"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/08/2014

O regime da alegação dos factos complementares no nCPC




1. O nCPC opera com uma clara distinção entre a causa de pedir e os factos complementares (cf. art. 5.º, n.º 1 e 2, al. b)), o que, para além do mais, indicia que estes factos não integram aquela causa petendi. É indiscutível que a causa de pedir tem de ser alegada pelo autor na petição inicial (cf. art. 552.º, n.º 1, al. d)), sob pena de ineptidão deste articulado (cf. art. 186.º, n.º 2, al. a)). Em contrapartida, quanto aos factos complementares tem havido alguma dificuldade em compreender o regime da sua alegação. Supõe-se que a dificuldade radica numa confusão entre a não preclusão da alegação desses factos se os mesmos não forem alegados na petição inicial (ou na contestação) – o que é verdadeiro – e a inexistência do ónus de alegação desses factos nesses mesmos articulados – o que é falso.

Importa procurar elucidar o regime da alegação dos factos complementares. Para se perceber este regime há que empreender uma análise sistemática, pois que há que considerar vários aspectos relacionados com os factos complementares.

2. O art. 5.º, n.º 2, al. b), ao permitir que o tribunal considere os factos complementares que resultem da instrução da causa, mostra que a omissão da alegação desses factos nos articulados não tem nenhum efeito preclusivo. Afinal, o facto complementar adquirido durante a instrução da causa pode ser considerado pelo tribunal, mesmo que a parte não o tenha alegado anteriormente no respectivo articulado.

Pode perguntar-se se isto é suficiente para que se possa afirmar que a parte não tem o ónus de alegar factos complementares na petição inicial (ou na contestação). A resposta a esta questão só poderia ser afirmativa se fosse seguro que a parte não correria nenhum risco e não sofreria nenhuma desvantagem se não alegasse esse facto no seu articulado. Ora, a circunstância de a aquisição do facto complementar durante a instrução ser aleatória e eventual (depende, por exemplo, de o facto constar do depoimento de uma testemunha) não permite afirmar que a parte não corre nenhum risco e não sofre nenhuma desvantagem se não alegar, desde logo, esse facto no seu articulado. Se o facto não alegado não resultar da instrução da causa, o mesmo não se encontra adquirido para o processo e não pode ser considerado pelo tribunal.

Pode assim concluir-se que a possibilidade de o tribunal considerar factos complementares que sejam (eventualmente) adquiridos durante a instrução da causa não é suficiente para que se possa afirmar que a parte não tem o ónus de alegar esses factos no seu articulado.

3. Ao contrário do que poderia parecer, o panorama não se altera quando se considera um outro aspecto do regime legal relativo aos factos complementares: o dever de o tribunal convidar a parte a completar o seu articulado quando entenda que, apesar de a causa de pedir (ou de o fundamento da excepção) se encontrar alegada (ou alegado) no articulado, ainda assim falta um facto complementar que é indispensável para preencher uma determinada previsão legal e para que a acção (ou a excepção) possa ser julgada procedente (cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4). A importância que o legislador concedeu a esse dever é demonstrada pelo disposto no art. 591.º, n.º 1, al. c): se o mesmo não tiver sido cumprido ou não tiver sido cumprido na medida do necessário, é ainda possível na audiência prévia convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado.

Talvez a expressão possa soar estranho a alguns ouvidos ainda habituados a outros paradigmas processuais, mas a verdade é que o dever de convite estabelecido no art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4 (e reforçado pelo disposto no art. 591.º, n.º 1, al. c)) implica que o risco da insuficiência da matéria de facto que é necessária para assegurar a procedência da acção (ou da excepção) deixou de recair totalmente sobre a parte. O tribunal também compartilha esse risco, no sentido de que, se não convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado, fica impedido de proferir uma decisão de improcedência da acção (ou da excepção) com base na falta de um facto complementar. Se não tiver dirigido esse convite e se, ainda assim, considerar a acção (ou a excepção) improcedente pela falta de um facto complementar, o tribunal profere uma sentença nula por excesso de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d)): a omissão do dever de convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado não permite que estejam preenchidas as condições para essa decisão de improcedência, pelo que, nestas circunstâncias, o tribunal conhece de mais do que poderia conhecer.

O dever de o tribunal convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado demonstra que a omissão da alegação do facto complementar pode ser corrigida na sequência de um dever de carácter assistencial que deve ser cumprido pelo tribunal. Dito de outro modo: a não alegação do facto complementar no articulado desencadeia, não uma qualquer consequência desfavorável para a parte, mas antes o dever de o tribunal convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado.

Daqui pode extrair-se que, não decorrendo da omissão da alegação do facto no articulado nenhuma consequência desfavorável para a parte, não recai sobre ela o ónus de alegação desse facto no articulado. Esta conclusão não é a que resulta do regime legal. O dever de convite que é imposto ao tribunal demonstra que a lei pretende que o facto complementar seja invocado no (primeiro) articulado da parte. Se este ónus não existisse não se compreenderia que a lei impusesse ao tribunal um dever de convidar a parte a suprir a sua omissão.

