"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/12/2025

Autoridade de caso julgado: basta de confusões!


1. Em 1827, o jurista suíço F. L. Keller (1799-1860), um discípulo de Savigny e autor da obra Ueber Litis Contestation und Urtheil nach classischem Römischem Recht, "descobriu" que a exceptio rei iudicatae realizava duas funções: uma função negativa e uma função positiva. Nas palavras de Keller, "enquanto até agora nós só conhecíamos [a exceptio rei judicatae] como instituto relativo ao efeito puramente negativo ou destrutivo do processo tramitado, ou seja, da consumpção da actio", a verdade é que também há que considerar uma "segunda função" dessa exceptio: esta função reconduz-se ao "meio jurídico para fazer valer o resultado positivo de um anterior litígio" (p. 222).

É fácil reconhecer nestas palavras com quase 200 anos a origem da função negativa e da função positiva que actualmente se atribui ao caso jugado material:

-- A função negativa corresponde à excepção de caso julgado (proibição de repetição e de contradição: art. 580.º, n.º 2, CPC); esta excepção dilatória (art. 577.º, al. i), CPC) visa evitar que ocorra uma segunda pronúncia sobre um objecto que já foi apreciado e decidido numa anterior acção entre as mesmas partes (art. 580.º e 581.º CPC); de acordo com o disposto no art. 580.º, n.º 2, CPC, esta excepção é aplicável em duas situações:

-- Quando se trata de evitar a repetição de uma acção (proibição de repetição, ne ne bis in idem), ou seja, de obviar a uma segunda acção entre as mesmas partes e com o mesmo objecto da anterior;

-- Quando se trata de evitar a contradição com o decidido numa acção anterior (proibição de contradição, inadmissibilidade do "contrário contraditório"); por exemplo: se, numa transacção homologada, as partes dividiram o seu património comum e fixaram as tornas devidas por uma delas à outra, a excepção de caso julgado obsta à admissibilidade de uma acção de prestação de contas quanto à administração de bens que foram repartidos;

-- A função positiva corresponde à autoridade de caso julgado; esta autoridade vincula as partes de uma segunda acção ao que foi decidido, entre essas mesmas partes, sobre um outro objecto numa acção anterior; a este propósito, fazem-se as seguintes observações:

-- O caso paradigmático de aplicação da autoridade de caso julgado é aquele em que o objecto da primeira acção é prejudicial em relação ao objecto da segunda acção e em que, portanto, o tribunal da segunda acção (acção dependente) está vinculado à decisão proferida na primeira acção (acção prejudicial); por exemplo: numa primeira acção o autor foi reconhecido como proprietário de um imóvel; se, numa acção posterior, se discutir, entre as mesmas partes, a indemnização pela ocupação desse imóvel, nesta acção já não se pode questionar a propriedade do autor, dado que a decisão sobre essa propriedade está coberta pela autoridade de caso julgado;

-- A autoridade de caso julgado não prescinde de uma identidade de partes nas duas acções (ou, numa situação bastante mais rara, da extensão do caso julgado da primeira acção a uma parte distinta da segunda acção); estranhamente, por vezes esquece-se este elementar requisito da autoridade de caso julgado.

2. Nada do acima referido deve suscitar nenhuma dificuldade, porque corresponde ao "bê-á-bá" da doutrina processual em matéria de caso julgado material. É por isso com enorme espanto que, por vezes, se vê ser utilizada a expressão "exceção dilatória de autoridade de caso julgado" e até a absolutamente intrigante expressão "exceção perentória de autoridade de caso julgado". 

Como é evidente, falar de excepção a propósito da autoridade de caso julgado é falar precisamente do contrário do que essa autoridade se destina a produzir num processo posterior. Em vez de ocorrer na segunda acção uma vinculação ao decidido na primeira acção e, portanto, em vez de se apreciar o objecto da segunda acção tomando como base o decidido na acção prejudicial, na segunda acção teria de ser proferida uma decisão de absolvição da instância ou, como até já foi defendido, uma decisão de absolvição do pedido. Voltando ao exemplo acima referido, em vez de o autor ser reconhecido na segunda acção de indemnização como proprietário do imóvel ocupado, esse mesmo autor ou não conseguiria obter uma decisão de mérito sobre o seu pedido de indemnização (!) ou veria ser proferida uma decisão de absolvição do réu sobre esse pedido (!!).

Particularmente intrigante é como é que a autoridade de caso julgado pode ser equiparada a um facto impeditivo, modificativo ou extintivo e, por isso, pode ser qualificada como uma excepção peremptória (art. 576.º, n.º 3, CPC), que -- lembre-se o básico -- é uma excepção de natureza substantiva. Não se descortina que meandros jurídicos se pode percorrer para que do efeito processual da autoridade de caso julgado se chegue a um efeito impeditivo, modificativo ou extintivo de natureza substantiva.

3. Infelizmente, não há outra maneira de o dizer: a qualificação da autoridade de caso julgado como uma excepção dilatória é um erro grave; a sua qualificação como uma excepção peremptória é um erro grosseiro. Em qualquer dos casos trata-se de um atropelo inaceitável à dogmática processual.

MTS