"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/06/2018

Informação (228)


Publicação dos acórdãos do TJ

1. O TJ informa que, a partir de 1/7/2018, os processos prejudiciais respeitantes a pessoas singulares serão anonimizados (CI 96/18, de 29/6).

2. Esta informação suscita uma nota. Até agora, os acórdãos de uniformização de jurisprudência publicados no DR  não eram anonimizados (mesmo na área penal, como, a título exemplificativo, se pode ver neste caso). Por estranho que possa parecer, a regra da anonimização era seguida na publicação do mesmo acórdão na base de dados da DGSI (veja-se o mesmo acórdão aqui). Muito possivelmente, já se tomou, quanto à publicação dos acórdãos de uniformização no DR, uma medida idêntica à agora comunicada pelo TJ, mas, se por acaso tal não sucedeu, parece dever seguir-se o (bom) exemplo do TJ.

MTS 

 

Jurisprudência 2018 (48)


Litisconsórcio subsidiário;
revelia; consequências


1. O sumário de RP 5/3/2018 (1668/15.9T8PVZ.P1) é o seguinte:

I - A pluralidade subjetiva subsidiária prevista no artigo 39º do Código de Processo Civil, na sua vertente de litisconsórcio subsidiário, origina no processo uma dupla subsidiariedade - objetiva e subjetiva -, porquanto comporta a dedução de um pedido subsidiário não apenas no confronto das partes singulares da ação, mas de uma parte que apenas é demandada para ver a sua situação jurídica apreciada no caso de não proceder o pedido deduzido a título principal.
 
II - Malgrado a letra da al. a) do artigo 568º do Código de Processo Civil aponte no sentido de que a exceção aí contemplada funciona em qualquer situação de pluralidade de réus, ressalvando as situações de litisconsórcio necessário passivo, ter-se-á de entender que a eficácia da exceção se encontra limitada aos factos de interesse comum para o réu contestante e para o réu revel. 
 
III - Por isso, no litisconsórcio subsidiário, não é relevante a impugnação de factos que, por só respeitarem ao revel, o réu contestante não tem interesse em contradizer. 
 
IV - O contrato de associação em participação, enquanto contrato associativo ou organizativo, tem como elementos essenciais que o caraterizam: i) a atividade económica de uma pessoa; ii) a participação de outra nos lucros ou perdas dessa atividade; iii) uma estrutura associativa.
 
V - Ao contrário do contrato de sociedade, a associação em participação não dá origem a uma nova entidade ou organização autónoma, a atividade económica não é exercida conjuntamente pelos contraentes (mas individualmente pelo associante), e não existe formação de qualquer património autónomo ou sequer comum (já que as contribuições do associado ingressam no património individual ou empresarial do associante). 
 
VI - Dada a natureza duradoura do contrato de associação em participação é o mesmo suscetível de resolução por justa causa, como tal se entendendo qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa-fé, não seja exigível a uma das partes a continuação dessa vinculação, podendo, assim, a mesma concretizar-se mercê de factos objetivos, que tenham a ver com a pura realidade do negócio, ou subjetivos, ligados à atuação da parte inadimplente.
 
VII - Resolvido o contrato de associação em participação, o associado tem direito à restituição da quantia que entregou a título de contribuição patrimonial sem qualquer atualização, por se tratar de uma obrigação pecuniária pura, acrescida de juros de mora desde a data da receção pela contraparte da respetiva declaração resolutória.
 

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I- RELATÓRIO

B... intentou a presente ação declarativa com processo comum contra C... e D..., Ldª alegando, para tanto, ter celebrado com o réu, ou com ambos os réus, um contrato de associação em participação, que por incumprimento das obrigações dos réus, e subsidiariamente, pelo decurso de 10 anos sobre a celebração do contrato, se extinguiu com justa causa.

Conclui pedindo a condenação do 1º réu, ou subsidiariamente, da 2ª ré, a pagar-lhe, por incumprimento do contrato de associação em participação celebrado, a quantia de € 240.348,13, sendo € 162.109,31 de capital e €78.238,82 de juros vencidos, sem prejuízo dos juros de mora vincendos a partir da citação.

Ou, quando assim se não entenda, ser declarada a nulidade do contrato celebrado entre o autor e o 1º réu ou a 2ª ré, por falta de forma, e condenar-se o 1º réu, ou, subsidiariamente, a 2ª ré, a restituir ao autor a quantia de € 240.348,13, sendo € 162.109,31 de capital e € 78.238,82 de juros vencidos, sem prejuízo dos juros de mora vincendos a partir da citação. [...]

II- DO MÉRITO DO RECURSO [...]

2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto

2.3.1. Da relevância processual da falta de apresentação de contestação por parte do réu C...

Como emerge dos autos, o réu C... não apresentou articulado de defesa.

Questão que se mostra colocada no presente recurso prende-se em saber se essa revelia é ou não operante, sendo que o ora apelante sufraga o entendimento de que relativamente ao réu não contestante não aproveita a contestação apresentada pela ré “D..., Ldª”, devendo consequentemente considerarem-se provadas (por confissão ficta) as afirmações de facto vertidas nos artigos 9º, 10º, 16º, 17º, 18º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 47º, 48º, 49º, 54º e 61º da petição inicial.

Quid juris?

Em conformidade com o disposto nos arts. 566º e 567º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC), se o réu, investido pela citação, no ónus de contestar, não deduzir qualquer defesa dentro do prazo legal, incorrerá em situação de revelia a qual, por via de regra, produz efeito probatório “considera[ndo]-se confessados os factos articulados pelo autor”, gerando, na expressão de MANUEL DE ANDRADE [
In Noções Elementares de Processo Civil, 1993, pág. 151], «uma presunção irrefutável de confissão».

Este comportamento omissivo do réu provoca, pois, a denominada confissão tácita, ficta ou presumida, a qual fica adquirida definitivamente no processo (com eficácia juris et de jure), não podendo este vir posteriormente negar os factos relativamente aos quais se manteve em total silêncio ou inércia.

E para despoletar essa consequência ou efeito probatório a lei adjetiva basta-se com a realização regular do ato de citação do réu e com a ausência de contestação.

