"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/06/2025

Jurisprudência 2024 (197)


Processo de inventário;
homologação da partilha; caso julgado*


1. O sumário de RC 8/10/2024 (436/18.0T8LSA.C1) é o seguinte:

I – A sentença homologatória da partilha não constitui caso julgado numa ação em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade de uma verba, com fundamento no instituto da usucapião, quando no inventário não tenha sido concretamente apreciada, em incidente declarativo, a questão da titularidade desse bem.

II – Após a dissolução do vínculo conjugal por óbito de um dos cônjuges, a demonstração da posse relevante para aquisição por usucapião, pelo cônjuge sobrevivo, de bem que integrava o património comum do extinto casal, não dispensa a prova de factos de onde resulte a inversão do título, a que alude o art. 1265º do Código Civil.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3. O efeito preclusivo do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha do anterior processo de inventário

Na conclusão n.º 4, os recorrentes referem: “(d)iz-se que uma decisão não anula a outra, mas a presente sentença anula a sentença do processo de inventário, cujo trânsito em julgado já ocorreu em 2015”.

Pese embora o seu teor algo equívoco, em nossa opinião, esta conclusão, se complementada com o conteúdo das alegações de recurso [---], é suscetível de ser interpretada como uma pretensão de recurso sobre o segmento decisório (da sentença) que julgou improcedente a exceção de autoridade de caso julgado.

Vejamos, então.

Como decorre da factualidade enunciada, o imóvel em discussão foi integrado na relação de bens do inventário para partilha das heranças (cumuladas) de FF - avó e bisavó do primeiro e segundo autor, respetivamente - e do primeiro e pré-falecido marido desta, nele intervindo como interessados a mãe e avó dos aqui autores e os descendentes daquele primeiro casamento.

Tal imóvel, correspondente à verba n.º 55 daquela relação de bens da inventariada FF, foi, em conferência de interessados, licitado pelas rés e adjudicado às mesmas por sentença homologatória de partilha, transitada em julgado em 24 de abril de 2015, não tendo havido emenda da partilha, nem ação destinada a obter a anulação da partilha.

Pretendem as recorrentes que, perante esta factualidade, ocorre caso julgado inibidor da propositura da presente ação, entendimento que não foi acolhido na sentença recorrida.

Vejamos.

A expressão caso julgado quer retratar a realidade jurídica de uma situação já jurisdicionalmente apurada, já julgada.

A doutrina tem chamado a atenção para as diversas perspetivas - e concernente alcance - com que o instituto pode ser equacionado.

E assim, por exemplo, se vem distinguindo o caso julgado como exceção dilatória da figura da autoridade do caso julgado ou ainda do alcance ou efeito preclusivo do caso julgado.

Como exceção dilatória, o caso julgado visa obstar à repetição de uma causa e evitar que o tribunal se veja na contingência de ter de reproduzir ou contrariar a anterior decisão (art.º 580º, nº 1 e nº 2, do CPC), definindo a lei a noção de repetição da causa através dos consabidos critérios de identidade de sujeito, de pedido e de causa de pedir (art.º 581º do CPC).

Por seu turno, como autoridade, o alcance do julgado recorta-se, já não como obstáculo processual a uma causa seguinte mas, mais positivamente, pela afirmação do que já antes foi decidido como objeto e que, por isso, já se não pode discutir - de uma outra (e precedente) causa. [...]

Importa ainda fazer referência ao designado efeito preclusivo do caso julgado [Na doutrina não tem obtido resposta unânime a questão de saber se o efeito preclusivo deverá ser integrado no caso julgado ou, por outro lado, tratado com autonomia (neste sentido cf. o Ac. do STJ, de 17 de janeiro de 2017, processo n.º 3844/15.5T8PRT.S1, in www.dgsi.pt)]

Dentro do processo, a definitividade da decisão impede que nele ela seja contraditada ou repetida (o designado caso julgado formal).

“Fora do processo, produz-se um efeito preclusivo material: não só precludem todos os possíveis meios de defesa do réu vencido e todas as possíveis razões do autor que perde a ação, mas também, com maior amplitude, toda a indagação sobre a relação controvertida, delimitada pela pretensão substantivada (pedido fundado numa causa de pedir) deduzida em juízo”  [Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade de caso julgado”, in Revista da Ordem dos Advogados, III-IV, 2019, pag. 692].

Feitas estas breves considerações, que entendemos necessárias a um adequado enquadramento que a apreciação deste concreto fundamento do recurso demanda, desde já adiantamos, tal como a sentença recorrida, ser concluir que o trânsito em julgado da sentença homologatória proferida no sobredito inventário não inibe os autores da propositura desta ação onde reclamam o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel ali partilhado e adjudicado às rés, com fundamento na aquisição originária do mesmo por usucapião.

Tal como refere a Mmª Juíza a quo, a sentença homologatória de partilhas, na expressão de Lopes Cardoso [In "Partilhas Judiciais", II, 3ª ed., pág 495, 506 e 547.], limita-se a "chancelar", "autenticar" uma dada partilha, mediante a qual se atribui aos respetivos interessados o direito de propriedade sobre certos e determinados bens; tal decisão só surtirá, contudo, eficácia de caso julgado no tocante às questões que, "ex professo", hajam sido discutidas e dirimidas no correspondente processo de inventário.

