável a cobrança coerciva.

Finalmente, instaurar novo incumprimento para requerer condenação em indemnização, quando flui do processo pendente que a devedora não trabalha, não recebe pensão nem subsídio, nem lhe são conhecidos bens ou rendimentos, não parece curial, perpassando até o abuso de direito”.

Nada mais acertado."


*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, o caso não se aparenta tão simples como pode resultar de uma primeira apreciação.

b) Em primeiro lugar, o problema parece ter surgido, nas palavras do MP, pela seguinte circunstância: "a instauração de novo incumprimento, no presente circunstancialismo, mostra-se desnecessária, bastando ao Recorrente dar conta dos outros montantes em dívida no processo já pendente para tais verbas poderem ser consideradas logo que viável a cobrança coerciva".

Ora, não é coerente entender que o Recorrente deveria ter utilizado um outro meio processual e, ao mesmo tempo, concluir que essa Parte não tem interesse processual. Se se entende -- como fez o MP -- que tudo deveria ser apreciado no "primeiro incidente de incumprimento instaurado pelo Recorrente", dado que este "ainda está pendente", então não se pode concluir pela falta de interesse processual. Interesse processual existe -- e tanto que existe que o meio processual para fazer valer a pretensão era outro.

c) A 1.ª instância afirma o seguinte (e a 2.ª instância não contraria a orientação):

"[...] em alternativa ao incumprimento, poderá sempre o requerente recorrer à execução por alimentos porque munido de título executivo com a decisão que fixou os alimentos a prestar pela requerida, independentemente de qualquer decisão relativa ao incumprimento do pagamento da pensão de alimentos".
   
Sob um ponto de vista doutrinário, nada impediria que assim se concluísse. No entanto, a solução acima referida colide com o disposto no art. 535.º, n.º 2, al. c), CPC: a inutilidade da acção tem consequências ao nível das custas, não do interesse processual. Trata-se -- é certo -- de uma solução legal antiquada e mais que discutível; no entanto, é aquela que, infelizmente, consta da lei.

MTS


28/10/2022

Da (im)penhorabilidade das medidas excecionais de apoio às famílias

 

I. O DL 57-C/2022, de 6/9, estabeleceu um conjunto de medidas extraordinárias destinadas a apoiar diretamente o poder de compra das famílias e a mitigar os efeitos do aumento dos preços dos bens essenciais, face ao contexto inflacionário atual.

No âmbito de tais medidas, o aludido diploma procedeu à criação de um apoio extraordinário a titulares de rendimentos e prestações sociais e de um complemento excecional a pensionistas.

II. Conforme decorre do estabelecido nos n.º 2 e 3 do art. 2.º do DL 57-C/2022, o apoio extraordinário a titulares de rendimentos e prestações sociais consiste em atribuir € 125 a cada cidadão elegível, que é, designadamente, aquele que tenha auferido, nos anos de 2021 ou 2022, rendimentos mensais de trabalho declarados à Segurança Social inferiores ou iguais a € 2700. O apoio é acrescido de € 50 por cada dependente a cargo residente em Portugal. Todos estes montantes são pagos em outubro de 2022.

1 - O apoio extraordinário de € 50 por cada dependente a cargo não é uma prestação penhorável numa execução movida contra a pessoa elegível para receber o complemento, dado que o titular dessa prestação é o próprio dependente (nomeadamente, os filhos, adotados e enteados, os menores não emancipados e os menores sob tutela).

Quer dizer: não sendo o dependente executado e sendo ele o beneficiário do apoio extraordinário de € 50, este montante não está sujeito à penhora, pois, nos termos dos arts. 601.º e 817.º do CC, pelo cumprimento das obrigações responde o património do devedor (cf., ainda, art. 735.º, n.º 1, do CPC).

2 - Na hipótese de o dependente ter a qualidade de executado e se for elegível para receber o apoio extraordinário, aquele não pode ser simultaneamente qualificado como pessoa dependente (cf. n.º 5 do art. 2.º do DL 57-C/2022). Neste caso, importa saber se o apoio extraordinário de € 50 é suscetível de penhora. A resposta a esta questão merece a mesma ponderação da penhora do apoio extraordinário de € 125 atribuído a cada cidadão elegível.

III. Sobre os montantes do apoio extraordinário atribuído a titulares de rendimentos e prestações sociais, bem como do apoio adicional que abrange todos os dependentes residentes em Portugal, não incide imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), nem os mesmos constituem base de incidência de contribuições para a Segurança Social (n.º 6 do art. 2.º do DL 57-C/2022).

Aqueles apoios também não são compensáveis com dívidas cobradas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e outras prestações do sistema de segurança social (n.º 7 do art. 2.º do DL 57-C/2022).

Se os referidos apoios extraordinários não são tributáveis, nem podem ser objeto de compensação com dívidas tributárias, faria todo o sentido que o legislador estabelecesse igualmente a sua total impenhorabilidade.

Com efeito, se tanto a Autoridade Tributária e Aduaneira, como a Segurança Social não podem tributar aqueles apoios, nem os podem compensar com dívidas tributárias, impõe-se concluir que aquelas entidades também não podem penhorar esses montantes. Se assim foi considerado para efeitos tributários, do mesmo modo há que entender que aqueles apoios são impenhoráveis no âmbito das execuções comuns, por aplicação do princípio da igualdade entre o Estado credor e os credores privados.

De todo modo, teria sido benéfica uma clarificação por parte do legislador. No entanto, o direito positivo dá resposta ao problema.

1 - De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 738.º do CPC, são impenhoráveis dois terços da parte disponível dos rendimentos auferidos pelo executado, independentemente da natureza periódica ou não periódica da prestação. O que caracteriza a aplicação deste normativo não é tanto o carácter periódico do rendimento, mas antes a circunstância de o rendimento penhorável se destinar a assegurar a subsistência do executado.

O regime de impenhorabilidade que resulta daquela disposição legal apenas cede no caso de a fração de dois terços do rendimento disponível exceder o montante equivalente a três salários mínimos nacionais (art. 738.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC). Nesta hipótese, impõe-se a redução da parte impenhorável para este montante e a ampliação da parte penhorável para o valor que o exceder.

Por seu turno, na hipótese de a fração de dois terços do rendimento disponível ser inferior a uma retribuição mínima mensal garantida (RMMG), de acordo com o disposto na 2.ª parte do n.º 3 do art. 738.º do CPC, deve acautelar-se sempre o montante equivalente a uma vez a retribuição mínima mensal garantida (princípio da intangibilidade da retribuição mínima).

