"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/06/2020

Jurisprudência 2019 (250)


Decisão interlocutória;
revista*
 

1. O sumário de STJ 17/12/2019 (1237/14.0TBSXL-B.L1.S2) é o seguinte:

I Os recursos continuados de despachos interlocutórios para no Supremo Tribunal de Justiça, seguem o regime específico prevenido no artigo 671º, nº2, alíneas a) e/ou b), do CPCivil.

II Ao recurso de um despacho proferido sobre uma questão questão formal suscitada no segundo grau – o requerimento para junção de documentos - aí decidida interlocutoriamente, pela primeira vez, aplica-se o preceituado no artigo 673º, proémio, do CPCivil, onde se predispõe que «Os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação apenas podem ser impugnados no recurso de Revista que venha a ser interposto nos termos do artigo 671º(…)».

III Tais decisões não são, assim, passíveis de impugnações recursórias autónomas.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos presentes autos de acção de condenação sob a forma de processo comum que AA, Ldª intentou contra BB, Ldª, a Ré com a alegação formulada em sede de recurso de Apelação solicitou a junção aos autos de vários documentos, o que veio a ser indeferido.

Inconformada a Ré veio interpor recurso de Revista excepcional, impugnação essa que não foi admitida pela Formação a que alude o artigo 671º [sic], nº3 do CPCivil - Acórdão que faz fls 902, tendo sido ordenada a distribuição dos autos em sede de Revista normal, para apreciação da sua viabilidade, porque além do mais se entendeu que o seu objecto seria uma decisão interlocutória, insusceptível de tal meio recursório excepcional.

Porque a Relatora entendeu entendi [sic] que se não se poderia conhecer do objecto do recurso interposto, enquanto Revista regra, ordenou a notificação das partes para se pronunciarem e após foi produzida decisão singular julgar findo o recurso por não haver de conhecer do respectivo objecto, vindo agora a Recorrente reclamar para a conferência, nos termos do artigo 652º, nº3 do CPCivil, aplicável por força do disposto no artigo 679º do mesmo Código, aventando a seguinte argumentação, em apertada síntese:

- A decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa não comporta, apenas, a enunciada decisão interlocutória. [...]

- Trata-se ali, com efeito, de duas situações distintas, as quais não devem ser confundidas, sendo que a primeira se prende com a entrega superveniente de documentos[,] os quais foram efectivamente alvo de uma decisão interlocutòria pelo TR Lisboa e;

- A segunda tem a ver com a omissão de pronúncia quer da 1ª Instância quer do TRLisboa, porquanto nem uma nem outra das instâncias se pronunciaram em relação à apresentação de documentos que oportunamente foram requeridos pela Ré (ora Recorrente) à Autora. [...]

A parte contrária não se pronunciou.

Analisemos.

No despacho singular da aqui Relatora, agora posto em crise, alinhou-se a seguinte fundamentação:

«[C]omo deixei consignado no despacho preliminar, o objecto da impugnação recursiva encetada pela Ré não é o Acórdão final, mas antes a decisão interlocutória produzida no mesmo que se pronunciou sobre a inadmissibilidade dos documentos juntos com as alegações de recurso, aliás, na sequência do que foi constatado pelo Acórdão da Formação que não admitiu a Revista excepcional e ordenou a remessa dos autos à distribuição para a apreciação do eventual conhecimento do objecto da impugnação como Revista normal. [...]

Analisemos, então.

Como deflui inequivocamente da fundamentação do Acórdão [da formação] extractado, o mesmo explicitou suficientemente que o que está efectivamente em causa no recurso e que deu origem à impugnação encetada não foi a decisão final do Acórdão, a única que em tese, poderia sustentar a Revista excepcional, pois confirmou a decisão de primeiro grau, mas antes a decisão introdutória [sic] que antecedeu aqueloutra, que ordenou o desentranhamento dos documentos juntos com as alegações de recurso de Apelação,

Essa específica decisão, integrante do Acórdão, mas autónoma em relação ao mesmo, precedendo-o, traduz uma decisão interlocutória incidente sobre a relação processual, passível de recurso apenas nos termos do disposto no artigo 671º, nº 2, alíneas a) e/ou b) do CPCivil, insusceptível, deste modo, de ser passível de Revista excepcional, porquanto se tratou de uma decisão ex novo, produzida pelo segundo grau, afastada do disposto no artigo 671º, nº 3 e 672º, nº1, alíneas a), b) e/ou c), este como aquele do mesmo diploma.

É esta e não outra, a leitura que temos de fazer do Acórdão da Formação: aquele Aresto limitou-se a dizer que não havia qualquer ataque a um Acórdão produzido em dupla conformidade, mas antes a uma decisão interlocutória produzida no seu seio, a ordenar o desentranhamento de documentos dos autos, sendo esta a suscetível de recurso de Revista, não excepcional, mas regra.

Ora, a impugnação recursiva operada pela Recorrente e que visa, apenas e tão só, aquela intercorrência processual, apenas poderia ter como fundamento uma das circunstâncias prevenidas nas alíneas a) ou b) do nº2 do artigo 671º do CPCivil, as quais não foram alegadas, o que obsta ao conhecimento da pretensão da Recorrente.

Destarte, de harmonia com o preceituado no artigo 651º, nº1, alínea h), aplicável ex vi do artigo 679º, ambos do CPCivil, julga-se findo o recurso por não haver que conhecer do respectivo objecto.».

Reanalisando a problemática exposta.

