"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/04/2022

Jurisprudência 2021 (186)


Acção directa;
iura novit curia; decisão-surpresa


1. O sumário de RG 16/9/2021 (2789/21.4T8VNF.G1) é o seguinte:

I- Ao taparem as janelas e a superfície vidrada da marquise dos requerentes, encostando-lhes na vertical umas chapas metálicas opacas, que tapam por completo os vidros e as janelas da marquise, os requeridos agem em ação direta, porém, sem estarem reunidos os requisitos para tal (art. 336º CC).

II- Apesar de, no seu articulado de oposição, os requeridos não terem invocado esse instituto jurídico, isso não significa que o Tribunal não possa decidir o litígio com esse fundamento, pois da leitura da referida oposição resulta que o que moveu os requeridos foi justamente reagir contra a construção da marquise pelos requerentes, que consideraram violadora dos seus direitos. Só que deviam tê-lo feito por recurso aos Tribunal, e não tapando a marquise com chapas, por sua livre iniciativa.

III- Não faz qualquer sentido, nestas circunstâncias, invocar que o recurso pelo Tribunal ao instituto da ação direta ilegal constitui uma decisão surpresa, que violou o princípio do contraditório.

IV- A regra da proibição das decisões surpresa tem de ser conjugada com a regra iura novit curia, sendo que só no concreto, caso a caso, será possível decidir qual deve prevalecer.


2. No relatório e na fundamentação escreveu-se o seguinte:

"I- Relatório

R. F. e L. A. intentaram procedimento cautelar comum contra V. N. e A. C. peticionando o decretamento da seguinte providência: «Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exª. doutamente suprirá, deve o presente procedimento cautelar ser julgado procedente e provado e, em consequência, ser determinada a imediata remoção das chapas metálicas colocadas pelos Requeridos a cobrir toda a face exterior da marquise dos Requerentes, notificando-se aqueles para procederem à remoção de todas essas chapas no prazo de cinco dias, com as demais cominações legais, designadamente, a eventual incorrência na prática do crime de desobediência qualificada, tudo com as demais consequências legais». [...]

Foi proferida decisão final, que julgou o procedimento cautelar totalmente procedente, e determinou que os requeridos V. N. e A. C., no prazo 5 (cinco) dias, procedam à remoção das chapas metálicas referidas em 16) e que se encontram encostadas à marquise descrita em 10) e erigida no logradouro da fracção dos requerentes R. F. e L. A. [...]

IV

[...] a sentença recorrida analisa o direito dos requerentes cuja violação poderia estar em causa, dizendo que poderíamos estar perante a constituição de uma servidão de vistas (ou inominada) por usucapião, que imporia aos requeridos o terem de respeitar um afastamento de 1,50 metros (art.º 1362.º do CC). Mas logo a seguir reconhece que tal pressuporia o decurso de uma situação possessória com, pelo menos, 15 anos de existência, o que no caso, não se verifica, visto que a situação descrita data, no máximo, do ano de 2011.

Mas em vez de considerar a pretensão cautelar improcedente, a sentença considerou que “a conduta dos requeridos, ainda assim, corresponde ao exercício ilícito de acção directa (art. 336º CC), na medida em que a reposição da legalidade da situação apenas poderá ser obtida por via judicial, dado que a acção directa apenas é justificada «com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo”. E assim concedeu a providência peticionada.

Os recorrentes não se conformam porque, essencialmente, dizem que foram confrontados com uma decisão-surpresa, porque o Tribunal, oficiosamente, conheceu questões que não foram invocadas pelas partes, sem, contudo, ter dado a possibilidade das mesmas se pronunciarem, violando flagrantemente o princípio do contraditório, previsto no artigo 3º,3 CPC.

Porém, a nosso ver, não lhes assiste qualquer razão.

O que dispõe o art. 3º, 3 CPC é o seguinte:

3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Mas em estreita conjugação com esta norma devemos ter presente a do art. 5º, 3 do mesmo Código:

3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

Comentando o regime legal, escrevem Abrantes Geraldes e outros (Código de Processo Civil anotado) que “ao princípio do contraditório subjaz a ideia de que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham. (…) A liberdade de aplicação das regras do direito (art. 5º,3) ou a oficiosidade no conhecimento de determinadas excepções, sem outras condicionantes, potenciariam decisões que, em divergência com as posições jurídicas assumidas pelas partes, constituiriam verdadeiras decisões-surpresa (STJ 17-6-14, 233/2000). A regra do nº 3 pretende impedir que a coberto desse princípio, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão. (…) A audição das partes apenas pode ser dispensada em casos de manifesta desnecessidade (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspectiva objectiva), quando se trate de indeferimento de nulidades (art. 201º e sempre que as partes não possam, objectivamente e de boa-fé, alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respectivas consequências). (…) Na formulação do nº 3 foram adoptados conceitos indeterminados ou cláusulas gerais cuja maleabilidade permite assegurar a instrumentalidade do processo face ao direito substantivo sem, no entanto, dispensar critérios rigorosos e convincentes relativamente à sua delimitação a partir da análise ou resolução de casos concretos. Cabe ao Juiz um papel fundamental na compatibilização dos diversos interesses que no processo se interligam (STJ) 19-5-16, 6473/03”.

Esta última referência é, quanto a nós, a mais importante.

Quer dizer, no fundo que a necessidade ou desnecessidade de cumprimento do contraditório quando está em causa a aplicação de regras de direito, só pode ser aferida casuisticamente, perante as circunstâncias do litígio em concreto.

E, em concreto, não vemos nada que permita dizer que mal andou o Tribunal recorrido em ter fundamentado a decisão no instituto da acção directa ilegal. [...]

Desde logo, todos os factos necessários para a decisão foram alegados pelas partes e são os que resultaram provados. O Tribunal não andou a inventar factos novos, não introduziu na matéria de facto algum facto que as partes não tivessem atempadamente alegado.

Só por aqui já sai enfraquecida a tese da decisão-surpresa. [...]

Para ter uma noção nítida do efeito e do significado das referidas chapas nada melhor do que olhar para as fotografias que os requerentes juntaram aos autos. É um daqueles casos em que uma imagem diz mais que mil palavras. E torna-se certeira a afirmação constante da sentença recorrida, segundo a qual “a atitude dos requeridos, consistente na tapagem das janelas e toda a superfície envidraçada da marquise, com a consequente subtracção de ar e luz àquele espaço e, por inerência, ao interior da habitação, atesta contornos de inequívoca retorsão (fruto de desentendimento entre as partes com repercussões criminais) e, como tal, o exercício do direito de tapagem que, eventualmente, poderiam invocar (art.º 1356.º do CC), pelo modo como foi levado a cabo, sempre seria violador dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito, por ser evidentemente ofensivo da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante, considerando a desproporção grave entre a vantagem obtida com a colocação daquelas chapas e o sacrifício imposto aos requerentes (art.º 334.º do CC)”. [...]

Da leitura do requerimento inicial apenas emerge a afirmação de que, repetindo, “a conduta dos requeridos restringe a possibilidade de fruição pelos Requerentes, na sua plenitude, do aconchego e conforto da sua habitação, e retira ao seu lar as normais condições de conforto, bem-estar e salubridade. A manutenção da situação actualmente existente, de vedação da luz e arejamento que eram propiciados pela marquise dos Requerentes e pelas janelas aí existentes causa uma lesão grave e dificilmente reparável à fruição plena do direito de propriedade dos mesmos”.

Assim sendo, é inteiramente legítima a abordagem que a sentença recorrida fez ao problema, da perspectiva da acção directa que atingiu o direito de propriedade dos requerentes.

Escreve o M.mo Juíz a quo: “no entanto, apesar de não se poder afirmar a constituição de uma servidão predial de vistas ou inominada, certo é que a conduta praticada pelos requeridos, consistente na colocação de chapas metálicas contra a marquise dos requeridos, tapando as janelas lá existentes e cobrindo a totalidade da superfície vidrada, ainda assim corresponde ao exercício ilícito de acção directa (art.º 336.º do CC), na medida em que a reposição da legalidade da situação apenas poderá ser obtida por via judicial, dado que a acção directa apenas é justificada «com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo».  [...]

