Processo de inventário;
questões prejudiciais; remessa para os meios comuns
I. O sumário de RL 24/10/2024 (464/20.6T8CSC-A.L1-2) é o seguinte:
1. O art.º 1093.º do CPC, como a própria epígrafe indica, só deve ser convocado se estão em causa questões prejudiciais que não se integrem na previsão do artigo anterior, pelo que respeitando a controvérsia à definição de direitos de interessados diretos na partilha, a situação cabe no âmbito do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, que prevê que o juiz remetendo os interessados para os meios comuns, deve determinar a suspensão da instância, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2. O tribunal apenas deve remeter os interessados para os meios comuns, quando as questões prejudiciais a resolver, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, tal como expressamente previsto quer no art.º 1092.º n.º 1 al. b), quer no art.º 1093.º n.º 1 do CPC, não contemplando como razão para o efeito a eventual complexidade na resolução das questões de direito.
3. O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A decisão recorrida estribou-se no art.º 1093.º n.º 1 do CPC para fundamentar a remessa dos interessados para os meios comuns, com vista à decisão relativa aos direitos de crédito sobre os bens comuns relacionados pelo cabeça de casal nas verbas 1 e 2 da relação de bens, cuja existência a interessada contestou.
O art.º 1092.º do CPC, referindo-se à suspensão da instância, rege nos seguintes termos:
“1-Sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância:a) Se estiver pendente uma causa em que se aprecie uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha;b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas;c) Se houver um interessado nascituro, a partir do conhecimento do facto nos autos e até ao nascimento do interessado, exceto quanto aos atos que não colidam com os interesses do nascituro.2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens.3 - O tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado direto, autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido:a) Quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória;b) Quando se afigure reduzida a viabilidade da causa prejudicial;c) Quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial.4 - À partilha, realizada nos termos do número anterior, são aplicáveis as regras previstas no artigo 1124.º relativamente à entrega aos interessados dos bens que lhes couberem.”
Por seu turno, o art.º 1093.º do CPC, com a epígrafe “Outras questões prejudiciais”, estabelece:
“1.Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.
Da conjugação destes dois artigos, verifica-se que o art.º 1092.º n.º 1 al. b) e o art.º 1093.º n.º 1 do CPC, reportando-se ambos a questões prejudiciais, têm um diferente âmbito de aplicação que é delimitado por duas vias: uma objetiva que distingue as questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo das que não respeitem a essa admissibilidade; e uma subjetiva que distingue consoante está em causa a definição de direitos de interessados diretos na partilha ou a definição de direitos que não respeitem a estes interessados.
Na situação em presença a controvérsia está nas verbas 1 e 2 identificadas na Relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, como constituindo um crédito deste sobre os bens comuns.
Se é certo que a questão controvertida não respeita à admissibilidade do processo de inventário, que não está em discussão, a verdade é que se trata da definição de direitos de um interessado direto na partilha, já que é o cabeça de casal que pretende ver reconhecido aquele seu crédito que relacionou.
O art.º 1093.º do CPC, como a própria epígrafe indica, só deve ser convocado se estão em causa questões prejudiciais que não se integrem na previsão do artigo anterior, o que manifestamente não é o caso, uma vez que se verifica a previsão do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC.
Os efeitos da decisão da remessa dos interessados para os meios comuns também são, pelo menos num primeiro momento, diferentes, já que de acordo com o art.º 1092.º n.º 1 al. b) o juiz deve suspender a instância, sem prejuízo de autorizar o seu prosseguimento, nos termos e nas situações previstas no n.º 3 deste artigo; em contrário, no âmbito do art.º 1093.º n.º 2 a suspensão da instância não decorre necessariamente da remessa dos interessados para os meios comuns, podendo, no entanto, vir a ser determinada pelo juiz, se verificados os pressupostos previstos em tal norma.
Nestes termos, já se vê que o Recorrente tem razão quando refere que foi indevidamente aplicado o art.º 1093.º n.º 1 do CPC, que visa as questões que não respeitem à definição de direitos de interessados diretos na partilha, já que respeitando a questão em litígio a estes interessados, a situação integra-se no âmbito do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, que estabelece que o juiz deve determinar a suspensão da instância, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
- da (in)devida remessa dos interessados para os meios comuns
O Recorrente considera que o tribunal a quo andou mal ao remeter os interessados para os meios comuns, concluindo que os elementos constantes dos autos já permitem reconhecer o seu direito ao crédito identificado na verba n.º 1 relativo ao valor de mais valias que investiu no imóvel comum do casal e quanto ao seu crédito identificado na verba n.º 2 está reconhecida a sua existência “havendo que adaptá-lo à realidade”.
O tribunal a quo afirmou de forma conclusiva que “tal matéria é controvertida e de natureza complexa” e que “a prova que as partes terão de produzir para a decisão da questão em apreço manifestamente extravasa a natureza incidental da reclamação à relação de bens”, remetendo os interessados para os meios comuns.