2 - O preceito do n.º 3 do art. 738.º do CPC levanta, todavia, uma questão interessante, que consiste em saber se, auferindo o executado "outro rendimento" no momento da penhora, os dois rendimentos podem ser considerados um rendimento composto. Quer dizer: está em causa saber se, naquela hipótese, há lugar ao englobamento dos dois montantes para efeitos de cálculo da fração impenhorável nos termos do n.º 1 do art. 738.º do CPC.

a) Considerando que os limites (máximo e mínimo) previstos no n.º 3 do art. 738.º do CPC são estabelecidos, por referência temporal, à data de cada apreensão, há que entender que só há lugar ao englobamento quando se estiver em presença de prestações periódicas. Vale dizer: se ambos os rendimentos tiverem natureza periódica, é com base no rendimento composto que é calculada a fração penhorável, salvaguardando sempre a intangibilidade da retribuição mínima mensal garantida. Noutras palavras: na hipótese figurada, a fração impenhorável do rendimento composto não poderá ser de montante inferior a um salário mínimo nacional, de acordo com o valor que estiver em vigor à data da penhora.

b) Se o "outro rendimento" e o que já se encontra penhorado não forem ambos rendimentos periódicos, não há lugar a englobamento desses dois rendimentos, mas antes à consideração autónoma de cada um deles para efeitos de cálculo da fração penhorável. Também nesta hipótese, a parte impenhorável de qualquer dos rendimentos é equivalente a um salário mínimo nacional.

Com efeito, quando não se configura o englobamento dos rendimentos, a 2.ª parte do n.º 3 do art. 738.º do CPC exige que a parcela impenhorável de qualquer dos dois rendimentos não seja inferior a uma retribuição mínima mensal garantida (trata-se, novamente, do princípio da intangibilidade da retribuição mínima).

A distinção entre as hipóteses em que existe e em que não existe englobamento dos dois rendimentos faz todo o sentido, se se considerar que as prestações de natureza periódica que são pagas ao executado se destinam a assegurar a sua subsistência atual ou presente (o que justifica o englobamento daqueles rendimentos), enquanto as de natureza instantânea se destinam a assegurar a subsistência futura do executado e, por isso, são incompatíveis com o englobamento à data da penhora. É o caso, p. ex., da indemnização atribuída ao trabalhador ilicitamente despedido, em substituição da reintegração, se se entender que esta indemnização só é parcialmente penhorável (conforme decidiu o STJ no acórdão de 12/11/2020, revista n.º 777/07.2TBBCL-F.G1.S1).

Assim sendo, a 2.ª parte do n.º 3 do art. 738.º do CPC não pode ser convocada se o "outro rendimento" não tiver a natureza de prestação periódica. É precisamente o caso dos apoios extraordinários às famílias e aos pensionistas criados pelo DL 57-C/2022, que, por serem pagos apenas no mês de outubro de 2022, têm natureza de prestação instantânea destinada a mitigar a perda do poder de compra das famílias e dos pensionistas num contexto de aumento da inflação.

3 - Tendo por base esta interpretação, os agentes de execução não devem somar, na determinação da parcela penhorável, ao rendimento (periódico) percebido pelo executado no mês de outubro de 2022 os montantes relativos ao apoio extraordinário atribuído a titulares de rendimentos e prestações sociais ou a pessoas dependentes, se estas forem executadas.

Como o montante deste apoio deve ser objeto de consideração autónoma na determinação do montante penhorável, não pode ser adicionado ao rendimento do mês em que é pago e, porque é de valor (€ 125 ou € 50, consoante o caso) inferior a um salário mínimo nacional (que atualmente se cifra em € 705), também é insuscetível de penhora, atendendo ao limite mínimo estabelecido pela 2.ª parte do n.º 3 do art. 738.º do CPC.

Dito de outro modo: no mês de outubro de 2022, os agentes de execução, para cálculo da parte impenhorável dos rendimentos auferidos pelo executado durante esse mês, devem ficcionar que o montante do salário mínimo nacional é de € 830 (correspondente à soma da RMMG e do apoio extraordinário de € 125).

IV. O DL 57-C/2022 também procedeu, no seu art. 4.º. à criação de um complemento excecional para pensionistas cuja pensão seja igual ou inferior a 12 vezes o indexante de apoios sociais (que atualmente se encontra fixado em € 443,20 (cf. Port. 294/2021, de 13/12).

No que se refere à penhora daquele complemento, aplicam-se as mesmas regras que acima ficaram expostas, o que significa que o seu montante poderá ser penhorado na fração que exceder o salário mínimo nacional (€ 705).

Por último, importa salientar que a proibição de englobamento do complemento excecional com a pensão do mês em que é pago também é imposta pelo n.º 5 do art. 4.º do DL 57-C/2022, dado que o montante desse complemento não pode, para efeitos de cálculo do IRS a reter, ser adicionado à pensão do mês em que é pago ou colocado à disposição do respetivo titular. Se não é considerado para efeitos tributários, do mesmo modo não pode ser considerado qualquer englobamento para efeito de penhora no âmbito das execuções fiscais e comuns, por aplicação do princípio da igualdade entre o Estado credor e os credores privados.

J. H. Delgado de Carvalho


Informação (289)


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Jurisprudência 2022 (54)


Princípio da confiança;
actos da secretaria


1. O sumário de RP 8/2/2022 (3875/15.5T8MAI-C.P1) é o seguinte:

I - Segundo um critério de lealdade processual, que se impõe à luz do regime do art. 7º do CPC, mas que se evidencia também na solução consagrada no art. 157º, nº 6 do CPC, dirigida à secretaria judicial mas de natureza sistémica e não reservada às secretarias, não deve uma parte ser prejudicada quanto ao exercício de um direito processual em resultado de uma informação incompleta ou inexacta que lhe tenha sido transmitida por um despacho judicial, em função do qual razoavelmente se conclua poder ter sido condicionada a sua actuação.

II - Ao anunciar ter ouvido “as gravações” de uma sessão de julgamento, constatando que o depoimento de uma testemunha não estava gravado e ao actuar de forma a superar essa irregularidade, é de admitir que o tribunal levou a que as partes razoavelmente se convencessem de que, a contrario, as gravações dos restantes depoimentos se processaram com normalidade e qualidade adequada à sua ulterior utilização processual.