Mas vejamos o que significa a acção directa.

Artigo 336º
Acção directa

1. É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo.
2. A acção directa pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito, ou noutro acto análogo.
3. A acção directa não é lícita, quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.

É óbvio que nunca poderia a conduta dos requeridos ser coberta por este instituto jurídico, pois sempre faleceria o requisito da impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais. Ou seja, se os requeridos/recorrentes entendiam que algum direito seu estava a ser violado pela construção da marquise, o que tinham de fazer era intentar uma acção (ou procedimento cautelar) com vista a fazer valer o seu direito. Nunca poderiam era fazer o que fizeram, com as supra-referidas chapas a vedar a marquise dos requerentes.

Aqui chegados, vejamos qual a tese oferecida pelos requeridos na oposição à providência. Da leitura dessa peça processual apenas retiramos de útil os artigos 16º, 42º, 43º e 44º.

No primeiro pode ler-se: “Pelo que, constitui um verdadeiro abuso de direito por parte dos requerentes, usurparem uma área comum entre eles e os requeridos e depois exigir um qualquer direito sobre a mesma”.

No segundo pode ler-se: “Logo, por não se tratarem [sic] de janelas, o direito dos requerentes de manter estas aberturas não impede que os requeridos, proprietários do prédio vizinho, possam construir a todo o tempo no seu prédio ainda que vede tais aberturas”.

No terceiro: “Relativamente as chapas metálicas dos requeridos, instaladas no interior do seu logradouro, trata-se de uma estrutura amovível que está localizada a metro e meio das janelas do prédio dos requerentes”.

E no quarto: “E, ainda que as aberturas existentes na marquise dos requerentes sejam consideradas pelo Tribunal como sendo janelas, e seja reconhecida a servidão de vistas – o que não se concebe –, sempre se dirá que tal instituto aplicar-se-á apenas às referidas aberturas e não sobre toda a marquise, o que, também, inviabiliza o pedido dos requerentes”.

Quem ler com atenção estes artigos da oposição dos requeridos percebe com nitidez que eles, apesar de não invocarem nem uma vez a expressão “acção directa”, demonstram que foi isso mesmo que os moveu: repare-se que os requeridos argumentam longamente contra a construção da marquise pelos requerentes, avançam argumentos no sentido de que tal construção foi ilegal, dizendo que aqueles usurparam uma área comum entre eles e os requeridos, que agiram em abuso de direito, e -o mais revelador de todos os argumentos-, afirmam que nada os impede de construir a todo o tempo no seu prédio, ainda que vedando as aberturas da marquise dos requerentes.

E, registe-se que os requeridos não avançam nenhuma razão concreta, do seu interesse próprio, para terem colocado aquelas chapas no sítio onde colocaram, que não seja a resposta pura e simples à atitude dos requerentes de construção da marquise. Se isto não é a invocação da acção directa, embora sem citar o art. 336º CC, não sabemos o que é. O direito dos requerentes que terá sido posto em causa foi o seu direito de propriedade, e não uma qualquer servidão, de vistas ou outra qualquer. Daí que bem andou o Tribunal recorrido quando considerou que os requeridos actuaram exclusivamente para responder a um acto dos requerentes que consideraram violador dos seus direitos, quando o que deveriam ter feito era recorrer aos meios coercivos normais, leia-se, os Tribunais. Em vez disso quiseram “fazer justiça pelas próprias mãos”, o que tinha de levar, incontornavelmente, à decisão recorrida. [...]

E assim, não assiste qualquer razão aos recorrentes quando vêm dizer que: “a ausência do contraditório, no tocante ao instituto da acção directa, acarretou num grande prejuízo aos recorrentes, que ficaram impossibilitados de arguir teses e, por conseguinte, da alegação prévia e análise dessa alegação pelo Tribunal a quo”; que “estas teses seriam formuladas numa série de quesitos que, por força do agir inesperado do Julgador a quo, ao proferir uma “decisão surpresa”, ficaram sem respostas”; ou ainda quando afirmam, “out of the blue”, que “a interpretação conferida pelo Tribunal a quo, ao disposto no artigo 1356.º do CC, relativamente à colocação das chapas metálicas opacas no logradouro, é inconstitucional por violar o princípio da igualdade e o direito de propriedade, consagrados, respectivamente, nos artigo 13.º e 62.º, ambos da CRP, uma vez que atribuiu-se uma qualificação jurídica diferente para a conduta dos recorridos”.

Na realidade, como demonstrámos, os requeridos/recorrentes não fizeram outra coisa na sua oposição que não seja invocar que agiram em defesa dos seus direitos que consideraram ofendidos pelos requerentes, sem todavia mencionar uma única vez o art. 336º CC.
Pelo que não podem, de todo, vir invocar a existência de decisão-surpresa.

Para terminar, diga-se que é irrelevante como argumento para contrariar a decisão recorrida, o facto provado sob o nº 20: “Entre a porta e janelas existentes na fachada do edifício [referidas em 6)] e as chapas indicadas em 16) dista, pelo menos, 1,50 metros”.

Não é por isso que a providência foi decretada.

A providência foi decretada porque o Tribunal concluiu, e bem, que existia uma probabilidade séria da existência do direito de propriedade dos requerentes nos termos supra descritos, e porque ficou claramente provado que tal direito foi directamente ofendido pela acção dos requeridos, que têm vindo a impedir os requerentes de receberem luz natural e de beneficiarem de arejamento, com a inerente deterioração do conforto habitacional e do bem-estar físico dos requentes e das crianças que compõem o seu agregado familiar, danos esses já em curso e que se agravariam, quiçá irremediavelmente, caso tivéssemos que aguardar pelo decurso e desfecho da acção principal.

Assim, a única solução legalmente admissível é a colocação dos prédios na situação que estavam antes dos requeridos se terem arrogado o poder de fazer justiça pelas suas mãos, e aguardar a decisão definitiva do litígio na acção judicial competente."

[MTS]



28/04/2022

Jurisprudência 2021 (185)


Acção inibitória; pedido inibitório;
admissibilidade*


1. O sumário de RG 16/9/2021 (461/19.4T8PRT-A.G1) é o seguinte:

I- A apreciação da competência material dos tribunais afere-se em função do pedido do autor, considerando a pretensão formulada e os fundamentos em que a mesma se baseia, atendendo à relação jurídica controvertida tal como configurada na petição inicial.

II- Nos termos das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 128º da Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário) compete aos juízos de comércio preparar e julgar as ações relativas ao exercício de direitos sociais e as ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais.

III- Os direitos sociais “são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade”, podendo ser titulares de direitos sociais a sociedade, os sócios, os credores sociais e terceiros.

IV- Para efeitos de integração na alínea c) do n.º 1 do artigo 128º da Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário), estando em causa direitos sociais dos sócios, deverá entender-se que são os que integram a esfera jurídica daqueles, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes à sua qualidade e estatuto, dirigidos à proteção dos seus interesses sociais; o que pressupõe que o autor tenha a qualidade de sócio, que o direito que visa realizar através da ação se alicerce no contrato de sociedade e que com o pedido formulado vise a proteção de um qualquer dos seus interesses sociais.

V- Os pedidos devem ser formulados de forma clara, determinada, congruente e coerente, apresentando-se, sob pena de ineptidão, como uma consequência lógica dos fundamentos invocados, ainda que possam ser apresentados de forma alternativa (artigo 553º), subsidiária (artigo 554º), cumulativa (artigo 555º), genérica (artigo 556º) e em prestações vincendas (artigo 557º), nas circunstâncias legalmente previstas.

VI- A formulação de pedido genérico fora do condicionalismo legal reconduz-se a uma exceção dilatória inominada.


2. No relatório e na fundamentação afirma-se o seguinte:

"I. Relatório

M. N., e marido J. N., residentes na Rua …, n.º …, Porto, instauraram ação de processo comum contra F. M., E. P. e mulher M. G., R. J., P. M. & Filhos, Limitada, X – Comércio de Pronto a Vestir, Limitada, Y – Importação e Exportação de Artigos para o Lar, Ldª e A. P.