Vejamos em concreto a questão controvertida que se reporta aos créditos relacionados pelo cabeça de casal nas verbas n.º 1 e 2 da relação de bens, nos seguintes termos:
Verba 1
Crédito do cabeça de casal, ora requerente do montante de € 22.445,00 sobre os bens comuns do casal, montante que foi investido na construção do prédio urbano construído pelo casal, conforme docs n.ºs 1 e 2 que ora se juntam.
Verba 2
Crédito do cabeça de casal, ora requerente do montante de € 117.217,00 sobre os bens comuns do casal, porquanto o lote de terreno onde se encontra implantado o prédio urbano identificado na verba 37 da relação de bens foi comprado pelo requerente em 18 de maio de 2005 no estado de solteiro, conforme documento n.º 3 que ora se junta.
A Requerida veio reclamar da relação de bens apresentada, pugnando pela inexistência destes créditos, afirmando quanto à verba n.º 1 que o cabeça de casal não investiu dinheiro próprio na construção do imóvel comum e quanto à verba n.º 2 que o terreno foi adquirido com recurso a um crédito hipotecário, tendo após o casamento, ocorrido menos de três meses depois da aquisição, o pagamento das prestações ao banco sido suportado por ambos os membros do casal com os seus rendimentos do trabalho.
Na resposta à reclamação, o cabeça de casal veio esclarecer que o valor da verba n.º 1 se reporta às mais valias pela venda de um imóvel próprio, que investiu na construção do imóvel comum, conforme foi declarado em sede de IRS; quanto à verba n.º 2 admitiu que depois do casamento o mútuo hipotecário contraído para a aquisição do terreno foi pago com o rendimento proveniente do trabalho de ambos os cônjuges, retificando o crédito que reclamou nesta verba para a quantia de € 20.550,38 correspondente à diferença do valor de aquisição do terreno e prestações do mútuo bancário que pagou da sua responsabilidade.
Em primeiro lugar, importa sublinhar, que o Recorrente vem agora em sede de recurso suscitar questões novas relativas à verba n.º 2, que não cabe a este tribunal decidir, ainda para mais passando por cima do que foi a sua conduta processual anterior.
O cabeça de casal começou por identificar na verba nº 2 um crédito sobre os bens comuns do casal no montante de € 117.217,50, valor pelo qual adquiriu o terreno onde foi implantado o imóvel comum, no estado de solteiro; na sequência da impugnação da cabeça de casal, o mesmo veio retificar o valor daquele crédito para € 20.550,38 admitindo que o crédito hipotecário depois do casamento foi pago por ambos os cônjuges com os rendimentos do seu trabalho, chegando a este valor somando € 11.721,47 (correspondente à diferença entre o valor de aquisição e o valor do crédito contraído) e € 8.828,64 (relativo a 24 prestações de € 367,86 cada que pagou até 25 de maio de 2007); agora em sede de recurso, passando por cima de tudo isto, recusando a remessa das partes para os meios comuns, vem requerer que este tribunal determine a avaliação do lote de terreno, com vista à definição deste seu invocado crédito.
O recurso tem em vista a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido e não a tomada de posição sobre questões novas que anteriormente não foram suscitadas pelas partes e objeto de apreciação pelo tribunal a quo.
Não é controvertido e decorre do art.º 627.º nº 1 do CPC que os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões anteriormente apreciadas e decididas pelo tribunal recorrido, e não a pronúncia sobre questões novas- vd. neste sentido, entre outros, e apenas a título de exemplo, o Acórdão do TRL de 14-02-2013, no Proc. 285482/11.6YIPRT.L1-2 in www.dgsi.pt
Como nos diz Brites Lameiras, in Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, pág. 16: “o recurso não visa um segundo julgamento, mas apenas um reexame, por um tribunal superior, do julgamento proferido por um tribunal inferior, e para corrigir eventual erro de que enferme a decisão por este último tomada.”
O que se impõe então avaliar é o invocado erro da decisão que remeteu os interessados para os meios comuns para discutirem as verbas n.º 1 e 2 da relação de bens, não cabendo a este tribunal pronunciar-se sobre diligências requeridas pelo cabeça de casal no recurso.
No processo de inventário, deve o cabeça de casal nomeado proceder à apresentação da relação de bem, nos termos previstos nos art.º 1097.º n.º 1 e 3 al. c) e art.º 1098.º do CPC com especificação, por meio de verbas, dos bens que integram a herança ou, no caso, o património comum dos cônjuges, indicando o seu valor.
Apresentada a relação de bens, podem os restantes interessados reclamar contra ela, nos termos do art.º 1104.º n.º 1 al. d) do CPC, no que a lei vem configurar como um verdadeiro incidente tramitado nos próprios autos, regulamentado no art.º 1105.º do CPC, com a realização das diligências probatórias necessárias com vista à sua decisão – neste sentido diz-nos Carla Câmara in O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, pág. 70: “Apresentado articulado de oposição, impugnação ou reclamação, prossegue o conhecimento das questões objeto deste requerimento, com a natureza de incidente, podendo ocorrer tantos incidentes quantas as questões suscitadas à apreciação.”
