"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/05/2020

Jurisprudência 2019 (248)


Prova pericial; perito;
idoneidade e competência

1. O sumário de RG 17/12/2019 (21/16.1T8VPC-B. G1) é o seguinte:

I. Sendo o objecto legal da prova pericial a percepção ou apreciação de factos que exigem conhecimentos especiais que o julgador não possui, só podem ser peritos as pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa.

II. A aferição da idoneidade e da competência de perito, quando a lei não a pré-defina de forma imperativa (v.g. reservando a realização da perícia a certas entidades ou estabelecimentos, ou aos detentores de determinados títulos ou habilitações), fica na disponibilidade do juiz.

III. Não sendo a segunda perícia uma nova e distinta perícia, mas apenas uma repetição da primeira, o seu objecto coincidirá com o daquela, isto é, com as questões de facto - indicadas pelas partes ou de iniciativa oficiosa -, a que tenha sido antes circunscrito.

IV. A obrigação legal do juiz denunciar crime de que tome conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas só existe quando o mesmo tem por verificado o dito crime, e não quando esteja perante condutas susceptíveis de preenchem apenas alguns (mas não todos) dos seus elementos constitutivos, objectivo e subjectivo.

V. Uma diligência de prova só será impertinente (devendo, por isso, ser indeferida) se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

4.1.2.1. Concretizando, verifica-se que, tendo o Requerido (D. C.) alegado nos autos a indivisibilidade (por múltiplas e distintas causas) dos oito prédios rústicos dele objecto, e requerido a realização de uma perícia que a comprovasse - a que os Requerentes (A. C. e mulher, A. P.) anuíram -, veio a mesma a ser ordenada, sob a forma colegial.

Mais se verifica que, indicando cada uma das partes o seu perito - o dos Requerentes uma engenheira topógrafa, e o dos Requerido um engenheiro agrícola -, o Tribunal a quo viria a escolher como perito próprio pessoa simultaneamente licenciada em engenharia florestal e em engenharia agronómica, e que ainda frequentou a acção de formação «Avaliação de Propriedades Rústicas», ministrada pela Ordem dos Engenheiros, região Norte (tudo conforme alegado nos autos, e não impugnado por qualquer das partes).

Por fim, verifica-se que, não obstante ter sido inicialmente indicado pela secretaria como sendo «engenheiro agrónomo» (no «TERMO DE NOTIFICAÇÃO» de fls. 23 dos autos), e tendo assinado o requerimento de junção do relatório pericial na qualidade de «Engº Agrónomo»), o perito indicado pelo Tribunal a quo esclareceu depois que nunca se inscreveu em qualquer das ordem profissionais que representam os engenheiros no nosso país, não obstante dispor de habilitações académicas idóneas para o efeito; e ter essa omissão radicado exclusivamente no seu entendimento de que a dita inscrição não seria «condição necessária para executar qualquer função ou para me candidatar a qualquer concurso ou proposta de emprego», não se onerando com o pagamento de «uma jóia e cota anual».

Será esta falta de inscrição na Ordem dos Engenheiros, ou na Ordem dos Engenheiros Técnicos, do perito nomeado pelo Tribunal a quo, suficiente para que se possa afirmar que não possui idoneidade e competência para a matéria dos autos ?

Dir-se-á, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que para se poder concluir desse modo seria necessário que, no caso dos autos, a lei imperativamente reservasse a realização da perícia em causa a quem detivesse o título de engenheiro; ou que a lei expressamente afirmasse que a apreciação da divisibilidade ou indivisibilidade de prédios rústicos constituísse um acto próprio e exclusivo de uma qualquer engenharia, que identificasse.

Ora, e compulsada nomeadamente a legislação citada pelo Requerido (D. C.) para o efeito, faz-se da mesma outra interpretação, isto é, se bem que afirme que a prática de actos de engenharia está reservada a engenheiros (isto é, a quem, dispondo de uma prévia habitação académica para o efeito, se haja inscrito numa das respectivas ordens profissionais), e que aqueles «são os constantes da Lei n.º 31/2009, de 3 de Julho, e de outras leis que especialmente os consagram» (conforme art. 7.º, n.º 2 da Lei n.º 123/2015, de 2 de Setembro), não define em qualquer preceito como acto próprio e exclusivo da actividade de engenharia os implicados na perícia em causa nos autos.