No entanto, nem sempre o aludido efeito resultante da revelia se produz, já que o art. 568º do CPC prevê, com cariz excecional, algumas limitações à enunciada regra, relevando, no que ao caso interessa, a situação prevista na sua alínea a), na qual se dispõe que “[N]ão se aplica o disposto no artigo anterior quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar”.

Isto posto, considerando que o réu C... foi regularmente citado [...], resta, por conseguinte, dilucidar se opera (ou não) a exceção contemplada no transcrito inciso normativo.

Na resolução da enunciada questão cumpre, desde logo, determinar qual a relação que, em termos processuais, se regista entre os réus na presente demanda.

Tendo em conta a forma como o autor configura a concreta pretensão de tutela jurisdicional que aduziu nestes autos, verifica-se que o (mesmo) pedido é direcionado, a título principal, contra o réu C... e subsidiariamente contra a ré “D..., Ldª”.

Portanto, estamos assim perante uma situação de pluralidade de partes que a lei adjetiva designa de pluralidade subjetiva subsidiária e que se mostra consagrada no art. 39º do CPC.

Tal figura origina no processo uma dupla subsidiariedade: objetiva e subjetiva. Na verdade, ela vai comportar a dedução de um pedido subsidiário não apenas no confronto das partes singulares da ação, mas de uma parte que apenas é demandada para ver a sua situação jurídica apreciada no caso de não proceder o pedido deduzido a título principal.

Como a este propósito tem sido sublinhado pela doutrina [...], a razão de ser da consagração desta figura consistiu na necessidade de tutelar, em termos bastantes, o interesse do demandante, nos casos de dúvida fundada e razoável sobre a titularidade da relação material controvertida, nomeadamente nas hipóteses em que o próprio credor ignora, sem culpa da sua parte, a que título ou em que qualidade terá o devedor intervindo no ato que serve de causa de pedir à ação.

Entendeu-se, deste modo, que deveria ser dada prevalência ao interesse do demandante em ver apreciada unitariamente – e no mesmo processo – a responsabilidade dos possíveis devedores “alternativos” sobre o natural interesse do demandado em não estar no processo apenas a título subsidiário, para ver a sua responsabilidade apreciada apenas quando naufragasse a pretensão deduzida a título principal.

No caso vertente, o demandante fazendo uso dessa prerrogativa legal demandou o réu C... a título principal e – alegando dúvida fundada sobre quem é o verdadeiro sujeito passivo da relação material controvertida (cfr. arts. 79º a 84º da petição inicial) – deduziu ainda pretensão subsidiária contra a ré “D..., Ldª”, como possível devedora “alternativa” no seu confronto.

Tal situação configura o que se vem denominado por litisconsórcio eventual ou subsidiário passivo, o qual, por sua natureza, se situa para além das situações de contitularidade da mera relação jurídica material.

Ora, malgrado a letra da citada al. a) do art. 568º do CPC aponte no sentido de que a exceção aí contemplada funciona em qualquer situação de pluralidade de réus, ter-se-á de entender que, ressalvando as situações de litisconsórcio necessário passivo [Em que, por mor do disposto no art. 33º do CPC, há que alcançar uma decisão uniforme perante os vários réus; daí que o exercício, por um só dos réus, do direito de defesa aproveita sempre aos restantes, na parte em que o seu interesse seja comum], a eficácia da exceção se encontra limitada aos factos de interesse comum para o réu contestante e para o réu revel. 

Por isso, conforme se vem entendendo [...], não é relevante, fora duma relação formal de representação, a impugnação de factos que, por só respeitarem ao revel, o réu contestante não tem interesse em
contradizer, o que se torna patente nas situações de pluralidade subjetiva subsidiária como a presente, dada a autonomia e independência que se regista entre a posição da parte demandada a título principal e a parte apenas subsidiariamente demandada.

Como assim, dado que as proposições factuais constantes dos artigos 9º, 10º, 16º, 17º, 18º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 47º, 48º, 49º, 54º e 61º da petição inicial apenas interessariam diretamente ao réu C..., a sua revelia será, pois, concretamente operante.

Daí que estando-se em presença de factos tidos como assentes (por ficta confessio), em consonância com o que se dispõe no nº 1 do art. 662º do CPC, impõe-se a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto considerando-se provado que:

. “A entrega, em 2003, da quantia de 329.627,31 €, através dos cheques de 162.109,31 € e 167.518,00 €, destinava-se satisfazer o preço do prédio denominado E..., que a 2ª R. havia adquirido no mês de Maio, e a contribuir para a atividade a desenvolver sobre o prédio”;

. “No qual o 1º R. tencionava levar a cabo operação de loteamento, através de 2ª R., com os inerentes trabalhos de urbanização, para ulteriormente, vender os lotes”;

. “O 1º R. associou o A. a esse negócio imobiliário que projetou realizar através da 2ª R.”;

. “Como contrapartida da entrega da quantia de 162.109,31 € o 1º R. obrigou-se a pagar ao A. metade do lucro da operação imobiliária sobre o referido prédio, isto é, metade das receitas da venda dos lotes resultantes do prédio deduzidas de metade das despesas havidas com a compra, o loteamento e as obras necessárias”;

. “O 1º R. recebeu em 04.11.2003, a importância de 162.109,31 € para a entregar à 2ª R. e lhe permitir pagar o preço da E..., ficando o autor desapossado desse montante”;

“Desde, pelo menos, 2009 a 2015 o 1º R. não promoveu o loteamento e a venda do prédio, não tendo sido alcançada uma coisa ou outra”;

. “O 1º R. passou a sustentar que o A. seria comproprietário da E...”;

. “Entretanto, decorreram mais de dez anos sobre a celebração do contrato, que não fixou a sua duração, nem determinou as operações em que consistiria”;

. “O A. deixou de dispor, ao longo de todo o tempo decorrido, do capital de 162.109,31 € e da rentabilidade que este lhe proporcionaria”.


3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, a RP não decidiu bem o problema relativo às consequências da revelia do réu principal.

No litisconsórcio subsidiário passivo, é formulado um mesmo pedido contra uma parte principal e contra uma parte subsidiária (cf. art. 39.º CPC). É fácil concluir que, além naturalmente de haver uma oposição entre o  autor e cada um dos réus demandados, nesse litisconsórcio há também uma oposição entre cada um destes réus. Como é evidente, cada uma destas partes tem interesse em que, a haver alguma condenação proferida pelo tribunal, seja a outra parte a condenada no pedido formulado pelo autor. Esse litisconsórcio origina, exactamente por causa da oposição entre o autor e os réus e entre estes mesmos réus, um relação multipolar.