III - Nestas circunstâncias, se só em momento ulterior uma das partes detectou a inexistência de gravação, deve contar-se desde então o prazo para arguição da correspondente nulidade.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O objecto do recurso, definido a partir das conclusões enunciadas, consiste em apreciar se, nas circunstâncias do caso, deve ter-se por tempestiva a arguição da inaudibilidade das gravações de dois depoimentos e se isso constitui nulidade que implique a anulação do julgamento e da sentença, bem como a repetição de todos os actos necessários à superação dos actos inválidos e dos deles dependentes.

Porém, antes disso, importa decidir se o presente recurso deve ser admitido, pois que a apelada/embargada alega que a impugnação da decisão em causa não deveria ter ocorrido em apelação autónoma, mas no âmbito do recurso que viesse a ser interposto, designadamente no âmbito da pretensão de ampliação do objecto do recurso que a embargante viesse a deduzir em sede de resposta ao recurso de apelação da sentença oferecido por si própria, embargada, aqui apelada. E acrescenta ter já decorrido o prazo para esse efeito, pelo que jamais poderá ser conhecida, em sede de recurso, a questão colocada.

A este propósito, importa considerar que não oferece dúvida a recorribilidade intrínseca da decisão em questão: é desfavorável para a embargante e priva-a de um direito processual: o de reagir, através do expediente de ampliação do âmbito do recurso, a uma decisão judicial que, quanto a alguns dos seus pressupostos de facto, lhe foi adversa em termos que podem ser consequentes, caso proceda o recurso da parte contrária. Para além disso, a causa tem valor que torna admissível o recurso e este foi intentado em prazo, por referência à data da decisão recorrida.

Por outro lado, à embargante jamais poderia exigir-se que suscitasse a questão num recurso de apelação interposto da própria sentença. Nesta obtivera ganho de causa, pelo que não se lhe reconheceria legitimidade para recorrer.

Daí que, para impugnar a sentença, designadamente quanto aos pressupostos de facto cujo julgamento lhe foi desfavorável, lhe restasse o expediente referido, da ampliação do âmbito do recurso, nos termos do art. 636º do CPC.

Porém, em concreto, a embargante estava impedida de se socorrer deste expediente processual, pois que, para apresentar essa pretensão, teria de impugnar a decisão da matéria de facto em relação a alguns pontos. Porém, não o poderia fazer por não existirem as gravações dos depoimentos de duas testemunhas tidas por relevantes para esse efeito.

Nestes termos, a reacção contra a decisão que rejeitou o conhecimento da nulidade proveniente da falta de gravação de dois depoimentos, com efeitos extensíveis ao julgamento e sentença, tem de ter lugar fora das soluções de impugnação da própria sentença, sob pena de se coarctar à embargante a hipótese dessa reacção.

Acresce que, no caso, o incidente acabou por ter um processamento autónomo, tendo este ocorrido já após a prolação da sentença: ao requerimento de arguição da nulidade do julgamento e da sentença sobreveio uma actividade instrutória, através da intervenção da secretaria, bem como uma ulterior fase de contraditório, que culminou na decisão recorrida.

Assim, nos termos do art. 644º, nº 1, al. a) do CPC, deve admitir-se e conhecer-se do mérito do presente recurso.

*Resolvida esta questão, cumpre decidir se deve ter-se por tempestiva a arguição da nulidade relativa à inaudibilidade das gravações de dois depoimentos e se isso deve determinar a anulação do julgamento e da sentença, como a repetição de todos os actos necessários à superação dos actos inválidos.

Em primeiro lugar, entendemos ser incontroversa a conclusão de que a falta ou deficiência que torne imprestáveis as gravações de dois depoimentos testemunhais constitui [sic]  nulidade susceptível de influir na decisão da causa. Com efeito, consubstancia a omissão de uma formalidade que a lei prescreve (art. 155º, nº 1 do CPC) e, não havendo qualquer juízo definitivo sobre a irrelevância dos depoimentos das testemunhas BB e CC, sendo mesmo de sinal contrário a tese da apelante, será impossível sustentar, como se faz na decisão recorrida, que o respectivo teor não é, ou pode presumir-se não ser, essencial para o “apuramento da verdade”, isto é, para a fixação do substrato factual da sentença.

Por consequência, a impossibilidade de usar o registo desses depoimentos para instruir a pretensão de ampliação do âmbito do recurso, em resposta ao recurso da embargada, tem de admitir-se como sendo uma circunstância susceptível de vir a influenciar a decisão da causa, por não poder excluir-se a hipótese de procedência desse recurso e, nesse caso, da pertinência da ampliação do âmbito do recurso e a utilidade desses depoimentos. Verifica-se, pois, a nulidade invocada.

Cabe, subsequentemente, decidir se a arguição desta nulidade se pode ter por tempestiva, porquanto a decisão sob recurso rejeitou a sua apreciação por a considerar extemporânea.

Tem-se presente o regime constante do art. 155º, nº s 3 e 4 do CPC: a gravação deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias a contar do respectivo acto, sendo que, ocorrendo no sistema Citius, essa disponibilidade se verifica de imediato, após o encerramento do acto. E as partes têm o prazo de dez dias para invocar a falta ou deficiência da gravação, sob pena de preclusão desse poder. Isto sem prejuízo de o próprio tribunal, em qualquer momento, poder verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível e determinar a repetição do acto, sempre que for essencial ao apuramento da verdade (art. 9º do DL 39/95 de 15-2).

No caso a sessão da audiência em que foram ouvidas as duas testemunhas referidas ocorreu em 26/4/2021. Como se enuncia na decisão recorrida, logo nessa data se efectiva a disponibilização da gravação, nos termos e para os efeitos do art. 155º nº3 e 4 do Código de Processo Civil. O prazo de 10 dias previsto no nº 4 do art. 155º do CPC, para arguir a deficiência da gravação do depoimento daquelas testemunhas, terminaria, in casu, em 6/5/2021, sem prejuízo da ponderação de que o 3º dia útil posterior ocorreria em 11/5/2021, como se refere na decisão recorrida. A este propósito, a própria apelada recorre a diferentes datas, considerando não a data da sessão em causa, mas a da última sessão do julgamento, mas sem que isso altere o resultado, pois que, à semelhança do tribunal recorrido, acaba por considerar a arguição extemporânea.

Com efeito, o que aconteceu foi que a ora apelante só em 5/8/2021 pediu e obteve uma cópia da gravação dos dois depoimentos, só então tendo constatado a sua deficiência e imprestabilidade. Por isso, só depois (em 30/8/2021), isto é, muito depois daquela data de 11/5/2021, veio reclamar da deficiência das gravações.

