"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/06/2025

Jurisprudência 2024 (187)


Procedimento de injunção; transacções comerciais; 
oposição; reconvenção*


1. O sumário de RP 10/10/2024 (19382/24.2YIPRT-A.P1) é o seguinte:

Quando na oposição à injunção o requerido deduz reconvenção, o valor processual a atender para efeitos de determinação da forma de processo a seguir (que pode interferir com a decisão de admitir a reconvenção) é o resultante da soma do pedido do requerente com o pedido reconvencional.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] a única questão a decidir consiste em saber se a reconvenção deve ser admitida, relevando para o efeito a circunstância de a instância corresponder originariamente a um procedimento de injunção instaurado ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, e no artigo 7.º e seguintes do regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro.

Na origem do conflito encontra-se um contrato celebrado entre a requerente e a requerida nos termos do qual aquela se obrigou criar, conceber e desenhar quatro rótulos e contra-rótulos para impressão destinados à colocação em garrafas de bebidas comercializadas pela requerida.

A requerida obrigou-se a pagar o preço desse serviço em duas prestações iguais, pagou a primeira prestação, mas não pagou a segunda. A requerente considera que realizou o serviço contratado e que a requerida aceitou esse serviço, pelo que emitiu a correspondente factura e reclama agora o seu pagamento, acrescido de juros de mora.

A requerida deduziu oposição dizendo que o produto que a requerente lhe apresentou não possui as características acordadas e apresenta defeitos, pelo que não cumpriu pontualmente o contrato, e, por isso, pretende a resolução do contrato, ser dispensada do pagamento do remanescente do preço e recuperar a parte desse preço que já pagou.

Em reconvenção pede a restituição da parte do preço que pagou e uma indemnização que alega ter sofrido por causa desse incumprimento (danos patrimoniais no montante do valor que pagou a uma terceira entidade para obter o serviço que havia contratado à requerente; danos não patrimoniais decorrentes da lesão da sua imagem no mercado).

Sendo esta a configuração da acção e da reconvenção, pode afirmar-se que no âmbito de uma acção declarativa com processo comum a reconvenção é admissível. Com efeito, a acção e a reconvenção têm ambas por objecto o mesmo contrato, colocam ambas a questão de saber se a autora cumpriu a prestação a que se vinculou, e a reconvenção emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa, mais precisamente o não cumprimento do contrato por parte da requerente (cf. exemplo de Paulo Pimenta, in Processo Civil Declarativo, 3.ª edição, pá. 210).

A reconvenção tem de observar um requisito de natureza processual atinente à forma do processo. Nos termos do n.º 3 do artigo 266.º do Código de Processo Civil a reconvenção não é admissível «quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações».

A reconvenção exige, pois, que a forma do processo correspondente ao pedido do autor e a forma adequada para o pedido reconvencional sejam compatíveis entre si, rectius, não sejam diferentes. Se o forem, o juiz pode, ainda assim, autorizar a dedução da reconvenção se as formas de processo envolvidas não possuírem uma tramitação manifestamente incompatível e haja interesse relevante na cumulação das pretensões ou a sua apreciação em conjunto for indispensável para a justa composição do litígio.

Como refere Paulo Pimenta, loc. cit., pág. 90, a exigência da unidade da forma do processo «visa impedir que o enxerto da acção reconvencional no processo pendente possa causar perturbações e embaraços à sua normal e previsível tramitação», daí que «se estivermos numa acção comum, é admissível reconvenção se a esta couber igualmente a forma comum de processo. E se a acção for especial, a reconvenção só é admitida se lhe corresponder a mesma forma especial, e não outra forma especial ou a forma comum».

O autor formulou a sua pretensão através de um procedimento de injunção.

A escolha dessa forma foi correcta porque a sua pretensão de exigir o cumprimento de uma obrigação de natureza pecuniária emergente de um contrato se adequa aos fins do Regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000, aprovado em anexo do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro.

Este regime compreende uma acção declarativa (artigos 1.º a 6.º) e o procedimento de injunção (artigos 7.º a 21.º), sendo a utilização deste meramente facultativa (o autor pode escolher a injunção ou a acção) e a tramitação daquela igualmente aplicável a este no caso de ser apresentada oposição ao procedimento e este se convolar em acção judicial.

De referir que a acção declarativa destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000 apenas compreende dois articulados, a petição inicial e a contestação, razão pela qual esta forma de processo especial (não comum) não parece compatível com a dedução da reconvenção, a qual exigirá sempre que o reconvindo disponha de um articulado para contestar a pretensão que lhe é dirigida.

A escolha do procedimento de injunção também estava justificado pelo regime do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, que estabelece medidas contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais. Com efeito, este diploma, aplicável a qualquer falta de pagamento do montante devido no prazo contratual, tendo o credor cumprido as respectivas obrigações, desde que essa obrigação advenha de uma transacção entre empresas cujo objecto seja o fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração [artigo 1.º, 2.º, n.º 1, e 3.º, alíneas a) e b)], dispõe no seu artigo 10.º, n.º 1, que o atraso de pagamento em transacções comerciais, nos termos previstos no diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.

