"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/02/2020

Jurisprudência 2019 (185)


 Contrato de transporte aéreo;
 competência internacional; CLug II


1. O sumário de STJ 3/10/2019 (262/18.7T8LSB-A.L1-A.S1) é o seguinte:

I. Ainda que esteja em causa acórdão da Relação que apreciou decisão interlocutória que recai unicamente sobre a relação processual, o recurso é admissível ao abrigo do art. 671º, nº 2, alínea a), do CPC; com efeito, tendo como fundamento a violação das regras de competência internacional, trata-se de uma das situações em que o recurso é sempre admissível, independentemente do valor da acção (cfr. art. 629º, nº 2, alínea a), do CPC), sendo afastado o obstáculo da dupla conforme (cfr. ressalva inicial do nº 3 do art. 671º do CPC).

II. Na resolução da questão da competência internacional, considera-se que o percurso metodológico adequado para o efeito implica: (i) determinar o instrumento normativo pertinente; (ii) identificar a norma ou normas aplicáveis; (iii) interpretar a norma ou normas identificadas.

III. Tal como entendeu o acórdão recorrido, tendo em conta a data de propositura da presente acção (04/01/2018), deve ponderar-se a aplicabilidade das regras do Regulamento nº 1215/2012, de 12/12 (Regulamento Bruxelas IBis) ou das regras da Convenção assinada em Lugano a 30/10/2007, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II).

IV. Por interpretação
a contrario do art. 6º, nº 1, do Regulamento nº 1215/2012, entende-se comummente que o critério geral para definir o âmbito espacial de aplicação daquele regime de direito europeu é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da UE. No caso dos autos, verifica-se ter a ré sede na Suíça, pelo que – de acordo com o disposto no art. 63º, nº 1, alínea a), do Regulamento nº 1215/2012 – não se encontra domiciliada no território de um Estado-Membro da UE; deste modo, por falta de inserção no respectivo âmbito espacial de aplicação, é de concluir pelo afastamento do regime do Regulamento nº 1215/2012.

V. No que respeita ao âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II, convenção que tem como objectivo primacial estender às partes contratantes os princípios do Regulamento nº 44/2001 (antecessor do Regulamento nº 1215/2012), nela se adopta (art. 4º, nº 1) uma regra equivalente à do art. 6º, nº 1 do Regulamento nº 1215/2012. Deste modo, sendo o âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II definido em razão de o demandado ter domicílio no território de uma das partes contratantes e encontrando-se a ré domiciliada no território da Suíça, Estado que é parte contratante da Convenção de Lugano II, confirma-se a inserção da presente lide no respectivo âmbito espacial de aplicação.

VI. No presente recurso suscitam-se dúvidas sobre a inserção do caso
sub judice no âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II, pretendendo a recorrente que, ao abrigo da previsão do nº 1 do artigo 67º da mesma Convenção, seja antes aplicável a Convenção de Montreal – Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional que contém regras próprias de competência internacional (art. 33º), que conduzem a um resultado distinto do que resulta da aplicação das normas da Convenção de Lugano II.

VII. Ora, na actividade de interpretação e aplicação das normas da Convenção de Lugano II, encontra-se este Supremo Tribunal vinculado, ao abrigo do nº 2 do art. 1º do Protocolo nº 2 à mesma Convenção, a respeitar a interpretação das normas equivalentes do Regulamento nº 44/2001, tal como realizada pelo TJUE.

VIII. No Acórdão de 09/07/2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), relativo a um caso idêntico ao caso dos autos, em que estava em causa uma acção para, numa situação de “cancelamento” de voo, exercer o direito de indemnização previsto no artigo 7º do Regulamento nº 261/2004, o TJUE resolveu a questão preliminar da delimitação entre o âmbito material de aplicação do Regulamento nº 44/2001 e o da Convenção de Montreal, no sentido do afastamento desta última.

IX. Assim, ainda que não se ignorem as objecções críticas feitas a esta orientação jurisprudencial do TJUE, sobretudo em razão do princípio da exclusividade ínsito no art. 29º da Convenção de Montreal, considera-se que a norma do nº 1 do art. 67º da Convenção de Lugano II que ressalva as convenções especiais, sendo substancialmente idêntica à norma do nº 1 do artigo 71º do Regulamento nº 44/2001, deve ser interpretada de acordo com a orientação do acórdão do TJUE referido em VIII; em consonância, tendo o pedido do autor sido apresentado com base apenas no Regulamento n° 261/2004, deve ser examinado à luz da Convenção de Lugano II.

X. Estando em causa uma acção de responsabilidade por incumprimento de contrato de transporte aéreo, da aplicação conjugada das normas do art. 5º, nº 1, da Convenção de Lugano II, resulta a necessidade de determinar qual é o “lugar de cumprimento da obrigação do transportador” (alínea a)), sendo que – uma vez que o contrato de transporte se integra na categoria mais ampla do contrato de prestação de serviços – esse lugar será “o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados” (alínea b), segundo travessão).

XI. Também quanto às dúvidas interpretativas das normas indicadas em X – e em razão da previsão do nº 2, do art. 1º, do Protoloco nº 2 à Convenção de Lugano II –, se encontra este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de um Estado-Membro da UE, vinculado a respeitar a interpretação que o TJUE fez de normas do Regulamento nº 44/2001, desde que substancialmente equivalentes a normas daquela Convenção.

XII. Tais dúvidas foram apreciadas e decididas pelo TJUE a respeito das normas equivalentes do Regulamento nº 44/2001, no referido Acórdão de 09/07/2009 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), em sentido que, nos termos do Protocolo nº 2 à Convenção, é aplicável à interpretação das normas da Convenção, a saber: o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado em contrato de transporte aéreo e no Regulamento n° 261/2004 é aquele, à escolha do demandante, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do voo, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato; sem prejuízo da possibilidade de o demandante se dirigir ao tribunal do lugar do domicílio do demandado, que, no caso de pessoas colectivas, e de acordo com o art. 60º, nº 1, da Convenção de Lugano II, é o lugar da sede social, ou da administração central ou do estabelecimento social.

XIII. Deste modo, no caso dos autos, para exercer o direito de indemnização previsto no art. 7º do Regulamento nº 261/2004, o autor podia optar por demandar a ré: (i) na jurisdição do lugar de partida do voo cancelado, a jurisdição portuguesa; (ii) ou na jurisdição do lugar do destino do mesmo voo, a jurisdição suíça, que, simultaneamente, é a jurisdição do lugar do domicilio da demandada.