Foi por isso que o tribunal a quo concluiu dever ser recusada, por extemporânea, a sua reclamação, isto é, a arguição da nulidade decorrente daquela deficiência de gravação.

Porém, algo se verificou, que deve ponderar-se a este propósito.

Como refere a apelante, em 30/4/2021, ou seja, dentro do prazo disponível para a embargante aceder e verificar a qualidade das gravações e disso reclamar, se para isso detectasse razões, o próprio tribunal proferiu o seguinte despacho: “Após audição das gravações da última sessão de julgamento constata-se que, lamentavelmente, o depoimento da testemunha ouvida sob indicação de ambas as partes na sessão do passado dia 26 de Abril, o Sr. AA, é inaudível.

Não obstante terem sido colhidos apontamentos que sumariam o teor do depoimento e que permitem que este, oportunamente, seja considerado pelo tribunal em sede de motivação da sua convicção, a circunstância de o referido depoimento não se encontrar gravado inviabiliza a sua utilização em caso de recurso da matéria de facto.

Assim, de modo a evitar que as partes sejam surpreendidas com a deficiência do registo áudio e a permitir que, querendo, possam reagir à irregularidade em momento anterior ao encerramento da audiência de julgamento, notifique o teor do presente despacho.”. Na sequência deste despacho, a prestação do depoimento daquela testemunha foi repetido e regravado.

Porém, perante o respectivo teor, alega a apelante ter adquirido a convicção de que, se um dos depoimentos estava mal gravado ou por gravar, referindo o tribunal que ouvira “as gravações da última sessão de julgamento”, os demais só poderiam estar bem gravados [als. G) a J)], não podendo considerar-se leviana a sua confiança sobre que assim acontecesse. E, nestas circunstâncias, deverá admitir-se que só em 5/8/2021 teve conhecimento da deficiência de gravação dos depoimentos de testemunhas BB e CC, pelo que arguiu atempadamente a nulidade daí decorrente.

É impossível deixar de concordar com a tese da apelante.

Com efeito, segundo um critério de lealdade processual, que se impõe à luz do regime do art. 7º do CPC, mas que se evidencia também na solução consagrada no art. 157º, nº 6 do CPC (6- Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.), dirigida à secretaria judicial, mas de natureza obviamente sistémica e não reservada às secretarias, não deve uma parte ser prejudicada quanto ao exercício de um direito processual em resultado de uma informação incompleta ou inexacta que lhe tenha sido transmitida por um despacho judicial, em função do qual razoavelmente se conclua poder ter sido condicionada a sua actuação.

É o que se conclui ter acontecido no caso em apreço.

É de admitir que o tribunal, ao anunciar ter ouvido “as gravações” de uma sessão de julgamento, constatando que o depoimento de uma testemunha não estava gravado e ao actuar de forma a superar essa irregularidade, tenha levado as partes a convencerem-se, razoavelmente, que, a contrario, as gravações dos restantes depoimentos se processaram com normalidade e com a qualidade necessária à sua ulterior utilização processual.

Tendo o tribunal verificado a qualidade, ou falta dela, das gravações a que aparentemente se refere – i. é, não só a do depoimento da testemunha AA, mas também a dos depoimentos das demais – é de considerar que as partes se tenham conformado com essa verificação, não tratando de ir reverificar aquilo que o tribunal anunciava ter analisado, designadamente a falta de qualidade daquela gravação, a par da qualidade pressuposta das restantes.

Assim sendo, é de considerar que, no caso concreto, e por a tal ter sido induzido pela actuação do próprio tribunal, a ora apelante só em 5/8/2021 teve conhecimento, por então lhe ter sido disponibilizada a gravação dos respectivos depoimentos, da imprestabilidade das gravações dos depoimentos de BB e CC.

Por tal motivo, só a partir de então deverá contar-se o prazo previsto no art. 155º, nº 4 do CPC.

Esta conclusão acarreta a conclusão pela tempestividade da arguição da nulidade decorrente da deficiência e inerente ausência de gravação dos depoimentos de BB e CC, circunstâncias estas que, como supra se justificou, se constata integrarem uma efectiva nulidade, nos termos do art. 195º, nº 1 do CPC.

Nos termos do nº 2 do art. 195º do CPC, a nulidade da recolha dos depoimentos em questão (BB e CC) acarreta a nulidade do julgamento e da subsequente sentença.

Assim, anulando-se os actos de produção de prova constituídos pelos depoimentos testemunhais de BB e CC, haverão estes de ser repetidos. O julgamento e sentença relativamente aos quais esses actos constituíram uma actividade instrutória são necessária e igualmente anulados.

Nos termos do art. 605º, nº 3 do CPC, a repetição desses actos competirá à Sra. Juiz que presidiu ao julgamento, assim se salvaguardando os demais actos de produção de prova não anulados. Concluirá assim o julgamento, com a prolação da sentença pertinente.

Isso só não haverá de acontecer se, conforme dispõe o art. 605º nº 3 cit., se vier a concluir, em sede de 1ª instância, ser preferível a repetição dos demais actos já praticados em julgamento."


[MTS]


27/10/2022

Paper (492)


-- Pinheiro, Luís de Lima, A General Approach to the Recognition of Other Member States’ Decisions Under the Brussels IIter Regulation (SSRN 09.2022)


Jurisprudência 2022 (53)


Taxa sancionatória excepcional;
âmbito de aplicação


1. O sumário de STJ 2/2/2022 (103/06.8TBMNC-E.G1.S1) é o seguinte:

I - A figura da taxa de justiça sancionatória excepcional prevista no art. 531.º do CPC tem a ver com a dedução de pretensões (substantivas ou processuais), incidentes ou recursos manifestamente improcedentes, revelando, de forma clara e inequívoca, o frontal desrespeito pelas regras de prudência ou diligência que eram exigíveis à parte, dando por isso azo a uma actividade judiciária perfeitamente inútil, com prejuízo para a utilização desnecessária dos (limitados) meios do sistema judicial e absoluto desperdício de tempo, sem que seja verdadeiramente prosseguido qualquer desígnio sério e minimamente entendível e/ou atendível.

II - Justifica-se a aplicação da taxa de justiça sancionatória excepcional quando os inúmeros requerimentos, incidentes e pretensões apresentados pela parte, têm todos o mesmo denominador comum: a total e absoluta falta de cabimento e suporte legal para cada um deles, verificando-se uma lamentável situação de evidente abuso do direito de acção, exercido à revelia e contra as regras processuais a que era suposto obedecer, bem demonstrado pela uniformidade nas várias instâncias judiciais quanto ao invariável desatendimento do que é infundadamente pedido nos autos.

