"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/12/2021

Legislação (212)


Custas processuais

-- L 99/2021, de 31/12:

Contribuições especiais e valor das custas processuais para 2022


29/12/2021

Jurisprudência uniformizada (53)


Sub-rogação de terceiro pelo credor;
co-fiador; efeitos


-- Ac. STJ 6/2021, de 29/12, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

A existência de uma declaração sub-rogatória pelo credor, de acordo com o artigo 589.º do Código Civil, no confiador solidariamente responsável que satisfez o crédito, não afasta a aplicação do regime da sub-rogação legal e do direito ao reembolso pelos outros confiadores, na medida das suas quotas, resultante da conjugação dos artigos 650.º, n.º 1, e 524.º do Código Civil.

 

Jurisprudência europeia (TJ) (252)


Reenvio prejudicial – Cooperação judiciária em matéria civil – Competência judiciária e execução de decisões em matéria civil e comercial – Regulamento (UE) n.° 1215/2012 – Artigo 7.°, ponto 2 – Competência especial em matéria extracontratual – Publicação na Internet de afirmações alegadamente depreciativas relativamente a uma pessoa – Lugar da materialização do dano – Órgãos jurisdicionais de cada Estado‑Membro em cujo território esteja ou tenha estado acessível um conteúdo colocado em linha


TJ 21/12/2021 (C‑251/20, Gtflix Tv/DR) decidiu o seguinte:

O artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que uma pessoa que, por considerar que houve uma violação dos seus direitos pela difusão de afirmações depreciativas a seu respeito na Internet, age judicialmente para efeitos simultaneamente, por um lado, de retificação dos dados e de supressão dos conteúdos colocados em linha a seu respeito e, por outro, de reparação dos danos resultantes dessa colocação em linha, pode pedir, nos órgãos jurisdicionais de cada Estado‑Membro em cujo território essas afirmações estejam ou tenham estado acessíveis, a reparação dos danos que lhe foram causados no Estado‑Membro do órgão jurisdicional chamado a decidir, ainda que esses órgãos jurisdicionais não sejam competentes para conhecer do pedido de retificação e supressão.

 

23/12/2021

Bibliografia (1001)


-- Lupoi, M. A., Tra flessibilità e semplificazione. Un embrione di case management all'italiana? (Bononia University Press [OA]: Bologna 2018)


21/12/2021

Informação (285)


Interrupção do Blog


Como sucedeu em anos anteriores, o Blog do IPPC interrompe as suas publicações regulares durante o período de Natal e de Ano Novo. O Blog retomará o seu ritmo normal no início de Janeiro.

O Blog do IPPC envia a todos os seus Leitores Votos de Boas Festas e de um Feliz e Saudável 2022. 

MTS


Jurisprudência 2021 (101)


Penhora;
inscrição matricial; descrição registal


1. O sumário de RL 29/4/2021 (12592/15.5T8ALM-B.L2-2) é o seguinte:

I. A inscrição matricial de prédio urbano não constitui, fora da relação tributária, presunção do direito de propriedade, mas funda presunção da existência do bem inscrito na matriz.

II. O agente de execução tem legitimidade para requerer a descrição, no registo predial, de prédio urbano omisso no registo predial, mas inscrito na matriz, tendo em vista inscrever no registo predial a penhora desse prédio.

III. A efetivação do registo da penhora não carece de prévia inscrição do bem a favor do sujeito passivo.

IV. A alegação de que o bem/edifício penhorado não tem licença de utilização nem loteamento autorizado não obsta à manutenção da respetiva penhora, se, provando-se embora que o executado/opoente é comproprietário de um prédio rústico, improcede a impugnação do registo da descrição e da penhora do prédio urbano efetuada (a impugnação) pelo executado/opoente junto da Conservatória do Registo Predial, e consta na matriz e no registo predial que o prédio penhorado se localiza num indicado lote e confronta com via pública e outros lotes.

V. A alegada, e não demonstrada, inexistência de licença de utilização do prédio urbano penhorado não obsta à venda deste no âmbito da execução.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O art.º 735.º n.º 1 do CPC declara que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.

Por sua vez no art.º 601.º do Código Civil estipula-se que “[p]elo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.”

E o n.º 1 do art.º 743.º do CPC, invocado pelo opoente/apelante, dispõe o seguinte:

“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 781.º, na execução movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fração de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso”.

Sobre a oposição à penhora, o art.º 748.º n.º 1 do CPC estipula o seguinte:

“1 - Sendo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos:
a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada;
b) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda;
c) Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência”.

Conforme consta no Relatório supra, este procedimento de oposição à penhora já foi alvo da atenção desta Relação, por meio do acórdão que conheceu do indeferimento liminar da oposição. Nesse acórdão, datado de 07.11.2019, se ponderou que, contrariamente ao aparentemente propugnado pelo tribunal a quo (na decisão de indeferimento liminar da oposição à penhora), a oposição à penhora é o meio adequado à reação contra penhora que tenha incidido sobre parte especificada de bens indivisos. Essa seria a situação invocada pelo apelante/opoente/executado: sendo titular, como comproprietário, de uma quota parte (158/75000 avos indivisos) de um prédio rústico, a penhora terá incidido sobre um edifício construído no mencionado prédio rústico, o qual não existiria juridicamente, pois não haveria licença de utilização e o prédio encontrar-se-ia indiviso sem processo de loteamento.

Vejamos.

Resulta dos autos que o opoente/executado/apelante é comproprietário de um prédio rústico, com uma quota de 158/75000 avos indivisos (cfr. n.ºs 10 e 11 da matéria de facto). No que concerne ao aludido prédio rústico, o direito do executado reporta-se à aludida quota ideal, não estando individualizado, no seu objeto, sobre parte especificada da coisa (cfr. artigos 1403.º, 1405.º, 1406.º, 1408.º do CC). Daí que apenas poderá ser penhorado o seu direito à aludida quota ideal. Direito esse, de resto, que veio a ser penhorado na execução (cfr. n.º 9 da matéria de facto).

Porém, o executado/opoente/apelante insurge-se contra a penhora do prédio urbano referida em 1 da matéria de facto, alegando que esse prédio não existe.

Ora, que o prédio existe, resulta da matéria dada como provada (n.ºs 3 a 7 da matéria de facto).

É certo que, conforme se estipula no art.º 12.º n.º 5 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), “As inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem presunção de propriedade.”

Mas a inscrição matricial, se não forma presunção da titularidade do direito de propriedade sobre o bem inscrito, baseia presunção sobre a existência do prédio inscrito.

Tal presunção está implícita em normas como as previstas nos artigos 28.º a 31.º do Código do Registo Predial (CRP), que impõem a inscrição na matriz dos prédios a que respeitam as inscrições do registo predial, e exigem a harmonização quanto à localização, à área e ao artigo da matriz, entre a descrição e a inscrição matricial.

Tal presunção da existência do prédio inscrito na matriz está também implícita no disposto no art.º 92.º n.º 1 do Código do Registo do Notariado, que impõe, relativamente às justificações notariais para estabelecimento ou reatamento do trato sucessivo no registo predial, que os direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz, aqui estejam inscritos.

Veja-se, nesse sentido, o Parecer do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado, n.º 110/2011 (consultável no portal na internet do referido Instituto): “De acordo com a norma do art. 92.º, n.º 1, do Cód. do Notariado, a inscrição matricial, na medida em que constitui presunção da existência do prédio, é pressuposto essencial da admissibilidade de justificação notarial de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz, implicando a violação daquela norma a nulidade do acto jurídico (cfr. art.s 294º e 295º, do Cód. Civil).”

Acerca da razão de ser da relevância da referida prévia inscrição matricial, veja-se o Parecer do Conselho Consultivo do IRN, n.º 112/2010 (nota 6):

“A ratio da exigência de que a escritura de justificação apenas se possa celebrar quando exista inscrição matricial do prédio objecto do direito alegadamente usucapido releva com efeito da necessidade sentida pelo legislador de se assegurar da real existência do bem, e de que portanto o ingresso e definição da identidade dele no registo, designadamente na sua mais elementar e radical configuração, enquanto porção delimitada de solo (com a área que tiver), não fica inteiramente confiada à declaração “interessada” do justificante, e isto pese embora a intervenção no acto de três outros sujeitos unissonamente confirmando a veracidade de tal declaração. Se não foi desconfiado, o legislador quis pelo menos ser cauteloso, e, jogando pelo seguro, determinou que a escritura só estará à mão contanto que o prédio se encontre inscrito na matriz, já que, estando-o, daí será lícito presumir que o prédio materialmente existe, e que existe com a fisionomia com que nessa sede se oferece. É pois primacialmente a preocupação com a acreditação da existência e identidade do prédio o que segundo cremos estará na base da prescrição constante do normativo em apreço – a sua teleologia reconduz-nos preponderantemente aos fins próprios da instituição registal (designadamente ao seu escopo fundamental, o da promoção da segurança do comércio jurídico imobiliário), e só lateralmente a uma qualquer racionalidade de natureza fiscal (como uma eventual cobrança de tributo).