Pedem os Autores que:

[...] 3) serem os Réus R. J. e F. M. condenados a absterem-se de realizarem ou praticarem qualquer ato, incluindo quaisquer negócios entre a sociedade P. M. & Filhos, Lda e qualquer uma das outras sociedades em que os Réus E. P. e M. G. detêm participações sociais e qualquer uma das sociedades de que o Réu R. J. seja sócio ou gerente, que diminua ou prejudique a mais-valia de negócio para a sociedade P. M. & Filhos, Lda e qualquer outra sociedade onde os Réus E. P. e M. G. detêm ou detenham participações sociais; [...]

6) ser a Ré P. M. & Filhos, Ldª condenada a se abster de, através dos seus respetivos representantes legais, administradores ou gerentes, acionistas ou sócios, decidir, deliberar, realizar, executar ou registar quaisquer atos, incluindo aumentos de capital social, fusões ou cisões que tenham subjacentes os factos e o direito invocados pela Autora e que distorçam, desvalorizam ou por qualquer meio, forma ou processo tenham subjacente e revelem a forma intencional dos Réus R. J. e F. M. de provocar a redução do valor patrimonial dos bens e participações sociais detidas pelos Réus seus pais E. P. e M. G. para obterem proveito pessoal contrário à ordem pública e aos bons costumes, através de contratos e negócios e ou do reforço de participação social nesta sociedade de cada um dos Réus, assentes em atos e ou contratos simulados e ou dissimulados; [...].

III. Fundamentação

b) Da inadmissibilidade dos pedidos 3) a 6) da petição inicial em face da sua imprecisão/indeterminação

Os Recorrentes também não se conformam com a decisão proferida pelo tribunal a quo que absolveu os Réus da instância quanto aos pedidos formulados em 3) a 6) por serem imprecisos e indeterminados e parcialmente ininteligíveis.

Sustentam para o efeito que estes pedidos estão diretamente ligados com os pedidos 1) e 2) e que nestes pedidos [(1) a 6)] a Autora/Recorrente não visa um qualquer efeito especifico suscetível de integrar um concreto direito social que pretenda exercer futuramente, mas apenas a paralisação da posição dos Réus, visando assegurar com referência à sociedade P. M. & Filhos Lda a não realização de atos e contratos simulados.

Cumpre referir, em primeiro lugar que, na própria perspetiva dos Recorrentes, os pedidos em causa, estando diretamente ligados com os pedidos 1) e 2), deveriam ser logicamente apreciados em conjunto com estes, pelo que não sendo o tribunal a quo competente para destes conhecer, não sendo os mesmos apreciados nos presentes autos, seria desde logo incoerente apreciar e decidir nos presentes autos os pedidos formulados em 3) a 6).
Mas a questão colocada pelo tribunal a quo é a da verificação da exceção dilatória inominada da imprecisão/indeterminação dos pedidos em causa.

Vejamos então.

Nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 552º do Código de Processo Civil na petição, com que propõe a ação, deve o autor formular o pedido.

É inquestionável que a formulação do pedido é um dos elementos essenciais da petição inicial, constituindo a sua verdadeira razão de ser pois através dele dirige o autor ao tribunal a sua pretensão.

Aliás, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes (cfr. artigo 3º, n.º 1 do Código de Processo Civil), e o juiz, na sentença, também não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que foi pedido (cfr. artigo 609º n.º 1 do Código de Processo Civil).

A sua falta ou a sua ininteligibilidade tornam a petição inepta, o que acarreta a nulidade de todo o processo e a absolvição do réu da instância (artigos 186º n.º 1 e n.º 2, alínea a) e 278º n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil).

Impõe-se por isso, que, na petição inicial, o autor indique de forma clara e percetível o pedido que pretende ver decretado pelo tribunal; “só um pedido cujo alcance possa ser compreendido pelo juiz e pelo réu é passível de sustentar um processo em que se pretende uma decisão judicial definidora de um conflito de interesses, assegurar o efetivo exercício do contraditório, circunscrever com rigor os limites da sentença (art. 609º, n.º 1) e delimitar o caso julgado material (art. 621º) (António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, página 609).

O pedido deverá também ter um conteúdo determinado ou determinável em fase de liquidação ou execução de sentença, de forma a que possa ser facilmente apreendido por terceiros e permita a definição dos contornos do direito no caso concreto (António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, ob. e pág. cit., dão como exemplo negativo o caso apreciado pelo Tribunal da Relação de Évora em que foi pedida a “declaração de que o autor não tem para com o réu qualquer dívida ou qualquer obrigação de pagar ou indemnizar”).

Como é óbvio, os pedidos vagos e imprecisos não satisfazem esta exigência; o mesmo ocorrendo com os pedidos genéricos, pelo que estes apenas são excecionalmente admitidos nos casos previstos no n.º 1 do artigo 556º do Código de Processo Civil Anotado, isto é:

“a) Quando o objeto mediato da ação seja uma universalidade, de facto ou de direito;
b) Quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 569.º do Código civil;
c) Quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro ato que deva ser praticado pelo réu”.

Os pedidos formulados na petição inicial devem ser, por isso e em regra, determinados no seu quantitativo e conteúdo, apenas podendo formular-se pedidos genéricos nos casos previstos no referido artigo 556º.

Impõe-se então concluir que os pedidos não podem ser formulados de forma vaga, imprecisa e indeterminada, e nem de forma ininteligível; antes devem ser formulados de forma clara, determinada, congruente e coerente, apresentando-se, sob pena de ineptidão, como uma consequência lógica dos fundamentos invocados, e certa, ainda que possam ser apresentados de forma alternativa (artigo 553º), subsidiária (artigo 554º), cumulativa (artigo 555º), genérica (artigo 556º) e em prestações vincendas (artigo 557º), nas circunstâncias legalmente previstas.

Nos casos em que tal não ocorre, e à semelhança das situações de ineptidão da petição inicial, expressamente prevista como exceção dilatória, estaremos também perante uma exceção dilatória, ainda que inominada, sendo inquestionável, em face do artigo 577º do Código de Processo Civil (onde consta expressamente a referência a “entre outras”) a existência de exceções dilatórias inominadas.

Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, 1982, II, página 250) considera que quando se “formula indevidamente um pedido genérico, ainda aí a consequência deverá ser a absolvição da instância, pois não poderá o tribunal legalmente conceder o que o autor pede (a isso obsta, por definição, o art 471º) nem conceder coisa diversa (art 668º/1 al e)”; no sentido de a formulação ilegal de pedido genérico constituir exceção dilatória pronuncia-se também Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 1997, página 75 e ob. cit. Página 618) considerando que a “dedução de pedido genérico fora do condicionalismo legal reconduz-se a uma exceção dilatória inominada”.

In casu, analisando os pedidos formulados pelos Autores em 3), 4), 5) e 6) da petição inicial, temos de concordar com o entendimento perfilhado pelo tribunal a quo, concluindo que se apresentam efetivamente formulados com um caráter impreciso, indeterminado e genérico.

Tal como se refere na decisão recorrida “Se acaso o tribunal julgasse os pedidos em causa procedentes, eles sofreriam de uma indeterminação e imprecisão tal que, perante cada ato que os R.R. viessem a praticar, ter-se-ia de andar a discutir se tal ato diminuía ou prejudicava “a mais-valia de negócio” (seja lá o que isso for), se tal ato “direta ou indiretamente contribuía ou podia contribuir para a diminuição do valor das participações sociais”, se tal ato “distorcia, desvalorizava ou por qualquer meio, forma ou processo tinha subjacente e revelava a forma intencional de provocar a redução do valor patrimonial dos bens e participações sociais, para obtenção de proveito pessoal contrário à ordem pública e aos bons costumes…, assentes em atos e ou contratos simulados e ou dissimulados”.

Conforme já referimos o pedido deve ser indicado de forma clara e percetível para a ser perfeitamente compreendido pelo juiz e pelo réu tendo em vista possibilitar verdadeiramente o exercício do contraditório, permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto e a prolação de uma decisão que seja definidora do conflito de interesses subjacente ao mesmo; a decisão judicial que venha a ser proferida não pode ser imprecisa e/ou indeterminada, antes sendo necessário saber com exatidão o que o tribunal decidiu, para que os autores e os réus, e qualquer pessoa, possam saber sem dúvidas o que foi decidido e o que deve ser cumprido pelos réus no futuro.