A revelia operante produz efeitos desfavoráveis para o réu revel e favoráveis para o autor. No caso de haver uma pluralidade de réus, está excluído que a revelia operante de um desses réus produza efeitos desfavoráveis para um outro réu igualmente demandado. Os efeitos desfavoráveis da revelia operante ficam necessariamente limitados ao réu revel: esses efeitos desfavorecem o réu revel perante o autor, mas não podem desfavorecer o outro réu perante o autor.

Nesta perspectiva, há que concluir que as consequências da revelia do réu principal não podem ser opostas ao réu subsidiário. Este réu não pode ser atingido pela ficta confessio que decorre da revelia do réu principal. Tem-se por indiscutível que o réu que tem um interesse incompatível com um outro réu não pode ser prejudicado pela conduta deste último réu. Por exemplo: as consequências da revelia operante de um dos réus demandados numa acção de divisão de coisa comum não podem ser ser opostas ao outro réu igualmente demandado.

b) Obtida esta conclusão, suscita-se a questão de saber se o réu subsidiário pode impugnar, de modo a excluir a sua condenação no pedido formulado pelo autor, factos que o réu revel não impugnou. Resulta do acima dito que tem de se admitir esta possibilidade. Se a revelia do réu principal não é oponível ao réu subsidiário e se a ficta confessio não pode prejudicar este réu, então os factos que, como consequência dessa revelia, se consideram confessados, não podem ser opostos ao réu subsidiário.

Aliás, não se percebe como é que, sendo o pedido formulado contra o réu subsidiário igual ao pedido formulado contra o réu principal e, portanto, tendo esse pedido uma única e mesma causa de pedir, o réu subsidiário pode ficar impedido de impugnar qualquer facto que integra essa causa de pedir (ou, se se quiser ser mais incisivo, qualquer facto que pertence à causa de pedir que lhe é oposta pelo autor). Quando muito, poder-se-ia vir a discutir, em relação a determinados factos integrantes da causa de pedir, a relevância da sua impugnação pelo réu subsidiário e da sua eventual não prova pelo autor para a apreciação do pedido formulado contra esse réu. Mas isto é coisa completamente diferente de se vincular esse réu a aceitar como confessados factos não impugnados pelo réu principal.

Pelo exposto, é-se levado a ter de concluir que a RP, ao decidir como decidiu, violou o direito ao contraditório do réu subsidiário, na modalidade de direito desta parte a pronunciar-se sobre as alegações da parte contrária. Repita-se o que acima se referiu: uma coisa é verificar se os factos impugnados pelo réu subsidiário são relevantes para uma eventual absolvição desta parte; outra completamente diferente é coarctar a essa parte o contraditório sobre esses factos e vinculá-la aos factos confessados, através da revelia, pelo réu principal.

Não é possível fazer nenhum juízo sobre as consequências para o réu subsidiário da sua vinculação aos factos confessados pelo réu principal, dado que isso implicaria conhecer muito mais do que é referido no acórdão. Mas basta considerar que alguns destes factos referem expressamente o réu subsidiário para, desde logo, se não poder dizer, como o acórdão faz, que esse réu não tem "interesse em contradizer" esses factos e para se poder concluir que a prova ou a não prova desses mesmos factos pode não ser nada irrelevante para a decisão a tomar pelo tribunal quanto ao pedido formulado pelo autor contra esse réu.

c) Também não parece que o disposto no art. 568.º, al. a), CPC tenha algo a ver com a situação em análise no acórdão. Este preceito estende a contestação efectuada por um dos réus ao réu revel; no caso sub iudice, o que estava em causa era a possibilidade de o réu subsidiário impugnar, a seu favor, factos não impugnados pelo réu revel. Não se trata de estender ao réu principal revel a contestação do réu subsidiário, mas antes de permitir que este réu possa impugnar factos não impugnados por aquele réu revel. Dito de outra forma: enquanto o art. 568.º, al. a), CPC regula o aproveitamento pelo réu revel da contestação do outro réu, o caso em análise refere-se às consequências da revelia do réu principal para o réu subsidiário.

Num caso de litisconsórcio subsidiário, a aplicação do disposto no art. 568.º, al. a), CPC só seria pensável no caso em que o réu contestante pretendesse demonstrar que nem ele, nem o réu revel podem ser condenados no pedido formulado pelo autor. Neste contexto, faz sentido discutir se os factos impugnados pelo réu subsidiário aproveitam ao réu principal revel. Todavia, não era esta a situação em análise no acórdão da RP, dado que em parte alguma do acórdão se discute a possibilidade de o réu principal revel se aproveitar da contestação do réu subsidiário. O que se discute no acórdão é o contrário: é a vinculação do réu subsidiário contestante aos efeitos da revelia do réu principal.

d) Uma observação final. O sumariado no n.º I (que corresponde ao que é afirmado no acórdão) não é totalmente correcto. Quando há (apenas) um litisconsórcio subsidiário, não há nenhuma subsidiariedade objectiva, dado que é formulado um único pedido contra o réu principal e contra o réu subsidiário.

Uma subsidiariedade objectiva (além da subjectiva) só existe na coligação subsidiária. Por exemplo: A formula o pedido x contra o réu B e, subsidiariamente (nas condições do art. 39.º CPC), o pedido y contra o réu C.

MTS


28/06/2018

Paper (361)



-- Cuena Boy, F., Presunciones (DCH) (SSRN 06.2018)

 

Bibliografia (690)


-- Passanante, L., Il precedente impossibile / Contributo allo studio del diritto giurisprudenziale nel processo civile (Giappichelli Editore: Torino 2018)

-- Ubertis, G., Profiles of judicial epistemology (Giappichelli Editore: Torino 2018)



Jurisprudência 2018 (47)


Justo impedimento


1. O sumário de RP 5/3/2018 (4021/16.3T8AVR-A.P1) é o seguinte:

I - A aferição dos pressupostos do “justo impedimento” envolve um ‘juízo de censura’ em cuja avaliação não se pode prescindir do critério enunciado no n.º 2 do artigo 487.º do CC, de acordo com o qual a culpa é o não cumprimento de um dever jurídico: o dever de diligência, de conteúdo indeterminado, mas determinável em cada situação concreta, sendo a diligência juridicamente devida a que teria um bom pai de família colocado nas circunstâncias concretas em que se encontrava o agente.
 