A segurança propiciada pela prévia inscrição matricial advém naturalmente da possibilidade que os serviços fiscais têm de, no terreno, e designadamente para efeitos de avaliação, procederem às inspecções e vistorias que se justifiquem. E se é certo que nem sempre (e porventura nem sequer maioritariamente) a inscrição na matriz será precedida duma tal verificação in loco, a simples possibilidade de que ela se tenha realizado ou venha a realizar, através dos meios técnicos e humanos de que para isso os serviços de finanças estão dotados, garante aos olhos da lei aquele mínimo de certeza acerca da existência e identidade do prédio de que se não quis prescindir e que a mera declaração verbal por parte do justificante se tem por incapaz de produzir.

Tudo o que vem de dizer-se a propósito do valor das matrizes enquanto instrumento de acreditação da existência e identidade dos prédios objecto de justificação – e que aliás neste contexto se vem dizendo pelo menos desde o primeiro dos citados pareceres – mantém toda a pertinência no quadro do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, aprovado no âmbito da reforma da tributação do património operada pelo DL n. 287/2003, de 12-11. Basta observar que, nos termos do art. 14.º/2, a avaliação do prédio, sempre que necessário, é precedida de vistoria. De resto, como acentuam J. SILVÉRIO MATEUS e L. CORVELO DE FREITAS, in “Os Impostos sobre o Património Imobiliário – O imposto do Selo”, 2005, p. 191, “embora o CIMI imponha determinados deveres declarativos aos sujeitos passivos do imposto, a verdade é que, face ao princípio da avaliação directa, o procedimento de avaliação caracteriza-se por uma decisiva intervenção oficiosa, prevista no n.º 1 do artigo 37.º e no artigo 67.º, subordinada ao princípio do inquisitório previsto no artigo 58.º da Lei Geral Tributária, donde decorre a obrigatoriedade de confirmar e, se for o caso, de corrigir os elementos declarados.””

O Sr. agente de execução tinha legitimidade para requerer a descrição do prédio no registo predial, tendo em vista a respetiva penhora (cfr. artigos 719.º n.º 1 do CPC, artigos 36.º, 2.º n.º 1 al. n), 8.º-B, n.º 3, al. c) e 80.º n.º 1 do CRP).

E para tal não carecia de diligenciar pela demonstração da legitimação do direito do executado, para além do que já constava na matriz, face à norma excecional prevista no art.º 9.º. n.º 2, alínea a) do CRP:

“Artigo 9.º
Legitimação de direitos sobre imóveis
1– Os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo.
2– Exceptuam-se do disposto no número anterior:
a) A partilha, a expropriação, a venda executiva, a penhora, o arresto, a apreensão em processo penal, a declaração de insolvência e outras providências ou atos que afetem a livre disposição dos imóveis; (…).”
 
Contrariamente ao alegado pelo apelante na conclusão s) da apelação, o Sr. agente de execução diligenciou pela aludida penhora após ter procedido à consulta nas bases de dados mencionadas no art.º 749.º n.º 1 do CPC (cfr. n.ºs 12 e 13 da matéria de facto). [...]

Alegou também o executado que o edifício penhorado carece de licença de utilização (o que constituiria obstáculo à sua autonomização jurídica e à sua penhorabilidade). Ora, independentemente de ser discutível que a falta de licença de utilização do edifício constitua o obstáculo apontado pelo executado, a verdade é que nos autos não só não ficou demonstrada essa falta de licença como, em sede de execução, a este respeito o legislador adotou uma solução de defesa dos interesses do credor, conforme decorre do disposto no art.º 833.º n.º 6 do CPC:

“A venda de imóvel em que tenha sido, ou esteja sendo, feita construção urbana, ou de fração dele, pode efetuar-se no estado em que se encontre, com dispensa da licença de utilização ou de construção, cuja falta de apresentação a entidade com competência para a formalização do ato faz consignar no documento, constituindo ónus do adquirente a respetiva legalização”. 

Trata-se, como ponderam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em Código de Processo Civil Anotado, vol II, Almedina, 2020, p. 253, de “uma solução pragmática que se traduz em transferir para o adquirente o ónus de legalização da construção urbana, mas aproveitando para os fins da execução o respetivo valor que seja pago.” Tal facilitação da transmissão do prédio penhorado, no âmbito da execução, prevista no seio do regime da venda por negociação particular, será extensível, por igualdade de razão, à venda operada mediante propostas em carta fechada (neste sentido, cfr. acórdão da Relação do Porto, de 01.02.2010, processo 2360-D/2002.P1, citado pela apelada).

Também por aqui não há, pois, obstáculo à penhora impugnada."

[MTS]


20/12/2021

Jurisprudência europeia (TJ) (251)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.° 44/2001 — Artigo 5.°, ponto 3 — Conceito de “matéria extracontratual” — Processo judicial de execução — Ação de repetição do indevido fundada em enriquecimento sem causa — Artigo 22.°, ponto 5 — Execução de decisões — Competência exclusiva


TJ 9/12/2021 (C‑242/20, HRVATSKE ŠUME/BP EUROPA) decidiu o seguinte:

1) O artigo 22.°, ponto 5, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que uma ação de restituição fundada em enriquecimento sem causa não está abrangida pela competência exclusiva prevista nesta disposição, mesmo que tenha sido intentada por ter decorrido o prazo dentro do qual pode ser requerida a restituição dos montantes indevidamente pagos num processo de execução no âmbito desse mesmo processo de execução.

2) O artigo 5.°, ponto 3, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que uma ação de restituição fundada em enriquecimento sem causa não está abrangida pelo critério de competência previsto nesta disposição.

 

Jurisprudência europeia (TJ) (250)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Competência judiciária, reconhecimento e execução das decisões em matéria civil e comercial — Competência em matéria de seguros — Pedido de reparação do prejuízo sofrido por um particular domiciliado num Estado‑Membro na sequência de um acidente numa habitação arrendada noutro Estado‑Membro — Ação intentada pela pessoa lesada contra, por um lado, o segurador e, por outro, o segurado, proprietário dessa habitação — Aplicabilidade do artigo 13.°, n.° 3, deste regulamento


TJ 9/12/2021 (C‑708/20, BT/Seguros Catalana Occidente et al.) decidiu o seguinte:

O artigo 13.°, n.° 3, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, em caso de ação direta intentada pela pessoa lesada contra um segurador, em conformidade com esse artigo 13.°, n.° 2, o órgão jurisdicional do Estado‑Membro no qual essa pessoa está domiciliada não pode declarar‑se também competente, com fundamento no referido artigo 13.°, n.° 3, para conhecer de um pedido de indemnização apresentado concomitantemente pela referida pessoa contra o tomador do seguro ou o segurado que esteja domiciliado noutro Estado‑Membro e que não tenha sido demandado pelo segurador.


