"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/05/2020

Jurisprudência 2019 (245)


Causa de pedir;
nulidade da sentença


I. O sumário de RE 17/12/2019 (240/18.6T8BJA.E1) é o seguinte:

1 – A causa de pedir é o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido e exerce uma função individualizadora deste último para o efeito da conformação do objecto do processo.

2 – Sendo dentro dos limites fixados pela causa de pedir que o tribunal exerce os seus poderes de cognição, a sentença não pode basear-se em causa de pedir não invocada pelo autor, sob pena de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

3 – Alegando o autor, como causa de pedir, a celebração de um contrato de compra e venda com o réu e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço por parte deste, se não se provar a celebração daquele contrato nem, logicamente, o referido incumprimento, está vedado, ao tribunal, condenar o réu no pagamento da quantia peticionada a título de restituição de quantia emprestada pelo autor em consequência da nulidade de contrato de mútuo.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nas conclusões 1 a 7, o recorrente sustenta que a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC, porquanto o condenou com fundamento em causa de pedir diversa daquela que o recorrido invocou. Mais precisamente, o recorrido alegou ter vendido um tractor ao recorrente e que este incumpriu parcialmente a obrigação de pagamento do preço, sendo essa a causa de pedir; consequentemente, estava vedado, ao tribunal a quo, condenar o recorrente com fundamento na nulidade de um contrato de mútuo cuja celebração, entre aquele e o recorrido, julgou provada.

Antecipando esta crítica, o tribunal a quo, na sentença recorrida, considerou-se livre para proferir aquela condenação argumentando que, nos termos do n.º 3 do artigo 5.º do CPC, não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Em momento posterior da sentença recorrida, o tribunal a quo acrescentou que o próprio recorrente alegou a celebração de um contrato de mútuo com o recorrido. [...]

Sendo estes os termos em que a questão se encontra colocada, mostra-se necessário revisitar o conceito de causa de pedir. [...]

No caso dos autos, a causa de pedir é constituída pelo contrato de compra e venda que o recorrido alegou ter celebrado com o recorrente e pelo incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço a cargo deste último. Foi assim que o recorrido configurou a causa de pedir na petição inicial e não a alterou no decurso da acção. Note-se, a propósito, que a circunstância de o recorrente não se ter limitado a negar pura e simplesmente a veracidade dos factos integradores da causa de pedir e, em vez disso, se ter defendido através de impugnação motivada [...], contextualizando as entregas de dinheiro alegadas pelo recorrido à luz de um contrato diverso, em nada alterou a causa de pedir. Esta última resulta exclusivamente da alegação do autor e não também da impugnação levada a cabo pelo réu.

Sendo a causa de pedir a acima referida, é dentro dos limites dela decorrentes que o tribunal tem de exercer os seus poderes de cognição. “Por isso, o tribunal tem de a considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (art. 608-2), sob pena de nulidade da sentença (art. 615-1-d)” [JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p. 53. Este autor explicita o seu pensamento através do seguinte exemplo: “não pode, por exemplo, em acção em que se pretenda o reconhecimento do direito de propriedade adquirido por um contrato de compra e venda, reconhecê-lo com fundamento na aquisição por testamento; ainda que a ocorrência e o conteúdo deste tenham sido introduzidos no processo pelas partes, só a sua elevação a nova causa de pedir (subsidiária ou substitutiva da primeira), nos termos em que a lei a consente, permitiria ao juiz tal decisão.”] [...]

Identificada da forma descrita a causa de pedir desta acção e esclarecidos os limites que a mesma impõe aos poderes de cognição do tribunal, bem as consequências legais da violação desses limites, importa analisar se a sentença recorrida se conteve dentro dos mesmos limites ou, ao invés, os ultrapassou.

O tribunal a quo entendeu que a condenação do recorrente com fundamento, não no parcial incumprimento da obrigação de pagamento do preço decorrente do contrato de compra e venda alegado pelo recorrido, mas na obrigação de restituição do dinheiro ainda não reembolsado pelo recorrente ao recorrido, obrigação esta decorrente da nulidade de um contrato de mútuo entre estes celebrado, se traduz numa mera diferença de enquadramento jurídico da factualidade dada como provada, legalmente admissível porquanto o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC.

Discordamos.

É indiscutível que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Di-lo expressamente o artigo 5.º, n.º 3, do CPC, à semelhança do artigo 664.º, 1.ª parte, do CPC anterior. Ensinava, a propósito, ALBERTO DOS REIS que “As partes fornecem os factos ao juiz; mas a sua qualificação jurídica, o seu enquadramento no regime legal, é função própria do magistrado, no exercício da qual ele procede com a liberdade assinalada na 1.ª parte do art. 664.º.” No entanto, logo advertia: “É livre o tribunal na qualificação jurídica dos factos, contanto que não altere a causa de pedir.” [Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), páginas 93-94]

Ora, o fundamento da condenação do recorrente nada tem a ver com a causa de pedir invocada pelo recorrido. Como anteriormente referimos, o recorrido invocou, como causa de pedir, um contrato de compra e venda de um tractor e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço por banda do recorrente. O tribunal a quo condenou o recorrente com fundamento na nulidade de um outro contrato, que qualificou como mútuo. Ao fazê-lo, o tribunal a quo extravasou claramente da causa de pedir invocada pelo recorrido.