Os pedidos em causa apresentam-se formulados com um carater manifestamente indeterminado e patentemente genérico (mas insuscetível de integrar a previsão do artigo 556º do Código de Processo Civil) pelo que, consequentemente, a decisão proferida pelo tribunal a quo, que absolveu os Réus da instância relativamente aos pedidos 3) a 6), não merece censura, devendo manter-se, improcedendo também nesta parte o presente recurso."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se acompanha a orientação da RG (que também foi a da 1.ª instância).

Os pedidos 1 e 3 são pedidos de carácter inibitório e têm a concretização suficiente para serem considerados admissíveis. Se os pedidos poderiam vir a ser considerados procedentes e em que medida o poderiam vir a ser, isso é naturalmente outra questão. A RG (bem como a 1.ª instância) parece ter esquecido que qualquer pedido pode ser sempre julgado num minus quanto ao que é pedido.

Acresce que não é adequado submeter os pedidos inibitórios ao regime dos pedidos genéricos que consta do art. 556.º CPC. Aliás, se a admissibilidade dos pedidos inibitórios fosse aferida em função do disposto no art. 556.º CPC, haveria que concluir que, atendendo a que este preceito nada refere quanto aos pedidos inibitórios, no processo civil português não seriam admissíveis acções inibitórias e pedidos de conteúdo inibitório.

MTS


27/04/2022

Jurisprudência 2021 (184)


Sanção pecuniária compulsória;
âmbito de aplicação


1. O sumário de RC 22/9/2021 (3033/19.0T8VIS-C.C1) é o seguinte:

I) O pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória não tem que ser formulado, exclusiva e obrigatoriamente, no âmbito de acção declarativa, podendo sê-lo no âmbito de acção executiva ou no âmbito de procedimento cautelar.

II) Apesar do referido em I), aquela sanção apenas será admissível em relação a obrigações de prestação de facto infungível (positivo ou negativo).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A admissibilidade do pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória no âmbito do processo executivo (sem necessidade, portanto, de título executivo prévio obtido por via de sentença proferida em acção declarativa) vem prevista no art. 868º, nº 1, do CPC, onde se dispõe que “Se alguém estiver obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir, o credor pode requerer a prestação por outrem, se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação; pode também o credor requerer o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo”. A admissibilidade desse pedido no âmbito da acção executiva resulta também do disposto nos arts. 874º e 876º, nº 1, al. c), do mesmo diploma legal.

Importa notar, no entanto, que essas disposições legais não regulamentam, em termos substantivos, as situações e os termos em que tal sanção é devida. Nem era essa a pretensão do legislador.

Na verdade, essas disposições – de natureza processual – apenas pretenderam clarificar e tornar expresso que a sanção pecuniária compulsória pode ser requerida no processo de execução (e não obrigatória e necessariamente no âmbito de uma acção declarativa). Tais disposições não se destinam, no entanto, a regulamentar, em termos substantivos, as situações e os termos em que tal sanção é devida; esta é questão que está prevista e regulamentada na lei civil e, mais concretamente, no art. 829º-A do CC.

Significa isso, portanto, que a sanção pecuniária compulsória poderá ser requerida no processo executivo (ainda que não conste do título), mas ela apenas será concedida ou fixada nos casos em que ela seja devida, ou seja, nos casos previstos no citado art. 829º-A do CC (já que é esta a norma que regula as situações e os termos em que há lugar à fixação dessa sanção).

Ora, como resulta do disposto no n.º 1 do citado art. 829º-A apenas pode haver lugar à aplicação de uma sanção pecuniária compulsória relativamente às obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, o mesmo não acontecendo relativamente às obrigações de facto fungível.

E compreende-se que assim seja.

Com efeito, é no domínio das obrigações de facto infungível que a aludida sanção se assume como relevante, forçando o devedor a cumprir uma obrigação que, dado o seu carácter infungível, só por ele pode ser cumprida; nas obrigações fungíveis, o facto pode ser prestado por outrem e, nessa medida, o credor tem meios de obter a satisfação do seu crédito sem a efectiva colaboração do devedor e, portanto, sem a necessidade de recorrer à aludida sanção que, como se referiu, visa, sobretudo, forçar o devedor a cumprir a obrigação.

A limitação do campo de aplicação dessa sanção às obrigações de prestação de facto (positivo ou negativo) infungível resulta, aliás, com toda a clareza do preâmbulo do diploma que a instituiu no nosso sistema jurídico – o Dec. Lei n.º 262/83, de 16/06 – onde se diz o seguinte:

Autêntica inovação, entre nós, constituem as sanções compulsórias reguladas no artigo 829.º-A. Inspira-se a do n.º 1 desse preceito no modelo francês das astreintes, sem todavia menosprezar alguns contributos de outras ordens jurídicas; ficando-se pela coerção patrimonial, evitou-se contudo atribuir-se-lhe um carácter de coerção pessoal (prisão) que poderia ser discutível face às garantias constitucionais.

A sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis” [...].

É indiscutível, portanto, que, nos termos previstos na lei civil – o citado art. 829.º-A do CC –, a sanção pecuniária compulsória só é admissível quando estão em causa prestações de facto infungível (positivo ou negativo).

A Recorrente apoia-se ainda no disposto no art. 365.º, n.º 2, do CPC, argumentando que, nos termos desse preceito, a sanção pecuniária compulsória é sempre admissível – independentemente do tipo e natureza da prestação em causa – relativamente a obrigações inseridas no âmbito de providências cautelares que tenham sido decretadas (como é aqui o caso, já que o título executivo corresponde precisamente a decisão que, com inversão do contencioso, decretou uma providência cautelar).

Mais uma vez, não lhe assiste razão.

A norma citada dispõe nos seguintes termos: “É sempre admissível a fixação, nos termos da lei civil, da sanção pecuniária compulsória que se mostre adequada a assegurar a efetividade da providência decretada”.

Não obstante seja certo que o advérbio “sempre” – ali utilizado – pode suscitar algumas dúvidas, importa reter que ali se alude à admissibilidade da fixação daquela sanção nos termos da lei civil e tal não poderá deixar de significar que é de acordo com a lei civil que deverá ser determinada a admissibilidade e os termos da fixação dessa sanção. Ou seja, a disposição citada – de natureza processual – apenas pretendeu admitir, em termos processuais, a formulação desse pedido no âmbito de procedimentos cautelares (visando, portanto, evitar obstáculos de natureza processual que pudessem ser colocados a tal pretensão), mas remeteu para a lei civil a regulação dos termos em que tal sanção é devida e fixada. E, para esse efeito, a lei civil é, naturalmente, o citado art. 829.º-A do CC – pois é esse o preceito que regula a aplicação dessa sanção – do qual resulta, conforme dissemos, que tal sanção apenas tem lugar quando estejam em causa prestações de facto infungíveis.

Nesse sentido se pronunciam Abrantes Geraldes [Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 4.ª edição revista e actualizada, pág. 182] e José Lebre de Freitas [Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2.ª edição, pág. 22].

No mesmo sentido, afirma Calvão da Silva (citando no mesmo sentido Teixeira de Sousa, Capelo de Sousa e Lopes do Rego) o seguinte em relação ao disposto no artigo 384.º, n.º 2, do anterior CPC (que corresponde ao art. 365.º, n.º 2, do actual CPC) [Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 134.º, pág. 62]: “…a sanção pecuniária compulsória cautelar por cada violação sucessiva à providência inibitória ou por cada dia de atraso na observância da providência se aplica nos termos da lei civil, leia-se, nos termos do art. 829.º-A – logo, apenas a pedido do requerente e só para obrigações de facto infungível. Outra solução não pode decorrer da instrumentalidade do Processo Civil em relação ao Direito Civil: a prevalência do Direito substantivo sobre o Direito adjectivo, traduzida na remissão do n.º 2 do art. 384.º do Código de Processo para o art. 829.º-A do Código Civil”.