Jurisprudência 2021 (100)


Liquidação da sentença;
incidente


1. O sumário de RC 11/5/2021 (216/17.0T8SRT.C1é o seguinte:

i) A sentença só é nula, por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art. 615º, nº 1, c), 1ª parte, do NCPC, se entre aqueles e esta houver contradição lógica; não se houver eventual erro de julgamento;

ii) A sentença só é nula, nos termos da mencionada al. c), 2ª parte, quando não seja perceptível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal;

iii) A sentença é nula, ao abrigo da e) do indicado art. 615º, nº 1, se condenar em objecto diverso do pedido; esta pronúncia ultra petitum dá-se se o A. pede uma coisa e o tribunal condena noutra, por ex. se o A. pede a entrega de uma coisa e o juiz condena o R. a pagar uma indemnização;

iv) Quando se deduz incidente declarativo de liquidação de sentença, nos termos do art. 359º, nº 1, do NCPC, o A. está obrigado a especificar os danos ocorridos (no caso que tratamentos medicamentosos, médicos, cirúrgicos e terapêuticos tinha empreendido e a que foi sujeito e quais as despesas conexas que tinha realizado), concluindo com um pedido de quantia certa, e não pedir que a R. seja condenada a suportar o custo de todos os tratamentos medicamentosos, médicos, cirúrgicos e terapêuticos, e respetivas despesas conexas, a que seja necessário ser submetido, a serem determinados na sentença, sem sequer indicar qualquer quantia certa;

v) O propósito legal do incidente de liquidação é apurar os danos sofridos pelo A., quantificá-los e condenar em quantia certa, se necessário com prova oficiosamente completada (art. 360º, nº 4, do NCPC) e em último recurso condenar-se em quantia certa com base na equidade (art. 566º, nº 3, do CC), não, deturpando tal objectivo, que se faça surgir a necessidade de uma nova e subsequente(s) liquidação(ões);

vi) Faltando, no incidente de liquidez da obrigação, a condenação em quantia certa, não é possível relativamente a dois factos provados danosos – necessidade de o A. tomar diariamente comprimidos analgésicos e massajar o seu membro inferior esquerdo com pomadas e de o A. fazer com frequência tratamentos de fisioterapia a fim de melhorar as suas queixas e dores – a Relação fixar um determinado montante, para ambos os tipos de despesa, com recurso à equidade, já que: o A. não peticionou o pagamento de quaisquer despesas concretas que já tenha suportado, juntando a respetiva prova; não há elementos de facto para determinar, na janela da equidade, os limites mínimo e máximo de tal juízo équo, pois o A. nas suas declarações de parte disse que realizava fisioterapia que estava a cargo do SNS e quanto aos comprimidos analgésicos e massagem com pomadas não resulta da motivação da decisão da matéria de facto que o A. suporte alguma despesa, não tendo, igualmente, o A. alegado no requerimento do incidente de liquidação pagar alguma coisa que fosse por tais comprimidos e pomadas.

vii) Se na sentença exequenda se fixou que os danos futuros, por danos patrimoniais, só seriam devidos caso o A. viesse a ser submetido a novas intervenções terapêuticas, geradoras de prejuízo, por perda de capacidade de ganho, por incapacidade permanente, e o A. por decisão prévia, proferida em ação executiva, com prévia liquidação inicial, já foi concedida determinada indemnização, com esse fundamento, o mesmo não tem direito a receber adicional indemnização se não só não alegou como nem logrou provar em segundo incidente de liquidação de sentença, como lhe competia (art. 342º do CC), que tivesse sido submetido a qualquer intervenção terapêutica, causal de determinado dano patrimonial (com repercussão sobre a perda da sua capacidade de ganho, por incapacidade permanente);

viii) E, também, porque para esta adicional indemnização o A. a fundou no agravamento da sua IPP (que não seria de 10%, mas sim, atualmente, de 25 pontos), sem que, todavia, tivesse provado qualquer agravamento;

ix) Se na sentença exequenda se fixou que os danos futuros, por danos não patrimoniais, só seriam devidos caso o A. viesse a ser submetido a novas intervenções terapêuticas, designadamente, todos os tratamentos medicamentosos, médicos, cirúrgicos e terapêuticos e despesas conexas, não há lugar a indemnização adicional relacionada com a factualidade apurada que não tem a ver com tais novas intervenções terapêuticas, designadamente, todos os tratamentos medicamentosos, médicos, cirúrgicos e terapêuticos e despesas conexas.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. Relativamente aos danos patrimoniais deixou-se dito na sentença recorrida que:

“No caso dos autos, o Autor reclama a título de danos patrimoniais o pagamento de €25.000 em função do agravamento da sua incapacidade.

Ora, tendo em conta o que a este propósito resultou assente, designadamente que:

“O A., padece de agravamento desde há cerca de 5 anos das queixas dolorosas.

Dada a intensidade das queixas dolorosas, entendeu o medico Dr..., que o processo clínico do A., deveria ser reaberto para o tratamento das referidas lesões. (…)

Desde 2013 o Autor desloca-se com o auxilio de bengala ou canadiana.

As dificuldades motoras que o A. tinha, resultantes do acidente, agravaram-se nos últimos anos.

Passando o Autor muito tempo deitado ou sentado de modo a repousar o seu membro inferior esquerdo.

Necessitando de tomar diariamente comprimidos analgésicos e massajar o seu membro inferior esquerdo com pomadas analgésicas, de modo a poder suportar as dores.

O que condiciona a sua autonomia de deslocação, bem como, daí resulta, uma limitação da sua atividade diária.”

E ainda que:

“Os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano (…)

A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 05/01/1999;

Período de Défice Funcional Temporário Total fixável num período de 63 dias;

Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período de 207 dias;

Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial fixável num período de 207 dias;

Quantum doloris fixável no grau 3/7.

Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 10 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro.

As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual mas implicam esforços suplementares.

Dano estético permanente fixável no grau 2/7;

Ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas.”(…)

No caso dos presentes autos, ficou provado que o Autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente geral de 10 pontos, e ainda que o mesmo deixou de trabalhar em 2013 em virtude da sua incapacidade física para o fazer, pelo que, no cálculo do dano biológico, não tem relevância alguma o salário auferido pelo Autor, uma vez que não está em causa a aptidão para a realização do trabalho habitual. (…)

Assim, em face da ausência de efectivo rebate futuro nos rendimentos do seu trabalho não tem o autor direito a ser indemnizado, nessa vertente, nem há lugar sequer ao habitual recurso às tabelas financeiras como método de cálculo do montante deste tipo de indemnização. Não obstante, tem direito a ser indemnizado pela incapacidade traduzida na diminuição da sua condição física, que, como tal, representa um dano específico e autonomamente indemnizável, assente na penosidade adveniente da diminuição de capacidades e do maior esforço físico que terá que desenvolver, na sua vida diária (…)”

*

No caso vertente, resultou provado que o Autor padece de uma incapacidade permanente geral de 10 pontos, que lhe trará inerentes esforços complementares para a realização das tarefas profissionais habituais e decorre dos autos que tinha 33 anos à data do acidente.

Contudo, cumpre ainda ter em conta que no presente incidente de liquidação apenas pode ter-se em conta o agravamento da situação do Autor após o incidente de liquidação que teve lugar em 2004.

Com efeito, é certo que resultou provado que desde 2013 o Autor tem vindo a sofrer um agravamento da sua situação de saúde, o que se prende não só com as lesões permanentes de que padece em virtude do acidente ocorrido em 1997 como com o avançar da sua idade, já que tem atualmente 56 anos de idade.

Ora, percorrida a jurisprudência mais recente dos nossos tribunais superiores, verifica-se uma tendência crescente no recurso à equidade para a fixação dos valores indemnizatórios.

E, para a decisão do presente caso, foram tidas em conta as indemnizações fixadas pelos nossos tribunais superiores em casos semelhantes ao dos autos.

Pelo exposto, e tendo em conta os montantes já atribuídos ao Autor bem como o agravamento das lesões entretanto sofridas, o Tribunal considera razoável atribuir àquele, a título de danos patrimoniais, uma compensação no montante de €12.000,00 (doze mil euros).“.

A recorrente discorda (cfr. conclusão de recurso 5ª). Entendemos que tem razão, por 2 motivos.

Importando relembrar, previamente, que por decisão de 15.7.2004, proferida na dita acção executiva, com prévia liquidação inicial, ao A. já foi concedida indemnização de 10.000 €, relativamente aos danos patrimoniais que sofreu, atinentes à perda de capacidade de ganho, por incapacidade permanente.

Primus: na sentença exequenda, fixou-se, que os danos futuros, por danos patrimoniais, só seriam devidos se o A. viesse a ser submetido a novas intervenções terapêuticas. Geradoras, obviamente, de prejuízo, por perda de capacidade de ganho, por incapacidade permanente.

Ora, o A. não só não alegou como nem logrou provar – cfr. a factualidade provada - neste segundo incidente de liquidação de sentença, como lhe competia nos termos do disposto no art. 342º do CC, que tivesse sido submetido a qualquer intervenção terapêutica, causal de dano patrimonial, que tivesse repercussão sobre a perda da sua capacidade de ganho, por incapacidade permanente. Logo, não pode obter qualquer indemnização adicional.

Secundus: para esta pretendida indemnização, o A. reclamou, no presente incidente, o montante de 25.000€, com fundamento no agravamento da sua IPP, que não seria de 10%, mas sim, atualmente, de 25 pontos (cfr. arts. 60º a 63º do requerimento inicial). Todavia, realizada a respectiva perícia, aquele valor de 10% permaneceu imutável (cfr. facto não provado C.). Quer dizer, o pressuposto em que o A. assentava a sua pretensão não se verifica. Logo, também por aqui, a sua pretensão não pode ser concedida.           