III - É precisamente para tentar pôr cobro a este tipo de anómala e patológica litigância que se encontra legalmente prevista a taxa de justiça sancionatória excepcional, ou seja, para desincentivar a utilização de expedientes processuais sem nenhum tipo de critério, nem razoabilidade mínima, obrigando o sistema judicial a gastar inutilmente o seu tempo e os seus meios com uma actividade completamente contraproducente e adversa ao respeito pelos comandos legais a que seria suposto encontrar-se estritamente vinculada.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

1- Condenação em multa pela apresentação de documento com as alegações de recurso de apelação.

2 – Aplicação da taxa de justiça sancionatória excepcional.

Passemos à sua análise:

1- Condenação em multa pela apresentação de documento com as alegações de recurso de apelação.

Não se compreende a razão pela qual o recorrente entende não lhe ser aplicável a multa em que foi condenado pela apresentação de documento em momento em lhe estava processualmente vedada tal junção, nos precisos termos do artigo 651º e 425º, nº 1, do Código de Processo Civil.

Tal condenação em multa encontra-se cominada no artigo 443º, nº 1, do Código de Processo Civil, sendo incontornável a sua aplicação à situação sub judice.

Improcede a revista neste ponto.

2 – Aplicação da taxa de justiça sancionatória excepcional.

Dispõe o artigo 531º do Código de Processo Civil:

“Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excepcionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a acção, oposição ou requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida”.

Esta figura tem a ver com a actividade da parte que consiste na dedução de pretensões (substantivas ou processuais), incidentes ou recursos manifestamente improcedentes, revelando, de forma clara e inequívoca, o seu frontal desrespeito pelas regras de prudência ou diligência que lhe eram exigíveis, dando por isso azo a uma actividade judiciária perfeitamente inútil, com prejuízo para a utilização desnecessária dos (limitados) meios do sistema judicial e absoluto desperdício de tempo, sem que seja verdadeiramente prosseguido qualquer desígnio sério e minimamente entendível e/ou atendível.

(Sobre esta matéria, vide Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in “Código de Processo Civil Anotado. Volume I. Parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1º a 702º”. Almedina 2020, 2ª edição, a página 606; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, Fevereiro de 2019, 4ª edição, a páginas 430 a 433; Paula Costa e Silva, in “A Litigância de Má Fé”, Coimbra Editora, Novembro de 2008, a páginas 633 a 634; Salvador da Costa in “Regulamento das Custas Processuais. Anotado e Comentado”, Almedina 2012, 4ª edição, a páginas 288 a 289; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Janeiro de 2022 (relatora Clara Sottomayor), proferido no processo nº 243/18.0T8PFR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt.; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Março de 2021 (relator Acácio das Neves), proferido no processo nº 1387/17.1T8GRD.C2.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Março de 2021 (relator Bernardo Domingos), proferido no processo nº 164/15.9T8VNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Dezembro de 2021 (relator Rijo Ferreira), proferido no processo nº 9296/18.0T8SNT.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt).

Do acórdão recorrido consta, com todo o rigor e detalhe, a clara demonstração da incontinência processual a que o recorrente se tem imparavelmente dedicado, respaldado no apoio judiciário que lhe foi concedido e pela pena activa do patrono oficioso que lhe foi nomeado.

No desenvolvimento absolutamente imoderado dessa actividade, são inúmeros os requerimentos, incidentes e pretensões apresentados, todos com o mesmo denominador comum: a total e absoluta falta de cabimento e suporte legal para cada um deles.

Ou seja, assistimos nestes autos a uma lamentável situação de evidente abuso do direito de acção, o qual tem sido exercido à revelia e contra as regras processuais a que era suposto obedecer, bem demonstrado pela uniformidade nas várias instâncias judiciais quanto ao invariável desatendimento do que é infundadamente pedido nos autos.

E é precisamente para tentar pôr cobro a este tipo de anómala e patológica litigância que se encontra prevista a taxa de justiça sancionatória excepcional.

Ou seja, a mesma visa desincentivar a utilização de expedientes processuais sem nenhum tipo de critério, nem razoabilidade mínima, obrigando o sistema judicial a gastar inutilmente o seu tempo e os seus meios com uma actividade completamente contraproducente e adversa ao respeito pelos comandos legais a que seria suposto encontrar-se estritamente vinculada.

Pelo que é absolutamente justificada a aplicação da taxa sancionatória excepcional que o acordão recorrido determinou e que, por isso mesmo, se mantém.

O que se decide, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos.

Improcede, assim, a revista.

[MTS]




26/10/2022

Bibliografia (1040)


-- Pinto-Ferreira, J. P., Adequação Formal e Garantias Processuais na Ação Declarativa (Almedina: Coimbra 2022)


Jurisprudência 2022 (52)


Falta de citação;
justo impedimento; prova*

1. O sumário de RC 1/2/2022 (1724/20.1T8VIS.C1) é o seguinte:

I - O artigo 234.º CPC, sobre incapacidade de facto do citando, aplica-se também à citação por via postal, pelo que quando o distribuidor postal se aperceba da notória incapacidade de facto do citando deve abster-se de fazer a citação, lavrar nota da ocorrência e devolver o expediente ao tribunal.

II – Quando o distribuidor postal não se aperceba de que o citando está incapacitado de perceber o sentido da citação ou que não se encontra no livre exercício da sua vontade, e esteja em causa uma incapacidade acidental, o citando que se queira fazer valer dessa incapacidade, a fim de contestar fora do prazo que lhe foi assinalado, deve, logo que cessar a sua incapacidade, oferecer prova de que estava incapacitado no momento da citação e apresentar a contestação, invocando a figura do justo impedimento.

III - Os factos que não se consideram confessados no caso de o réu não contestar, apesar de ter sido regularmente citado, dizem respeito a declarações negociais que devem obedecer por força da lei ou da convenção das partes a documento escrito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dispõe a al e) do art 188º CPC que «quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável, há falta de citação».

Importa, assim, verificar em que termos ocorreu a citação do R., agora apelante.

O R. foi citado por carta registada com aviso de recepção, nos termos do art 228º CPC, «para, no prazo de 30 dias, contestar, querendo, a acção acima identificada com a advertência de que a falta de contestação importa a confissão dos factos articulados pelo autor».

O aviso de recepção mostra-se junto a fls 73 dos autos e está assinado pelo R. contendo o número, a data e a entidade emissora do cartão de cidadão do mesmo.