Os citados artigos 868.º, n.º 1 e 365.º, n.º 2, do CPC correspondem, portanto, a disposições de cariz processual de onde resulta que o pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória não tem que ser formulado, exclusiva e obrigatoriamente, no âmbito de acção declarativa, podendo sê-lo no âmbito de acção executiva ou no âmbito de procedimento cautelar. Mas o regime substantivo dessa sanção – as situações em que é admissível e os termos em que pode ser concedida – está previsto na lei civil e, mais especificamente, no art. 829-A do CC e nos termos do n.º 1 desse preceito aquela sanção apenas será admissível em relação a obrigações de prestação de facto infungível (positivo ou negativo), não sendo aplicável a outras obrigações.

Assim, em termos processuais, nada obstava a que a Exequente formulasse tal pedido no âmbito da presente execução, tal como nada obstava a que o tivesse pedido no âmbito do procedimento cautelar onde foi proferida a decisão em que fundamenta esta execução. Tal sanção só poderia, no entanto, ser fixada se estivessem reunidos os pressupostos – fixados no n.º 1 do art. 829.º-A do CC – de que dependia a sua admissibilidade, ou seja, se a prestação em causa (resultante da providência decretada e reclamada na presente execução) correspondesse a uma prestação de facto infungível (positivo ou negativo).

Ora, a obrigação em causa nos presentes autos tem como conteúdo a demolição de determinado maciço rochoso, configurando-se, portanto, como uma obrigação de prestação de facto fungível e tanto é assim que a Exequente pediu a prestação do facto por outrem, o que, evidentemente, não poderia fazer caso estivesse em causa uma prestação de facto infungível.

Daí que não seja devida e não haja lugar à fixação de qualquer sanção pecuniária compulsória.

Tão pouco conseguimos entender a posição da Recorrente quando alude ao disposto no art. 70.º do CC para fundamentar a admissibilidade da sanção pecuniária compulsória e quando alude a uma unanimidade esclarecedora na doutrina e na jurisprudência no que respeita à total legalidade do recurso ao regime da sanção pecuniária compulsória, no âmbito da tutela de direitos de personalidade, com o fito de forçar os requeridos de providências cautelares ao cumprimento das mesmas.

Com efeito, o citado art. 70.º nada dispõe a propósito da admissibilidade (ou não) da sanção pecuniária compulsória; as condições de aplicabilidade dessa sanção são previstas – conforme se referiu – no art. 829.º-A do CC e, portanto, ainda que, como diz a Recorrente, a tutela cautelar dos direitos de personalidade corresponda a um campo de aplicação por excelência da figura da sanção pecuniária compulsória, tal só acontecerá quando essa tutela envolve uma obrigação de prestação de facto infungível (positivo ou negativo) nos termos previstos no n.º 1 do citado art. 829.º-A. 

É evidente, por outro lado, a inexistência da “unanimidade esclarecedora na doutrina e na jurisprudência” – a que alude a Recorrente – no sentido da admissibilidade da sanção pecuniária compulsória relativamente a quaisquer prestações que não sejam prestações de facto infungível. A unanimidade existente vai precisamente no sentido contrário.

Além dos autores a que já fizemos referência, também Pedro de Albuquerque – na obra citada pela Recorrente [O direito ao cumprimento de prestação de facto, o dever de a cumprir e o princípio nemo ad factum cogi potest. Providência cautelar, sanção pecuniária compulsória e caução [aqui]] - diz que a aludida sanção só pode operar em obrigações de prestação de facto infungível. Não dizendo em momento algum (ao contrário do que pretende a Recorrente) que tal sanção seja aplicável a outro tipo de prestações, diz expressamente (cfr. pág. 9022) a propósito do art. 342.º/2 do CPC (correspondente ao art. 365.º/2 do actual CPC) que “Ao remeter para a lei civil, o Código de Processo Civil garante, desde logo, que a sanção pecuniária compulsória deve ser decretada nos termos do artigo 829.º- A do Código Civil”, o que significa, evidentemente, que ela só poderá operar relativamente a prestações de facto infungível.

O mesmo acontece com Tiago Soares da Fonseca (também citado pela Recorrente) [Da tutela judicial civil dos direitos de personalidade, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, I] que também não diz, em momento algum, que a sanção pecuniária compulsória possa ser aplicada fora das situações previstas no n.º 1 do art. 829.º-A do CC, ou seja, relativamente a obrigações que não envolvam uma prestação de facto infungível.

Em face de tudo o exposto e sem necessidades de mais considerações, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida."

[MTS]




26/04/2022

Da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário



[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]


Jurisprudência 2021 (183)


Inventário; partilha adicional;
qualificação jurídicas, poderes do tribunal


I. O sumário de RL 14/9/2021 (1083/21.5T8LRS.L1-7) é o seguinte:

1.– A partilha adicional destina-se a efectivar a partilha de bens cujo conhecimento aconteça após o trânsito em julgado da partilha, efectuando-se no mesmo processo.

2.– No caso em que tenha existido uma partilha extrajudicial podem os interessados requerer a partilha adicional de outros bens que não os anteriormente partilhados nos termos gerais em que pode ser instaurado o processo de inventário.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Defende o apelante que a decisão recorrida deve ser revogada porquanto estão reunidos os pressupostos necessários para que se proceda à partilha adicional dos bens comuns do dissolvido casal.

Entendeu o tribunal recorrido que “a partilha adicional só é admissível no caso de omissão em partilha judicial, ou seja, não é admissível quando a omissão se deu não em processo de inventário, mas em partilha feita extrajudicialmente mediante acordo de ambas as partes”, pelo que, não sendo esse o caso dos autos, não podem os mesmos prosseguir.

Vejamos.

Antes de mais, há que salientar que o regime jurídico do processo de inventário sofreu várias alterações legislativas, a última das quais consubstanciada na Lei 117/2019, de 13 de Setembro e que entrou em vigor a 01/01/2020, alterando o anterior regime jurídico do inventário e o Código de Processo Civil.

Tendo os autos dado entrada em juízo em 02/02/2021, é este o regime aplicável ao caso em apreciação.

Assim, dispõe o art. 1129º, nº1 do CPC que “Quando se reconheça, depois de feita a partilha, que houve omissão de alguns bens, procede-se a partilha adicional no mesmo processo”.

Saliente-se que este preceito tem equivalência no art. 1395º, nº 1 do CPC anterior a 2013, que estabelecia que “Quando se reconheça, depois de feita a partilha judicial, que houve omissão de alguns bens, proceder-se-á no mesmo processo a partilha adicional, com observância, na parte aplicável, do que se acha disposto nesta secção e nas anteriores”.

Mais se refira que o art. 75º do RJPI anteriormente em vigor era exactamente do mesmo teor, referindo igualmente que se procede à partilha adicional no mesmo processo.

A partilha adicional destina-se, assim, a efectivar a partilha de bens cujo conhecimento aconteça após o trânsito em julgado da partilha, efectuando-se no mesmo processo, embora constitua “uma nova partilha, uma nova causa”, como refere João António Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, Vol. II, 4ª edição, págs. 583 a 587.

Da circunstância de se tratar de uma nova partilha não se pode retirar que a mesma não deve obedecer a todas as normas que foram já observadas na partilha efectuada, razão pela qual é a partilha adicional requerida no mesmo processo, aproveitando-se os elementos constantes dos autos e procedendo-se aos demais actos processuais em conformidade.

Apresenta o caso dos autos a particularidade de não ter existido um processo de inventário prévio, antes tendo as partes optado por efectuar uma partilha amigável dos bens.

Face à inexistência de um processo prévio, naturalmente que se tem de afastar a regra constante do citado art. 1129º referente à tramitação da partilha adicional no mesmo processo, já que este preceito terá sempre como pressuposto a existência de uma partilha anterior realizada no âmbito de um processo judicial ou notarial.

Todavia, no caso em que tenha havido uma partilha extrajudicial podem as partes requerer a partilha de outros bens que não os anteriormente partilhados nos termos gerais em que pode ser instaurado o processo de inventário.

Na verdade, a partilha extrajudicial não tem, necessariamente, de abarcar todos os bens a partilhar, sendo legítimo às partes efectuar nova partilha de outros bens, entretanto descobertos ou expressamente deixados de fora da partilha anterior.