Não procede, por isso, esta parte do recurso.

5. Relativamente aos danos não patrimoniais escreveu-se na sentença recorrida que:

“Em primeiro lugar, importa considerar que o Autor, conforme resulta do relatório pericial, em consequência deste acidente, ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 10 pontos - numa escala em que à capacidade integral do indivíduo correspondem 100 pontos, sem repercussão permanente na atividade profissional

Assim, face ao grau em que foi fixado o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do Autor (10%), está aqui em causa, tão só, uma questão de maior penosidade no exercício da sua atividade profissional habitual e, por isso, a ser ressarcida também ao nível do dano não patrimonial.

Importa, assim, fixar uma compensação em virtude dos danos não patrimoniais equivalentes ao dano na integridade física do Autor, de carácter permanente, quantificado, como vimos, em 10 pontos, e que se repercute, por natureza, como já se frisou, em diversas áreas da sua existência.

Contudo, também aqui cabe ter em conta as quantias já atribuídas ao Autor nesta sede, igualmente a título de danos não patrimoniais.

Cabe recordar que está agora apenas em causa o agravamento das suas lesões e apenas podem ser tidos em conta os danos por si sofridos após o ano de 2004.

Ao lado dos já referidos danos não patrimoniais decorrentes das sequelas físicas do acidente, outros danos da mesma natureza devem ser compensados, quais sejam as dores (sendo o quantum doloris fixável no grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade crescente) decorrentes das lesões, bem como todo o acompanhamento médico que a sua recuperação demandou e ainda exige atualmente. (…)

Assim, tendo em conta, para além dos fatores já elencados, o período de tempo em que, face à esperança de vida do Autor este previsivelmente sofrerá com as sequelas em questão, a sua condição económica e os valores atribuídos em casos semelhantes pela jurisprudência (com especial destaque para o artigo do Sr. Cons. Salazar Casanova, “Introdução à temática do dano na responsabilidade civil”, in E-book CEJ O Dano na Responsabilidade Civil, pp. 15 ss. (Disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/O_Dano_Responsabilidade_Civil.pdf), e bem assim a desvalorização monetária entretanto ocorrida, vejamos as quantias adequadas, à presente data, como ajustado a compensá-lo.

Recordemos, a este propósito, o que de essencial resultou provado supra:

“O autor era uma pessoa saudável antes do acidente.

O A. mudou a forma como encara a vida.

Se antes era uma pessoa alegre, positiva e bem disposta, que socializava com todas as pessoas, dentro e fora, da sua zona residencial.

Atualmente, decorridos cerca de 20 anos do acidente, o Autor está impedido executar algumas tarefas que anteriormente faziam parte da sua vida diária.

Desde o acidente, perdeu a alegria e a boa disposição que o caracterizavam.

Hoje, teme pelo seu futuro, receando não voltar a ter a independência e o equilíbrio, físico e moral, que possuía antes do acidente.

O Autor tem dificuldade em executar as suas tarefas diárias.

De entre as quais se destacam as lides nos terrenos agrícolas dos seus pais, o andar de bicicleta ou sair de casa para ir ao café.

A condição óssea do A. ficou muito mais frágil depois do acidente.

Carecendo o A. de força ao nível do seu membro inferior esquerdo em consequência das lesões sofridas.

Bem como ficou com os ossos da perna esquerda frágeis.

Desde 2013 o Autor desloca-se com o auxilio de bengala ou canadiana.

O Autor sofreu nos últimos 13 anos dores, incómodos, traumas, sofrimento.

O Autor deixou de trabalhar em 2013 em virtude da sua incapacidade física para o fazer.

O Autor faz com frequência tratamentos de fisioterapia a fim de melhorar as suas queixas e dores.”

Ora, relembrando que o quantum doloris foi fixado no grau 3/7, reputa-se adequado para ressarcir o Autor, a este título, o montante de € 3.000,00 (três mil euros).

Relativamente aos restantes padecimentos sofridos pelo Autor (em especial, os constantes dos factos 21. a 32.), bem como aos danos não patrimoniais decorrentes das sequelas que lhe determinam repercussão permanente na atividade profissional reputa-se adequada a quantia de € 4.000 (quatro mil euros).

Fixa-se, assim, a compensação por danos não patrimoniais no montante global de € 7.000,00 (sete mil euros).”.

A apelante dissente (cfr. conclusão de recurso 6ª). Vejamos, então.

Importando, de novo, relembrar, previamente, que na sentença exequenda já foi atribuída ao A. indemnização, por danos patrimoniais, no montante de 1.500 contos.

Ora, na sentença exequenda, fixou-se, que os danos futuros, por danos não patrimoniais, só seriam devidos caso o A. viesse a ser submetido a novas intervenções terapêuticas, designadamente, o pagamento de todos os tratamentos medicamentosos, médicos, cirúrgicos e terapêuticos e despesas conexas.

Face a este comando judicial não se aceita que a decisão recorrida atribua o montante de 4.000€ relacionada com a factualidade apurada, dos factos 21. a 32., que não tem a ver com novas intervenções terapêuticas, designadamente, todos os tratamentos medicamentosos, médicos, cirúrgicos e terapêuticos e despesas conexas, pois eram estes tratamentos e despesas que estavam conectados com a dita sentença, com o aludido segmento decisório. Não há, por isso, fundamento legal, para atribuir tal quantia indemnizatória.

Porém, no respeitante à remanescente indemnização fixada, de 3.000€, o A. provou matéria (factos 34. e 40.) que está conexionada com tais tratamentos medicamentosos e terapêuticos, a saber, que “Necessitando de tomar diariamente comprimidos analgésicos e massajar o seu membro inferior esquerdo com pomadas analgésicas, de modo a poder suportar as dores” e “O Autor faz com frequência tratamentos de fisioterapia a fim de melhorar as suas queixas e dores.”. Tem, por isso, direito a indemnização por danos não patrimoniais.

Ora, a apelante R. não questionou, no recurso, o valor fixado, pelo que o apontado valor tem de manter-se. Assim, a apelação, nesta parte é de acolher, embora parcialmente, apenas."

[MTS]


17/12/2021

Embargos de terceiro deduzidos em processo-crime



[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]



Jurisprudência 2021 (99)


União de facto; reconhecimento judicial;
legitimidade passiva; interesse em agir


I. O sumário de RL 13/5/2021 (6227/20.1T8LSB.L1-2) é o seguinte:

1.– Nas acções em que o pedido de reconhecimento judicial da união de facto assume natureza instrumental face a futuro pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa ao elemento estrangeiro do mesmo, a relevância que tal atribuição assume no seio do Estado Português, leva a que o mesmo seja parte legítima na acção, representado pelo Ministério Público nos termos do disposto nos artgs. 219.º, n.º 1 da CRP e 4.º, n.º 1, al. b) do Estatuto do Ministério Público.

2.– Pedindo os AA. o reconhecimento de que vivem em união de facto, há mais de três anos, nos termos e para os efeitos previstos na Lei nº 7/2001, de 11/05, e do artigo 3º, nº 3, da Lei nº 37/81, de 03/10, e alegando factualidade tendente a fundamentar a sua pretensão, têm interesse em agir, o qual se traduz na necessidade de obter decisão judicial que reconheça a união de facto invocada, por forma a habilitar a A. a requerer a aquisição da nacionalidade portuguesa.

3.– Não sendo uniforme a orientação jurisprudencial nos tribunais superiores quanto à admissão da revisão/confirmação das escrituras “de união estável”, tal é suficiente para que não possa o tribunal recorrido impor aos AA. que façam uso desse meio processual, coartando-lhes, dessa forma, o acesso à presente acção, em manifesta violação do disposto no n.º 2 do art. 2.º do CPC.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"III. Fundamentação

[...] 2.–De direito

[...] são duas as questões que importa conhecer no âmbito do presente recurso, pelo que passaremos à sua análise.

A–Da ilegitimidade do Estado Português como parte na presente acção

Considerou-se na sentença que o Estado Português, representado pelo Ministério Público, seria parte ilegítima nesta acção, dado ter-se entendido que «na acção de reconhecimento da união de facto só interesses individuais se defendem, quais sejam, o direito de ver publicamente reconhecida uma situação jurídica de facto que beneficia de protecção constitucional e legal, constitui efectiva relação familiar apesar de não constar do elenco das fontes jurídico familiares, e donde resultam direitos e deveres para os seus destinatários.»