Preceitua o art 228º/2, para o que aqui releva, que «a carta pode ser entregue, após assinatura do aviso de recepção, ao citando (…)», explicitando o nº 3 da mesma norma que, «antes da assinatura do aviso de recepção, o distribuidor do serviço postal procede à identificação do citando (…) anotando os elementos constantes do cartão de cidadão, bilhete de identidade ou de outro documento oficial que permita a identificação».

Como decorre do art 225º/2 al b), a citação é pessoal quando, entre outras situações, é feita pela entrega ao citando de carta registada com aviso de recepção.  Quer dizer que, nessas circunstâncias, a citação postal vale como pessoal.

Invoca, no entanto, o apelante que no acto da citação não tinha condições físicas nem discernimento mental para compreender a citação recebida, estando incapaz de gerir adequadamente a sua vida, não conseguindo perceber o conteúdo desse acto, mais referindo que em consequência do quadro destrutivo em que então se encontrava, veio a acometê-lo um AVC, estando hoje incapaz de exercício.

O art  234º CPC, regendo especificamente para as situações  em que a citação teve lugar por contacto pessoal com o citando – tendo sido realizada por agente de execução ou funcionário judicial, nos termos da al c) do nº 2 do art 225º - não deixa de ter aplicação a situações como a dos autos, em que a citação foi postal, como o refere Lebre de Freitas/Isabel Alexandre [«Código do Processo Civil Anotado», pag 455], quando assinalam, em comentário àquela norma, que, «a notória incapacidade de facto do citando constitui motivo de impossibilidade de entrega da carta se outra pessoa não a receber e assinar o aviso de recepção». Sendo que esta consideração deixa aberta a possibilidade ao funcionário postal de, além de não entregar a carta ao cintando por lhe parecer que o mesmo não está capaz de a receber, poder providenciar pela entrega da mesma a outra pessoa que, tal como o refere do nº 2 do art 228º, se encontre na sua residência ou local de trabalho, e que declare responsabilizar-se, de modo a vir, se for o caso, suscitar a questão da incapacidade do citando ao processo. Pensa-se, no entanto, que melhor fará que proceda nos termos do art 234º CPC, procedendo como aí se determina para o agente de execução ou para o funcionário judicial, abstendo-se de fazer a citação, lavrando nota da ocorrência e devolvendo o expediente ao tribunal (cfr nº 7 do art 228º).

Situação em que o tribunal procederá em conformidade com o demais disposto na norma do art 234º, que implicará que, ouvido o autor, colhendo as informações que tenha por adequadas e ordenando a produção das provas julgadas necessárias, se vier a concluir  pelo reconhecimento da incapacidade, temporária ou duradoura, nomeie ao citando curador provisório, no qual será feita a citação, sendo que, quando este não conteste, se procederá à citação do mesmo nos termos do art 21º, como o determina o nº 4 do referido art 234º .

Mas, como é evidente, bem pode suceder que o distribuidor postal, em função do pouco contacto implicado na actuação pressuposta no referido no nº 3 do art 228º, não se aperceba de que o citando está incapacitado de perceber o sentido da citação ou que não se encontra no livre exercício da sua vontade, desde logo porque estas situações não se apresentem como notórias.

Nessas circunstâncias, estando em causa uma incapacidade acidental, o citando, ultrapassada a situação que a determinou, e logo que se aperceba da existência e conteúdo da carta de citação ou da existência do processo em função de qualquer notificação que dele receba – como o pretenderá o aqui apelante depois que foi notificado da sentença recorrida - dever-se-á de imediato apresentar em juízo dando conta da situação e fazendo valer-se da figura do justo impedimento.

Refere a respeito deste o art 140º do CPC:

“1 - Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato.
2 - A parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.

Desta norma resulta que o efeito do justo impedimento é o de suspender o termo de um prazo peremptório deferindo-o para o dia imediato àquele que tenha sido o último de duração do impedimento [Ac RE de 02/12/2009, (Bernardo Domingos)].

Mas, para que assim funcione, a invocação do justo impedimento tem de ser feita logo que cesse a causa impeditiva, a prova do mesmo tem de ser oferecida de imediato, e o requerente tem que proceder à prática em simultâneo do acto em falta.

Com efeito, está assente na doutrina e jurisprudência que o justo impedimento implica que a «parte que o invoque para a prática de um acto processual em tempo deve arguir o incidente e praticar esse acto logo que cesse o justo impedimento». [Ac. RC de 18/07/2006 (Garcia Calejo)]

Quer dizer, a parte deve apresentar-se a requerer logo que o justo impedimento cesse oferecendo de imediato a respetiva prova e praticando ao mesmo tempo e o ato processual cujo prazo já expirara.

Ora, se é certo que o réu nas alegações de recurso contestou, de algum modo, a acção, e, antecedentemente suscitou o incidente do justo impedimento, a verdade é que não apresentou de imediato qualquer prova relativa à sua incapacidade de facto à data da citação e, subsequentemente a esta, como invoca.

A apresentação da prova tem de ser imediata, e só é admissível que o não seja quando o evento que despoleta o justo impedimento se mostre objectivamente imprevisível. Quando assim não seja, como o não é na situação dos autos, só oferendo a parte, de imediato, prova - necessariamente documental - fará sentido que, em função desse “principio de prova”, se pare o processo, para averiguar com maior profundidade as razões que subjazem à invocação da parte.

Não basta requerer diligências de prova ou indicar testemunhas para o efeito, como o aqui apelante o fez, ao requerer que seja oficiado o Centro Hospitalar de…,…para juntar aos autos histórico clínico dos últimos anos do R. e ao indicar duas testemunhas.

Utilizando o nº 2 do art 140º a expressão «oferece logo a respectiva prova», e não “indica logo a prova”, é muito expressivo no sentido defendido.

Note-se que a exigência de (alguma) prova imediata – que, já se referiu que, pela sua imediatez, terá de ser documental -  não obsta a que, em situações como as dos autos, se complemente com outra a ser produzida e que relevará para sustentar a anterior e ainda para comprovar o prolongamento no tempo do impedimento e de que apenas com a notificação para qualquer acto do processo tivesse sido possível à parte aperceber-se da sua existência.