Não se tratou de um mero enquadramento jurídico diverso dos factos invocados como causa de pedir. Isso teria acontecido, por exemplo, se o tribunal a quo tivesse julgado provada a celebração do contrato alegado pelo recorrido, mas tivesse qualificado esse contrato, não como compra e venda, mas como pertencendo a outro tipo legal, por exemplo como contrato de mútuo. Então sim, o contrato seria o mesmo e o tribunal a quo, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 5.º do CPC, ter-lhe-ia dado um enquadramento jurídico diverso. Contudo, aquilo que o tribunal a quo fez foi diferente: julgou não provada a celebração do contrato de compra e venda invocado pelo recorrido (n.º 16), julgou provada a celebração de um outro contrato entre este e o recorrente, qualificando-o como mútuo, julgou que este último contrato é nulo por inobservância da forma legalmente prescrita e condenou o recorrente a restituir ao recorrido o montante mutuado que ainda não fora pago. É evidente que a causa de pedir invocada pelo recorrido não ficou demonstrada e que a condenação se baseou em causa de pedir por aquele não invocada [...].

Afirmámos anteriormente que a circunstância de o recorrente, em vez de se limitar a negar a veracidade dos factos integradores da causa de pedir, se ter defendido através de impugnação motivada, invocando, como justificação para as entregas de dinheiro que fez ao recorrido, a celebração de um contrato de mútuo mediante o qual este último lhe emprestou a quantia de € 11.000,00, não alterou a causa de pedir. Consequentemente, ao contrário daquilo que a propósito se refere na sentença recorrida, é indiferente, para a problemática que vimos analisando, que o recorrente se tenha defendido da forma descrita. Sempre estaria vedado, ao tribunal a quo, condenar o recorrente com fundamento em causa de pedir diversa daquela que o recorrido invocou.

Porém, há mais. O contrato com fundamento em cuja nulidade o tribunal a quo condenou o recorrente também não é aquele que este último invocou na contestação e que qualificou – bem, considerando o conteúdo que lhe atribuiu – como mútuo. Isso resulta do cotejo dos factos alegados nos artigos 2.º, 3.º, 5.º e 6.º da contestação, completamente diversos daqueles que foram julgados provados na sentença recorrida, boa parte deles factos principais não alegados por qualquer das partes (n.ºs 2, 2.ª parte, 3, 8 e 9) e cujo conhecimento estava, por isso, vedado ao tribunal a quo, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º do CPC [Leia-se, sobre esta matéria, RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª edição, páginas 24 a 34]. Aliás, o tribunal a quo nem sequer se pronunciou, em sede de decisão sobre a matéria de facto, acerca da celebração do contrato de mútuo alegado pelo recorrente. Julgou não provados os factos alegados nos artigos 2.º e 6.º da contestação (n.ºs 17 e 18 da sentença recorrida), mas, quanto ao conteúdo dos artigos 3.º e 5.º do mesmo articulado, não o julgou, nem provado, nem não provado.

Portanto, o tribunal a quo julgou provada a celebração, entre recorrente e recorrido, não do contrato de compra e venda que constitui a causa de pedir ou do contrato de mútuo alegado pelo recorrente na contestação, mas de um outro contrato, que descreve na matéria de facto provada e que qualificou como mútuo [...], contrato esse não alegado por qualquer das partes. Com fundamento na nulidade deste último contrato e tendo como pressuposto a sua qualificação como sendo de mútuo, condenou o recorrente nos termos já repetidamente descritos. Por tudo aquilo que anteriormente afirmámos, o tribunal a quo não o podia fazer.

Ao transpor, nos termos expostos, os limites decorrentes da causa de pedir, o tribunal a quo conheceu de questão que lhe estava vedada, nos termos do artigo 608.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, e condenou o recorrente com fundamento diverso da mesma causa de pedir. Consequentemente, a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do mesmo código.

O artigo 665.º, n.º 1, do CPC, estabelece que, anulada a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação. No caso dos autos, perante aquilo que afirmámos até aqui, pouco mais há a fazer que concluir. Não se provou a celebração do contrato de compra e venda e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço que o recorrido invocou como causa de pedir. Consequentemente, a acção terá de improceder.

Fica, assim, prejudicado o conhecimento das restantes questões acima enunciadas como constituindo objecto do recurso."

[MTS]