"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/08/2014

Inversão do contencioso e competência internacional




1. O art. 369.º, n.º 1, nCPC permite que o requerente de uma providência cautelar solicite que o juiz, na decisão que decrete a providência, o dispense do ónus de propositura da ação principal: para tal é necessário que a matéria adquirida no procedimento permita a esse juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e que a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

Se o procedimento cautelar comportar um elemento de estraneidade – isto é, se possuir uma relação (objectiva ou subjectiva) com várias ordens jurídicas –, há que averiguar a competência internacional dos tribunais portugueses para decretar essa providência. Isso é realizado nos seguintes moldes:

– Se o requerido tiver o seu domicílio (ou sede) num Estado-membro do Reg. 1215/2012, há que aplicar este instrumento europeu (cf. art. 6.º, n.º 1, Reg. 1215/2012);

– Se o requerido não tiver domicílio (ou sede) num Estado-membro do Reg. 1215/2012, a competência internacional dos tribunais portugueses é aferida por uma convenção internacional, ou, na maior parte dos casos, pelo direito interno português.

2. Se o requerido não tiver o seu domicílio (ou sede) num Estado-membro do Reg. 1215/2012 e não for aplicável nenhuma convenção internacional de que Portugal seja parte, a competência internacional dos tribunais portugueses para o decretamento da providência cautelar e da inversão do contencioso é aferida nos termos do princípio da coincidência (art. 62.º, al. a), nCPC). Em concreto, há que conjugar esse princípio com o disposto no art. 78.º nCPC, assim se determinando, em simultâneo, a competência territorial de um tribunal português e a sua competência internacional.

O reconhecimento e a execução da providência proferida pelo tribunal português num outro Estado fica dependente do que se encontre estabelecido numa convenção internacional de que Portugal e esse Estado sejam partes ou no direito interno desse Estado.

3. Na hipótese de o requerido ter domicílio (ou sede) num Estado-membro do Reg. 1215/2012, há que aplicar o estabelecido no art. 35.º Reg. 1215/2012 (equivalente ao art. 31.º Reg. 44/2001) na determinação da competência internacional do tribunal português. Aquele preceito atribui ao requerente da providência uma opção:

– O requerente pode solicitar uma providência cautelar prevista na lei de um Estado-membro nos tribunais deste mesmo Estado, ainda que os tribunais de outro Estado-Membro sejam competentes para conhecer do mérito da causa, isto é, para a correspondente acção principal; 

– O requerente também pode solicitar a providência no tribunal que seja competente para apreciar o mérito, isto é, no tribunal que seja competente para apreciar a acção principal segundo um dos vários critérios estabelecidos no art. 1215/2012.

4. Se, nos termos descritos, o Reg. 1215/2012 dever ser aplicado na determinação da competência internacional, há que considerar, quanto ao reconhecimento e execução da medida que decreta a providência cautelar, uma importante especificidade. De acordo com a definição constante do art. 2.º, al. a) § 2,º 1.ª parte, Reg. 1215/2012, só são reconhecidas nos demais Estado-membros as providências que tenham sido decretadas num tribunal que (também) seja competente para apreciar o mérito. Esta solução não retira eficácia à decisão que decreta a providência quando a mesma tenha sido proferida por um tribunal que não seja competente, segundo o Reg. 1215/2012, para apreciar o mérito, mas restringe o âmbito dessa providência: esta fica confinada, em termos territoriais, ao Estado em que a providência tenha sido decretada.

Posto isto, importa determinar qual a consequência desta territorialidade da providência cautelar para a inversão do contencioso. Teoricamente, são possíveis duas soluções (sempre tendo presente que se trata de um caso em que deve ser aplicado o Reg. 1215/2012):

– Segundo uma delas, a territorialidade da providência estende-se à própria decisão de inversão do contencioso; de acordo com esta solução, a inversão do contencioso que seja decretada num tribunal português que não seja competente segundo o disposto no Reg. 1215/2012 não pode ser reconhecida em nenhum outro Estado-membro, ou seja, só pode ser executada em Portugal;

– Segundo uma outra solução possível, não é admissível solicitar a inversão do contencioso num tribunal português que não seja competente segundo o Reg. 1215/2012; isto significa que, mesmo que, nos termos do art. 35.º Reg. 1215/2012, a providência cautelar possa ser decretada em Portugal por ser uma providência prevista na legislação portuguesa, a inversão do contencioso só pode ser requerida num tribunal português que seja competente segundo algum dos critérios estabelecidos no Reg. 1215/2012.

Esta última solução é a que parece preferível. O decretamento da inversão do contencioso implica que a tutela provisória se consolida como tutela definitiva, se o requerido não instaurar uma acção de impugnação (cf. art. 371.º, n.º 1, nCPC). Seria contrário às finalidades do Reg. 1215/2012, e, em especial, ao princípio da liberdade de circulação das decisões no espaço europeu, admitir que pudesse existir, nesse mesmo espaço, uma decisão sobre uma tutela definitiva que, à partida, estivesse limitada quanto ao âmbito da sua eficácia (em concreto, estivesse restringida ao território português). O Reg. 1215/2012 pode admitir uma providência cautelar que não pode circular no espaço europeu, dado que, em última análise, essa tutela provisória se destina a ser confirmada ou substituída por uma tutela definitiva obtida num tribunal competente segundo esse acto europeu; mas o Reg. 1215/2012 não pode aceitar uma tutela definitiva que, por possuir uma restrição geográfica, não possa circular nesse espaço.

Disto decorre que, se o requerido tiver domicílio (ou sede) num Estado-membro do Reg. 1215/2012 – e se, portanto, este acto europeu dever ser aplicado na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses –, a inversão do contencioso só pode ser solicitada num tribunal português que seja competente segundo um dos critérios enunciados no Reg. 1215/2012.


MTS