II - A denominada ‘culpa profissional’ não tem autonomia no critério legal enunciado no ponto anterior, exigindo-se ao bom pai de família profissional uma perícia, conhecimentos e qualificações que lhe são exigíveis, ainda que não sejam espectáveis num leigo.
 
III - Tendo sido entregue por contacto pessoal do solicitador de execução, ao sócio gerente das empresas demandadas, uma nota de citação que este recebeu e assinou, da qual constava a identificação do processo, o nome do demandante e a expressa referência ao prazo de contestação e às cominações legais, a alegada confusão (com outro processo com diverso número e diverso autor) não constitui “justo impedimento” suscetível de justificar a entrega tardia ao mandatário e a consequente apresentação da contestação vários meses após o termo do prazo.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 
 
"Com os mesmos fundamentos que suportam a alegação de nulidade da citação, invocam as recorrentes o “justo impedimento”, alegando, nomeadamente:

«O. Sucede que o Sr. E… não compreendeu, nem teve consciência de que estava a ser citado relativamente a novas acções, e não a receber uma comunicação relativa ao processo pendente, convicção favorecida pelo facto de as referidas citações serem efectuadas simultaneamente, relativamente ao mesmo assunto;

P. Acresce ainda que, tratando-se de documentos relativos ao processo em curso, convenceu-se de que os mesmos não deixariam de ser enviados pelo Tribunal também aos advogados que o representam na referida acção, e que estes lhes dariam o seguimento que ao caso coubesse, pelo que a ninguém não deu conhecimento;

Q. Acresce que, ao contrário do processo n.º 1701/16.7T8AGD, na qual as RR., na pessoa do seu gerente, o Sr. E…, foram citadas através de carta regista com aviso de recepção, ou seja, através de uma carta vinda directamente do Tribunal e com o timbre deste».

Temos a maior dificuldade em compreender a insistência das recorrentes na alegada “confusão” de processos, considerando, como já se afirmou e reiterou: que os números dos processos são diferentes – este tem o n.º 4021/16.3T8AVR, bem visível na nota de citação assinada pelo sócio gerente das recorrentes, tendo o outro o n.º 1701/16.7T8AGD; que o autor não é o mesmo; e que uma citação nunca poderia ser efetuada por duas vezes no mesmo processo.

No que respeita ao facto de a anterior citação ter sido efetuada por carta regista com aviso de receção, pensamos que se trata de um forte argumento contra a pretensão das recorrentes, na medida em que a formalidade solene do contacto pessoal levaria qualquer pessoa medianamente instruída a não confundir esta citação com a anterior efetuada por via postal.

Vejamos os pressupostos da figura invocada.

Dispõe o n.º 1 do artigo 140.º do CPC: «Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato»

Nos termos do n.º 2 do citado normativo, a parte que alegar o justo impedimento oferecerá logo a respetiva prova, e o juiz, ouvida a parte contrária, admitirá o requerente a praticar o ato fora do prazo, se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.

Como se refere no relatório do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com esta nova redação introduzida pela reforma de 1995, o legislador visou flexibilizar a definição conceitual do “justo impedimento” possibilitando à jurisprudência uma “elaboração, densificação e concretização centradas essencialmente na ideia da culpa”, exigindo-se às partes que procedam com a diligência normal e não sendo de exigir que entrem em linha de conta com factos e circunstâncias excecionais.

Em comentário à norma em apreço, escreve Lopes do Rego[13], que o legislador passou a colocar no cerne da figura, a existência de um nexo de imputação subjetiva à parte ou ao seu representante, do facto que causa a ultrapassagem do prazo perentório, o que deverá ser apreciado segundo o critério definido no art.º 487º, n.º 2, do Código Civil, “sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas”.

Concretizando, a aferição dos pressupostos do “justo impedimento” envolve um ‘juízo de censura’ em cuja avaliação não podemos prescindir do critério enunciado no n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil, de acordo com o qual a culpa é o não cumprimento de um dever jurídico: o dever de diligência, de conteúdo indeterminado, mas determinável em cada situação concreta: «a diligência juridicamente devida é a que teria um bom pai de família colocado nas circunstâncias concretas em que se encontrava o agente. (…) a chamada ‘culpa profissional’ não tem, pois, de ter autonomia, quando se utiliza este critério: é evidente que se exige ao bom pai de família profissional uma perícia, conhecimentos, qualificações que não são esperáveis de um leigo» [Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, Volume I, Almedina, 2017, pág. 633].

No caso sub judice, o acrescido dever de diligência que impendia sobre o sócio gerente das recorrentes decorre da sua qualificação profissional, sendo manifesta a sua negligência.

Pensamos, salvo o devido respeito, que se justifica o rigor e a exigência da jurisprudência e doutrina citadas, em nome dos princípios da auto-responsabilidade [...] e da igualdade das partes, traduzido no facto de se encontrarem ambas vinculadas ao cumprimento dos ditames legais, e da segurança jurídica que o processo garante – de contrário, o processo deixaria de desempenhar a sua primordial função de “inimigo jurado do arbítrio” [...], deixando-se de atribuir a devida importância a interesses que também relevam na realidade jurídica e judiciária, designadamente os atinentes à segurança e certeza jurídicas.

Como decidiu o Supremo tribunal de Justiça em recente acórdão [Acórdão de 15.01.2014, Proc. 1009/06.6TTLRA.C1.S1 [...]], a afirmação da existência do «justo impedimento» exige a demonstração, para além da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do ato, da inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário, na ultrapassagem do prazo perentório, a qual deverá ser valorada nos termos do disposto no art.487.º, n.º 2, do CC, e sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das ações.

Em suma, revela-se claramente insuficiente para concluir pela verificação do «justo impedimento» previsto no artigo 140.º do CPC, a argumentação das recorrentes, face à entrega ao seu representante da nota de citação, com a correta identificação do processo e do autor, e com a expressa referência às cominação legais, bem como com a documentação anexa à petição.