Nesse caso, e na ausência de acordo para a concretização da partilha extrajudicial, não pode ser negada a qualquer um dos interessados a hipótese de instaurar processo judicial com vista à partilha de tais bens.

Como se explica no Ac. TRL de 27/11/2012, proc. 891/11.0TBGDM.L1-7, relator Maria do Rosário Morgado, citado pelo apelante, “O art. 1395º, do CPC pressupõe, é certo, uma partilha judicial anterior e a existência de omissão de bens nessa partilha". Não tem, contudo, o alcance que a decisão recorrida lhe atribuiu.

Nos termos daquele normativo legal, a partilha adicional tem lugar no mesmo processo. É o que ali se estipula. Nada mais!

Obviamente, não tendo sido feita a partilha pela via judicial, não é materialmente possível fazê-la nesse mesmo processo…

Tal não significa, porém, ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, que esteja vedado às partes recorrer – nos termos gerais – ao processo de inventário, visando pôr termo à comunhão relativamente aos bens «omitidos» na partilha anterior.

Evidentemente, se houver acordo dos interessados quanto à forma de os partilhar, podem fazê-lo pela via extrajudicial.

Na falta de acordo, resta-lhes o recurso ao inventário, único modo de dar satisfação ao direito (irrenunciável) de exigir partilha (cf. arts. 2101º e 2102º, ambos do CC).

Note-se, aliás, que, por respeito ao princípio da conservação do acto jurídico de partilha, o art. 2122º, do CC estabelece que a omissão de bens da herança não determina a nulidade da partilha, mas apenas a partilha (adicional) dos bens omitidos.

Quer dizer: a partilha inicial mantém-se plenamente válida e eficaz (quer a omissão de bens seja voluntária ou involuntária), constituindo a partilha adicional uma nova partilha, que se realizará recorrendo aos instrumentos legais adequados.

Diverso entendimento representaria, aliás, uma flagrante violação de um princípio estrutural do processo civil, de assento constitucional (cf. art. 20º, da CRP e art. 2º, do CPC), qual seja, o direito de acesso aos tribunais, em cujo âmbito normativo se inclui o direito de acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo e a prolação de uma decisão devidamente fundamentada”.

Estabelecida a possibilidade de ser instaurado processo de inventário para partilha de novos bens para lá dos anteriormente partilhados extrajudicialmente, apreciemos a questão trazida a juízo.

Da leitura do requerimento inicial, verifica-se que o apelante alega ter contraído casamento com a apelada a 01/03/2012, sob o regime de comunhão de adquiridos, tendo o referido casamento sido dissolvido por processo de divórcio por mútuo consentimento a 20/01/2020; que no âmbito desse mesmo processo de divórcio foi relacionada uma parte dos bens comuns do casal e feita, de seguida, a partilha da mesma extrajudicialmente, existindo outros bens adquiridos na constância do matrimónio, que não foram objecto de tal partilha extrajudicial, não existindo concordância quanto à sua partilha.

Por outro lado, importa também referir que, no introito do seu requerimento inicial, o apelante refere que “vem, ao abrigo do disposto no artigo 1082º, al. d) e Art.º 1133º, ambos do C. P. Civil, requerer que se proceda a INVENTÁRIO JUDICIAL PARA PARTILHA DE BENS COMUNS DO DISSOLVIDO CASAL”.

Do que se vem de expor resulta que o objectivo do apelante é proceder à partilha de tais bens, no âmbito de um processo de inventário, razão pela qual peticiona a sua nomeação como cabeça-de-casal e o ulterior prosseguimento dos autos.

Ora, a apreciação do pedido deduzido não se pode limitar a uma mera interpretação linguística e sem apoio na vontade das partes, abstraindo da totalidade das normas invocadas e do pedido deduzido.

Donde, a apreciação liminar efectuada pelo tribunal recorrido mostra-se desadequada face ao pedido efectuado, na medida em que a pretensão do apelante é proceder à partilha de determinados bens através do processo de inventário. Isto é, não estamos perante uma partilha adicional, tal como perspectivado na decisão recorrida e no art. 1129º do CPC, como dependência de um processo prévio, mas sim perante a instauração de um processo de inventário para partilha de bens não anteriormente partilhados em sede extrajudicial e que se assume, por esse motivo como uma partilha adicional ou complementar da primeira.

Como se expôs, tal opção é legitima, não podendo os interessados ser impedidos de exercer o respectivo direito de acção.

Concluindo, entende-se que o pedido em causa nos autos deve ser apreciado no âmbito do presente processo de inventário, pois é esse o pedido deduzido, o que leva à revogação do despacho recorrido, devendo os autos prosseguir em conformidade."

[MTS]


25/04/2022

Jurisprudência 2021 (182)


Depoimento de parte;
admissibilidade

1. O sumário de RL 16/9/2021 (13245/19.0 T8SNT-B.L1-8) é o seguinte: 

- Os pressupostos da admissibilidade do depoimento de parte do representante de pessoa colectiva devem ser aferidos em relação à própria parte, e não ao seu representante.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A factualidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso é a constante do relatório que antecede.

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).

Assim, a questão a decidir é a da (in)admissibilidade do depoimento de parte.

O depoimento de parte constitui o meio de prova através do qual se pretende fundamentalmente a obtenção de confissão judicial, mediante reconhecimento pelo depoente da realidade de um facto que lhe é desfavorável e é favorável à parte contrária (cfr. artigo 352º, n.º 1 e seguintes do Código Civil),

Nos termos do disposto no artº 453º, n.º 2 do CPC pode requerer-se o depoimento de parte de representantes de pessoas coletivas, o qual apenas revestirá o valor de confissão nos precisos termos em que aquele possa obrigar a sua representada – corolário do princípio geral estatuído no n.º 1 do artigo 353º do Código Civil, segundo o qual “a confissão só é eficaz, quando feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira”.

E nos termos do estabelecido no n.º 1 do art.º 163.º do CC, a representação de pessoa coletiva em juízo “cabe a quem os estatutos determinarem ou, na falta de disposição estatutária, à administração ou a quem por ela for designado”.

Não se pode concordar com o fundamento sufragado pelo tribunal recorrido de que o presidente do Conselho de Administração do banco embargado, atenta a dimensão deste, nada saberá quanto à “questão particular dos autos”.

O embargante alegou factos que integram o preenchimento abusivo da livrança dada à execução, a inexistência de título, a prescrição da livrança, o pagamento de prestações do contrato de mútuo que lhe subjaz e a consequente redução do montante da dívida, o incorreto cálculo dos juros. Muitos desses factos, sobre os quais requereu que recaísse o depoimento de parte do embargado, e de acordo com a alegação, foram praticados pelo embargado, pelo que se impõe concluir que é de admitir tal meio de prova, cabendo ao representante da parte inteirar-se sobre os mesmos, a fim de prestar o requerido depoimento.

Não se verifica qualquer circunstância que permita concluir que o depoimento de parte do representante do embargado se traduzirá em ato inútil, em virtude da dimensão do banco embargado, sublinhando-se que este nem sequer deduziu oposição. Subjacente ao despacho recorrido encontra-se o fundamento de os factos objeto do meio de prova requerido não serem pessoais nem do conhecimento do representante da parte.

Nos termos do disposto no artº 454, nº 1 do CPC “o depoimento só pode ter por objeto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.”

No entanto, “a memória que possibilita a confissão é a da própria sociedade, devidamente representada” [José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, pag.124, nota 38], e não a da pessoa singular que a representa.

“Mas, quem verdadeiramente presta o depoimento é a própria parte, pelo que os factos pessoais que relevam são aqueles de que a própria parte tem conhecimento ou de que deva ter conhecimento. (…)

Mas, na aferição do requisito “facto pessoal” deve ter-se presente que este se refere à própria parte e não ao seu representante legal. (…)

E não se diga que o requerido depoimento de parte é um acto inútil pelo facto do actual Presidente do Conselho de Administração não ter conhecimento pessoal dos factos. É que quem verdadeiramente presta o depoimento é a própria parte, sobre factos que são do conhecimento pessoal desta e de que o Presidente do Conselho de Administração tem obrigação de conhecer.