Quer os apelantes, quer o Ministério Público, têm entendimento contrário, sendo certo que os secundamos.

Na realidade, a acção em causa foi intentada, como expressamente é referido no introito da petição inicial, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro e no n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro, isto é, foi instaurada visando obter uma decisão que constituirá pressuposto necessário para que possa posteriormente ser formulado o pedido de nacionalidade portuguesa do elemento estrangeiro do casal.

A ser assim, como é, afigura-se-nos que a acção em causa foi intentada, e bem, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pois que nesta acção mostram-se também em discussão interesses de âmbito nacional, na medida em que estará em causa a eventual atribuição dum pressuposto necessário para que seja conferido a um estrangeiro a possibilidade de lhe ser conferido o estatuto de cidadão português, com os inerentes direitos e deveres que tal atribuição encerra. Não estamos, assim, perante uma acção em que apenas estejam em causa interesses individuais dos requerentes envolvidos.  

Como se refere no ac. da Relação de Lisboa de 25-10-2018 [P.º 25835/17.1T8LSB.L1-6, em que foi relator Adeodato Brotas [...]]

«(…). E essa acção foi instaurada contra o Estado Português, como não podia deixar de ser, por ser o titular dos interesses em jogo, como réu, nessa acção.
 
Como é sabido, a Lei da Nacionalidade (Lei 37/81, de 03/10, com as diversas alterações, as relevantes, dadas pela Lei 25/94, de 19/08 e pela Lei Orgânica 2/2006, de 17/04) estabelece no seu artº 3º, relativo à aquisição da nacionalidade em caso de casamento ou união de facto, que:
 
1-O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio.
2-
3- O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”
 
Portanto, sem necessidade de grandes considerandos, verifica-se que a acção que os autores instauraram, para que lhes seja reconhecida, no confronto com o Estado Português, que vivem em união de facto há mais de três anos, é uma exigência da lei portuguesa da Nacionalidade: a autora mulher jamais conseguirá obter, no actual quadro legislativo, a concessão de nacionalidade portuguesa se não instaurar esta acção.
 
Ora, também sem sombra de dúvida, essa acção para reconhecimento da situação da união de facto, só pode ter como sujeito passivo o Estado Português. (…)»

Como refere, também, o Digno Magistrado do Ministério Público nas suas alegações, «A acção de reconhecimento judicial da união de facto surge enquanto pressuposto para a aquisição da nacionalidade, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade. (…).

A nacionalidade, enquanto vínculo político que se estabelece entre um determinado indivíduo e uma comunidade de cidadãos, além de abarcar uma questão identitária, releva também para a atribuição de certos direitos, civis e políticos, apenas reservados na sua plenitude, a «nacionais».

A acção de reconhecimento da união de facto destina-se, assim, à declaração judicial de existência da união de facto, enquadrando-se no tipo de acção declarativa de simples apreciação, conforme o artigo 10.º, n.ºs 2 e 3, alínea a), do Código de Processo Civil, na medida em que, através dela, se visa “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto”.

Considerando os supra mencionados interesses subjacentes à acção de reconhecimento das uniões de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade, sendo a acção judicial intentada contra o Estado português, entende-se que o Ministério Público tem legitimidade passiva na defesa dos interesses do Estado-Coletividade, nos termos do disposto no art. 219º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e do art. 4º, nº 1, al. b) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019 de 27-08.»

Efectivamente, tendo em consideração o que se deixa dito, designadamente a natureza instrumental da presente acção, em que se visa reconhecer judicialmente a união de facto de um casal tendo por escopo o futuro pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa ao elemento estrangeiro do mesmo e a relevância que tal atribuição assume no seio do Estado Português, representando o Ministério Público este, nos termos do disposto nos artgs. 219.º, n.º 1 da CRP e 4.º, n.º 1, al. b) do Estatuto do Ministério Público, entende-se que o mesmo é parte legítima na presente acção.  

B – Do interesse em agir por parte dos AA.

Na decisão recorrida entendeu-se que os AA. não teriam interesse em agir, alicerçando-se essa posição no «facto da união de facto dos autores já ter sido reconhecida notarialmente pelo Estado brasileiro, o que determina que se lance mão do processo de revisão a que alude o artigo 980º do Código de Processo Civil e não, por falta de interesse em agir, excepção dilatória inominada, de uma acção declarativa comum de reconhecimento da união marital porquanto a mesma já foi objecto de reconhecimento pela ordem jurídica brasileira.»

Discordamos de tal entendimento.

Como resultou do ponto 1 da matéria dada como provada, o fim pretendido pelos AA. com a instauração da presente acção é o de dar cumprimento ao que dispõem os artgs. n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade e no n.º 2 do artigo 14.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, que fazem referência expressa à necessidade de ser instaurada acção para reconhecimento judicial da situação de união de facto.

O entendimento assumido pela Exma. Juíza no despacho recorrido, no sentido de que os AA. são já detentores dum reconhecimento notarial brasileiro da sua união de facto, por via do documento que juntaram com a sua petição inicial, carecendo assim, tão-só, de ver esse documento revisto no nosso ordenamento jurídico, nos termos do que despõem os artgs 980.º e seguintes do CPC, não pode ser assumido como posição generalizada na jurisprudência dos nossos tribunais, pois que se trata de situação ainda muito discutida, onde se alinham posições antagónicas.

Com efeito, se é certo que há quem sustente essa possibilidade[...][...], não é menos verdade que outros defendem a insusceptibilidade de tais documentos serem passíveis de “revisão de sentença estrangeira”[...], pelo que não se poderá assumir, face às posições não consensuais e mesmo contrárias da jurisprudência, que quem pretende fazer valer um seu direito a ver reconhecida a união de facto do casal, lhe veja barrada uma das possibilidades, quiçá a legalmente menos controversa, de o fazer.

Saliente-se até, que em recente acórdão desta Relação de Lisboa [De 17-12-2020, no P.º 1904/20.0YRLSB-6 (Adeodato Brotas) [...]], se considerou ser indevida a instauração da acção de revisão de sentença estrangeira visando precisamente a obtenção da nacionalidade, tendo-se entendido estar-se perante situação de falta de interesse em agir, posto que se defendeu que tal finalidade apenas poderia ser alcançada através da propositura de acção visando o reconhecimento da união de facto. Disse-se aí:

«1– Instaurando um cidadão português e uma cidadã brasileira, ambos residentes no Brasil, acção de revisão de sentença estrangeira, pedindo que “sejam revistas e confirmadas as Escrituras Públicas Declaratórias de União Estável, celebradas pelos Requerentes, com todas consequências legais, designadamente para os fins do art. 3º, da Lei nº 37/81, de 3/10 …”, tem de concluir-se que não têm interesse em agir.

2 E não têm interesse em agir porque:
(i)- A sentença de revisão de escritura de união estável não substitui a (necessária) acção declarativa para reconhecimento de vivência em união de facto por mais de três anos, a instaurar nos tribunais cíveis contra o Estado Português, como o exige o art. 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade;
(ii)- Além disso, a sentença de revisão/confirmação que viesse a reconhecer/confirmar a escritura de união estável, não teria eficácia de caso julgado em relação ao Estado Português, não produzindo, por isso, os mesmos efeitos da acção de declaração de vivência em união de facto, por mais de três anos, exigidos por aquele art. 3º nº 3 da mencionada Lei da Nacionalidade;
(iii)- Finalmente, conforme decorre do art. 978º nº 2 do CPC, se os requerentes pretendem aproveitar-se dessa escritura de união estável, que celebraram no Brasil, podem usá-la na acção a instaurar para a finalidade do art. 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade, nos termos dos arts. 365º nº 1 e 371º nº 1 do CC.
 
3– O interesse em agir apura-se, além do mais, pela necessidade de tutela judicial que é aferida, objectivamente, perante o direito subjetivo alegado pelo autor: o autor tem interesse em agir se da situação descrita e peticionada resulta que necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito.
 
4– Por isso, percebe-se que o interesse em agir, enquanto pressuposto processual, impõe algumas restrições ao exercício do direito à jurisdição ou da garantia de acesso aos tribunais, dado que condiciona esse recurso aos tribunais à efectiva necessidade de tutela judicial e à inexistência de qualquer outro meio, processual ou extraprocessual, para obter a realização do direito subjectivo alegado/pretendido pelo autor.»