XIV. Conclui-se, assim, pela competência dos tribunais portugueses para o conhecimento da presente acção.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6. Recorde-se que a decisão de 1ª instância considerou os tribunais portugueses competentes para o conhecimento da causa, por aplicação do regime do Código de Processo Civil (conjugando a norma do artigo 62º, alínea b), com a do artigo 81°, n° 2, parte final, e ainda com o previsto no artigo 71°, n° 1, 1ª parte), conclusão que, no entender da mesma decisão, seria compatível com a previsão do artigo 7°, n° 1, alínea b), do Regulamento n° 1215/2012, de 12 de Dezembro, que, nas palavras utilizadas, tem sido interpretado “no sentido de que o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado num contrato de transporte aéreo de pessoas é aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou de chegada do avião.”

A Relação manteve a decisão de reconhecimento da competência dos tribunais portugueses, mas com diferente fundamentação, que aqui se sintetiza:

- Afastou a aplicação do regime do Código de Processo Civil;

- Considerou que, não sendo a Suíça um Estado membro da União Europeia, a competência internacional para conhecer da presente acção se encontra regulada pela Convenção de Lugano II, cujas regras são alinhadas pelas regras do Regulamento nº 44/2001, de 16 de Janeiro (antecessor do Regulamento nº 1215/2012);

- Entendeu ser aplicável a norma do artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, da Convenção de Lugano II, norma que tem correspondência com a norma do artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento nº 44/2001 (assim com a do artigo 7º, nº 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento nº 1215/2012);

- De acordo com o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 9 de Julho de 2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder vs Air Batic Corporation), a referida norma do artigo 5º do Regulamento nº 44/2001 deve ser interpretada no sentido de o tribunal competente para apreciar uma acção indemnizatória por cancelamento de um voo internacional intracomunitário ser “aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do avião, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato”;

- Tal interpretação é válida para o caso dos autos, em conformidade com as regras relativas à interpretação uniforme da Convenção de Lugano II, consagradas no respectivo Protocolo nº 2. [...]

Insurge-se a Recorrente contra esta decisão [...].

7. Importa, assim, começar por determinar a fonte normativa ao abrigo da qual a questão da competência internacional para conhecer da presente lide deve ser equacionada.

De acordo com os princípios constitucionais relativos à integração, na ordem jurídica interna, quer das normas constantes de convenções internacionais ratificadas pelo Estado português quer das disposições emanadas das instituições da União Europeia (artigo 8º, nºs 1, 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa), entende-se que, existindo fonte normativa internacional ou supranacional reguladora da competência internacional, é de afastar a aplicação das regras dos artigos 62º e 63º do Código de Processo Civil, como aliás se encontra expressamente previsto no artigo 59º do mesmo Código.

7.1. Tal como entendeu o acórdão recorrido, tendo em conta a data de propositura da presente acção (04/01/2018), deve ponderar-se a aplicabilidade das regras do Regulamento nº 1215/2012, de 12 de Dezembro (Regulamento Bruxelas IBis) ou das regras da Convenção assinada em Lugano a 30 de Outubro de 2007, entre os Estados da União Europeia, a Suíça, a Noruega e a Islândia, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II).

Está em causa a inserção da presente acção no âmbito temporal de aplicação de cada um dos indicados instrumentos normativos.

Tendo a acção sido proposta na referida data, encontra-se abrangida tanto pelo âmbito temporal de aplicação do Regulamento nº 1215/2012 (o qual, nos termos do respectivo artigo 66º, nº 1, abrange as acções intentadas a partir de 10 de Janeiro de 2015) como pelo âmbito temporal de aplicação da Convenção de Lugano II (a qual, de acordo com as regras previstas nos respectivos artigos 63º, nº 1, e 69º, nºs 4 e 5, entrou em vigor entre a União Europeia e a Suíça em 1 de Janeiro de 2011, segundo informação publicada no JOUE L 138/1, de 26/05/2011).

Prosseguindo no iter de determinação da fonte normativa aplicável à resolução da questão do presente recurso, falta ainda verificar se o caso sub judice se insere no âmbito espacial de aplicação e no âmbito material de aplicação do Regulamento nº 1215/2012 ou da Convenção de Lugano II.

7.2. Quanto ao âmbito espacial de aplicação do Regulamento nº 1215/2012, dispõe o nº 1 do respectivo artigo 6º:

“Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro.”

Por interpretação a contrario desta norma (tal como anteriormente da norma do nº 1 do artigo 4º do Regulamento nº 44/2001), entende-se comummente que o critério geral para definir o âmbito espacial de aplicação daquele regime de direito europeu é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da União Europeia.

No caso dos autos, verifica-se ter a R. sede na Suíça, pelo que – de acordo com o disposto no artigo 63º, nº 1, alínea a), do Regulamento nº 1215/2012 – não se encontra domiciliada no território de um Estado-Membro da União Europeia.

Deste modo, por falta de inserção no respectivo âmbito espacial de aplicação, é de concluir pelo afastamento do regime do Regulamento nº 1215/2012.

No que respeita ao âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II, convenção que, como consta do Preâmbulo, tem como objectivo primacial estender às partes contratantes (União Europeia e certos Estados da EFTA) os princípios do Regulamento nº 44/2001 (antecessor do Regulamento nº 1215/2012), nela se adopta, no nº 1 do artigo 4º, uma regra equivalente à do supra transcrito artigo 6º, nº 1, do Regulamento nº 1215/2012, a saber:

“Se o requerido não tiver domicílio no território de um Estado vinculado pela presente convenção, a competência será regulada em cada Estado vinculado pela presente convenção pela lei desse Estado, sem prejuízo da aplicação do disposto nos artigos 22.º e 23.º”

Deste modo, o âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II é também definido em razão de o demandado ter domicílio no território de uma das partes contratantes.

Na medida em que, de acordo com o artigo 60º, nº 1, alínea a) da Convenção de Lugano II, uma pessoa colectiva tem domicílio na sua sede social, a R. encontra-se domiciliada no território da Suíça, Estado que é parte contratante da Convenção de Lugano II. Confirma-se assim a inserção da presente lide no respectivo âmbito espacial de aplicação."

[MTS]

27/02/2020

Jurisprudência constitucional (169)


Liquidação de participações sociais



Não julga inconstitucional o artigo 1068.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, interpretado no sentido de, antes de o juiz fixar o valor da participação social, ser facultado às partes pronunciarem-se sobre o relatório pericial e, quando necessário, requererem a realização de uma segunda perícia ou outras diligências, não lhes sendo, todavia, facultada a apresentação de alegações; não conhece do recurso quanto à interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 149.º e 199.º do Código de Processo Civil segundo a qual deve ter-se por sanada uma nulidade processual, arguida dentro do prazo legal de interposição de recurso ordinário e juntamente com este, no caso de nulidade processual que se revele apenas na sentença recorrida.


