Procedimento cautelar comum;
comodatário
1. O sumário de RP 25/11/2024 (14750/24.2T8PRT.P1) é o seguinte:
I - Quer o arrendatário quer o comodatário dispõem de pleno acesso à tutela possessória, mesmo de natureza cautelar, que é oponível erga omnes, incluindo perante o senhorio e o comodante.
II - As normas aditadas ao NRAU relativas à proibição de assédio no arrendamento, tendo por propósito ampliar os meios de defesa concedidos ao inquilino, não obstam ao recurso à referida tutela possessória.
III - O arrendatário e o comodatário podem recorrer ao procedimento cautelar comum, caso não estejam verificados os requisitos da restituição provisória da posse, para pôr cobro à ameaça de lesão grave e dificilmente reparável no exercício do seu direito de uso do imóvel.
IV - O fornecimento de energia e de água constituem factores relevantes no gozo de um imóvel cuja ameaça de lesão é susceptível de legitimar o acesso ao referido procedimento cautelar.
V - Não podendo manter-se a decisão que julgou improcedente o pedido cautelar logo após os articulados e existindo factos controvertidos com relevância para o efeito, devem os autos prosseguir em primeira instância para a realização da audiência de tentativa de conciliação e de produção de prova.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"[...] segundo o art. 1037.º [n.º 1] do Código Civil, não obstante convenção em contrário, o locador não pode praticar actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário, com excepção dos que a lei ou os usos facultem ou o próprio locatário consinta em cada caso, mas não tem obrigação de assegurar esse gozo contra actos de terceiro.
2. O locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes.
Por sua vez, o art. 1133.º [n.º 1] do mesmo diploma determina que o comodante deve abster-se de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, mas não é obrigado a assegurar-lhe esse uso.
2. Se este for privado dos seus direitos ou perturbado no exercício deles, pode usar, mesmo contra o comodante, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes.
O que, aliás, traduz um dos aspectos que justificam para a doutrina dominante a ideia de que, embora o nosso Código Civil tenha adoptado, como princípio geral, a concepção subjectiva da posse, consagrou várias soluções particulares que, em parte, coincidem com a concepção objectiva.
“Não se pense, como referem os autores, que há uma grande diferença prática entre o nosso sistema e os que consagram a concepção objectiva porque o legislador português ampliou a protecção possessória a várias situações de detenção como a do locatário, do parceiro pensador, do comodatário e do depositário” (cfr. A. Santos Justo, Direitos Reais, 8.ª ed., pp. 171, citando igualmente Henrique Mesquita, in Obrigações Reais e Ónus Reais, p. 63; no mesmo sentido, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª ed., p. 6, para quem “a outorga da tutela possessória a várias situações de mera detenção mostra que, no plano das soluções práticas, a diferença entre o sistema jurídico português e os que consagram a concepção objectiva de posse se encontra bastante esbatida”).
Merecendo realce, a este nível, a circunstância de a referida tutela possessória ser reconhecida ao locatário mesmo contra o locador e também ao comodatário mesmo contra o comodante.
Para significar, pois, claramente, que enquanto perdurar a relação de arrendamento ou de comodato, o inquilino e o comodatário têm o direito de exigir a preservação da integralidade dessa relação e do direito exclusivo de se servir do bem erga omnes, incluindo perante senhorio e comodante.
Quanto a estes, aliás, tal direito concedido ao inquilino e ao comodatário é ainda reforçado mercê da imposição do dever de cumprimento pontual dos contratos (art. 406.º/1 do Código Civil), por um lado e, por outro, em face da proibição específica da prática de actos por parte do locador e do comodante que impeçam ou perturbem o uso da coisa (arts. 1037.º/1 e 1133.º/1 do CC).
Ora, a propósito da defesa da posse e, nos casos especialmente previstos, também da mera detenção, o Código Civil coloca à disposição do respectivo titular vários meios de reacção face a condutas lesivas.
Entre eles, em primeiro lugar, a designada acção de prevenção, no art. 1276.º, segundo o qual, se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar.
Da mesma forma, através da chamada acção de manutenção, prevista no art. 1278.º/1 do CC, estabelecendo que no caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito.
Prescrevendo ainda o art. 1279.º do CC que sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.
Todavia, mesmo no caso de não existir violência e esbulho, o titular da posse ou da detenção protegida mantém o direito à tutela possessória de natureza cautelar ou provisória visto que, nos termos do art. 379.º do Código de Processo Civil, ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 377.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum.
Devendo igualmente destacar-se que esta norma legal, sendo destinada a completar o elenco dos meios de defesa da posse previstos no Código Civil, é também aplicável, coerentemente com o demais regime possessório, aos casos em que ao mero detentor seja reconhecida por lei a referida tutela.
Neste sentido, refere a doutrina que “apesar de se encontrar inscrita num diploma de natureza adjectiva, estamos face a uma norma de direito substantivo que vem ampliar a tutela possessória prevista no CC”.