Efectivamente, resultando claro da petição inicial que o pedido formulado pelos AA. de que seja reconhecido judicialmente a sua união de facto, visa obter o pressuposto legal necessário para a obtenção da nacionalidade portuguesa, atento o disposto nos referidos artgs. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03/10 e 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro, não se poderá considerar estarmos perante uma situação de falta de interesse em agir, tanto mais, quanto é insofismável que os citados preceitos legais inseridos nos respectivos diplomas, apontam para a necessidade de que seja instaurada acção de reconhecimento da união de facto entre os requerentes. 

Na realidade, os AA. não pediram o reconhecimento da validade do que consta do documento que subscreveram e intitularam de “Contrato de Convivência”, mas o reconhecimento judicial, perante o Estado Português, da sua união de facto, com o interesse expressamente manifestado na PI de tal reconhecimento judicial vir a instruir o pedido que pretendem formular para a aquisição de nacionalidade portuguesa, conforme expressamente previsto nas disposições legais invocadas.

Neste sentido, de que não nos encontramos perante um caso de falta de interesse em agir, veja-se o que foi sustentado no recente acórdão da Relação de Lisboa de 23-03-2021 [P.º 11440/19.1T8LSB.L1-7, Relatora Cristina Coelho [...]]:

«(…). É inegável, face à causa de pedir e ao pedido, que os AA. têm interesse em agir, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, o qual se traduz na necessidade de obter decisão judicial que reconheça a união de facto invocada, por forma a habilitar o A. a requerer a aquisição da nacionalidade portuguesa.
 
Conforme escrevia Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, pág. 79, o interesse em agir, ou “interesse processual”, “consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”.
 
Os AA. não requereram o reconhecimento da validade do declarado na escritura de “pacto de união estável”, que outorgaram em Cartório Notarial no Brasil em 1.6.2001, apenas tendo alegado que, pelo menos desde aquela data, vivem em condições análogas às dos cônjuges, juntando a referida escritura como meio de prova.(…).»

Pelo que se deixa dito há pois que concluir não se verificar a excepção de falta de interesse em agir, procedendo assim a questão suscitada pelos apelantes."

[MTS]

16/12/2021

Papers (475)


-- Sahani, Victoria, Governing Third-Party Funders (SSRN 11.2021)

-- Parisi, Francesco / Pi, Daniel / Guerra, Alice, Access to Evidence in Private International Law (SSRN 11.2021)


Bibliografia (1000)


-- Wendy Kennett, CIVIL ENFORCEMENT IN A COMPARATIVE PERSPECTIVE / A Public Management Challenge (Intersentia: Cambridge 2021)


Jurisprudência 2021 (98)


Divórcio sem consentimento; conversão;
alimentos; casa de morada da família


1. O sumário de STJ 6/5/2021 (4905/19.7T8MTS.P1.S1) é o seguinte:

I - O processo de divórcio sem consentimento, se depois de proposta a acção os cônjuges acordarem em se divorciar, esse acordo determina que, para ser decretado divórcio não tenha de ter lugar qualquer audiência para apreciar das eventuais razões apresentadas pelo cônjuge autor, bastando a homologação por sentença desse acordo de dissolução do casamento.

II - Os cônjuges, quer no divórcio por mútuo consentimento, quer no divórcio sem consentimento, podem estabelecer os acordos a que alude o art. 1755.º, n.º 1, do CC, os quais, nos termos do n.º 2 deste preceito, serão entendidos como destinados a vigorar mesmo para além do trânsito em julgado da decisão que decretar o divórcio, se deles não resultar o contrário.

III - Na acção de divórcio por mútuo consentimento – em que não tenham sido estabelecidos os acordos a que refere o art. 1755.º, n.º 1, do CC, ou em que tais acordos tenham sido considerados inaptos por não acautelarem os interesses dos cônjuges ou dos filhos – e na acção de divórcio sem consentimento em que os cônjuges tenham acordado quanto ao propósito de se divorciar, o tribunal pode nos termos do art. 931.º, n.º 7, do CPC, por iniciativa sua ou a requerimento do cônjuge, fixar alimentos e atribuir a utilização da casa de família, decisões que vigorarão apenas na pendência da acção e até ao trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio.

IV - Para serem fixados alimentos ao cônjuge e a utilização da casa de família que se destinem a vigorar para lá do trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio, têm de ser instauradas, respectivamente, acção comum e acção de jurisdição voluntária nos termos do art. 990.º do CPC.

V - Se em processo de divórcio sem consentimento em que os cônjuges estabeleceram acordo sobre o propósito de se divorciarem, o tribunal julgou improcedentes os pedidos do cônjuge no sentido de lhe serem fixados alimentos e atribuída a casa de família, em virtude de para lá do pedido aquela nada ter alegado para fundamentar a sua pretensão, depois de julgar esses pedidos improcedentes o juiz pode decretar o divórcio homologando aquele acordo.

VI - O poder o juiz ordenar realizar de [sic] diligências nos termos do art. 931.º, n.º 7, do CPC e 1778.º-A, n.º 4, do CC, resulta de ser da sua iniciativa fixar um regime provisório quanto a alimentos, à regulação das responsabilidades parentais ou quanto à utilização da casa de família, pois, se não o fez oficiosamente, cabe em regra a quem requeira essa fixação o ónus de alegar os factos e a presentar prova.

VII - Não tem fundamento legal pretender-se que, sem a requerente ter alegado quaisquer factos e apresentado qualquer prova e sem o juiz ter entendido como necessário fazê-lo por sua iniciativa, mesmo assim fosse designada audiência, uma vez que esta só tem lugar quando haja que realizar produção de prova.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O divórcio litigioso/sem consentimento do art. 1779 CC tem como pressuposto ser o requerimento apresentado em tribunal apenas por um dos cônjuges que se pretende divorciar, não necessitando neste caso de conter quaisquer pedidos sobre as matérias aludidas no art. 1775 nº 1 do CC, seja quanto à relação de bens, às responsabilidades parentais, aos alimentos devidos ao cônjuge ou quanto ao destino da casa de morada de família. Neste processo, destinado a decretar o divórcio mediante a apreciação das causas de dissolução do casamento que sejam apresentadas, a lei determina que o juiz, na tentativa de conciliação que se realiza após o recebimento da petição e caso a acção esteja em condições de prosseguir, diligencie por obter acordo dos cônjuges para o divórcio por mútuo consentimento, quanto aos alimentos e quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais, procurando ainda acordo quanto à utilização da casa de família durante o período de pendência do processo, se for caso disso - art. 931 nº 2 do CPC. Todavia, a não obtenção desses acordos não impede que, mesmo sem eles, o processo prossiga - art. 931 nº 5 - e venha ser decretado o divórcio.

Ainda neste âmbito das matérias que envolvem o processo de divórcio, a lei substantiva prevê a possibilidade de os cônjuges pedirem que lhes seja atribuída a casa de morada de família em arrendamento, quer seja comum quer própria do outro - art. 1793 nº 1 CC -, o que impõe esclarecer o que [sic] pode, afinal, ser decidido no próprio processo de divórcio e o que tem lugar em processo autónomo.

Quando o art. 1778-A do CC determina que o tribunal decide “como se se tratasse de um divórcio sem consentimento” sobre as matérias do destino da casa de família, alimentos aos cônjuges e responsabilidades parentais é importante perceber como essas decisões se acomodam, ou não, no próprio processo de divórcio. E isto, como antes deixámos referido, tendo sempre presente que o art. 1775 nº 2 do CC deixa advertido que “Caso outra coisa não resulte dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior.”

[...] o art. 931 nº 7 do CPC prevê que o juiz por iniciativa sua ou a requerimento de qualquer das partes pode considerar conveniente fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação das responsabilidades parentais ou utilização da casa de morada de família, podendo ordenar a realização de diligências que julgue necessárias. [...]

No que importa à decisão a proferir, incidente sobre a atribuição da casa de morada de família e os alimentos, o cônjuge pode pedir que, no decurso da acção e para valer enquanto não é proferido o divórcio, lhe sejam fixados alimentos e atribuída a casa de morada de família e pode pedir também, como efeito do decretamento do divórcio, que lhe seja dado o arrendamento da mesma através do procedimento previsto no art. 990 do CPC, mas esses são procedimentos diferentes, quer na forma quer no conteúdo. O primeiro pretende uma regulação provisória e, nessa medida, com alcance meramente temporário, reporta tal provisoriedade à pendência do processo de divórcio - Cfr, neste sentido, Nuno de Salter Cid, in A protecção da casa de morada da família no direito português, Almedina, págs. 318 e 322, José António França Pitão e Gustavo França Pitão, in Código de Processo Civil Anotado, Quid Juris, tomo II, pág. 280, e António Santos Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, Almedina, págs. 45 e 46.