Jurisprudência 2019 (184)


Processo de inventário;
erro na forma do processo; revista excepcional*


1. O sumário de STJ 3/10/2019 (1517/13.2TJLSB.L1.S2) é o seguinte: 

I. No regime de comunhão de adquiridos, o imóvel que ambos os cônjuges adquiriram por compra, antes do casamento, está sujeito ao regime da compropriedade, sendo cada um titular de metade, como bem próprio.

II. O divórcio entre cônjuges pode despoletar a invocação do direito de compensação de algum dos cônjuges sobre o outro, nos termos dos arts. 1689º, nº 3, e 1697º, nº 1, do CC, sendo a responsabilidade garantida pela meação do outro cônjuge no património comum ou, não existindo este, pelos bens próprios.

III. Dissolvido o casamento, o inventário pós-divórcio requerido ainda ao abrigo do art. 1404º do CPC de 1961, destina-se a realizar a partilha dos bens comuns do casal, incluindo as dívidas que são comuns.

IV. Numa situação em que não existem bens comuns do casal, o processo de inventário não é adequado a que um dos cônjuges exija do outro um crédito correspondente ao pagamento de metade das prestações emergentes de um contrato de mútuo que ambos celebraram antes do casamento para aquisição do bem em regime de compropriedade.

V. O princípio da legalidade das formas processuais não permite que o processo de inventário instaurado na sequência de divórcio sirva para proceder à divisão de um imóvel relativamente ao qual cada cônjuge é titular exclusivo de uma quota-parte, tal como impede que seja apreciado o pedido de condenação do outro no pagamento de uma dívida própria.

VI. Perante a diversidade da natureza, dos objetivos e da tramitação quer do processo especial de inventário, quer do processo especial de divisão de coisa comum, o princípio da legalidade das formas processuais prevalece sobre os princípios da adequação formal ou da economia processual.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

1. Importa apreciar se no processo de inventário pós-divórcio cabe a divisão de um bem imóvel que por ambos os cônjuges foi adquirido antes do casamento em regime de compropriedade ou se o mesmo está circunscrito à partilha de bens que integram o acervo comum de ambos os cônjuges. 

Por outro lado, cabe apurar se, na falta de bens que integrem o acervo comum do casal, o processo de inventário pode servir para resolver o diferendo entre ambos os cônjuges acerca de um crédito que uma alega sobre o outro. 

2. A primeira questão obtém do ordenamento jurídico uma resposta clara: o processo de inventário destina-se a regular a partilha de bens comuns, incluindo o passivo, não servindo para fazer valer o direito de qualquer dos cônjuges que não encontre reflexo no acervo comum do casal.

Assim acontece com os direitos que são próprios de cada cônjuge, como os que incidem sobre bens que cada um levou para o casamento no regime de comunhão de adquiridos. E é nesta categoria que se inscrevem as quotas na compropriedade relativo a um bem imóvel de que cada um dos cônjuges era titular antes da realização do casamento, ainda que a aquisição desse imóvel tivesse sido perspetivada tendo em conta o futuro casamento.

Na realidade, no regime supletivo de comunhão de adquiridos, constituem bens próprios de cada cônjuge os que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento (art. 1722º, nº 1, al. a), do CC). Não existe qualquer dúvida a este respeito, tanto mais que a situação dos autos não se inscreve em qualquer das previsões especiais dos arts. 1723º e ss.

O facto de a aquisição do bem imóvel ter sido feita no regime de compropriedade antes da realização do casamento não transforma o imóvel num bem que integre o acervo comum de ambos os cônjuges, mantendo cada um deles a exclusiva titularidade sobre a sua quota-parte.

Nestas circunstâncias, não encontra fundamento a pretensão do recorrente no sentido de o processo de inventário prosseguir para um efeito diverso: o de fazer operar a divisão da coisa comum, ou seja, a divisão do imóvel relativamente ao qual cada um dos cônjuges é exclusivo titular de uma quota-parte correspondente a metade.

A compropriedade não se confunde com a contitularidade de direitos que, por exemplo, é visível na herança indivisa e que igualmente se manifesta quando estão em causa bens comuns do casal. Mais concretamente, o acervo comum do casal é integrado por bens que, sem distinção entre eles, pertencem em comum a ambos os cônjuges, não sendo essa a qualificação quando se constata que cada cônjuge é titular de um direito autónomo, ainda que tal direito se traduza para cada um deles na titularidade de uma quota direito de propriedade sobre uma fração autónoma.

Em suma, o processo de inventário destina-se a operar a divisão do acervo comum do casal e não a veicular outra pretensão material autónoma correspondente ao direito de obter a divisão de coisa comum, nos termos do art. 1412º e que deve ser tramitada através do processo especial de divisão de coisa comum regulado nos arts. 925º e ss. do CPC.

A atribuição de bens próprios de que cada cônjuge seja titular é um efeito que emerge diretamente da lei, nos termos do art. 1689º, nº 1, do CC, não carecendo da sua descrição em qualquer processo de inventário que, como se disse, visando a partilha de bens comuns, apenas admite que se relacionem bens comuns com vista à posterior partilha.

Num contexto algo diferenciado, isto mesmo já foi decidido por este mesmo coletivo, com relato do ora relator, no Ac. do STJ 6-4-17, 23567/15, no qual se concluiu, além do mais, que “pretendendo um dos ex-cônjuges o reconhecimento do direito de propriedade exclusivo sobre um imóvel e do direito de exclusividade sobre uma quantia depositada em instituição bancária é adequada a tais pretensões a ação declarativa com processo comum e não o processo de inventário …”. [...] 

4. Neste contexto, tal como também já se decidiu num caso semelhante no Ac. do STJ de 27-3-08, 08B648, em www.dgsi.pt, não vemos como possa operar-se no processo de inventário a divisão de coisa comum, tal como não é adequado a integrar uma pretensão puramente creditícia de um dos cônjuges sobre o outro.

Quanto à divisão de coisa comum, a tramitação que envolve a resolução dessa questão de direito material não tem qualquer semelhança com a tramitação específica de um processo de inventário. Basta reparar nas normas que regulam aquela forma de processo especial (arts. 925º e ss. do CPC) e no facto de se preverem duas fases, uma destinada a apurar e fixar os quinhões de cada comproprietário, assim como a divisibilidade do bem, e outra, posterior, destinada à divisão do bem em substância (quando seja divisível) e à adjudicação, sem exclusão da venda do bem a terceiros, com divisão do produto da venda em função dos quinhões de cada um, tudo nos termos dos arts. 925º a 929º do CPC.

