1. O
art. 671.º, n.º 3, nCPC consagra o (aliás, bastante discutível) regime da dupla conforme, estabelecendo o
seguinte: sem
prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista
do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação
essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo se for
admissível a revista excepcional. Isto significa que uma decisão da Relação que
confirme a decisão da 1.ª instância não admite recurso, excepto se a revista
for sempre admissível (cf. art. 629.º, n.º 2, nCPC), se houver um voto de
vencido de um Desembargador, se a fundamentação divergir essencialmente daquela
que foi utilizada pelo tribunal de 1.ª instância ou ainda se for admissível a
revista excepcional.
Destas
excepções ao regime da dupla conforme apenas uma delas é independente da decisão que a Relação venha a
proferir: aquela em que o recurso para o STJ é sempre admissível. Todas as
outras excepções só podem ocorrer depois do proferimento da decisão da Relação:
só após se conhecer esta decisão é que se pode saber se houve um voto de
vencido, se a fundamentação é diferente daquela que foi utilizada pelo tribunal
de 1.ª instância ou se o STJ admitiu a revista excepcional (cf. art. 672.º, n.º
1 e 3, nCPC).
2. O art. 367.º, n.º 3, TFUE
estabelece que sempre que uma questão relativa à interpretação ou à validade dos tratados ou de um
acto europeu seja suscitada num processo pendente perante um órgão jurisdicional
nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no
direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao TJ. De acordo
com a jurisprudência do TJ, essa obrigação só existe se houver dúvidas razoáveis e se não existir uma jurisprudência
consolidada do TJ (cf. TJ 6/10/1982 (C-283/81,
CILFIT et al./Ministero della sanità et al.).
Nas
hipóteses em que a revista é sempre admissível nos termos do art. 629.º, n.º 2,
nCPC – uma das quais abrange, importa recordar, as decisões sobre a competência
internacional, incluindo as baseadas nos vários regulamentos europeus que se
ocupam da matéria –, é claro que a decisão da Relação é sempre passível de
recurso e que, por isso, a Relação não tem a obrigação de suscitar a apreciação
prejudicial do TJ.
Em todas
as demais hipóteses, tudo depende das circunstâncias: a decisão da Relação pode
vir a ser definitiva, mas também pode ser uma decisão que ainda admite recurso
para o STJ. Importa analisar as consequências desta circunstância para a eventual
obrigação de a Relação suscitar a apreciação prejudicial do TJ.
3. O TJ
4/6/2002 (C-99/00,
Lyckeskog), n.º 16, decidiu o seguinte: “As decisões de um órgão jurisdicional
nacional de recurso que possam ser impugnadas pelas partes perante um Supremo
Tribunal não emanam de um «um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não
sejam susceptíveis de recurso judicial
previsto no direito interno», na acepção do artigo 234.° CE [= art. 267.º
TFUE]. A circunstância de a apreciação do mérito de tais impugnações depender
de uma declaração prévia de admissibilidade do Supremo Tribunal não tem por
efeito privar as partes da via de recurso”. Isto é: o TJ entende que a
circunstância de a admissibilidade do recurso de uma decisão ficar dependente
de uma decisão do tribunal ad quem não significa que aquela decisão seja
irrecorrível; atendendo a esta circunstância, não se pode dizer que esteja
preenchido o previsto no art. 267.º, n.º 3, TFUE, pelo que o tribunal recorrido
não tem a obrigação de suscitar a apreciação prejudicial do TJ.
Posto
isto, importa verificar se a doutrina do referido acórdão do TJ é passível de ser
aplicada à situação portuguesa. A referida decisão do TJ reporta-se a um caso
em que as partes podem sempre recorrer para um Supremo Tribunal e em que cabe a
este Supremo Tribunal, posteriormente à interposição do recurso, decidir se o
recurso é admitido. O regime português da dupla conforme é distinto: em
princípio, a revista não é admissível; a revista pode, contudo, ser admitida
nos casos excepcionais enumerados no art. 672.º, n.º 1, nCPC, bem como se houver um voto de vencido ou se for utilizada uma fundamentação essencialmente distinta. Portanto, há
necessariamente casos em que o STJ, mesmo que entenda que o recurso devia ser
admitido, não o pode admitir: esses casos são todos aqueles em que não estão
preenchidos os requisitos da revista excepcional e em que o acórdão da Relação não comporta nem voto de vencido, nem fundamentação essencialmente distinta.
Quer
dizer: no caso decidido pelo TJ, a decisão do tribunal recorrido torna-se
definitiva apenas se o tribunal ad quem não admitir o recurso; no sistema da
dupla conforme, a decisão da Relação é sempre definitiva não só se não se
estiver perante um caso de revista excepcional, mas também se não houver um
voto de vencido ou se não for utilizada uma fundamentação substancialmente
diferente. Dito pela positiva: no caso decidido pelo TJ, o tribunal ad quem
pode, em teoria, admitir qualquer recurso que seja interposto; no direito
português, o STJ só pode admitir o recurso nas hipóteses de admissibilidade da
revista excepcional, assim como nos casos em que a revista é admissível ipso iure: existência de um voto de vencido e utilização de uma fundamentação essencialmente distinta. Parece assim dever concluir-se que o caso analisado no
acórdão do TJ não coincide com os dados do direito português, pelo que a doutrina
estabelecida no referido acórdão não pode ser aplicada, sem mais, à situação
específica do direito português.
4. Atendendo ao exposto, poderia procurar ensaiar-se uma resposta doutrinária ao problema de saber
em que situações, atendendo ao regime da dupla conforme (e das suas excepções),
a Relação tem a obrigação de suscitar a apreciação prejudicial do TJ, quando perante
ela se coloque uma questão de duvidosa solução sobre a interpretação ou a
validade de um acto europeu. Talvez mais prático seja ficar por uma sugestão: a
de que, quando numa das Relações se colocar uma dessas questões, ela mesma
suscite ao TJ a apreciação prejudicial e, ao mesmo tempo, coloque a questão de
saber se estava obrigada a tal.
MTS