Como reiteradamente o Supremo Tribunal de Justiça tem sublinhado e decidido, a fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio, distinto do processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família, configurando o primeiro uma antecipação dos efeitos da composição definitiva do litígio que se alcançará no último. Além disso, apesar de não ser expressamente qualificado como tal, o primeiro tem vindo a ser considerado um procedimento cautelar específico do processo judicial de divórcio, encerrando, assim, as características basilares da tutela cautelar em que avulta a provisoriedade e a instrumentalidade da regulação judicialmente estabelecida - cfr., entre outros, os acórdãos de 26/04/2012 (proc. n.º 33/08.9TMBRG.G1.S1), e de 13/10/2016 (proc. n.º 135/12.7TBPBL-C.C1.S1), e o de 23-11-2017 no proc. 1448/15.1T8VNG.P2.S2 , in www.dgsi.pt.

A esta luz, julgamos que a regulação da utilização da casa de morada de família fixada no âmbito do processo de divórcio (como incidente), atenta a sua índole eminentemente cautelar de procedimento especialíssimo em que foi estabelecida, é desde logo insusceptível de constituir caso julgado e, uma vez que se venham a encontrar as partes definitivamente divorciadas, essa regulação provisória perde a sua eficácia. Os termos definitivos de uma atribuição/arrendamento da casa de morada de família só através do processo de jurisdição voluntária previsto no art.º 990 do CPC se pode obter.

A articulação entre os dois procedimentos referidos (o provisório do art. 931 nº 7 e o definitivo do art. 990) não só autoriza como impõe a conclusão de que, embora na actual legislação as consequências do divórcio devam ser apreciadas de forma global e integrada, o regime decorrente do art. 931.º do CPC, aplicável no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento - cfr. art. 1778.º-A, n.º 3, do CPC - mesmo que este decorra por convolação do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, não repele nem contende com o processo de jurisdição voluntária a que alude o art. 990.º do CPC, que está ao dispor dos interessados ou ex-cônjuges e cujos efeitos operam dissolvida que esteja a união conjugal ou de facto.

O procedimento posto em marcha por via do disposto no n.º 2 do art. 931.º do CPC, e o não exercício do direito de nele apresentar alegação ou oposição à alegação da contraparte, não impede o exercício do direito estabelecido no art. 990.º do CPC, nem ao processamento deste obsta a decisão final proferida no âmbito daquele. Como a este propósito se pronunciou Miguel Teixeira de Sousa “Não está em causa que o regime estabelecido no art. 931.º, n.º 2, CPC seja distinto daquele que se encontra no art. 990.º CPC. O que pode estar em causa é a possibilidade de num divórcio por mútuo consentimento se lançar mão do disposto no art. 990.º CPC. No entanto, esta dúvida é resolvida pelo disposto no art. 990.º, n.º 4, CPC: se estiver pendente ou tiver corrido acção de divórcio ou de separação, o pedido é deduzido por apenso". - cfr. blog IPPC https://blogippc.blogspot.com/2020/01/jurisprudencia-2019-155.html

Com estes esclarecimentos abordamos agora o objeto do recurso quanto a saber se, tendo o cônjuge autor apresentado petição para divórcio sem consentimento e declarando ambos na tentativa de conciliação a vontade de se divorciarem, tendo a cônjuge ré declarado pretender alimentos do outro e a atribuição da casa de morada de família, o divórcio pode ser decretado quando se tenham julgado improcedentes (sem audiência) estas pretensões com fundamento em a requerente não ter apresentando alegações nem prova.

No caso, o divórcio foi proposto nos termos do art. 931 do CPC, sem consentimento, e o autor não estava obrigado a diligenciar pela obtenção de qualquer acordo, fosse em que matérias fosse, para que os fundamentos do divórcio por si alegados viessem a poder ser julgados e a ser proferida decisão. E se o juiz entendesse (e não entendeu) que era conveniente fixar um regime provisório quanto a alimentos ou quanto à atribuição da casa de família (já que não existiam filhos) poderia diligenciar nesse sentido com a produção de prova e realização de outras diligências que considerasse necessárias. Porém, temos por assente que a diligência do juiz sobre essas matérias, a ter existido, apenas se poderia destinar a regulá-las para vigorar na pendência do divórcio e até ao trânsito em julgado da sentença que o decretasse, porque uma regulação definitiva só através da acção comum (para os alimentos) ou do processo de jurisdição voluntária do art. 990 do CPC (para a atribuição da casa de família) podia ser obtida. O único caso em que estas matérias poderiam ser decididas definitivamente no processo de divórcio era o de ter existido acordo das partes, o qual, caso outra coisa não resultasse do seu teor, entender-se-ia que se destinavam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior – art. 1775 nº 2 do CC.

Foi a cônjuge ré quem na tentativa de conciliação, acordando no propósito de se divorciar, declarou pretender a utilização da casa de morada de família e que lhe fossem fixados alimentos, ao que o autor se opôs. Mesmo sem a ré ter especificado na sua pretensão se esses alimentos e atribuição da casa eram para valer na pendência da acção e até ao trânsito em julgado da sentença que viesse a decretar o divórcio, ou se era para serem fixados definitivamente, valendo para lá do decretamento do divórcio, a verdade é que a única interpretação possível é a de que se tratava de regulação provisória, porque só esta na acção de divórcio podia ser requerida e só dela podia conhecer o juiz, como conheceu.

Perante este circunstancialismo, na tentativa de conciliação foi proferido o despacho que decidiu que “Uma vez que ambos os cônjuges desejam divorciar-se converto este processo, de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge, em Divórcio por Mútuo Consentimento, ao abrigo do disposto no artigo 931º, n.º 3 do C.P.C.

Não existindo acordo no que respeita à utilização da casa de morada de família e quanto aos alimentos a cônjuge, importa determinar o prosseguimento dos autos, nos termos do disposto no artigo 1778º-A, n.º 3 do Código Civil.

Assim nos termos do disposto no artigo 1778º-A, n.º 4 do Código Civil notifique autor e réu para alegarem o que tiverem por conveniente e juntar provas, querendo, no prazo de 30 dias.”

Tem sentido questionar, perante o despacho proferido, se existe diferença na tramitação quando o processo se inicie na conservatória - com acordo quanto ao divórcio, mas sem apresentação de acordos ou sem a sua homologação - ou quando, como nos autos, essa declaração de ambos se pretenderem divorciar é obtida na tentativa de conciliação do litigioso, sem existirem aqueles outros acordos, mas pretendendo um dos cônjuges prestação de alimentos e atribuição da casa de família. E quanto a esta questão não vemos que a lei distinga nem que haja razão legal para distinguir. No entanto, mais importante é perguntar se, sabendo-se que a regulamentação que no próprio processo sem consentimento pode ser fixada pelo juiz ou a requerimento das partes quanto aos alimentos e à casa de família é sempre provisória e incidental, se [sic] os acordos sobre essas matérias, que se prevêem no art. 1775 nº1 al. c) e d) do CC, quando firmados pelas partes nos processos por mútuo consentimento ou sem consentimento, têm de ter carácter definitivo, no sentido de apontarem a uma regulamentação para lá do decretamento do divórcio, ou podem ser provisórios, com um alcance temporal restrito ao trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio.

Em resposta a esta questão e circunscritos à atribuição de alimentos e casa de família, julgamos que, como de acordo se trata, obtido com liberdade negocial das partes, nada impede que os mesmos possam ter vigência limitada à pendência do processo, não sendo disso impedimento que o art. 1755 nº2 do CC advirta que, se deles não resultar o contrário, se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior. Trata-se apenas de uma regra de interpretação que particulariza aquilo que os arts. 236 a 239 do CC já disciplinam em termos gerais.

No caso em decisão, se os alimentos definitivos e a atribuição da casa de família, não alcançados através de acordo nos termos do art. 1775 do CC ou na tentativa de conciliação prevista no art. 931 do CPC, só se obtêm, respectivamente, com a propositura de acção comum ou com a de jurisdição voluntária prevista no art. 990 do CPC, então só se pode configurar a pretensão de alimentos e de atribuição da casa de família da cônjuge ré como provisória e para valer até ao trânsito em julgado da decisão que decretasse o divórcio. É que para serem definitivas teriam de ser instauradas em acção autónoma e se o foram na acção de divórcio, sem outra indicação, apenas como provisórias podiam ser conhecidas e só como tal se pode configurar a decisão do juiz. Por outro lado, sendo a regulação não oficiosa, porque não partiu da iniciativa do juiz, caberia então à parte requerente (mesmo num processo de jurisdição voluntária) apresentar a pretensão, os fundamentos e provas.