A natureza dos processos também é diversa, sendo o de divisão de coisa comum de natureza intrinsecamente contenciosa, ao passo que o processo de inventário não existem propriamente partes contrapostas, antes interessados em bens comuns, promovendo-se através dele a partilha dos bens que sejam relacionados.

Sob qualquer perspetiva, estamos perante tramitações processuais totalmente divergentes, sendo de assinalar em especial que no processo de divisão de coisa comum existe uma fase de articulados para discussão dos aspetos relevantes, ao passo que no processo de inventário a discussão se processa de forma diversa.

Perante tamanha diversidade da tramitação processual correspondente a cada pretensão material que lhes está subjacente, não existe qualquer possibilidade de aproveitar um processo de inventário pendente (acentue-se para partilha de eventuais bens comuns do casal) para proceder à divisão de coisa comum, mesmo que esta coisa em comum pertença a ambos os cônjuges divorciados.

Não estando em causa a validade do princípio da adequação formal, da gestão processual ou da economia processual, o princípio da legalidade das formas processuais não pode ser absolutamente sacrificado em função de um alegado interesse do recorrente no sentido de obter neste inventário um resultado para o qual não existem instrumentos suficientes, tanto mais que se encontra pendente um processo de divisão de coisa comum.

O mesmo se diga da pretensão no sentido da condenação do outro cônjuge no pagamento de uma quantia, a que, nos termos gerais, corresponde o processo declarativo comum.

Também aqui se verificam tramitações totalmente diferenciadas, sendo assinalar na ação declarativa com processo comum a existência de uma fase dos articulados onde pode ser exercido o contraditório em moldes que a tramitação do processo de inventário não assegura em termos convenientes."

*3. [Comentário] Afirma-se no relatório do acórdão: "Foi interposto recurso de revista que foi admitido como revista excecional, tendo em conta o relevo jurídico da questão de direito".

Talvez se possa estranhar que um problema relativo ao erro na forma de processo seja "uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito" (art. 672.º, n.º 1, al. a), CPC). Estranhar não é, no entanto, criticar, porque a crítica só será justificada se o STJ não seguir, em casos análogos, o mesmo muito amplo critério.

MTS


26/02/2020

Apoio à investigação (23)


von Tuhr, AT


Nas Digitalisierte Sammlungen da Staatsbibliothek zu Berlin é possível visualizar e descarregar os três tomos que compõem a obra de von Tuhr, Der Allgemeine Teil des Deutschen Bürgerlichen Rechts (1910-1918) (clicar aqui).

Os ficheiros são muito pesados, mas, em contrapartida, o sistema de visualização é muito friendly.


Jurisprudência 2019 (183)


Penhora; 
bem imóvel; âmbito da penhora


1. O sumário de RE 26/9/2019 (1224/14.9T8STB-A.E1) é o seguinte:

I - Não existindo qualquer parte destacada do prédio urbano penhorado, e devidamente registada, a parte do imóvel indicada pelo executado não tem autonomia registral e, como tal, a penhora, igualmente sujeita a registo, em face do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea n), do CRP, não poderia incidir sobre uma parte do prédio urbano descrito, mas apenas sobre o mesmo na sua integralidade, como incidiu.

II - O processo civil tem regras que não podem ser postergadas pelo tribunal, não não sendo a execução o meio próprio para suprir o consentimento da exequente para o destaque.

III - Mas, ainda que o executado tivesse instaurado essa acção, o processo executivo não poderia ser suspenso sequer com fundamento na pendência de causa prejudicial.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O embargante apelou renovando, em parte, argumentos já apresentados na oposição à penhora que deduziu com base no «manifesto excesso de bens penhorados para satisfazer um crédito que dizia apenas respeito a metade do valor das benfeitorias», invocando como fundamento os factos acima sintetizados no relatório.

A primeira instância, depois de correctamente afirmar que um dos fundamentos da oposição à penhora é precisamente a sua inadmissibilidade, quer quanto aos bens concretamente apreendidos quer relativamente à extensão com que foi realizada - conforme previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 863.º-Aº do CPC revogado pela Lei 41/2013, de 26/6, aplicável aos presentes autos por força do disposto no artigo 6.º, n.º 4, da referida Lei -, afirmou em fundamento da decisão recorrida que: «a questão suscitada pelo oponente respeita evidentemente à segunda parte da alínea em apreço, fundamento admitido como podendo servir de base ao incidente quando tenham sido penhorados bens de valor significativamente superior à quantia exequenda que visam garantir e às custas e encargos do processo (J. T. R. Pereira, Prontuário de Formulários e Trâmites, vol. IV, Processo Executivo, Quid Juris, pág. 919).

Nos autos foi penhorado o prédio descrito na CRP de Sesimbra sob o n.º … da freguesia de Sesimbra (Castelo), inscrito na matriz sob o artigo ….

De acordo com o registo predial, o referido prédio é composto de edifício de r/c com a área coberta de 89,24 m2 e logradouro de 432,75 m2, e ainda por um edifício de r/c para oficina com a área coberta de 130,20 m2. Logo, não podia ser penhorada apenas uma parte do mencionado prédio, nomeadamente apenas a benfeitoria a que corresponde o edifício com a área coberta de 89,24 m 2 e um logradouro de 50 m2, mas a totalidade do prédio em causa, sendo certo que o oponente não demonstrou, como lhe competia, que foi efetuado o destaque daquele edifício e daquele logradouro.

Por outro lado, o oponente não fez, nem se propõe fazer, prova de que o bem penhorado tem um valor significativamente superior à quantia exequenda e às custas e encargos do processo. De resto, sempre a penhora do imóvel teria de ser considerada admissível à luz do preceituado no art. 834º, n.º 2 do CPC, na medida em que não foram identificados e localizados outros bens cuja penhora permitisse a satisfação integral do crédito no prazo de seis meses.».

Aceita o Apelante que «uma vez apurado com rigor o valor em dívida e que se supõe da ordem de 52.500 euros, em instante algum o recorrente se opôs à execução propriamente dita, insurgindo-se sim contra a dimensão assumida pela penhora efectuada, apresentando uma proposta equilibrada, justa e equitativa».