Por outras palavras, se bem que se contenha na actividade própria de um engenheiro «a aplicação das ciências e técnicas respeitante às diferentes especialidades de engenharia nas atividades de investigação, conceção, estudo, projeto, fabrico, construção, produção, avaliação, fiscalização e controlo de qualidade e segurança, peritagem e auditoria de engenharia, incluindo a coordenação e gestão dessas atividades e outras com elas relacionadas» (conforme art. 7.º, n.º 1 da Lei n.º 123/2015, de 2 de Setembro), não está dito que a determinação da indivisibilidade de prédios rústicos integre necessariamente aquela actividade; e, mais importante, que lhe fique reservada de forma exclusiva (por mais nenhum outro saber ou especialidade - que não uma qualquer engenharia - ser idóneo ou competente para o efeito).

Dir-se-á ainda que o facto da Ordem dos Engenheiros, região Norte, ter ministrado uma acção de formação em avaliação de propriedades rústicas (aberta à frequência de engenheiros, e não engenheiros) inculca precisamente o contrário, pois não faria sentido que, cobrando por essa formação, e de forma acrescida a não engenheiros, defendesse que o formando que integrasse este último grupo não poderia depois rentabilizar os conhecimentos ministrados e adquiridos, em eventual prestação por ele próprio de um tal serviço a terceiros.

Dir-se-á, igualmente, que as respostas da Ordem dos Engenheiros (fls. 108), e da Ordem dos Engenheiros Técnicos (fls. 111, verso) juntas ao autos se limitam, respectivamente, a concluir que se está «igualmente perante a prática de um ato de engenharia sem a devida competência para tal», e que o perito nomeado pelo tribunal não preenche as condições para «efeitos de candidatura como perito judicial», precisamente por falta de inscrição em qualquer uma destas ordens profissionais; mas fizeram-no de forma absolutamente conforme com a concreta e precisa questão que, prévia e exclusivamente no que ora nos interessa) lhes foi colocada pelo Requerido (D. C.), isto é, se «esse mesmo cidadão, não obstante não se encontrar inscrito na Ordem dos Engenheiros [ou na Ordem dos Engenheiros Técnicos], está habilitado à realização de perícias no âmbito de um processo judicial».

Ora, reitera-se, o que está em causa nos autos não é a qualidade de perito judicial (isto é, dos que integram lista oficial da Relação a que pertence o Tribunal a quo, e limitada a perícias de engenharia civil e arquitectura), mas sim o carácter necessariamente reservado a uma qualquer engenharia (isto é, dela imperativamente exclusiva) da concreta perícia realizada; e, quanto a isso, nada foi esclarecido pelas informações prestadas pelas duas ordens profissionais em causa.

Concorda-se, assim, com o ajuizado no despacho recorrido, quando no mesmo se afirma que «não é legalmente exigido – ao contrário do que ocorre nos casos previstos no artigo 467.º, n.º 3 do CPC - em lado algum que o perito tenha o grau de engenheiro, mas apenas que tenha “idoneidade e competência na matéria em causa”».

Ora, considerando que o perito indicado possui, não uma, mas uma dupla licenciatura em engenharia - florestal e agronómica -, que qualquer delas está relacionada com a exploração de prédios rústicos, e que beneficiou ainda de uma formação em avaliação de propriedades rústicas, ministrada pela delegação do Norte da Ordem dos Engenheiros, não se tem por demonstrada a alegada falta de idoneidade e competência para intervir na perícia colegial realizada nos autos.

Dir-se-á ainda que, importando «aferir (…) se o referido perito se encontra habilitado, face às suas reais qualificações, para proceder à realização da perícia efectuada no âmbito dos presentes autos» (Ac. da RC, de 08.11.2016, Moreira do Carmo, Processo n.º 918/12.8TBCBR.C1), independentemente da sua não inscrição em qualquer uma das ordens profissionais que representam os engenheiros no nosso país, não se crê aqui aplicável o único acórdão citado pelo Requerido (D. C.) em abono da sua posição (precisamente, o acabado de reproduzir).

Com efeito, o que nele estava em causa era a intervenção, como perito, de um «mero agente técnico de engenharia e arquitectura», em confronto com dois engenheiros civis, e não alguém duplamente licenciado em engenharia, sendo que qualquer delas com óbvio reporte à matéria objecto da perícia.

Não se vê, assim, razão para revogar a decisão do Tribunal a quo, quando o mesmo concluiu pela idoneidade e competência para a matéria da causa do perito que antes nomeara para intervir em seu nome a perícia colegial realizada nos autos."

[MTS]