"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/06/2025

Jurisprudência 2024 (186)


Cumulação de pedidos;
dupla conforme*

1. O sumário de STJ 15/10/2024 (1530/20.3T8CBR.C1.S1é o seguinte:

I - A delimitação da dupla conformidade de decisões, enquanto obstáculo admissibilidade da revista, exige o confronto com a autonomia e cindibilidade do objecto do processo, mesmo no caso de objecto único, e na viabilidade da apreciação de segmentos da decisão entre si independentes, autonomia que é aferida em função da respectiva fundamentação;

II - A cláusula, inserta num contrato promessa bivinculante, em execução da qual a coisa imóvel objecto mediato do contrato de compra e venda prometido é traditada para os promitentes compradores, mediante o pagamento de uma compensação, devida até à conclusão do contrato definitivo, não é qualificável com contrato de arrendamento urbano, mas como simples convenção acessória, subalterna e instrumental, através da qual se antecipa um dos efeitos jurídicos deste último contrato;

III - Do contrato promessa emergem, além das prestações principais de facto jurídico positivo - a obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido - deveres acessórios de conduta que arrancam, materialmente, do princípio regulativo estruturante da boa-fé;

IV - A resolução do contrato promessa exige o incumprimento definitivo das obrigações que dele emergem, o incumprimento definitivo que surge não apenas quando for força da não realização ou do atraso na prestação o credor perca o interesse objectivo nela ou quando, havendo mora, o devedor não cumpra no prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor - mas igualmente nos casos em que o devedor declara expressamente não pretender cumprir a prestação a que está adstrito ou adopta uma qualquer outra conduta manifestamente incompatível com o cumprimento;

V - A resolução infundada do contrato promessa determina o seu incumprimento, dado que revela o propósito, claro, sério e unívoco, a intenção categórica ou o propósito indubitável e irrevogável de não cumprimento - e de não cumprimento definitivo - daquele mesmo contrato;

VI - Apesar da autonomia do contrato promessa relativamente ao contrato definitivo e de dele apenas resultarem prestações de facto jurídico positivo, no cumprimento destas obrigações são relevantes as eventuais perturbações das prestações que resultam do contrato definitivo ou principal;

VII - A alegação do abuso de direito, quando tenha por efeito a inibição do exercício de poderes jurídicos, v.g., de um direito subjectivo, resolve-se numa excepção peremptória, cabendo, por isso, o ónus da prova dos factos correspondentes ao excipiente, pelo que, no caso de non liquet, há que decidir contra essa parte a questão correspondente.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2. Fundamentos de direito.

3.2.1. Inadmissibilidade da revista no tocante à questão da qualificação da convenção contida no n.º 3 da cláusula 4.º do texto da promessa de contrato como contrato de arrendamento.

As instâncias são acordes na recusa da qualificação da convenção inserta n.º 3 da cláusula 4.ª do texto contratual como contrato de arrendamento urbano. Os recorrentes insistem, na revista, nessa qualificação, o que, de resto, corresponde à estratégia processual que adoptaram na petição inicial e com qual, já se vê, visavam subtrair-se ao risco – que se concretizou com o acórdão impugnado – de verem paralisada a entrega do imóvel prometido vender em consequência do reconhecimento, às recorridas, do direito de retenção sobre ele, para garantia dos créditos que emergem da supressão, por resolução, da promessa de contrato.

Uma causa de exclusão da recorribilidade dos acórdãos da Relação, de largo espectro, é a chamada dupla conforme, de harmonia com a qual não é admitida revista daqueles acórdãos, sempre que confirmem, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (art.º 671.º, n.º 3, do CPC).

Como a conformidade das decisões das instâncias exclui o recurso de revista que, doutro modo, seria admissível, o que importa determinar é se essas decisões são conformes – duae conformes sententiae - não se são desconformes, pelo que se aquelas decisões não forem inteiramente coincidentes, o que interessa determinar é se essa não coincidência equivale a uma não-conformidade. As decisões das instâncias podem ser conformes, mesmo que entre elas se registe alguma desconformidade, o que é confirmado pela regra de que as decisões das instâncias são conformes se as respectivas fundamentações, apesar de distintas, não forem essencialmente diferentes (art.º 671.º, n.º 3, do CPC). Para verificar se o acórdão da Relação é conforme ou desconforme perante a decisão da 1.ª instância há que considerar os elementos das duas decisões. E entre os elementos das duas decisões, interessantes para a avaliação ou aferição daquela conformidade releva, desde logo, a fundamentação: se a fundamentação das decisões das instâncias for homótropa ou não for essencialmente diferente, a revista é inadmissível; se, porém, a motivação do acórdão da Relação for essencialmente distinta, aquele recurso ordinário é admissível.

Apesar de alguma flutuação de formulações, por fundamentação essencialmente diversa este Tribunal tem entendido, não aquela que seja divergente no tocante a aspectos marginais, subalternos ou secundários - mas a que assente numa ratio decidendi inteiramente distinta, como sucede quando radica em institutos ou normas jurídicas completamente diferenciadas ou quando, movendo-se embora no âmbito do mesmo instituto ou norma jurídica, os interpreta de modo inteiramente divergente, aplicando ao objecto do processo um enquadramento jurídico marcadamente diferenciado que se repercuta, decisivamente, na solução jurídica da controvérsia [---].

Em face deste enunciado, é clara a conformidade de decisões, da 1.ª instância e da Relação no tocante à questão da qualificação considerada a unanimidade do acórdão impugnado e a homogeneidade da fundamentação de um e de outro acto decisório, dado que ambos convergiram na conclusão de que a apontada convenção não constitui um contrato de arrendamento urbano – mas uma simples estipulação conformadora da traditio da coisa imóvel objecto do contrato definitivo prometido.

Como decorre, por exemplo, do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2022, de 18 de Outubro – DR n.º 201/2022, Série I, de 2022.10.18 – a delimitação da dupla conformidade de decisões reclama o confronto com a autonomia e cindibilidade do objecto do processo, mesmo no caso de objecto único, e na viabilidade da apreciação de segmentos da decisão entre si independentes, autonomia que é aferida um função da respectiva fundamentação. Ora os fundamentos da revista representados pela resolução do contrato promessa bivinculante de compra e venda e pela resolução do contrato de arrendamento são – materialmente – autónomos entre si e juridicamente cindíveis, dado que cada um deles é, de per se, suficiente para justificar a procedência do recurso, pelo que a confirmação, pela Relação, sem voto de vencido e sem uma fundamentação essencialmente, da decisão da 1.ª instância de não verificação de qualquer desses fundamentos, dá lugar, quanto aos fundamentos sucessivamente apreciados de modo uniforme, a uma decisão conforme que obstacula à admissibilidade da revista comum ou normal. Do que decorre, quanto à questão da qualificação da apontada cláusula contratual, a inadmissibilidade da revista por força da duae conformes sententiae."


*3. [Comentário] Adere-se, sem reservas, à orientação do STJ.

Tudo teria sido mais simples se se atendesse a que os Autores formularam dois pedidos: um pedido de resolução do contrato de arrendamento e um pedido de pagamento de uma indemnização pela mora na entrega do locado. Quer dizer: o objecto do processo comporta uma cumulação simples de pedidos (art. 555.º CPC).

Quando assim é, a dupla conformidade é necessariamente apreciada de forma distinta para cada um dos pedidos formulados pelo demandante. É, aliás, nesta base (e apenas nela) que se pode pode aceitar a doutrina definida no Ac. STJ 7/2022, de 18/10.

MTS