Significa isto que assumidamente apenas está em causa o fundamento de oposição à penhora indicado em primeira instância e pelo próprio oponente, isto é, a extensão da penhora, tanto mais que o mesmo assume igualmente o incumprimento da obrigação de pagamento de tornas que assumiu no processo de inventário. [...]

Insurge-se o Apelante, aduzindo, em suma, que a penhora veio incidir sobre os descritos e referenciados 2 r/c cobertos, sendo um de 89,24 m2 e logradouro de 432,75 m2 e o outro de 130,20 m2 para oficina, sendo que ambos se situam em terreno doado ao recorrente por seus pais, pelo que se trata de benfeitorias com direito de superfície, concluindo que se presume que a penhora que recai sobre essa totalidade patrimonial viola os princípios da adequação e da proporcionalidade, ao exceder manifestamente a cifra que será bastante para satisfazer o crédito da exequente.

Acontece, porém, que não são “benfeitorias com direito de superfície” que a certidão da Conservatória do Registo Predial junta ao processo executivo em 29.08.2012, faz presumir existirem na titularidade do executado, em face do disposto no artigo 7.º do Código do Registo Predial, de acordo com cuja estatuição “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, ou seja, de acordo com a respectiva inscrição e descrição, o mesmo é titular de um prédio urbano, com a referida descrição e componentes.

Na verdade, conforme decorre dos factos assentes, na execução foi penhorado o prédio urbano descrito na CRP de Sesimbra sob o n.º …/20100928 da freguesia de Sesimbra (Castelo), inscrito na matriz sob o artigo …, composto de edifício de r/c com a área coberta de 89,24 m2 e logradouro de 432,75 m2, e ainda por um edifício de r/c para oficina com a área coberta de 130,20 m2, sendo que a aquisição do mesmo e não apenas do terreno, encontra-se registada a favor do Apelante, por doação, mediante a Ap. 9 de 1976/07/19.

Portanto, atenta a data da descrição e inscrição do prédio urbano a favor do executado, nos termos acima indicados, ao invés do afirmado pelo ora Apelante e como sublinhado na decisão recorrida, sempre a penhora do prédio urbano acima identificado e descrito teria de ser considerada admissível à luz do preceituado no artigo 834.º, n.º 2, do CPC, na medida em que não foram identificados e localizados outros bens cuja penhora permitisse a satisfação integral do crédito da exequente, no prazo de seis meses.

Acresce que, igualmente ao invés do que afirma num passo das suas conclusões, mas acaba por aceitar noutro, não existiu qualquer destaque, o prédio penhorado é único.

Na realidade, isso mesmo assume o executado quando refere que «veio esgrimir a hipótese de um destaque de uma moradia, onde até já tinha sido a casa de morada de família e posteriormente usada por um filho com 50 m2 de logradouro», afigurando-se-lhe «que esta desanexação permitirá satisfazer as expectativas e os interesses legítimos de ambos os contendores, mas a ela crê-se que injustificadamente se tem oposto obstina, teimosa e tenazmente a recorrida, com a clara intenção de colocar o recorrente sem aquela parcela de terreno, onde tem uma oficina que constitui o complemento do rendimento da sua reforma».

Portanto, é também uma evidência que não existe qualquer parte destacada do prédio urbano penhorado, e devidamente registada.

Assim sendo, a parte do imóvel indicada pelo executado não tem autonomia registral e, como tal, a penhora, igualmente sujeita a registo, em face do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea n), do CRP, não poderia incidir sobre uma parte do prédio urbano descrito, mas apenas sobre o mesmo na sua integralidade [Cfr. neste sentido, a respeito de arresto em prédio misto, o Acórdão deste Tribunal da Relação proferido em 25.01.2018, no processo n.º 54/17.0T8FTR-A.E1, relatado pelo ora 2.º Adjunto, e disponível em www.dgsi.pt.], como incidiu.

Tanto assim é que o Apelante vem invocar «para que não seja forçoso que a conclusão dos autos acarrete uma situação insustentável ou penosa para uma ou mesmo ambas as partes … Verbi gratia v. afloramentos no artigo 2º (possibilidade de execução e procedimentos úteis), artigo 3º (audição e contradição), artigo 4º (igualdade de armas), artigo 5º (a liberdade do juiz face a alegações), artigo 6º (diligências e mecanismos de agilização para a composição), artigo 7º com a cooperação, esclarecimentos e remoção de obstáculos e por aí fora» (sic), entendendo que «o tribunal deve promover a suspensão do processo por um prazo razoável até se conhecer o desenlace definitivo do expediente alternativo proposto pelo recorrente, intimando a recorrida a assinar na Conservatória o registo pretendido, sob pena da cominação das sanções previstas para a falta de colaboração das partes e inclusive e até por razões de economia processual, suprindo oficiosamente a falta de consentimento dela».

Que dizer?

Em primeiro lugar lembrar que o processo civil tem regras que não podem ser postergadas pelo tribunal e o processo executivo visa o cumprimento coercivo de uma obrigação que, obviamente, não foi voluntariamente cumprida.

Como é sabido, a acção executiva tem na sua base a existência de um título, pelo qual se determinam o seu fim e os respectivos limites subjectivos e objectivos, não podendo as partes constituir títulos executivos para além dos legalmente previstos (artigos 10.º, n.ºs 5 e 6, 53.º a 55.º e 726.º, n.º 3, a contrario, todos do CPC).

O título executivo é, portanto, “a peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva ou, dito de outra forma, pressuposto ou condição geral de qualquer execução. Nulla executio sine titulo”[...]. Por isso, o mesmo tem que ser documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia para servir de base ao processo executivo[...].

Na verdade, os “títulos executivos são os documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da força probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório (ou novo processo declaratório) para certificar a existência do direito do portador”, sendo “constitutivo da relação obrigacional quando a obrigação tem no acto documentado a sua fonte” e “certificativo da obrigação quando, procedendo a constituição da dívida de um outro acto, o título apenas confirma a existência dela”. Concluindo, “o título executivo reside no documento e não no acto documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o acto documentado subsista, quer não”[Cfr. ANTUNES VARELA et Alii, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora 1985, págs. 78 e 79].

Ou, por outras palavras, o título executivo é “o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão ou o direito que está dentro. Sem invólucro não há execução, embora aquilo que vai realizar-se coactivamente não seja o invólucro mas o que está dentro dele”[Cfr. Ac. STJ de 19-02-2009, proferido no processo n.º 07B4427, e disponível em www.dgsi.pt].