Insiste a Reclamante/Recorrente que a decisão proferida pelo segundo grau não comporta, apenas, a enunciada decisão interlocutória, situação essa já por si tratada, quer nas alegações ainda nas conclusões de recurso de Revista Excepcional, aquando da «Interposição subsidiária do Recurso de Revista no termos do artigo 671,° n.° 1 do CPC» e reitera que estamos perante duas situações distintas, as quais não devem ser confundidas, sendo que a primeira se prende com a entrega superveniente de documentos os quais foram efectivamente alvo de uma decisão interlocutória pelo Tribunal da Relação de Lisboa e, uma segunda, que tem a ver com a omissão de pronúncia quer da primeira quer da segunda Instância, porquanto nem uma nem outra se pronunciou em relação à apresentação de documentos que oportunamente foram requeridos pela Ré (ora Recorrente) à Autora. [...]

Constitui agora uma perplexidade que se não pode deixar passar em claro, a circunstância de a Recorrente, aqui Reclamante, vir inverter os termos da sua interposição de recurso: a mesma interpôs recurso de Revista excepcional arrimada no dispositivo legal referido no artigo 672º, nº1, alínea a) do CPCivil, presumimos que por se estar face a uma dupla conformidade decisória, a mesma entenderia que a questão suscitada deveria ser apreciada por via da sua relevância jurídica que seria claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, aliás, tendo começado nesse preciso e específico sentido a sua motivação, cfr fls 761.

Ora, tendo a Recorrente interposto Revista excepcional, como interpôs, os autos foram distribuídos pela Formação a que alude o normativo inserto no artigo 672º, nº3, para apreciação da bondade do pressuposto invocado, o que foi feito, cfr Acórdão de fls 902 e verso, não lhe tendo sido admitida a impugnação, uma vez que ali se entendeu que, atentas as alegações e conclusões produzidas, o que estaria em causa, não era a substância do Aresto, a se, mas a decisão que este encerrava de não admissibilidade dos documentos que aquela pretendeu juntar com as alegações do recurso de Apelação.

Naquele Aresto, pressupôs-se, como a Relatora igualmente pressupôs no seu despacho inicial, que se estaria perante um despacho interlocutório em recurso continuado, sendo-lhe aplicável o preceituado no artigo 671º, nº 2, alíneas a) e/ou b) do CPCivil, e, não como acontece, revisitados que foram os autos, perante um despacho sobre uma questão formal, suscitada no segundo grau – o requerimento para junção de documentos - aí decidida interlocutoriamente, pela primeira vez, ao qual se aplica o preceituado no artigo 673º, proémio, do CPCivil, onde se predispõe que «Os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação apenas podem ser impugnados no recurso de Revista que venha a ser interposto nos termos do artigo 671º,(…)».

Ora, para além da decisão proferida sobre a inadmissibilidade dos documentos fazer parte integrante do Acórdão produzido, constituindo uma questão prévia, ela constitui o cerne da própria decisão de mérito, agora impugnada em sede de Revista, não sendo a mesma passível de recurso autónomo.

O recurso interposto, incide sobre uma decisão que confirmou a decisão de primeira instância, pelo que estamos face a uma situação de dupla conformidade decisória, a qual não permite qualquer impugnação a título normal, artigo 671º, nº3 do CPCivil e por isso a Revista regra interposta a título subsidiário não tem aqui cabimento.

Assim sendo, há que inverter o decidido singularmente, embora por razões diversas das então aventadas, já que, tendo em atenção o preceituado no artigo 673º e 671º, nº3 do CPCivil, o recurso de revista normal não pode ser conhecido, porque a tal se opõe a identidade das decisões em tela.

Contudo, tendo em atenção aquele mesmo artigo 673º do CPCivil, supra enunciado, face à dupla conformidade decisória e ao fundamento invocado para o efeito pela Recorrente, o preceituado no artigo 672º, nº1 alínea a) do mesmo diploma normativo, cuja verificação é da competência da Formação, nos termos do nº3 deste último ínsito, deverão os autos voltar a esse colégio para apreciar a problemática em causa, dilucidados que estão os respectivos parâmetros, se assim for entendido por bem.

III Destarte, indefere-se a reclamação apresentada, embora com fundamentos diversos, altera-se o despacho reclamado e ordena-se a remessa dos autos de novo à Formação, para apreciação da verificação do pressuposto invocado, fundamento da Revista excepcional interposta, após trânsito, caso se entenda que há ainda lugar a tal conhecimento."
 
*3. [Comentário] O acórdão constitui um verdadeiro hard case interpretativo, pelo menos para quem toma contacto pela primeira vez com a questão nele tratada. 

Segundo pareceria (mas é capaz de não ser assim...), depois de a formação enunciada no art. 672.º, n.º 3, CPC ter decidido que não se trata de um caso de dupla conformidade, mas antes de um recurso de uma decisão interlocutória da RL, só haveria que decidir este recurso nos termos do art. 673.º CPC. 
 
No entanto, por razões que não são nada claras, o acórdão não aprecia esta questão e volta a remeter o processo para a formação, argumentando que, "tendo em atenção o preceituado no artigo 673º e 671º, nº 3 do CPCivil, o recurso de revista normal não pode ser conhecido, porque a tal se opõe a identidade das decisões em tela". A conjugação, na mesma frase, do art. 673.º CPC com a "identidade das decisões" origina uma enorme dificuldade interpretativa das razões que justificam a nova remessa do processo para a formação.

MTS