Reiterando sempre o respeito devido pela divergência (nunca será de mais fazê-lo), entendemos que é, por demais, evidente, a incúria de um sócio gerente, que recebe pessoalmente das mãos dum profissional habilitado para o efeito, uma nota de citação para uma ação, com todas as indicações necessárias para contestar e com a indicação expressa das cominações legais decorrentes da omissão, e que deixa passar todos os prazos, sem falar com os seus mandatários, vindo depois refugiar-se numa insustentável argumentação de desresponsabilização, como se nas suas funções de gerente societário não estivesse vinculado a quaisquer deveres de zelo e de diligência.

Improcede claramente a pretensão recursória das recorrentes que, em consequência, deverá naufragar, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida, que não merece censura."
 
MTS
 

27/06/2018

Apoio à investigação (17)


Epistemologia judicial

A obra de Susan Haack "Scientism and its Discontents" (2017) encontra-se disponível, em regime de open access, aqui.


Bibliografia (689)

Paper (360)

 
-- Law, Stephanie, At the Crossroads of Consumer Law, Data Protection and Private International Law: A Comment on VKI v Amazon (SSRN 07.2018)
 

Jurisprudência 2018 (46)


Recurso; 
alegações; conclusões

1. O sumário de RP 8/3/2018 (1822/16.6T8AGD-A.P1) é o seguinte:

I - A reprodução integral e ipsis verbis do alegado no corpo das alegações, mesmo que seguida da menção de “conclusões” não traduz a formulação de conclusões nos termos exigidos pelo n.º 1 do artigo 637.º do Código de Processo Civil.

II - Havendo esse procedimento de ser equiparado a ausência de conclusões, deverá ser logo rejeitado o recurso, sem lugar a prévio despacho de aperfeiçoamento, nos termos do artigo 641.º, n.º1, al. b) do CPC.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"As conclusões destinam-se a sintetizar os argumentos do recurso, a identificar as questões a apreciar e as razões que servem de suporte à decisão pretendida. Delimitando as conclusões o objecto do recurso, é através delas que a parte contrária é alertada para as questões suscitadas pelo recorrente – assegurando-lhe, desta forma, a possibilidade de um efectivo exercício do contraditório – e o tribunal de recurso fica plenamente elucidado quanto às mesmas questões e os argumentos utilizados para fundamentar a decisão recursivamente reclamada, procurando-se assim evitar que alguns escapem na exposição das alegações, necessariamente mais extensa, mais pormenorizada, mais dialéctica, mais rica em aspectos instrumentais, secundários, puramente acessórios ou complementares.

Como destaca o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.2015 [Processo 818/07.3TBAMD.L1.S1 [...]], “A lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos da revogação, modificação ou anulação da decisão.

Rigorosamente, as conclusões devem corresponder aos fundamentos que justificam a alteração ou a anulação da decisão recorrida, traduzidos na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto), sem que jamais se possam confundir com os argumentos de ordem jurisprudencial ou doutrinário apresentados no sector da motivação. As conclusões exercem a importante função de delimitação do objecto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do art. 635º, nº 3, devendo corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do Tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo. Incluindo, na parte final, aquilo que o recorrente efectivamente pretende obter (revogação, anulação ou modificação da decisão recorrida), as conclusões das alegações devem respeitar na sua essência cada uma das als. do nº 2, integrando-se as respostas a tais premissas essenciais no encadeamento lógico da decisão pretendida”.

O papel relevante das conclusões foi indiscutivelmente reconhecido pelo legislador que no artigo 637.º, n.º 2 do Código de Processo Civil determina que o “requerimento do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade [...]”, equiparando, em termos de efeitos jurídicos, a falta de alegação do recorrente e a ausência de conclusões nessa alegação, sancionando com o indeferimento do recurso qualquer uma dessas situações – artigo 641.º, n.º 2, b) do referido diploma legal. E ainda que as conclusões se mostrem formuladas, quando estas se revelem deficientes, obscuras ou complexas, ou não contenham as especificações exigidas pelo n.º 2 do artigo 639.º, impõe o n.º 3 deste último normativo a adopção de alguma das soluções paliativas aí contempladas, mediante convite do relator ao recorrente para que supra as patologias que afectam as conclusões, no prazo de cinco dias, sob pena de não conhecer do recurso na parte afectada.

Com a reforma introduzida em 2007 ao Código de Processo Civil, findou a possibilidade da falta de conclusões poder ser suprida mediante convite dirigido ao recorrente para proceder à sua formulação. O convite ao aperfeiçoamento só é consentido para as hipóteses hoje expressamente previstas no artigo 639.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, exigindo-se que, pelo menos, exista arremedo de conclusões, por muito incipiente que haja sido a sua formulação. [...]

Retornando à situação concreta que se vem analisando, ter-se-á de concluir que o recorrente, limitando-se a repetir, praticamente de forma integral, o texto do corpo das alegações, depois de lhe introduzir uma numeração diferente, e aditando a expressão “conclusões”, na verdade não formulou conclusões, pelo menos do ponto de vista substancial.

Secundando o que se deixou escrito no acórdão da Relação de Guimarães de 29.06.2017 [Processo n.º 413/15.3T8VRL.G1 [...]], “não pode ficcionar-se que o copy past do corpo das alegações para um capítulo sugestivamente intitulado conclusões representa uma tentativa frustrada de cumprir o ónus de síntese, merecedora de convite a correcção e aperfeiçoamento, mediante um exercício de aparente interpretação generosa da lei preconizado como hábil e tolerante, inspirado em razões de oportunidade não contempladas na respectiva letra e contrárias ao pensamento legislativo, com apelo a um poder de criar normas que, por princípio, não cabe aos tribunais (cfr. ponto IV do sumário do Ac. STJ, de 13-11-2014, processo 415/12.1TBVV-A.E1.S1).

Tal método conduz ao nada. E o nada não é perfeito nem imperfeito. É nada. Por isso, não corrigível.

Contornar esta evidência, é atentar contra o claro desígnio do legislador, normativamente plasmado no regime de recursos e, entre outros, nos artigos 637º a 639º e 641º do CPC, de regular, com disciplina e rigor, o exercício do inerente direito, impondo consequências preclusivas fatais compreensivelmente justificadas pelo acesso ao tribunal superior e com patrocínio obrigatório presumivelmente apto e responsável pelo seu cumprimento”. [...]