Ora, tendo a acção executiva sido proposta volvidos os seis meses assinados para o pagamento das tornas devidas à Recorrida, em 2011, não tendo o executado logrado obter a anuência da exequente para o pretendido destaque (que o oponente diz, sem comprovar, ser bastante para satisfazer a quantia exequenda, o que a oponida nega…), incumbia ao ora Apelante e não ao tribunal lançar mão da acção adequada a fazer valer o seu direito, conforme expressamente afirmado nos artigos 2.º, n.º 2, e 3.º, n.º 1, do CPC, que estabelecem a garantia de acesso aos tribunais e a necessidade do pedido. Porém, para esse pedido ser abstractamente atendido teria o executado que recorrer ao processo especial respectivo, não sendo a execução o meio próprio para suprir o consentimento da exequente para o destaque.

Mas, ainda que por absurdo se cogitasse tal possibilidade e o executado tivesse instaurado essa acção - conforme ainda recentemente se decidiu neste Tribunal da Relação [Cfr. Ac. de 11.07.2019, proferido no processo n.º 293/09.8TBORQ-B.E1, disponível em www.dgsi.pt], para cuja fundamentação remetemos -, a acção executiva não poderia ser suspensa sequer com fundamento na pendência de causa prejudicial, pela simples mas evidente razão de que a mesma tem por base um título executivo, com as consequências acima referidas. Consequentemente, não poderia a acção executiva ser suspensa para aguardar a decisão de tal hipotético processo.

Em conformidade, e sem necessidade de ulteriores considerações, mostrando-se improcedentes ou deslocadas todas as conclusões, a apelação deve improceder com a consequente confirmação da decisão recorrida.

Porque vencido, o Apelante suportaria as custas devidas pelo recurso, na vertente de custas de parte, atento o princípio da causalidade expresso no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, e o disposto no artigo 529.º, n.ºs 1 e 4, ambos do CPC."

[MTS]


25/02/2020

Bibliografia (883)


-- Proto Pisani, A., Dieci studi sul processo. In ricordo di Virgilio Andrioli. (Jovene: Napoli 2019)



Jurisprudência 2019 (182)


Obrigação exequenda;
liquidação


I. O sumário de RE 26/9/2019 (837/14.3T8LLE-F.E1) é o seguinte:

1. A dívida é líquida quando esteja avaliada em dinheiro ou quando o título contenha todos os elementos necessários para essa ponderação.

2. Se o título for uma sentença, a respectiva interpretação tem de fazer-se de acordo com o que tiver sido articulado na acção e na fase executiva .

3. A liquidação pode fazer uso de informações posteriores relativamente à taxa de juro hipotecária fixada mensalmente por uma determinada instituição bancária.

II. Na fundamentação da sentença afirma-se o seguinte:

"Toda a execução deverá estar baseada numa obrigação que se revista de certeza, liquidez e exigibilidade [...].

A questão controvertida passa por averiguar se a liquidação da obrigação em discussão depende (ou não) de uma operação de simples cálculo aritmético.

Confrontam-se aqui duas posições antagónicas: a da recorrente que entende que a definição da liquidez teria de processar-se integralmente no requerimento executivo e a do Tribunal «a quo» que sustenta a viabilidade da liquidação ser operacionalizada posteriormente por depender de simples cálculo aritmético.

Sempre que for ilíquida a quantia em dívida, o exequente deve especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir o requerimento executivo com um pedido líquido (artigo 716º, nº 1, do Código de Processo Civil, a que corresponde o artigo 805º do Código de Processo Civil então vigente).

Quando a execução compreenda juros que continuem a vencer-se, a sua liquidação é feita a final, pelo agente de execução, em face do título executivo e dos documentos que o exequente ofereça em conformidade com ele ou, sendo caso disso, em função das taxas legais de juros de mora aplicáveis (artigo 716º, nº 2, do Código de Processo Civil, a que corresponde o artigo 805º do Código de Processo Civil então vigente).

Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter como fundamento a incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução.

Todavia, como resulta da interacção entre a sentença emanada do Tribunal Canadiano – e revista pelo Tribunal da Relação de Évora – com o requerimento executivo, a obrigação aqui em discussão é certa, exigível e líquida, tanto à luz do artigo 802º da legislação do pretérito como por via da aplicação da disciplina actualmente precipitada no artigo 713º do Código de Processo Civil.

*

No âmbito da acção executiva, como resulta do disposto no artigo 716º (idêntica solução constava da letra do artigo 805º do anterior Código de Processo Civil), o exequente poderá apresentar o pedido de liquidação no requerimento executivo nos casos aí previstos, devendo nessa peça processual especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir pela formulação de um pedido líquido[...].

A obrigação diz-se líquida quando se encontra determinada em relação à sua quantidade, isto é, quando se sabe exactamente quanto se deve (quantum debeatur)[...], ou quando essa quantidade é facilmente determinável através de uma operação de simples cálculo aritmético com base em elementos constantes do próprio título. Consequentemente, a obrigação será ilíquida quando, apesar de a sua existência ser certa, o seu montante ainda não se encontrar fixado[...]. [...]

Aquilo que importa assim decifrar é se a quantificação a operar assenta em factos que estão abrangidos pela segurança do título executivo ou que podem ser oficiosamente conhecidos pelo Tribunal e agente de execução[...], não dependendo, por conseguinte, da averiguação de outras premissas[...] [...].

No domínio da liquidação da obrigação exequenda, por força da validade intrínseca do próprio título, é de acautelar que o caso julgado incide «sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão»[21], sendo que «não é de excluir que se possa recorrer à parte motivatória da sentença para reconstruir e fixar o verdadeiro conteúdo da decisão»[...].

Na senda de Lebre de Freitas preconizamos que a liquidação dependerá do simples cálculo aritmético quando a mesma possa realizar-se exclusivamente com base no que consta do título executivo e, por isso, sem recurso a quaisquer elementos a ele estranhos[...].

Da conjugação destes contributos temos para nós que a dívida é líquida quando esteja avaliada em dinheiro ou quando o título contenha todos os elementos necessários para essa ponderação. Se o título for uma sentença, a respectiva interpretação tem de fazer-se de acordo com o que tiver sido articulado na acção e, buscando argumentos na lição de Duarte Nazareth, em alguns casos a liquidação pode ter lugar acerca do que se compreende virtualmente na sentença[...].

Sobre um caso paralelo já foi editada jurisprudência[...] e estamos perante um caso de putativa iliquidez[26], em que basta fazer contas[...], porquanto a liquidação depende de simples cálculo aritmético por se estar perante uma dívida patrimonial devidamente delimitada e todos os factos de suporte necessários à concretização da operação de definição estão compreendidos na sentença.