Por outro lado, temos de convir que o Presidente do Conselho de Administração é a pessoa a quem, em princípio, compete representar a empresa que dirige, perante terceiros, não se vendo razão para que o não faça perante os tribunais, quando tal lhe é pedido pelo Tribunal. Ademais, quando se trata de depor sobre matéria de que a empresa que dirige tem conhecimento directo e pessoal e de que ele próprio também tem obrigação de conhecer.” [Ac. da Relação de Lisboa, de 10/01/2007, disponível in www.dgsi.pt].

“A sociedade financeira, quiçá a anónima, como as grandes sociedades prestadoras de serviços em massa à generalidade dos consumidores, não pode esconder-se, para evitar a prestação de depoimento de parte, de informações ou de esclarecimentos, na imensidão da sua estrutura complexa e difusa, muito menos pretextar o desconhecimento concreto dos negócios que com ela se concluem, modificam ou extinguem. À acutilância com que propõe e vende os seus serviços deve justamente corresponder proporcional capacidade e eficácia para sobre eles e sua dinâmica se pronunciar em tribunal por ocasião dos respectivos litígios.

Partiu o tribunal recorrido do pressuposto, porventura tendo em mente a forma societária da autora, a sua dimensão e ramo de actividade, que se não vislumbra qualquer intervenção directa dos seus representantes nos factos sobre que foi pedido o seu depoimento, daí concluindo que os mesmos não são do seu conhecimento pessoal.

Ora, tal pressuposto não está demonstrado, nem sequer foi sugerido pela própria apelada que nenhuma oposição deduziu, nem parece poder sequer presumir-se. Mal estaria a sociedade, se os negócios com ela concluídos, modificados ou extintos não fossem do conhecimento das pessoas que integram os seus órgãos administrativos ou, pelo menos, daquelas que, mesmo não fazendo parte deles, a representam e decidem sobre a sua aceitação e termos.” [Ac. Relação de Guimarães de 15/12/2016, disponível em www.dgsi.pt].

O direito à prova, constitucionalmente consagrado enquanto expressão do direito de acesso à justiça (artº 20º da Constituição da República Portuguesa), não é um direito absoluto, admitindo compressão. Todavia, a recusa de qualquer meio de prova deve ser fundamentada na lei ou em princípio jurídico.

No caso sub judice, a lei prevê expressamente o depoimento de parte de pessoas coletivas. Mostram-se reunidos os pressupostos da sua admissibilidade, os quais devem ser aferidos em relação à própria parte, e não ao seu representante, pelo que é de admitir o depoimento de parte do banco embargado, a prestar pela pessoa que para tal tenha poderes, nos termos do disposto no artº 163º do CC.

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, devendo, em 1ª instância, ser substituída por outra que admita o depoimento de parte do representante do embargado e ordene a sua prestação à matéria respetiva, a aferir em função do requerido pelo embargante."

[MTS]


22/04/2022

Jurisprudência 2021 (181)


Procedimento cautelar comum;
periculum in mora


1. O sumário de RP 9/9/2021 (3272/21.3T8PRT.P1) é o seguinte:

I - No procedimento cautelar comum, o periculum in mora tem que ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que seja sucedâneo ou substitutivo daquele.

II - Apresentando o requerimento inicial insuficiente explicitação dos factos que interessam à procedência do procedimento cautelar, deve o Juiz fazer uso dos princípios da cooperação e da justa composição da lide, para, em despacho de aperfeiçoamento, convidar o requerente a suprir essas insuficiências de alegação.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"É consabido que a composição provisória que a providência cautelar visa atingir se pode consubstanciar numa de três finalidades: 1) garantir um direito; 2) definir uma regulação provisória ou 3) antecipar a tutela requerida.

Segundo A. Abrantes Geraldes Temas da Reforma do Processo Civil, Volume III: “As medidas deste tipo excedem a natureza simplesmente cautelar ou de garantia que caracteriza a generalidades das providências (…) o efeito destas providências não se limita a assegurar o direito que se discute na acção principal, nem tão pouco a suspender determinada actuação, garantindo-se, desde logo, e independentemente do resultado a alcançar na acção principal, um determinado efeito que acaba sempre por ter carácter definitivo”.

O artigo 362.º do CPC prevê de forma expressa tal possibilidade – a de se poder alcançar uma medida com efeitos antecipatórios da decisão definitiva, prevendo-se, até, a possibilidade de, em determinadas situações, a decisão cautelar se poder consolidar como definitiva composição do litígio, através da chamada inversão do contencioso (artigo 369.º do CPC), evitando-se a duplicação de procedimentos, repetindo na acção principal a apreciação da mesma controvérsia que já tinha sido debatida e decidida no procedimento cautelar.

Ora nos autos, tem razão a requerente/apelante quando, nas suas alegações, salienta que “mesmo sem que tenha sido realizado julgamento, se deve ter como provado que o arrendado sofre infiltrações de água que aparentemente provirão do telhado de cobertura ou dos vãos das janelas dos pisos superiores, ou das fachadas fissuradas, e que, muito recentemente, ruiu parte do tecto, estando em risco de ruir o restante a qualquer momento, fazendo desabar o tecto de outros compartimentos do locado com iminente perigo para a integridade física de quem ali se encontre”.

Tem igualmente razão, quando afirma que tais factos bastam para que se possa concluir que se está perante lesões continuadas, impondo-se prevenir a continuação ou a repetição dos actos lesivos, ou seja, o que se pretende é prevenir a continuação de infiltrações no arrendado e a possibilidade da sua ruína total.

Mais, aceitamos como correcta a ideia de que os danos já ocorridos tendem a agravar-se, podendo surgir outros novos, se em tempo útil não for concedida a providência destinada a evitar a repetição ou a persistência das situações lesivas.

Deste modo, também nós concluímos que numa situação de manifesta urgência como é a dos autos, a presente via cautelar se mostra adequada para antecipar o juízo a formular na acção principal.

Ou seja, a presente providência é o caminho processual adequado para que a (inquilina) Requerente consiga que o senhorio (a Requerida) realize no locado e no seu prédio as obras necessárias a repô-lo em condições de utilização.

Assim sendo e diversamente do que foi entendido na decisão recorrida, consideramos não estar perante pedidos que não têm natureza cautelar, podendo sim os mesmos e tendo nomeadamente em conta as regras previstas no nº 1 do art.º 362º do CPC, ser tidos em conta no âmbito da presente providência.

Quando muito e considerando-se que os mesmos padecem das irregularidades apontadas na decisão recorrida, deve a Requerente ser convidada a vir aos autos suprir tais imprecisões, aperfeiçoando o seu articulado inicial, nos termos legalmente previstos, prosseguindo posteriormente os autos para realização de audiência de discussão e julgamento e posterior decisão final.

Assim sendo, merece reparo o segmento da decisão na qual se julgou parcialmente nulo o processado e se absolveu a Requerida, nesta parte, da instância cautelar, salvo quanto pedidos de restituição da maquinaria do sistema de ar condicionado (pedido compreendido na alínea f) do petitório) e ao franqueamento do acesso ao terraço de cobertura (pedido compreendido na alínea cc) do petitório).

E merece igualmente reparo a mesma decisão quando julgou improcedentes tais pedidos (os da alínea f), b) e cc) da petição inicial e deles absolveu a Requerida.

Na tese do Tribunal “a quo” não foram alegados factos que caracterizem o periculum in mora, relativamente aos pedidos sobre os quais não existe impedimento ao conhecimento de mérito.

Mais, da alegação da Requerente não resulta, sequer, que estejamos perante uma lesão grave e dificilmente reparável.

Podemos desde já dizer que não sufragamos tal entendimento.

E para sustentar a nossa opinião, vamos recorrer aos argumentos contidos no Acórdão desta Relação de 24.09.2009, relatado pelo Desembargador Teixeira Ribeiro, processo 4481/09.9TBMAI.P1, em www.dgsi.pt. e cujos segmentos que consideramos mais relevantes para o caso dos autos, passamos agora a transcrever:

“a) – Da suficiência da matéria de facto alegada quanto ao “periculum in mora”

Os procedimentos cautelares são, genericamente, expedientes processuais, de tramitação simplificada e célere, destinados a prevenir a lesão, pela natural demora da intervenção judiciária comum e definitiva, de um direito que já existe ou está em vias de ser reconhecido. Por isso, bastam-se com a prova sumária da probabilidade séria da existência do direito (summaria cognitio) e do fundado receio da sua lesão – Artºs 387º, nº1 e 392º, nº1, ambos do Cod. Proc. Civil (diploma a que pertencem as demais disposições que doravante se citarem sem menção de origem).