Deve, por isso, perguntar-se qual é a tramitação processual a observar no caso uma vez deduzida pela requerida oposição ao procedimento de injunção: a acção declarativa destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000 (do Decreto-Lei n.º 269/98) ou a acção com forma de processo comum?

O artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013, estabelece que «para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum».

Importa por isso saber como se determina esse valor. Nos termos do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 269/98, o valor processual da injunção e da acção declarativa que se lhe seguir é o do pedido, atendendo-se, quanto aos juros, apenas aos vencidos até à data da apresentação do requerimento. Mas de que pedido estamos a falar, quando na oposição o requerimento deduz reconvenção?

A questão foi apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 06-06-2017, proc. n.º 147667/15.5YIPRT.P1.S2, in www.dgsi.pt, onde se decidiu não haver «razão para concluir da leitura do artigo 10.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 62/2013 que o mesmo quis afastar as regras processuais gerais sobre o cálculo do valor de uma acção. É natural que primeiro se tenha em conta o valor do pedido – aliás nesse momento não há sequer uma acção – mas com a dedução de oposição, e convertendo-se então a medida em procedimento jurisdicional, haverá que aplicar as regras dos artigos 299.º e seguintes do CPC. Assim, atende-se ao momento em que o procedimento se converte em jurisdicional (porque na injunção não se começa por propor uma acção) “excepto quando haja reconvenção” (n.º 1 do artigo 299.º do CPC), sendo que, então, o valor do pedido formulado pelo Réu é somado ao valor do pedido formulado pelo Autor quando os pedidos sejam distintos (n.º 2 do artigo 299.º)» (seguem esta solução, por exemplo, os Acórdãos desta Relação de 10-09-2024, proc. n.º 80995/23.2YIPRT-A.P1, e de 10-07-2024, proc. n.º 27994/21.0YIPRT-A.P1, ambos in www.dgsi.pt).

No caso, aliás, o despacho recorrido fixou o «valor da causa» em € 45.653,50 na parte relativa à reconvenção, pelo que é forçoso concluir que também para o despacho recorrido a totalidade do valor da causa resultará da soma do valor do pedido com o valor da reconvenção, ou seja, é de [€45.653,50 + €756,75] €46.410,25.

Sendo esse o valor da acção, esta deve seguir a forma de processo comum (artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013) e, em consequência, não existe obstáculo de natureza processual à admissibilidade da reconvenção (cf., dos mais recentes, o Acórdão da Relação de Lisboa de 16-06-2020, proc. n.º 77375/19.8YIPRT-A.L1-7, o Acórdão da Relação do Porto de 10-07-2024, antes citado, e a decisão singular do Vice-presidente da Relação de Lisboa de 22-03-2024, proc. n.º 1858/23.0T8SXL.L1-1, in www.dgsi.pt).

A grande discussão a este nível tem-se colocado apenas em relação às acções que por não excederem metade da alçada da Relação não seguem a forma do processo comum, mas antes a forma da acção declarativa regulada no Decreto-Lei n.º 269/98 e destinada a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000 (cf. Acórdão da Relação do Porto de 10-09-2024, antes citado). Não é o caso dos autos.

Sendo assim, só resta concluir que o despacho recorrido não pode subsistir. Os demais argumentos usados para fundamentar a recusa da reconvenção são, aliás, ilegais.

Em regra, a dedução da reconvenção é um direito potestativo de natureza processual do réu. Desde que se verifiquem os requisitos substanciais (ser um dos casos do elenco do n.º 2) e processuais (não haver diferença da forma de processo), o réu pode decidir livremente deduzir reconvenção, sem que o juiz possa opor a essa escolha as dificuldades decorrentes do julgamento conjunto da acção e da reconvenção. O contrário é que é verdadeiro, mas apenas quando o obstáculo se prende exclusivamente com a forma do processo e o juiz entende que existem vantagens nesse julgamento conjunto.

Só nos casos em que o pedido reconvencional envolver outros sujeitos, cuja intervenção o reconvinte pretenda para dirigir a reconvenção também contra eles, e desde que não se trate de litisconsórcio necessário, é que o tribunal, se entender que, apesar de se verificarem os requisitos da reconvenção, há inconveniente grave na instrução, discussão e julgamento conjuntos, pode decidir absolver os chamados da instância quanto ao pedido reconvencional (n.os 4 e 5 do artigo 266.º do Código de Processo Civil). Note-se, absolver da instância os chamados, não a parte primitiva, pelo que em relação a estes, mesmo nessa circunstância, a reconvenção é admitida."

*3. [Comentário] A RP decidiu bem.

Apenas uma pequena chamada de atenção: onde se diz "nos termos do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 269/98" deve entender-se que se pretendia dizer "nos termos do artigo 18.º do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 269/98".

MTS