Se bem que os autores devam ser considerados os únicos herdeiros de HH, que interveio como interessada naquele inventario (sendo, por isso, inquestionável, para efeitos de apreciação deste exceção, a verificação do referido pressuposto da identidade jurídica de sujeitos), a verdade é que, no aludido inventário, não houve qualquer incidente de reclamação contra a relação de bens na parte atinente ao imóvel descrito sob a verba n.º 55, pelo que a sentença homologatória do inventário não apreciou nem se pronunciou sobre o direito de propriedade relativo ao bem imóvel em causa nestes autos, antes aceitou como bom o pressuposto de que tal bem integrava a herança aberta por óbito de FF, procedendo à respetiva partilha, de acordo com os quinhões hereditários de cada um dos herdeiros de cada um dos inventariados.

Acresce que o efeito preclusivo do julgado se relaciona essencialmente com a posição passiva na ação judicial e resulta de dois mecanismos processuais distintos. “Efectivamente, o princípio de concentração da defesa na contestação (art. 573º do CPC), incluído na defesa superveniente (como se deduz da conjugação dos artigos 588º, n.º 1, e 729º, al. g)) determina a preclusão de toda a defesa que haja oportunamente feito valer contra a concreta causa de pedir invocada pelo autor. Assim, o réu que perdeu já não pode, depois, na oposição à execução (cf. artigos 729º, al. g), a contrario, e 860º, n.º 3) invocar as exceções que não usara, como por ex. a nulidade do contrato invocado pelo autor, para se negar ao pagamento. Mas, por outro lado, tampouco o pode fazer em (i) ação autónoma ou em (ii) reconvenção, porque lhe vai ser oposta a autoridade de caso julgado decorrente da vinculação positiva externa do caso julgado assente no art.º 619º do CPC, em sede e objetos em relação de prejudicialidade” [Rui Pinto, “Exceção e Autoridade de Caso Julgado, Revista Julgar online, Novembro de 2018, pag. 42.]

Sucede que, no processo inventário, as partes interessadas não têm a qualidade de demandantes e demandados.

Como bem se refere na sentença recorrida, “o processo de inventário é um processo complexo, podendo ele configurar-se como um processo de jurisdição voluntária ou já de feição contenciosa, tudo dependendo da circunstância de, no seu decurso, surgirem questões entre os interessados que provoque ou não a actividade jurisdicional para decidir controvérsias. Se o juiz for chamado e forçado a decidir, a administrar justiça, transformando-se o processo em contencioso, deixando a jurisdição de ser voluntária e provocando a apreciação de prova produzida e do direito aplicável e subsequente decisão de mérito, aí nenhuma dúvida oferece que, em sede de julgamento de questões de índole contenciosa, a consequência será o funcionamento da excepção de caso julgado e da autoridade do caso julgado. Será o caso de questão incidental suscitada em sede de reclamação contra a relação de bens e julgada em processo de inventário se impor à subsequente demanda em acção declarativa comum, nomeadamente em acção de reivindicação, já que, à semelhança desta, o incidente de reclamação contra a relação de bens visa também ele a inclusão ou restituição de um bem em falta a um património comum e não meramente a apreciação acerca da titularidade de um direito. Ora, no inventário em causa, não houve qualquer incidente de reclamação contra a relação de bens atinente à dita verba n.º 55, sendo que só nessa sede se poderia aferir se decisão ali proferida se repetiria aqui quanto à causa de pedir e pedido ou se este tribunal ficaria colocado em posição de possível contradição com o decidido e que se impunha, visto que com o inventário sem mais tais coincidências de causa de pedir e pedido nunca se poderiam verificar”.

Quer isto dizer que não vislumbramos in casu qualquer decisão prejudicial que haja sido tomada naquele inventário que possa ser contraditada por uma (posterior) decisão judicial que, com fundamento na aquisição originária (usucapião) do imóvel ali relacionado e adjudicado às rés, reconheça aos autores do direito de propriedade sobre esse mesmo imóvel.

De facto, como nos diz o sumário do Acórdão da RG de 6.02.2020,  “(a) a sentença homologatória da partilha não constitui caso julgado numa acção de reivindicação da propriedade de uma verba quando no inventário, não tendo corrido qualquer incidente declarativo, não se apreciou nem a titularidade do bem, nem se definiu a sua área, configuração concreta e limites” [Processo n.º 26/18.tT8MDR.G1, in www.dgsi.pt. De referir, contudo, que pese embora o teor do sumário supra transcrito, a situação subjacente àquele aresto não é inteiramente coincidente com a destes autos, na medida em que ali não estava em causa uma questão que contendesse com a titularidade dos bens da herança objeto da partilha homologada por sentença transitada em julgado, mas somente (posteriores) questões atinentes a ónus ou encargos desses bens ou à configuração exata das verbas.]

Por estas razões, entendemos ser de manter a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente a exceção de violação da autoridade de caso julgado invocada pelas rés.

*3. [Comentário] Soa estranho que as partes de um processo de inventário não fiquem vinculadas ao que dele resultou ou nele se decidiu. Independentemente desta estranheza, a RC esqueceu-se, salvo melhor opinião, de um importante argumento de ordem sistemática que contraria o decidido.

O art. 1127.º, n.º 1, CPC regula a anulação da partilha, definindo os casos em que a partilha confirmada por sentença homologatória pode ser anulada. Já se alcança o argumento que pode ser invocado: se há condições específicas para a anulação da partilha homologada é porque essa partilha é vinculativa para as partes e não pode ser questionada a não ser se for anulada.

No caso concreto, não tendo sido requerida a anulação da partilha homologada, era indiscutível que os recorrentes estavam vinculados ao que dela resultou.

MTS