De modo que, “tal como sucede com a restituição provisória da posse, também o acesso à tutela cautelar comum, em situações de esbulho ou de turbação, aproveita aos direitos pessoais de gozo anteriormente mencionados, tais como o arrendamento, o contrato-promessa com tradição da coisa, o comodato, o depósito ou a locação financeira” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 2.ª ed., p. 66).
Sendo certo ainda que “a turbação envolve naturalmente a ideia de simples embaraço ou inquietação ao exercício da posse, sem que, em todo o caso, o possuidor seja privado da retenção ou fruição da coisa ou do direito” (cfr. Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 2.ª ed., p. 321).
No mesmo sentido, depõe igualmente a circunstância de se considerar que o art. 1276.º do Código Civil, para o qual remete expressamente o regime de tutela previsto nos arts. 1037.º e 1133.º do mesmo diploma para a locação e para o comodato, traduz uma medida “praticamente incluída no âmbito das providências cautelares não especificadas, a que se refere o artigo 399.º do Código de Processo Civil”, reportada “à possibilidade genérica de se requerer, com base no fundado receio de que outrem cause lesão e dificilmente reparável num direito, que o réu seja intimado para que se abstenha de certa conduta” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. cit., Vol. III, p. 47).
Não é legítimo recusar, pois, nem ao locatário nem ao comodatário, o direito de recorrer às acções defensivas da posse, sem exclusão da tutela cautelar comum, perante actos de turbação ou de ameaça de lesão, embora grave e dificilmente reparável, do seu direito.
Tanto mais que, como defende a doutrina relativamente ao locatário, em lição que, todavia, é também plenamente aplicável ao comodatário, “a lei consente-lhe o recurso às acções possessórias precisamente para que ele logre defender de modo expedito, contra actos de esbulho ou de turbação, a relação de facto em que se encontra com a coisa” (cfr. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, p. 149).
E muito menos é legítimo recusar nos referidos casos o acesso à tutela possessória com base nas normas que, aditadas pelo legislador em 2019 ao NRAU, para além se reportarem exclusivamente ao arrendamento, tiveram subjacente o propósito de alargar a protecção legal concedida ao inquilino perante comportamentos ilegítimos do senhorio.
Assim, sob a epígrafe “proibição de assédio”, dispõe o art. 13.º-A do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº6/2006 de 27-2, mercê do aditamento promovido pela Lei nº12/2019, de 12-2, que é proibido o assédio no arrendamento ou no subarrendamento, entendendo-se como tal qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, de quem o represente ou de terceiro interessado na aquisição ou na comercialização do locado, que, com o objetivo de provocar a desocupação do mesmo, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado.
Como é bom de ver, semelhante protecção concedida ao arrendatário, no sentido de reforçar a posição do contraente mais débil na relação locativa, teve o óbvio intuito de colocar à disposição daquele, novos meios de defesa perante actos ilícitos do senhorio, sem afectar minimamente as formas de tutela que a lei já anteriormente facultava para o mesmo efeito.
Apenas neste sentido, como é claro, deve ser interpretado o segmento inicial do art. 13.º-B/1 do NRAU quando, a propósito da consagração da intimação para tomar as providências nele previstas e do recurso à injunção contra o senhorio para o mesmo fim (regulamentada depois pelo DL n.º 34/2021, de 14-5), ressalva “sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou contraordenacional decorrente dos atos e omissões em que se consubstancie o comportamento previsto no artigo anterior”.
Vale por dizer, assim, que os novos mecanismos de defesa do inquilino foram consagrados sem lhe retirar o acesso às formas de tutela do seu direito que a legislação já oferecia no plano civil, criminal ou contraordenacional, aí se incluindo, naturalmente, a tutela possessória.
Não existindo qualquer evidência ou sequer indício, ademais, que a Lei nº12/2019, de 12-2, ao consagrar a proibição do assédio no arrendamento, tenha passado a recusar ao inquilino o recurso às acções possessórias ou tenha revogado a norma do art. 1037.º/2 do Código Civil.
Na verdade, o art. 13.º-A do NRAU, que aquele diploma legal veio criar, limitou-se a tornar expressamente proibido qualquer comportamento ilegítimo do senhorio que, com o objetivo de provocar a desocupação do imóvel, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, mas não obrigou os lesados a recorrer aos mecanismos de defesa previstos no art. 13.º-B.
Sinal claro, pois, no sentido de que compete ao inquilino, respeitados que sejam os respectivos requisitos legais, a faculdade de optar entre os diversos meios de tutela, indistintamente de serem os tradicionais ou os mais recentes, que considerarem mais idóneos para a defesa do seu direito.
Importa concluir, por isso, sem hesitações, que ao arrendatário, tal como ao comodatário, naturalmente, face ao disposto nos arts. 1037.º/2 e 1133.º/2 do CC, é legítimo o recurso ao procedimento cautelar comum, caso não estejam verificados os requisitos da restituição provisória da posse, para pôr cobro à ameaça de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito."