Noutros termos: o dever imposto ao tribunal de convidar a parte a suprir a omissão da alegação do facto complementar constitui uma demonstração inequívoca de que a parte tem o ónus de invocar esse facto nos articulados. Se a lei impõe ao tribunal um dever (não um mero poder discricionário) de convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado, isso demonstra que se pretende que a parte supra a omissão de algo que tinha o ónus de cumprir.

É tendo presente este contexto que há que interpretar o disposto nos art. 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d): na petição inicial compete à parte expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir. Este preceito define apenas a medida mínima da alegação da parte na petição inicial: desta tem de constar, pelo menos, a causa de pedir; se, além da causa petendi, a parte tem ainda o ónus de invocar qualquer facto complementar, isso só pode ser determinado em cada caso concreto.

4. Torna-se claro que o regime legal não permite que a parte distribua por diversos momentos a alegação dos factos relevantes para a apreciação da causa: a causa de pedir na petição inicial, os factos complementares em momento posterior.

O nCPC não determina nenhuma preclusão decorrente da omissão da alegação dos factos complementares na petição inicial (ou na contestação), porque impõe que o tribunal dê à parte a possibilidade de reparar a sua omissão. O dever de o tribunal dirigir à parte o convite ao aperfeiçoamento do articulado demonstra que a lei pretende que todos os factos – incluindo os complementares – sejam alegados nos articulados; é precisamente por isso que impõe que o tribunal convide a parte a alegar o que não alegou anteriormente no seu articulado. Este regime legal é perfeitamente compreensível: dado que o facto complementar, embora não seja essencial para delimitar a causa de pedir, é essencial para a procedência da acção (ou da excepção), a lei considera que a omissão da alegação pela parte de um facto que lhe é favorável é involuntária e concede-lhe a possibilidade de suprir essa omissão.

Este aspecto é importante. O nCPC não opera com o binómio diligência/negligência na possibilidade de suprir a omissão da alegação de factos, isto é, não afere a possibilidade da alegação posterior de um facto pela omissão não negligente da sua alegação anterior. Mas, dado que o facto complementar não alegado é um facto indispensável à procedência da acção (ou da excepção), o nCPC parte do princípio – que não pode ser considerado fora da realidade – de que a omissão da sua alegação pelo autor (ou pelo réu) foi involuntária. É por isso que essa omissão não tem nenhum efeito preclusivo (precisamente porque não se pretende penalizar a parte por um comportamento involuntário, aliás muitas vezes imputável ao seu mandatário), antes desencadeia o exercício de um dever assistencial pelo juiz da causa.

5. O regime sobre a alegação dos factos complementares também impede que a parte procure surpreender a parte contrária com a alegação desses factos fora da petição inicial (ou da contestação).

O cumprimento pelo tribunal do dever de convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado protege naturalmente a parte que omitiu (involuntariamente, pressupõe-se) a alegação do facto complementar que lhe é favorável. Além disso, importa realçar que, ao impor uma tomada de posição dessa parte quanto à alegação do facto complementar, o cumprimento do dever de convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado também protege a parte contrária, no sentido de que impede que a parte possa procurar conseguir qualquer efeito-surpresa através da alegação inesperada desse facto. A alegação dos factos complementares só pode ocorrer num momento próprio – que é a petição inicial (ou a contestação) – ou num momento eventual – que é a resposta da parte ao convite ao aperfeiçoamento dirigido pelo tribunal. O nCPC não comporta outros momentos para a alegação dos factos complementares.

Esta conclusão implica uma consequência prática importante: é irrelevante a alegação do facto complementar no depoimento de parte (cf. art. 452.º, n.º 1) ou na declaração de parte (cf. art. 466.º, n.º 1) durante a audiência final.

6. O convite ao aperfeiçoamento do articulado através da alegação do facto complementar pode ser seguido ou não seguido pela parte. Se não for seguido (e, portanto, se o facto complementar não for alegado pela parte), pode perguntar-se se, ainda assim, o tribunal pode considerar esse facto se o mesmo resultar da instrução da causa (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b)). Parece impor-se uma resposta positiva: se a parte não corresponder ao convite do tribunal, fica definitivamente precludida a possibilidade de alegação posterior desse mesmo facto; é, no entanto, contrário à busca da verdade que o tribunal não possa considerar o facto quando o mesmo venha a ser adquirido em juízo por uma via distinta da alegação da parte.

7. Analisado o regime legal, o nCPC não consagra nenhum sistema de alegação à la carte dos factos complementares. Se o facto complementar não tiver sido alegado no articulado, o nCPC impõe ao tribunal um dever de carácter assistencial da parte que omitiu a alegação desse facto. A alegação ou não alegação do facto complementar na sequência do convite que foi dirigido à parte define, daí em diante, a situação desse facto no processo pendente: a aquisição do facto ou a preclusão do facto.

MTS
(“z. Zt. in München”)