Salvo os procedimentos nominados e com a sua regulação processual especificada em atenção à natureza dos direitos substantivos em causa, todas as demais providências cautelares podem ser requeridas segundo a disciplina que se designa de procedimento cautelar comum (naturalmente não especificadas), regulado nos Artºs 381º a 392º, como a que temos em apreço, que não encontra no direito adjectivo tramitação específica para o direito que pretende acautelar.

Segundo essa disciplina, o decretamento de uma providência cautelar comum depende da verificação dos seguintes requisitos:

a) – probabilidade séria da existência de um direito;

b) – fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável nesse direito;

c) – inadequação ao caso concreto de qualquer uma das providências cautelares previstas nos artºs 393º e segts.

Surgindo a providência cautelar como expediente provisório, preliminar ou incidentalmente dependente de uma causa ulterior e final em que verdadeiramente se reconhece ou exerce o direito material, ela tem natureza instrumental e exige, para ser decretada, que o seu requerente demonstre sumariamente a existência do direito ameaçado (que pode ser um qualquer direito subjectivo, como o direito de propriedade, ou um interesse juridicamente tutelado, mais ou menos difuso), de molde a preservar-se a eficácia e utilidade daquela providência ulterior (assegurada pela causa final e principal), sabido como é que a preparação e formação, a maior partes das vezes lenta e demorada, da decisão definitiva poderá expor o presumido titular do direito a riscos sérios de dano jurídico, somente evitáveis através da providência cautelar – cfr, entre outros, José Alberto dos Réis, in “Código de Processo Civil”, Anotado, 3ª Edição, Reimpressão, pag. 623-627; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª Edição, pag. 23-25, e António Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Volume, Procedimento Cautelar Comum, pag.56-78. (…)

Esta alegação, se bem que não completamente exangue de afirmações conclusivas ou de conceitos de direito e carecida de maior explanação concreta da realidade que poderia assumir para deixar de merecer completamente os reparos feitos na decisão recorrida, parece-nos, ressalvada a máxima consideração por opinião adversa, que é, pelo menos, bastante para que, ao contrário do que ali se sustentou, fazer prosseguir a tramitação dos autos com vista ao sumário apuramento dos factos alegados (com audição das testemunhas arroladas pela Requerente), ou para tomar a opção da prolação do despacho de aperfeiçoamento nos termos do disposto no Artº 508º, nºs 1, b) e 3, que, no caso, não chegou a ocorrer.

Não que se dispense a prova do periculum in mora por o legislador presumir que a demora da acção principal causa prejuízo grave e de difícil reparação, como acontece nas situações legalmente previstas de apreensão de veículos automóveis sequente à sua alienação com reserva de propriedade (nos termos dos Artºs 15º, nºs 1 e 2, 16º, do Dl. Nº54/75, de 12 de Fevereiro) ou que foram objecto de locação financeira (nos termos do Artº 21º, nºs 1,2 3 e 4, do Dl. Nº149/95, de 24 de Junho), mas porque – estando alegado que a Requerida mantém em seu poder e está a utilizar a viatura, apesar da resolução do contrato (quando devia proceder à sua entrega), completamente fora da álea do contrato que celebrara, sem qualquer controlo e contrapartida para a Requerente – não poderá essa conduta deixar de ser considerada lesão grave e de difícil reparação ao direito de propriedade sobre a viatura cuja entrega está a ser pedida por aquela. Com efeito, o periculum in mora tem que ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que daquele seja sucedâneo ou substitutivo, como o direito à indemnização pelos prejuízos daí decorrentes.

Na verdade, estando em causa um bem móvel, cuja utilização implica, de forma notória, a sua depreciação e que, a curto prazo, poderá mesmo conduzir à sua total inutilização ou destruição, entendemos que a utilização do veículo por parte da Requerida até à decisão da acção determina, só por si, e independentemente do apuramento de qualquer outro facto que ainda esteja por fazer (dos alegados), o risco de a Requerente ficar privada, total e definitivamente, do seu direito de propriedade e das utilidades que ao mesmo são inerentes.(…)

Ao pressuposto de se exigir ao decretamento da providência a verificação do requisito do fundado receio de que a demora da decisão definitiva cause lesão grave irreparável ou de difícil reparação ao direito do requerente não obsta o facto de a lesão poder ser minorada (ou “reparada”) pela entrega de uma quantia em dinheiro (conforme Artºs 1043º e 1044 do Código Civil), pois, a ser assim, raras seriam as situações de lesão (grave) que não pudessem ser reparadas (dado que até a perda do direito à vida é, no nosso sistema jurídico, “compensável”...!).

O que a Requerente pretende (lê-se no supra citado Aresto) com o procedimento cautelar – e é esse o seu direito – “é a entrega do veículo para, além do mais, salvaguardar a sua integridade (como máquina adequada a determinados fins), e não uma indemnização pela sua inutilização ou deterioração ou por dele não poder dispor, nomeadamente na celebração de novo contrato de aluguer”.(…)

b) – Do despacho de aperfeiçoamento do requerimento inicial

Na linha de tudo o que antes ficou dito, o requerimento inicial da providência não é completamente desprovido de factos concretos relevantes (que, até agora, estão apenas alegados) para o conhecimento do respectivo pedido, de modo a poder afirmar-se que é inepto por falta absoluta de causa de pedir ou manifestamente improcedente.
O Mmº Juiz da 1ª Instância chega a reconhecer isso, quando na decisão recorrida escreveu - “Os factos alegados pela requerente são manifestamente insuficientes para que possamos dizer estar perante um fundado e justificado receio de perda da garantia patrimonial do crédito por parte da requerente...”. [...]

Se assim é, se os factos estão menos bem explicitados e são insuficientes para, uma vez apurados (ainda que sumariamente), ditar a procedência da providência cautelar, bem poderia então, antes ou depois de ouvir a Requerida (conforme dispensasse ou não a sua audição), ter convidado a Requerente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial, visando suprir essas insuficiências, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs 234º, nº4, b), 234º-A, nº1, e 508º, nºs1, b), 2 e 3. Tudo aconselhava a que, dentro do salutar princípio da cooperação e da justa composição da lide (Artº 266º, nºs 1 e 2) a que assim procedesse, sendo, no entanto, duvidoso que assim tivesse que actuar vinculadamente, como vem sendo defendido tanto pela doutrina como pela jurisprudência mais seguidas sobre esta matéria - cfr., entre outros, José Lebre de Freitas, ob. Citada, pag. 23 e 353 a 355; Lopes do Rego, in “Comentários Ao Código de Processo Civil”, 2ª Edição, Volume I, pag. 220; e Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Volume, 3ª edição, pag.183-187, e os Acórdãos, desta Relação, de 29/06/2006 (procº nº0633389), in www.dgsi.pt/jtrp, e da Relação de Lisboa, de 20/05/2008 (proc.nº 4024/2008-1), in www.dgsi.pt/jtrl.

De todo o modo, e pelas razões já expostas, o requerimento inicial continha suficiente fundamento para que a instrução do procedimento requerido tivesse prosseguido, com ou sem despacho de aperfeiçoamento, para a audição das testemunhas indicadas pela Requerente, motivo pelo qual o agravo vai merecer provimento.”

Aplicando tais considerações ao caso dos autos, cabe concluir que também aqui o requerimento inicial da providência não é completamente desprovido de factos concretos relevantes (que, até agora, estão apenas alegados) para o conhecimento do respectivo pedido, de modo a poder afirmar-se que é inepto por falta absoluta de causa de pedir ou manifestamente improcedente.

Ou seja, deve considerar-se que a matéria ali contida é suficiente para o prosseguimento da providência requerida, com ou sem despacho de aperfeiçoamento, para a produção da prova produzida pelas partes, revogando-se assim a decisão recorrida."

[MTS]