Considerando, no caso aqui em debate, que as alegações apresentadas pelo recorrente B… não contêm conclusões, na concepção exigida pelo n.º 1 do artigo 639.º do Código de Processo Civil, tal constitui fundamento para a rejeição do recurso por si interposto, ao abrigo do disposto no artigo 641.º, n.º 2, b) do mesmo diploma legal.

3. O acórdão contém o seguinte voto de vencida:

"Voto contra decisão de rejeitar o recurso por falta de apresentação de conclusões, não obstante as mesmas, no caso, apenas formalmente o sejam, não representando mais do que uma réplica da motivação apresentada.
 
Faço-o por coerência com a posição contrária que tenho vindo a seguir nos processos em que sou relatora, no seguimento também de entendimento defendido por parte da jurisprudência, do que apenas é exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/09/2015 proferido no proc. 818/07.3TBAMD.L1.S1 in. www.dgsi.pt

Considero que, pelo menos em termos formais, o Recorrente apresentou conclusões, não obstante as mesmas não observem os requisitos previstos no art.º 639.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C. entendendo ser excessiva a rejeição do recurso sem que, pelo menos, se convide o Recorrente a proceder ao seu aperfeiçoamento, designadamente a sintetizá-las, em concordância como o disposto no n.º 3 do mesmo artigo.

Não obstante a divergência que se conhece da jurisprudência sobre esta questão, esta é a posição com a qual nos identificamos e consideramos também mais em consonância quer com o princípio da cooperação expresso no art.º 7.º n.º 1 do C.P.C., quer com a justa composição do litígio que se pretende alcançar com prevalência do mérito e da substância em detrimento da mera formalidade processual."

4. [Comentário] Independentemente da censura que possa merecer o temerário comportamento do mandatário do recorrente (que devia saber que podia estar a colocar em risco os interesses dessa parte), adere-se, sem dificuldade, à tese defendida no voto de vencida e à jurisprudência do STJ nele citada.

MTS

26/06/2018

Apoio à investigação (16)


Intuição, probabilidade
e avaliação da prova


O texto de Tversky e Kahneman "Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases" (Science 185 (1974), 1124) é um clássico sobre os vieses cognitivos, especialmente os relacionados com a formulação de juízos probabilísticos. 

Sobre o ponto de vista jurídico, o texto é especialmente interessante para os que se ocupam da avaliação da prova, tanto numa perspectiva teórica, como numa perspectiva prática (ou seja, como julgador).

MTS


Jurisprudência 2018 (45)


Prova testemunhal;
advogado; impedimento

1. O sumário de RL 15/2/2018 (8465/06.0TBMTS-C.L1-6) é o seguinte: 

I.– O caso julgado formal consubstancia-se na mera irrevogabilidade do acto, ou decisão judicial, que serve de base a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento e apenas se forma no que se reporta às questões concretamente apreciadas pelo despacho recorrido.

II.– O Advogado constituído no processo está impedido de nele depor como testemunha, mesmo depois de substabelecer sem reserva ou de renunciar ao mandato.

III.– Este impedimento, não consagrado expressamente na lei, está implícito e decorre dos normativos aplicáveis à prestação de prova testemunhal e aos normativos que regem a relação cliente/advogado (definidos nos artºs 97 e segs. do E.O.A.), incompatíveis entre si e que obstam a que o advogado de uma das partes assuma ao mesmo tempo o papel de testemunha, dessa ou da parte contrária.

IV.– Este regime de impedimentos deveria obstar à constituição como advogado no processo, de quem, em representação do exequente, outorgou procuração nos autos a favor de outro advogado, foi o autor das assinaturas apostas no cheque em representação do exequente e do endossante e interveio na relação causal invocada nos autos.

V.– Sendo invocado, como fundamento de oposição numa execução para pagamento de quantia titulada por cheque, a irregularidade do endosso e factos integradores do disposto no artº 22 da Lei Uniforme Relativa aos Cheques, deve ser admitido a intervir como testemunha, o seu alegado autor, que à data não era sequer advogado.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"b)- admissibilidade de depoimento, como testemunha, de advogado constituído nos autos pela parte contrária;

A este respeito, insurge-se a recorrente contra a posição defendida no despacho sob recurso, alegando que o simples facto de uma testemunha ser advogado e de ter sido constituído advogado num processo, não constitui impedimento para que o mesmo seja nele ouvido como testemunha, alegando ainda que o indicado como testemunha, não era advogado à data da prática dos factos, só se tendo inscrito na O.A. em 2010, como advogado estagiário e em 2013, como advogado.

Considera, por último, que o despacho recorrido viola o disposto no art.417º do Código do Processo Civil, o art. 92º do Estatuto da Ordem dos Advogado e o art.411º do Código do Processo Civil.

Diga-se desde já que, embora não exista norma expressa que consagre expressamente, como impedimento a este depoimento (v. g. artºs 495 e 496 do C.P.C. e artºs 82 e 83 do E.O.A.), o facto de o indicado ser, ou ter sido, advogado de uma das partes, a inadmissibilidade deste depoimento tem sido defendida de forma unânime, quer pela própria Ordem dos Advogados, quando solicitada a tal (veja-se Pareceres emitidos quer pelo Conselho Distrital da O.A. do Porto, Pareceres Nº 35/PP/2015-P, quer do Conselho Geral nº E-950, disponíveis para consulta no respectivo site), quer pela doutrina, quer pela jurisprudência.

Assim, conforme referido na decisão recorrida, pelo Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados A...L...C..., em obra intitulada “Do Segredo Profissional na Advocacia”, editada pelo Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, páginas 82 e 83, (1998), a este respeito foi defendido o seguinte:

“Deverá deixar-se bem claro que é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja constituído. É que, embora não haja disposição expressa que o proíba, afigura-se-nos que isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o Advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia.