Entendimento que, de resto, vem sendo reiteradamente preconizado pela jurisprudência dos tribunais superiores, mesmo depois de 2019.
Assim, segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/11/2022 (relatado por Joaquim Boavida no processo 2744/22.7T8VNF-A.G1 e disponível na base de dados da Dgsi em linha), “no âmbito de procedimento cautelar de restituição provisória de posse instaurado em 02.05.2022, a existência de um contrato de arrendamento para comércio ou indústria, anterior a um contrato de trespasse de 10.05.1996, pode ser provada por qualquer forma admitida em direito”.
Tal como, na perspectiva recente deste Tribunal da Relação do Porto, “é admissível, em procedimento cautelar comum, a providência de manutenção da posse de imóvel arrendado até à definitiva decisão da questão do direito legal de preferência do arrendatário, a apreciar na ação principal” (cfr. Acórdão de 4/3/2024, da autoria de Eugénia Cunha, no processo 5214/22.0T8MTS-B.P1 e acessível na mesma base de dados).
Ao passo que no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/1/2023, ainda em tema de contrato de arrendamento, se sentenciou que “na falta de violência, a tutela do possuidor pode ser igualmente obtida, mas já no âmbito de um procedimento cautelar comum, desde que verificados os seus pressupostos” (cfr. Acórdão de 26/1/2023, tirado no processo 4683/22.2T8OER e relatado por Inês Moura, pesquisável no mesmo sítio).
O que, aliás, vem esse tribunal manifestando desde longa data, de acordo com a ideia de que “o arrendatário não sendo embora titular de um direito real, pode usar dos meios possessórios previstos na lei, designadamente da providência cautelar de restituição provisória de posse”.
Acrescentando que “a providência de restituição provisória de posse tem a sua justificação na violência cometida pelo esbulhador, visando-se com ela a rápida reposição da situação anterior” e que, “atento este particular aspecto no universo dos procedimentos cautelares, o requerente da providência de restituição provisória de posse não carece de alegar factos demonstrativos da lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, nem do periculum in mora” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/3/2008, referente ao processo 9/2008-8, assinado por Ferreira Lopes e disponível em texto integral na mencionada base de dados).
Da mesma forma, tem sido repetido o entendimento jurisprudencial que erige o fornecimento de energia e de água ao patamar dos factores relevantes de gozo de um imóvel cuja ameaça de lesão é susceptível de legitimar o acesso do arrendatário (e do comodatário) aos meios cautelares.
Como se defendeu no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 22/3/2022 (tirado no processo 1743/21.0T8PVZ.P1-A, relatado por Rui Moreira e acessível também em www.dgsi.pt), “o procedimento cautelar em que se pretenda que o requerido continue a assegurar o fornecimento de energia a um imóvel por si alegadamente arrendado pressupõe um juízo de probabilidade sobre a existência de um direito contratual ao respectivo gozo, como pressuposto do próprio direito ao fornecimento de energia”.
Expressando-se igualmente na jurisprudência a ideia de que “constitui dano grave e dificilmente reparável para efeitos do art. 362.º, n.º 1, do CPC, o corte do fornecimento de energia eléctrica, sem aviso prévio, pela empresa fornecedora a uma fracção onde está instalado um escritório de advocacia, demonstrando-se que por causa disso a requerente da acção cautelar, advogada, ficou com dificuldades em trabalhar no seu domicílio profissional” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2023, processo 2037/23.2T8CBR-A.C1.S1, relatado por Jorge Arcanjo e disponível em texto integral na página electrónica do DR).
Neste quadro, a decisão recorrida, julgando improcedente a providência logo após os articulados, foi precipitada e não pode manter-se.
E embora se compreenda a importância da preocupação dos tribunais com a celeridade na finalização dos processos, em prol da gestão eficiente da sua actividade, a verdade é que ela não pode negligenciar a exigência, de longe mais importante, do tratamento cuidado que a actuação judicial concede e deve sempre manter na apreciação de direitos essenciais das pessoas e das suas relações mais próximas, inclusivamente para prevenção de formas ilegítimas de acção directa ou até de comportamentos lesivos de bens jurídicos tutelados no direito sancionatório público, sendo fácil perceber a relevância que as acções possessórias podem assumir na prevenção de conflitos de maior gravidade e sendo certo que, à luz dos arts. 20.º/4 da Constituição e 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a obtenção de uma decisão em prazo razoável é instrumental do julgamento equitativo dos direitos e obrigações individuais.
Impõe-se, assim, face a todos os fundamentos acima alinhados, decidir o prosseguimento dos autos em primeira instância, para avaliação ponderada sobre a procedência das providências requeridas, em audiência de tentativa de conciliação e produção de prova, e porque existem ainda factos controvertidos com relevância para o efeito, como sucede com a existência do arrendamento, o prazo de vigência do comodato e a seriedade da ameaça da interrupção do fornecimento de luz e de água ao local onde vivem os requerentes."
[MTS]