No sentido que se defende parece orientar-se José Alberto dos Reis quando refere, a respeito da instrução do incidente em causa, que «o requerente deve oferecer logo as provas dos factos que alegar. Naturalmente as provas adequadas são documentos e testemunhas. Os documentos têm que ser juntos ao requerimento; neste hão-de ser indicadas as testemunhas». [«Comentário ao Código de Processo Civil», Vol. II, p.79/80 «No preciso momento em que o interessado se apresenta para praticar o acto intempestivo, é que tem de fazer a alegação e prova do justo impedimento». ]

A jurisprudência também o evidencia [A título de exemplo, o já citado  Ac RE 2/12/2019 (Bernardo Domingos) e Ac R C 26/10/2021 (Vitor Amaral)]

Nem se diga que o apelante juntou com as alegações de recurso prova documental, porque a mesma – consubstanciando-se na cópia da primeira página de uma oposição a uma execução - em nada releva para a prova que está em causa.

Do que se vem de dizer, decorre que o R. não logrou provar que não tivesse tido conhecimento da citação, pois que essa prova estava dependente da que obtivesse no incidente de justo impedimento. Quer dizer, apenas a prova deste permitiria que se admitisse que o desconhecimento dos efeitos da citação existisse nesse momento, e se tivesse mantido até à data da notificação da sentença, por facto que não lhe tivesse sido imputável.

Com esta conclusão – que implica que o R. foi citado regularmente e não contestou no prazo de que para o efeito dispunha - e porque, para além disso, não constituiu mandatário nem interveio de qualquer forma no processo, art 566º/1, há que concluir, como se concluiu na sentença recorrida, que entrou em revelia absoluta.

E revelia operante, que tem como efeito, como é sabido, a confissão dos factos articulados pelo autor, como se estabelece na parte final do art 567º/1.

Fala-se a este respeito de confissão tácita ou ficta, embora Lebre de Freitas prefira a expressão “admissão de factos” [«A Confissão no Direito Probatório», Coimbra 1993, p 483].

Resultando os factos alegados na petição, provados, em função da operância da revelia, há que, nos termos da parte final do nº 2 do art 567º, «julgar a causa conforme for de direito», o que deve ser antecedido de despacho no qual se faculte o processo para exame, «primeiro ao advogado do autor e depois ao advogado do réu», para alegarem por escrito.

Esta norma é muito clara no sentido de que o réu só é admitido a alegar por escrito se tiver constituído mandatário. Na falta deste, não poderá alegar de direito, o que, pelo menos nos processos em que seja obrigatória a constituição de mandatário, como é o caso do presente, bem se compreende. [Pronuncia-se neste sentido Lebre de Freitas. «A Acção Declarativa.Comum à luz do CPC de 2013», 3ª ed., p 92; Montalvão Machado «O Dispositivo e os poderes do tribunal à luz do novo CPC», 2ª ed, nota de rodapé na p 194. Teixeira de Sousa, «Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed. sustenta que, nestas circunstâncias e em função do princípio de igualdade, também o autor não poderá produzir alegações de direito, o que de resto, os AA. na presente acção, não fizeram.]

Esta asserção exclui a nulidade do processo por omissão de despacho, em função do qual, se tivesse proporcionado ao R. alegar de direito."

*3. [Comentário] Tudo leva a crer que a RC decidiu bem. Em todo o caso, não teria sido despiciendo se se tivesse especificado que, no caso concreto, um distribuidor postal, actuando com a diligência devida, não poderia ter-se apercebido da incapacidade acidental do citando.
 
MTS


25/10/2022

Jurisprudência 2022 (51)


Despacho saneador;
conhecimento do mérito; improcedência manifesta


I. O sumário de RL 24/2/2022 (2307/19.4T8CSC.L1-2) é o seguinte:

1- O conhecimento do mérito da causa em sede de despacho saneador, sem necessidade de produção de prova quanto a factos controvertidos, justifica-se quando, do confronto da vertente fáctica da causa de pedir com as várias soluções plausíveis de direito, se conclua que essa actividade probatória se apresenta como inútil, porque a demonstração da referida factualidade não permite a afirmação do direito a que se arroga o autor, não só segundo a solução de direito nos termos afirmados pelo tribunal, mas igualmente segundo as demais soluções de direito que se apresentem como suficientemente seguras para justificar essa conclusão, do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial.

2- A invocação pelo A. da sua qualidade de legatário quanto a metade de um prédio rústico, relativamente ao qual, ainda em vida da testadora, foi expropriada amigavelmente uma parcela, contra a entrega ao R. da respectiva indemnização, não conduz à afirmação do direito do A. a receber metade dessa indemnização, na medida em que tal crédito era da titularidade da testadora e, com o seu óbito, não se transmitiu ao A. por força da sua posição de legatário.

3- Desta forma, deve a pretensão do A. ser julgada improcedente logo em sede de despacho saneador, sem que seja necessário apreciar a questão da licitude ou ilicitude da actuação do R. que conduziu ao recebimento da indemnização em questão, bem como do destino que lhe deu.
 

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na sentença recorrida afirmou-se a improcedência da acção pela seguinte forma:
 
Atenta a factualidade considerada como provada, está em causa nos presentes autos o enriquecimento por intervenção.
 
Com efeito, esta modalidade de enriquecimento sem causa diz respeito às situações em que alguém obtém um enriquecimento através de uma ingerência não autorizada no património alheio, sendo o seu fim a restituição ao titular da vantagem patrimonial obtida pelo interventor, o que ocorrerá sempre que, de acordo com a repartição dos bens efectuada pela ordem jurídica, essa vantagem se considere como pertencente ao titular do direito (…).
 
E, no caso do direito de propriedade, ante o que dispõe o artigo 1305.º do Código Civil, a disposição não autorizada de bens legitimam o respectivo titular a exigir a restituição por inteiro da vantagem obtida, ainda que não tenha sofrido um prejuízo efectivo.

No presente caso, dúvidas inexistem que (nem as partes sobre ela divergem) a expropriação parcial (da área de 51 669m2) do prédio rústico denominado Caniçais (…) ou (…), registado a favor de Maria M., ocorreu em 28 de Novembro de 2003.

Mais resultou apurado que, por testamento lavrado em 21 de Março de 1990, Maria M. deixou em legado ao A.  metade do prédio (…).

A testadora, Maria M., faleceu em 17 de Fevereiro de 2005.

Ora, a sucessão é a aquisição derivada translativa, por morte, de situações jurídicas, sendo apenas aberta no momento da morte do seu autor, momento em que são chamados à sucessão os sucessores: herdeiros ou legatários (artigos 2031.º e 2032.º do Código Civil).

Para o que ao caso interessa, a sucessão pode ser deferida por testamento, mediante o qual é atribuída a qualidade de sucessível antes da morte do de cujus e, tratando-se de sucessão em relação a bens ou valores determinados, o sucessor é denominado de legatário - artigos 2026.º e 2030.º, n.º 2 do Código Civil.