Quer isso, pois, dizer que ao Advogado incumbe ponderar e prever, antes de propor a acção, as principais condicionantes do seu decurso. Se o seu depoimento veio a tornar-se necessário, muito mal estruturou o seu trabalho e não pode já emendar a mão. A absoluta necessidade não pode resultar, nesse caso, do modo como foi proposta a acção e antes deve ser aferida objectivamente. Isso também se aplica a outro tipo de situações que na essência não diferem da que analisámos. Referimo-nos a que não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trata de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que em antes ocupara. Igual solução merece o caso de a pretensão de depor incidir apenas em apenso da acção principal, ainda que iniciado só depois do substabelecimento (em providência cautelar, embargos, incidente da instância, etc.).”

A propósito desta mesma situação, já na vigência do EOA aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro, defendeu Orlando Guedes da Costa, no seu “Direito Profissional do Advogado”, Almedina, 3ª edição, 2005, a p. 342: “Cumpre salientar que nunca pode ser autorizado o depoimento de Advogado em processo principal ou em processo apenso, em que esteja ou tenha sido constituído mandatário judicial, mesmo depois de substabelecer sem reserva ou de renunciar ao mandato, pois quem é ou foi participante na administração da Justiça, como decorre do art. 6.º - nº 1 da LOFTJ, em determinado processo, não pode nele ser testemunha, como igualmente não pode o advogado aceitar mandato em processo em que já tenha intervindo em outra qualidade, como impõe o art. 94.º - nº 1 do EOA.”

Na doutrina, refere ainda Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova Testemunhal, Almedina, 2013, págs. 259, que “O que está arredada é a hipótese de o advogado prestar depoimento em processo no qual esteja ainda constituído como advogado.”, parecendo defender a admissibilidade deste depoimento, quando já o não esteja.

Na jurisprudência, tem sido defendida de forma unânime a inadmissibilidade deste depoimento, nomeadamente nos Acs. da Relação do Porto de 07 de fevereiro de 2007, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXII, Tomo I, páginas 205 a 209; da Relação do Porto, de 07 de outubro de 2009, proferido no processo nº 874/08.7TAVCD-A.P1; da Relação do Porto de 30/01/2017 relator Carlos Gil, Proc. nº 881/13.8TYVNG-A.P1; da Relação de Lisboa, de 07 de março de 2013, proferido no processo nº 2042/09.1IDLSB-A.L1-9, disponível para consulta in www.dgsi.pt. (embora proferidos no âmbito penal).

Posto isto, este impedimento, não consagrado expressamente na lei, está implícito e decorre dos normativos aplicáveis à prestação de prova testemunhal e aos normativos que regem a relação cliente/advogado (definidos nos artºs 97 e segs. do referido E.O.A.), incompatíveis entre si e que obstam a que o advogado de uma das partes assuma ao mesmo tempo o papel de testemunha, dessa ou da parte contrária.

Diga-se ainda que a descoberta da verdade material, por si só, não se assume como princípio absoluto reconhecendo o legislador que poderá ceder face a valores em confronto como sucede no caso das testemunhas indicadas nas diversas alíneas do nº1 do artigo 497º do CPC, que podem legitimamente recusar-se a depor.

Questão diversa é se o mesmo impedimento se aplica aos casos em que o advogado deixou de o ser à data em que este depoimento haveria de ser prestado, por entretanto ter substabelecido os poderes que lhe foram conferidos, ou ter renunciado ao mandato.

Entendemos, conforme o defende igualmente a O.A., nos pareceres acima citados e o defendeu o seu Bastonário, que independentemente de o advogado substabelecer os poderes que lhe foram cometidos ou renunciar ao mandato, continuam válidas as razões que impedem este depoimento, sob pena de ser facilmente contornável este impedimento - bastaria o advogado que pretendesse prestar depoimento, substabelecer os seus poderes, no momento em que houvesse de os prestar.

Por outro lado, dispõe o artigo 83º nº 1 do E.O.A., a propósito dos impedimentos dos advogados que estes “diminuem a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão.”

Neste caso, sendo inconciliáveis estas posições de advogado/testemunha, é o exercício da advocacia que deve ceder, incumbindo ao advogado ajuizar, previamente, se deve aceitar o patrocínio de determinada causa.

No entanto, sendo inadmissível a cumulação de posições processuais, advogado e testemunha, não contornável a nosso ver com o substabelecimento de poderes do advogado com vista a este depoimento, situação diversa ocorre nestes autos e que justifica uma outra abordagem.

À data da prática destes factos, não era o indicado como testemunha advogado, nem o era à data da interposição da execução, sendo pelo contrário outorgante da procuração junta aos autos, na qualidade de legal representante do exequente.

É igualmente o alegado autor das assinaturas apostas no cheque, sobre as quais incidiu prova pericial e igualmente autor, por si e na qualidade de representante do exequente e do endossante, dos factos invocados pelo oponente, como integradores do artº 22 da Lei Uniforme Relativa aos Cheques.

Todos estes factos que a sentença considerou não provados, por o oponente não ter logrado efectuar esta prova, são imputados ao indicado como testemunha AA, à data administrador da exequente e, alegadamente, procurador da endossante.

Tais factos deveriam ter obstado à sua constituição no processo como advogado da parte, da qual fora administrador e outorgante da procuração junta aos autos a favor de outro advogado, por se integrar nos impedimentos previstos no artº 83 do respectivo Estatuto e não podem impedir o seu depoimento, sob pena de, facilmente se coarctar o direito à prova por parte do oponente, inviabilizado pelo facto de o imputado autor destes factos, ter-se constituído advogado nos autos.

Por outro lado, não faria qualquer sentido que, sendo admitida a prova pericial a incidir sobre a autoria das assinaturas imputadas ao referido advogado e realizada esta, não fosse este admitido a intervir como testemunha, quer para confirmar, quer para infirmar, quer a imputada autoria, quer as circunstâncias em que tal endosso surgiu.

Trata-se pois de uma circunstância excepcional que, devendo ter obstado à constituição do Sr. Advogado nos autos, não pode, todavia, obstar ao seu depoimento."