Não se apresenta a hipótese judicanda no contexto de uma condenação genérica ou de uma universalidade e nem a prévia operação de cálculo pressupõe qualquer litígio substancial sobre a matéria da prestação devida ou de um acto prévio conformador da escolha, determinação ou concentração da mesma.

Na verdade, o valor da dívida está definido por sentença tanto na dimensão quantitativa como qualitativamente e o acto decisório declarativo é taxativo quanto aos juros aplicáveis[28]. E ficou assim tão só por esclarecer qual o montante evolutivo desses juros.

No próprio requerimento inicial executivo os exequentes especificaram e procederam ao cálculo dos montantes abrangidos na prestação devida e concluem a pretensão executiva com um pedido líquido, no qual inclui os juros já vencidos, sendo que relativamente aos juros que se continuarem a vencer a matéria é regulada nos termos estatuídos no nº 2 do artigo 716º do Código de Processo Civil.

Mesmo que existisse erro ou deficiência da liquidação da obrigação de capital ou dos juros, tal não importava a extinção da acção executiva[...], não impedia a propositura da acção executiva nem justifica a suspensão da causa nos termos peticionados pela recorrente.

A terminar e como já resulta da argumentação precedente, os elementos indispensáveis e necessários para fixar o objecto da prestação são escrutináveis a partir da leitura da sentença declarativa e a concretização do objecto da prestação depende de simples cálculo aritmético e daí decorre que não existe fundamento para revogar o despacho recorrido. Por conseguinte, julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

A matéria atinente ao cálculo da liquidação e da existência anatocismo é objecto de recurso distribuído autonomamente."

 [MTS]


24/02/2020

Ónus de reclamar da nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução


Enunciado: o credor A instaurou ação executiva contra o devedor B; após a realização do primeiro ato de penhora, o credor exequente requereu a desistência da instância executiva; o agente de execução designado no processo de execução elaborou nota discriminativa de custas de parte, e notificou o exequente para este lhe pagar os honorários devidos em conformidade com o disposto na Portaria n.º 282/2013, de 29 de agosto; o exequente não reclamou dessa nota discriminativa no prazo previsto no artigo 46.º daquela portaria; para obter a cobrança dos seus honorários, o agente de execução instaurou processo executivo contra A, dando à execução a nota discriminativa de honorários e despesas por si elaborada no processo em que foi designado, acompanhada de comprovativo da sua notificação pelo agente de execução ao exequente naquele processo.
Quid inde, se A deduzir embargos à execução que lhe foi movida pelo agente de execução, com fundamento em desconformidades da nota discriminativa com o disposto na Portaria n.º 282/2013, de 29 de agosto?
A nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução da qual não se tiver reclamado para o juiz, acompanhada de comprovativo da sua notificação pelo agente de execução ao exequente, sendo este o responsável pelo pagamento, constitui título executivo (cf. art. 721.º, n.º 5, CPC).
Os meios de defesa que, nos termos do disposto no artigo 46.º da Portaria n.º 282/2013, de 29 de agosto, constituem fundamentos de reclamação da nota discriminativa de honorários e despesas elaborada pelo agente de execução (e agora exequente) consideram-se precludidos, se o devedor dos honorários não tiver reclamado tempestivamente daquela nota discriminativa e deduzir embargos à execução movida pelo mesmo agente, dado que esses meios de defesa deveriam ter sido feitos valer na reclamação.
Com efeito, a reclamação da nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução constitui um ónus jurídico, que gera preclusão (consumativa) pela omissão do exercício tempestivo daquele direito de reclamação. Quer dizer: a falta de tempestiva reclamação à nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução esgota os efeitos da defesa do responsável pelo seu pagamento, impossibilitando que ele possa apresentar posteriormente os mesmos fundamentos de defesa.
Este ónus de direito processual justifica-se com base nos princípios estruturantes do processo civil do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes.
Noutras palavras: por se entender que existe o ónus jurídico de reclamar e exaurir os fundamentos contra a nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução, há que concluir que, no que concerne aos fundamentos que na reclamação a essa nota podiam ter sido invocados, e considerando o mencionado princípio de preclusão, não podem posteriormente esses mesmos fundamentos relevar a favor do devedor daqueles honorários e despesas noutra sede processual, designadamente, nos embargos do executado que esse devedor deduzir à execução que lhe for movida pelo agente de execução, salvo no que se refere aos fundamentos supervenientes ao decurso do prazo para reclamar daquela nota discriminativa.
  J. H. Delgado de Carvalho

Jurisprudência 2019 (181)


Contrato de abertura de crédito;
título executivo


1. O sumário de RP 10/7/2019 (557/17.7T8OVR-A.P1) é o seguinte:

I - Uma decisão é implícita quando está subentendida noutra que foi expressamente tomada.

II - Ao julgar comprovado que o crédito exequendo existe, com base na documentação apresentada para o cobrar coercivamente, e ao ordenar o prosseguimento da execução para essa cobrança, a decisão assim tomada não só reconhece a existência de tal crédito, como, implicitamente, comporta a resolução de que o título apresentado é suficiente para tal finalidade.

III - Aceitando os outorgantes de um contrato de abertura de crédito que o montante mutuado foi, na altura da celebração desse contrato, colocado à disposição do mutuário, é título executivo suficiente para desencadear a cobrança coerciva desse crédito a escritura pública na qual o mesmo foi convencionado.

IV - A novação implica a simultânea constituição de uma nova obrigação em substituição de um vínculo anterior essencial, mediante expressa vontade de novar.

V - Por sua vez, na dação em cumprimento não há a constituição de qualquer vínculo com efeito liberatório, mas apenas a extinção da obrigação através de uma prestação diferente daquela que era inicialmente devida, mediante acordo das partes, que tem de ser contemporâneo do cumprimento.

VI - Já na dação em função do pagamento (datio pro solvendo), o credor também aceita uma prestação diversa da devida, mas a extinção desta última só ocorre se, quando e na medida em que aquele vir satisfeito o seu crédito.

VII - Aceitando uma instituição de crédito, no âmbito das negociações com o seu devedor, que, para a extinção do seu crédito, aquele, mediante escritura de dação, venha a transferir para o seu domínio de facto e de direito, uma casa de habitação, desde que devidamente concluída e legalizada no prazo de 2 meses, e não tendo sido observados esses pressupostos, não está preenchida nenhuma das referidas figuras.

VIII - Estes pressupostos são apenas critérios de decisão da referida instituição para a aceitação futura do aludido contrato de dação e não declarações de vontade contratual.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2- Passemos à análise da questão seguinte; ou seja, saber se o título executivo é inexistente ou insuficiente.