O testamento constitui um negócio jurídico unilateral, não receptício, gratuito, formal e livremente revogável, mediante o qual o testador dispõe, para depois da sua morte, de todos ou parte dos seus bens. Trata-se, por isso, de um negócio jurídico mortis causa, na medida em que as disposições testamentárias apenas produzem efeitos após a morte do testador.

Da factualidade apurada, resulta que, à data da morte da testadora (2005), o bem deixado em legado, já não existia, ainda que parcialmente, no seu património. E isto por via do acto de expropriação ocorrido no ano de 2003, ainda em vida da testadora.

Com efeito, por via da expropriação, ao bem deixado em legado, foi desanexada a área de 51 669m2.

É, assim, aplicável o que dispõe o artigo 2254.º do Código Civil, sob a epígrafe Legado de coisa não existente no espólio do testador:

1.  Se o testador legar coisa determinada, ou coisa indeterminada de certo género, com a declaração de que aquela coisa ou este género existe no seu património, mas assim não suceder ao tempo da sua morte, é nulo o legado.
2.  Se a coisa ou género mencionado na disposição se encontrar no património do testador ao tempo da sua morte, mas não na quantidade legada, haverá o legatário o que existir.

Em regra, o legado de coisa alheia é nulo (vide artigos 2251.º, 2252.º e 2254.º e 2256.º do Código Civil).

Não obstante, se o testador legar uma coisa, com a declaração de que aquela coisa existe no seu património, e se ela se encontrar no património do de cujus, mas não na quantidade legada, haverá o legatário o que existir (in Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, Almedina, 2020, pág. 143).

Se bem percebemos a pretensão do A., este defende que tem direito à totalidade da deixa testamentária do legado, tal como ela foi inscrita no testamento da de cujus e, no caso, por força da sua alienação em vida da testadora, do equivalente em dinheiro.

Porém, de acordo com as normas enunciadas, o legatário apenas tem direito ao legado, nos exactos termos em que ele existir à data da morte do testador, já que apenas sucede ao testador nas relações jurídicas de que este era titular à data da sua morte.

E, como já vimos, apenas o titular do direito de propriedade sobre que o interventor que tenha enriquecido indevidamente tem legitimidade para pedir a sua restituição; no caso, uma vez que era a titular inscrita no registo, representada pelo R. no acto de expropriação, apenas Maria M. teria legitimidade para deduzir uma pretensão sobre um eventual enriquecimento injustificado do R., se fosse caso disso.

Por assim ser, e considerando o enquadramento jurídico dado pelo A., carece de absoluto fundamento legal a sua pretensão”.

Para contrariar o assim decidido o A. invoca, com único carácter impugnatório (entendido este como a indicação dos fundamentos não considerados pelo tribunal recorrido, e a partir dos quais a decisão impugnada há-de ser revogada e substituída), a ausência de qualquer explicação sobre como seria possível à proprietária do prédio cuja parcela foi expropriada fazer valer os seus direitos relativamente à conduta ilícita do R., tendo presente o estado vegetativo em que se encontrava.

Ou seja, o A. não coloca em crise que a actuação do R. que resulta dos factos provados (a outorga do auto de expropriação amigável, em representação da referida proprietária, e o recebimento do montante indemnizatório acordado) se repercute na esfera jurídica da identificada Maria M. (a referida proprietária).

Todavia, argumenta que o estado de incapacidade da mesma impediu-a de fazer valer o seu direito a haver do R. o montante indemnizatório em questão, que o mesmo recebeu da entidade expropriante, naquela sua indicada qualidade de representante da expropriada. E como, entretanto, a referida expropriada faleceu e, por força do testamento que deixou, o A. recebeu, em legado, metade do prédio rústico de onde foi retirada a parcela expropriada, será o mesmo a haver do R. metade daquele montante indemnizatório.

Ou seja, parece o A. entender que a circunstância de ser legatário da falecida proprietária do referido prédio rústico o habilita a suceder na posição da mesma como credora do R., quanto a metade daquele montante recebido pelo R.

Mas o que o A. não consegue justificar, por não haver justificação para tanto, é a norma que faz concluir por essa transmissão mortis causa.

Com efeito, e como ficou sustentado na sentença recorrida, o A. é sucessor da falecida Maria M. por força do testamento feito por aquela, já que através desse testamento a testadora deixou-lhe metade do prédio rústico em questão.

Ou seja, o mesmo é chamado à sucessão das situações jurídicas da testadora enquanto legatário, já que sucede num bem determinado (art.º 2030º, nº 2, do Código Civil).

E porque do disposto nos art.º 2031º e 2032º do Código Civil resulta que o A. só é chamado à titularidade dessa situação jurídica com a abertura da sucessão, ou seja, no momento da morte da testadora, tal significa, face ao disposto no art.º 2254º do Código Civil, que o mesmo só haverá a coisa legada, no estado em que a mesma se encontra, nesse momento da morte da testadora.

O que é o mesmo que dizer que o A. não é titular das situações jurídicas com origem na coisa legada, mas surgidas em momento anterior ao da morte da testadora.

Assim, e mesmo que a conduta do R. (ao negociar e receber a indemnização pela expropriação amigável) se possa configurar como ilícita, por falta de poderes de representação da expropriada (e de onde resulta ter o mesmo de responder perante a expropriada pela diminuição do património desta, na medida correspondente à da indemnização recebida pelo R.), tal não significa que, com a morte da expropriada, o direito ao valor assim recebido (emergente da ilicitude da diminuição patrimonial) se transmite para quem lhe suceda na titularidade do prédio rústico cuja parcela foi expropriada, ainda que como legatário.

É que, na medida em que a sucessão a esse título respeita tão só à coisa legada, no estado em que se encontra à data da morte da testadora, o A. legatário não sucede nas situações jurídicas a que respeita tal actuação ilícita, ainda que tal actuação ilícita tenha determinado uma alteração da composição da coisa objecto da deixa testamentária, entre o momento do testamento e o momento da morte da testadora.

O que é o mesmo que dizer que o A. não é titular do direito a haver do R. o referido montante indemnizatório, ainda que na proporção de metade.

Do mesmo modo, e porque ainda que se houvesse de falar na ausência de qualquer causa justificativa para o enriquecimento do R. (correspondente ao locupletamento do valor da indemnização pela expropriação), uma vez que dessa situação não resultaria qualquer empobrecimento do A., mas antes da proprietária expropriada, nunca essa situação jurídica activa integraria o legado do A."

[MTS]