[MTS]



25/06/2018

Legislação (122)



-- DL 50/2018, de 25/6: Altera o Decreto-Lei n.º 131/2009, de 1 de junho, alargando o âmbito de aplicação do direito dos advogados ao adiamento de atos processuais

-- DL 51/2018, de 25/6: Altera o Código do Registo Civil

-- DL 52/2018, de 25/6: Altera o Registo Nacional de Pessoas Coletivas e cria a certidão online das Pessoas Coletivas



Jurisprudência europeia (TJ) (169)


Reg. 44/2001 – Competência em matéria de contratos individuais de trabalho – Entidade patronal demandada nos tribunais do Estado‑Membro em cujo território tem domicílio – Pedido reconvencional da entidade patronal – Determinação do tribunal competente


TJ 21/6/2018 (C‑1/17, Petronas Lubricants Italy/Guida) decidiu o seguinte: 

O artigo 20.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a do processo principal, confere à entidade patronal o direito de deduzir, no tribunal onde o trabalhador intente regularmente a ação principal, um pedido reconvencional baseado num contrato de cessão de créditos celebrado entre a entidade patronal e o titular inicial do crédito em data posterior à propositura da ação principal. 



Jurisprudência europeia (TJ) (168)

 
Reg. 650/2012 – Competência geral de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro para decidir do conjunto de uma sucessão – Regulamentação nacional que rege a competência internacional em matéria de emissão de certificados sucessórios nacionais – Certificado Sucessório Europeu
 

TJ 21/6/2018 (C‑20/17, Oberle) decidiu o seguinte:

O artigo 4.° do Regulamento (UE) n.° 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro como a que está em causa no processo principal, que prevê que, embora o falecido não tivesse, no momento da sua morte, residência habitual nesse Estado‑Membro, os órgãos jurisdicionais deste último continuam a ser competentes para a emissão dos certificados sucessórios nacionais, no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça, quando há bens sucessórios no território do referido Estado‑Membro ou quando o falecido tivesse a nacionalidade do mesmo Estado‑Membro.
 
 

Jurisprudência 2018 (44)


Execução; injunção;
indeferimento


1. O sumário de RL 15/2/2018 (2825/17.9T8LSB.L1-6) é o seguinte:

I– Se o juiz pode rejeitar a execução apesar de ter admitido liminarmente a execução, não faz sentido que o não possa fazer quando não houve sequer despacho liminar.

II– Não pode ser equiparada a uma decisão judicial a aposição da fórmula executória por um secretário de justiça; por isso a rejeição por despacho judicial da execução baseada em injunção não constitui violação de caso julgado.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

A)– Na decisão recorrida exarou-se, além do mais:
 
«A injunção, conforme decorre do art. 7º do Regime Anexo ao Dec-Lei nº 269/98, de 01-09 (na redacção introduzida pelo art. 8º do Dec-Lei nº 32/2003), é “a providência que tem por fim conferir força executiva ao requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas no Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro.”

O art.º 1.º do referido diploma preambular reporta-se ao “cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00”, sendo que quer a doutrina quer a jurisprudência vêm pondo em evidência que este regime processual só é aplicável às obrigações pecuniárias directamente emergentes de contratos. (…)

Ora, do requerimento de injunção extrai-se de forma concludente que o crédito que o requerente da injunção, aqui exequente, invoca resulta de um alegado incumprimento contratual por banda da Executada, com quem o Exequente contratou aparentemente serviços jurídicos, pretendendo a condenação da ali Requerida na devolução das quantias que lhe entregou.

Estamos, assim, remetidos para o âmbito da responsabilidade civil contratual, através da qual o requerente da injunção pretende obter a condenação da ali requerida na devolução do que pagou, em resultado de um invocado incumprimento/resolução contratual, e não perante a exigência de pagamento de obrigação pecuniária decorrente de cumprimento de contrato.

E o certo é que “no procedimento de injunção … não pode ser exigida a restituição do pago indevidamente ou do valor da caução prestada, nem pedido o pagamento … do valor prestado a título de garantia ou de honorários de advogado ou solicitador na resolução de algum litígio” (op. cit., p. 48).

Em suma, resulta do exposto que no caso vertente não está em causa a cobrança de uma dívida emergente do cumprimento de um contrato.

Deste modo, pode desde já afirmar-se que ocorrem, de forma evidente, no procedimento de injunção excepções dilatórias de conhecimento oficioso - no caso, a excepção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção, cuja consequência seria a absolvição da requerida da instância no procedimento de injunção (alínea e) do n.º 1 do artigo 278º, n.º 1 e 2 do artigo 576º e artigo 578º, ambos do Novo Código de Processo Civil.).

Conclui-se, então, que o documento invocado e junto aos autos de execução não se mostra apto como título executivo, já que não lhe poderia ter sido aposta força executória. (…)».

A discordância do apelante resume-se ao entendimento de que tendo sido aposta a fórmula executória, já não pode ser decidido que inexiste título executivo.

Mas não tem razão.

O art. 7º do Regime anexo ao DL 269/98 de 01/09 estabelece: 
 
«Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1º do diploma preambular ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei nº 32/2003 de 17 de Fevereiro.».

E o art. 14º prevê:
 
«(…) 3.– O secretário só pode recusar a oposição da fórmula executória quando o pedido não se ajuste ao montante ou finalidade do procedimento.
 
4.– Do acto de recusa cabe reclamação nos termos previstos no nº 2 do artigo 11º. (…)».

Portanto, face ao preceituado no art. 703º nº 1 al. d) do CPC o requerimento de injunção onde tenha sido aposta fórmula executória pode constituir título executivo.

A presente execução seguiu a forma de processo sumário como prevê o art. 550º nº 1 al. b) do CPC, não havendo lugar a despacho liminar (cfr art. 855º do CPC). Mas aplicam-se subsidiariamente as disposições do processo ordinário (cfr art. 551º nº 4 do CPC).

Decorre do art. 734º nº 1 do CPC - inserido nas disposições reguladoras das execuções ordinárias - que «O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.».

Portanto, se o juiz pode rejeitar a execução apesar de ter admitido liminarmente a execução no despacho previsto no art. 726º, não faz sentido que o não possa fazer quando não houve sequer despacho liminar.

Não pode ser equiparada a decisão judicial a aposição da fórmula executória por um secretário de justiça.

Por isso a rejeição por despacho judicial da execução baseada em injunção não constitui violação de caso julgado.

Concluindo, o exequente, para mais advogado em causa própria, tem obrigação de saber - pois «A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas» (art. 6º do Código Civil) - que não reunindo o documento de injunção os requisitos para constitui título executivo, poderá o juiz rejeitar a execução."
 
[MTS]