Para a resposta afirmativa a esta questão, partem os Apelantes do pressuposto que o crédito exequendo devia ser titulado, na ação executiva, não só pelo contrato de abertura de crédito e documento complementar apresentados pela primitiva exequente, mas também por outros documentos que comprovassem a efetiva disponibilização desse crédito.

E, em relação às prestações futuras convencionadas em documentos autênticos ou autenticados por notário ou por outras entidades equiparadas, nos quais de estabeleçam esse tipo de prestações, efetivamente assim é.

Como decorre do disposto no artigo 707.º do CPC, “[o]s documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes”.

Mas nem sempre nos contratos de abertura de crédito se estabelecem prestações futuras. Podem ser contemporâneas do próprio contrato.

Senão, vejamos:

No seu núcleo essencial, o contrato de abertura de crédito é, tal como o mútuo ou o desconto bancário, um contrato de concessão de crédito; ou seja, um convénio mediante o qual uma entidade, que, por regra, é bancária, coloca à disposição de outra, temporariamente, determinada quantia em dinheiro.

Mas, ao contrário do mútuo, em que a entrega do dinheiro (ou outra coisa fungível) é seu elemento constitutivo (artigo 1142.º do Código Civil)[...], no contrato de abertura de crédito essa entrega, de dinheiro necessariamente, pode, ou não, ocorrer e, ocorrendo, pode ser feita em diferentes modalidades.

Assim, por exemplo, no contrato de abertura de crédito simples, quando bancário, o cliente, embora possa utilizar parcialmente o capital, nunca o reutiliza depois de devolvido ao banco.

Já no contrato de abertura de crédito em conta-corrente passa-se, justamente, o contrário. O cliente, para além de poder fazer utilizações parciais do crédito, pode ainda reutilizar os seus próprios reembolsos, desde que não ultrapasse, em cada momento, a diferença entre o capital em dívida e o limite máximo de crédito concedido, conforme acordado entre as partes[...].

Por sua vez, no contrato de abertura de crédito documentário, o banco abre, a pedido do respectivo cliente, um crédito a favor do fornecedor deste último, assumindo o banco o compromisso de pagar àquele mesmo fornecedor o preço dos bens e/ou serviços fornecidos, contra a entrega dos documentos estipulados no contrato. É uma modalidade muito utilizada no comércio internacional, mas o que lhe é característico é que a entrega do capital mutuado é sempre feita a um terceiro, ou seja, ao fornecedor do cliente do banco, a pedido desse mesmo cliente, servindo o contrato de abertura de crédito também como garantia de pagamento do fornecimento. Até porque “[o] crédito é, em princípio, irrevogável, nos termos do nº 2, do artº 1170º, CC, por se tratar de um contrato em benefício de terceiro, sem prejuízo de as partes convencionarem uma cláusula específica sobre a revogabilidade ou a irrevogabilidade. E é transferível, sempre que o beneficiário fique com o direito de instruir o banco encarregado do pagamento (que tanto pode ser o emitente como um banco intermediário) de tornar o crédito utilizável por terceiro. Na modalidade irrevogável, o crédito documentário é, além disso, autónomo em relação ao negócio subjacente, sendo-lhe indiferentes as excepções que o ordenante-importador e o beneficiário-exportador poderiam opor um ao outro” [Ac. STJ de 03/04/2003, Proc.º 03B910, consultável em www.dgsi.pt].

Numa outra modalidade, o contrato em causa pode ser configurado também como contrato de abertura de crédito garantido; ou seja, um contrato mediante o qual o creditante se assegura, previamente, regra geral, do reembolso do capital mutuado, através de garantias, pessoais e/ou reais, prestadas pelo creditado. O que lhe é característico é que o risco garantido não está associado à abertura de crédito em si mesma, mas aos créditos dela emergentes.

E poderíamos continuar a equacionar outros tipos de contratos de abertura de crédito. Dentro dos limites da lei, as partes podem ordenar e tutelar livremente os seus interesses (artigos 398.º e 405.º, do Código Civil). Podem, assim, celebrar contratos de abertura de crédito escolhendo alguma das modalidades já indicadas, misturar características dessas modalidades ou mesmo estabelecer um clausulado distinto. Mas já não podem, sob pena de desvirtuar o modelo contratual, alterar o objeto do próprio contrato, que é, sem dúvida, uma prestação de disponibilidade de crédito. Como contrato preliminar que é, o contrato de abertura de crédito tem por objeto essa prestação de disponibilidade e não, propriamente, a utilização efetiva do crédito [No sentido de que o contrato de abertura de crédito é um contrato preliminar, pronunciou-se o Ac. STJ de 08/06/1993, CJ, ano I, tomo III, pág.3, Ac. STJ de 10/12/1997, Proc. 97B671, consultável em www.dgsi.pt]. Por isso se diz que não é um contrato real; ou seja, um contrato que exija para a sua formação a entrega efetiva do capital cujo mútuo foi prometido. Além disso, como já vimos também, essa entrega pode, ou não, ter lugar em conta corrente; não é absolutamente necessário que seja feita diretamente ao mutuário; e, por regra, só essa entrega é garantida pelos reforços suplementares em relação ao património do devedor.

Ora, partindo destes pressupostos e analisando o contrato de abertura de crédito dado à execução, verificamos que nele se estipulou o seguinte:

“A B… abre um crédito em conta corrente à PARTE DEVEDORA até ao montante de CENTO E OITENTA MIL EUROS, que desde já se considera colocado à sua disposição e que se destina, segundo declaração da PARTE DEVEDORA, à construção de uma moradia no imóvel hipotecado” (cláusula 1ª, n.º 1).

Ou seja, a disponibilidade do dinheiro, por parte da mutuária, foi contemporânea e não relegada para o futuro.

Neste sentido, não se crê que outro documento fosse necessário para titular o crédito exequendo, uma vez que do dito contrato já resultava a constituição e o reconhecimento desse crédito (artigo 703.º, n.º 1, al. b), do CPC). Isto, naturalmente, sem prejuízo dos embargantes alegarem e provarem, nos embargos de executado, que esse crédito era de menor dimensão (artigo 731.º do CPC).

Mas, mesmo que assim não se entenda, sempre foram juntos aos autos os extratos da conta corrente onde foi disponibilizado semelhante crédito e, portanto, para efeitos executivos, sempre estariam preenchidos os pressupostos para a sua cobrança coerciva.

Em resumo, pois, não se verifica a arguida ausência ou insuficiência do título executivo."

[MTS]