Nos termos do mencionado art.º 1105.º n.º 1 do CPC, tendo sido apresentada reclamação à relação de bens, os interessados que tenham legitimidade para se pronunciar sobre as questões suscitadas têm o prazo de 30 dias para responder, indicando com a resposta a prova que tenham por conveniente, de acordo com o n.º 2 deste artigo, na configuração de uma tramitação processual quanto à apresentação de prova, idêntica à dos incidentes da instância, regulada nos art.º 293.º n.º 1 do CPC.
Quer o reclamante, quer o cabeça de casal, têm o ónus de indicar os elementos de prova no requerimento respetivo em que deduzem a reclamação ou respondem a ela, conforme dispõe o art.º 1105.º n.º 2 do CPC, ao prever que sendo deduzida oposição ou impugnação as provas são indicadas com os requerimentos e resposta.
O tribunal apenas deve remeter os interessados para os meios comuns, quando as questões prejudiciais a resolver, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, tal como expressamente previsto quer no art.º 1092.º n.º 1 al. b), quer no art.º 1093.º n.º 1 do CPC.
Como nos dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 544, em anotação ao art.º 1092.º do CPC: “Em princípio, o inventário tem potencialidade para apreciar todas as questões de facto e de direito pertinentes, sem necessidade de recurso aos meios processuais comuns. (…) o facto de a lei aludir à complexidade no apuramento da matéria de facto significa que não se justifica a suspensão a eventual complexidade na resolução de questões de direito.”
No mesmo sentido também se pronuncia Carla Câmara, in O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, pág. 132 quando refere: “A decisão de qualquer questão, seja ela relativa à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, ou a qualquer outra questão, cabe ao tribunal onde o processo se inventário corre seus termos. É este tribunal, onde corre o processo de inventário, que tem competência para dirimir todas as questões atinentes à definição do acervo hereditário a partilhar e dos interessados pelos quais vai ser partilhado aquele acervo. A remessa das partes para os meios comuns ocorre excecionalmente.”
O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.
No âmbito do processo de inventário, as questões controversas que se coloquem seguem a tramitação dos incidentes, o que pode não se mostrar adequado para assegurar as garantias dos interessados, já que desde logo tem associada uma maior simplificação e limitação probatória do que o processo comum, podendo suscitar-se questões, que pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto subjacente não se coadunem com uma tramitação mais simplificada.
São estes os critérios que têm de estar na base da decisão da remessa dos interessados para os meios comuns, o que implica a avaliação em concreto das questões a dirimir e dos factos que têm subjacentes, salientando-se que não constitui fundamento para remeter os interessados para os meios comuns a insuficiência de meios de prova apresentados pelas partes com vista ao esclarecimento dos factos que alegam – neste sentido, pronunciou-se o Acórdão do TRL de 30-06-2011 no proc. 2083/05.8TMLSB-B.L1-1 in www.dgsi.pt quando refere: “Ora, a lei não faz depender a remessa dos interessados para os meios comuns do facto de algum dos interessados não ter carreado para os autos, quando o podia ter feito, meios de prova conducentes à demonstração dos factos, mas apenas se for de admitir que nos meios comuns tais factos poderão ser mais largamente investigados.”
Se se avaliar em concreto as questões a dirimir e os factos a ela subjacentes invocados pela interessada na oposição à relação de bens e na reposta do cabeça de casal, não pode deixar de verificar-se que não há grande complexidade na matéria de facto que se impõe apurar.
A verba n.º 1 da relação de bens indica um valor que terá sido investido pelo cabeça de casal na construção do prédio comum. Competindo-lhe a prova de tal facto, o mesmo veio invocar que tal corresponde às mais valias que teve com a venda de imóvel anterior, juntando os documentos que teve como pertinentes para o demonstrar, constatando-se que nos respetivos articulados ambos os interessados juntam documentos e só a Requerida arrolou uma testemunha.
Quanto à verba n.º 2 representa um alegado crédito do cabeça de casal pelo facto de ter adquirido o terreno onde foi implantada a construção que é imóvel comum do casal. O cabeça de casal já reconheceu que o mútuo hipotecário relativo àquele terreno, depois do casamento, teve as respetivas prestações pagas por ambos os cônjuges, fixando aquele crédito na quantia que pagou pelo mesmo que não foi abrangida pelo crédito hipotecário, acrescida das prestações que pagou da sua responsabilidade.
Avaliando a controvérsia exposta pelos interessados nos respetivos articulados, não se vê como qualificar de complexa a matéria de facto que lhes está subjacente e que importa apurar, sendo certo que também não se vislumbra que as partes vejam de alguma forma comprimidas as suas garantias, se as questões forem resolvidas incidentalmente, com recurso à prova que cada uma delas oportunamente apresentou.
Em face do que fica exposto, considera-se que não estão reunidos os pressupostos para a remessa das partes para os meios comuns, nos termos previstos no art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, para decidir estes dois direitos invocados pelo cabeça de casal, impondo-se a revogação da decisão recorrida que o determinou, devendo os autos prosseguir com a decisão incidental das mesmas no âmbito do processo de inventário."
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