Referem as conclusões de recurso que “Não foi considerado que compete ao Tribunal ordenar ainda que oficiosamente a produção de prova, nomeadamente ordenando a elaboração de relatório social ou tomar declarações às partes, declarações que aliás qualquer das partes poderia vir a requerer até final da audiência, tudo como dispõem os arts 411.º e 466.º nº 1 do CPC, que se mostram violados, devendo sempre o Tribunal ter ordenado a realização de audiência de julgamento.”.

Decididamente, é entendimento da recorrente que a possibilidade atribuída ao juiz nº nº 7 do art. 931 do CPC, quando oficiosamente entenda como conveniente a regulação a regulação das responsabilidades parentais, de alimentos ao cônjuge e de atribuição da casa de família, de ordenar a realização de diligências, deve ser mais absoluta de forma a impor-lhe um dever de diligenciar em substituição da parte, que apenas tenha declarado querer alimentos do outro e a atribuição da casa de família sem apresentar factos ou prova. Não entendendo o julgador necessário regular essas matérias por sua iniciativa e se a parte nada alegou, julgamos excessivo e fora da previsão legal atribui[r]-lhe o ónus de ir procurar os factos e depois a prova. Quanto à prova, ainda se poderia admitir como diligência do juiz que procedesse nesse sentido, mas isto se a parte interessada indicasse as suas necessidades para alimentos e atribuição da casa. A não se entender assim, bastaria à recorrente declarar que pretendia alimentos e a utilização da casa de morada de família, para que tudo o mais fosse ónus do julgador, procurando ele mesmo as razões, os elementos de facto referentes às necessidades de alimentos e habitação tão urgentes que determinassem ser fixadas provisoriamente na pendência dos autos.

O argumento da recorrente, no sentido de que o juiz deveria ter designado data para julgamento porque a recorrente poderia apresentar em audiência prova no sentido de certificar as suas necessidades de atribuição de alimento e da casa de família, parece-nos improcedente porque era no seu requerimento que deveria ter apresentado os factos e a prova, ou no prazo que lhe foi concedido para o efeito, sendo que, notificada, nada alegou ou apresentou como prova. Assim, se é verdade na audiência poderia apresentar prova, essa possibilidade estava dependente de haver audiência o que só teria lugar se houvesse necessidade de produzir prova. Assim, se nenhuma matéria o juiz entendeu por sua iniciativa ter de apurar e se a requerente nenhuns factos ou prova apresentou relativamente às razões de ter pedido alimentos e a atribuição da casa, não tinha fundamento legal designar audiência que não serve como extensão de prazo para alegar que havia sido concedido e se havia esgotado sem qualquer iniciativa da recorrente.

Entendemos que se o juiz no âmbito do art. 931 nº7 do CPC não considera necessário por iniciativa sua regular provisoriamente, e para valer até ao trânsito em julgado da decisão que decreta o divórcio, os alimentos ao cônjuge nem a atribuição da casa de família, não está obrigado a ordenar qualquer diligência nesse sentido, mesmo que o cônjuge a tenha requerido sem apresentar qualquer alegação de fundamentos de facto. E não havendo apresentação de fundamentos, nem prova, o juiz deve julgar como julgou improcedentes essas pretensões da requerente."

O despacho proferido na tentativa de conciliação considerou que bastava os cônjuges terem declarado que estavam de acordo quanto ao propósito de se divorciarem para que o processo passasse de imediato a ser por mútuo consentimento, sem discussão das razões para o decretar e que, as matérias pretensão da ré, independentemente da sua procedência ou improcedência, não impediam que o divórcio viesse a ser decretado nessa modalidade. Por sua vez, a decisão recorrida, entendendo em igual sentido, acrescentou que estando pendente acção de divórcio, o pedido de atribuição da casa de morada de família é deduzido por apenso conforme determina o artigo 990.º do C.P.C.; que deveria nesse processo a requerente indicar os factos com base nos quais entendia dever ser-lhe atribuído o direito e, não havendo acordo dos interessados, o requerido deveria ser notificado para deduzir oposição, no prazo de 10 dias findos os quais o juiz depois de proceder às diligências necessárias decidiria. E concluiu que a sentença em primeira instância se havia pronunciado “sobre uma questão que a Recorrente, em bom rigor, não suscitou formalmente ao tribunal pois ainda não deduziu, por apenso, o necessário pedido, fundamentado, de atribuição da casa de morada de família, bem próprio, segundo o que foi alegado, do Autor. Nesta conformidade, conclui-se que, nessa parte, a decisão em causa é nula por violar o disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.Civil.”

Na apreciação desta fundamentação, aceitando-se que “a remissão para o regime do divórcio sem consentimento do outro cônjuge conduz a que cada uma das consequências do divórcio enunciadas continua a ser tratada com autonomia relativamente à questão do divórcio.” - Rita Lobo Xavier, in Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 21 e 22 -, a declaração de os cônjuges se pretenderem divorciar, realizada na tentativa de conciliação em divórcio litigioso/sem consentimento, determina, automaticamente, que a questão do divórcio se tenha por resolvida e que as decisões (provisórias) sobre a casa de morada de família e alimentos, sendo autónomas e podendo vir a ser julgadas improcedentes, nenhuma incidência tenham sobre a própria decisão de decretar o divórcio que será de homologação das vontades expressas. O valor e importância que a lei atribui ao acordo dos cônjuges quanto a terminarem o casamento, e o tratamento processual que prevê para o processado posterior a essa declaração, só pode ser entendido como aceitação de o divórcio poder ser decretado, nesse segmento, como mútuo consentimento reservando-se o contencioso quanto aos requerimentos de regulação que não tenham obtido acordo e tenham de ser julgados. Tudo o que reporte às matérias previstas no art. 1775 nº 1 do CC (e no que agora nos interessa as referentes aos alimentos a atribuição da casa de família), apenas condiciona que antes de o juiz decretar o divórcio tenha de haver decidir sobre elas e não que, sem esses acordos, o divórcio não possa ser decretado com base na declaração dos cônjuges se quererem divorciar. E a decisão a proferir não tem de ser de procedência, fixando alimentos ou a atribuição da casa, podendo ser, obviamente, a de improcedência por não se terem provados os pressupostos dessa atribuição de alimentos e da utilização da casa.

Quando a decisão recorrida se pronuncia no sentido de que a sentença é nula porque decidiu no processo de divórcio da (improcedência) atribuição da casa de família porque lhe era vedado conhecer de uma matéria que só em processo autónomo poderia decidir-se, julgamos que não lhe assiste inteira razão. A atribuição da casa de família e alimentos, em termos definitivos, só poderia ser apreciada, como antes referimos, em processo autónomo de jurisdição voluntária nos termos do art. 990 do CPC ou em acção comum no caso dos alimentos. No entanto, em termos provisórios e para valer durante a pendência do processo de divórcio, a atribuição da casa de família e alimentos podia ser decidida nos próprios autos de divórcio incidentalmente, deixando-se nota de que esta decisão (fosse de procedência, fosse de improcedência) não constituiria caso julgado quanto a qualquer acção de alimentos ou de atribuição da casa de família que a recorrente viesse ou venha a instaurar para ter efeitos depois de decretado o divórcio.

O conhecimento e decisão do tribunal em primeira instância reportava, porque só poderia reportar como se deixou explicado, a essa regulação provisória sendo assim admissível. Todavia, porque essa regulação provisória foi julgada improcedente e porque esta improcedência não impede que em termos definitivos a recorrente possa interpor acção de alimentos comum ou de atribuição da casa de morada de família nos termos do art. 990 do CPC, a declaração de nulidade de pronúncia decidida pelo tribunal da Relação na decisão recorrida não tem qualquer consequência prática sobre o decidido em primeira instância quando decretou o divórcio, não determinado alteração alguma ao que foi decidido, isto é, apenas o divórcio.

Em resumo, a sentença podia ter decretado o divórcio como o fez, homologando a vontade declarada nesse sentido pelas partes, depois de ter julgado improcedentes a petição de alimentos e atribuição da casa de família, por não verificados os pressupostos necessários, improcedendo assim na totalidade as conclusões de recurso."

[MTS]