"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/10/2024

Jurisprudência 2024 (16)

 
Ilegitimidade singular:
sanação; poderes de gestão processual*

 
1. O sumário de STJ 25/1/2024 (3178/20.3T8STS.P1.S1) é o seguinte: 

I. A admissão do recurso com o fundamento específico da ofensa do caso julgado tem consequências no plano do objecto do recurso: a revista restringe-se à apreciação da ofensa de caso julgado, não sendo conhecidas outras questões eventualmente suscitadas, exceptuadas aquelas que sejam de conhecimento oficioso.

 II. A admissão do recurso com este fundamento não implica o reconhecimento de que existe ofensa de caso julgado; a averiguação sobre se o Acórdão recorrido ofendeu, realmente, o caso julgado deve ser realizada noutra sede.
 
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. Os AA intentaram a presente acção em 22.11.2020, demandando os RR. I...., S.A., e H..., S.A.R.L.

2. Requereram a desanexação do prédio dos autos com reconhecimento da sua propriedade livre de ónus e encargos.

3. Demandaram a Ré H..., S.A.R.L., na qualidade de credora hipotecária do prédio discutido nos autos (artigo 9.º da petição).

4. Juntaram documentos – certidão da CRP, na qual consta averbada - AP. 1146 de 2019/12/11 11:48:13 UTC – Transmissão de Crédito da apresent. 12 de 2006/01/05 - Hipoteca Voluntária (…) CAUSA: Cessão de Crédito, Anotação - OF. de 2017/01/31 12:30:08 UTC – SUJEITO(S) ATIVO(S): ** LX INVESTMENT PARTNERS III SARL – SUJEITO(S) PASSIVO(S): ** H..., S.A.R.L..

5. A Ré H..., S.A.R.L., por contestação apresentada extemporaneamente, deduziu a sua ilegitimidade passiva em face da cessão do crédito hipotecário à LX INVESTMENT PARTNERS III S.A.R.L, registada na CRP a 11.12.2019.

6. A contestação foi mandada desentranhar.

7. A acção não foi contestada pelos demais RR, tendo sido, em 2-03-2022, proferido despacho a considerar confessados os factos articulados na petição inicial, nos termos do artigo 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e a dar cumprimento ao n.º 2 do citado normativo.

8. Em 28-10-2021, foi deduzido incidente de habilitação de cessionário da LX INVESTMENT PARTNERS III S.À.R.L,

9. Em 27-04-2022, foi proferida sentença, que transitou em julgado, a declarar habilitada a ocupar a posição processual até aqui ocupada pela Ré, H..., S.A.R.L., e, nesta qualidade, a LX INVESTMENT PARTNERS III, S.A.R.L.

10. Em 4-12.2022, foi proferida a sentença de que se recorre.

11. Nos autos não foi proferido despacho saneador.

O DIREITO

Considerações prévias – Dos termos em que o presente recurso é admitido e da (consequente) delimitação do seu objecto

Como decorre do antecedente Relatório, impugna-se no presente recurso um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto em que, na sequências de outras decisões, se atribuiu prazo para contestar à adquirente. O Acórdão recorrido aprecia, pois, visivelmente, uma decisão interlocutória (i.e., não final nos termos do artigo 671.º, n.º 1, do CPC) que recai unicamente sobre a relação processual ou versa exclusivamente sobre matéria adjectiva [...]

Ora, o artigo 671.º, n.º 2, do CPC dispõe:

“Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.

Nas conclusões de recurso, são invocadas tanto a ofensa de caso julgado pelo Acórdão recorrido como a sua contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães (Proc. 7153/15.1T8GMR-B.G1) (cfr., entre outras, as conclusões 2, 3 e 4). [...]

Já relativamente ao segundo fundamento – a ofensa do caso julgado, prevista na al. a) da mesma norma –, a conclusão deverá ser diferente.

A recorrente afirma que o Acórdão recorrido violou o caso julgado formado pela decisão que julgou extemporânea a apresentação da contestação pela primitiva ré proferida em 16.12.2021 (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 9), pela decisão de indeferimento do requerimento de intervenção da adquirente proferida em 2.03.2022 (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 13) e pela sentença de habilitação da adquirente para ocupar a posição processual da primitiva ré proferida por apenso aos presentes autos em 27.04.2022 (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 12).

Estando identificados os casos julgados que a recorrente entende terem sido ofendidos e correspondendo-lhes, de facto, decisões com trânsito em julgado susceptíveis de ser ofendidas [...], admite-se o recurso ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. a), ex vi do artigo 672.º, n.º 1, al. a), ambos do CPC.

Mas a admissão do recurso com este fundamento específico de recorribilidade tem consequências no plano do objecto do recurso: só será possível conhecer dos aspectos do recurso (questão e argumentos) que se prendam ou contendam com a alegada ofensa do caso julgado. Por outras palavras: a revista restringe-se à apreciação da ofensa de caso julgado, não sendo conhecidas outras questões eventualmente suscitadas, exceptuadas aquelas que sejam de conhecimento oficioso.

É, de facto, consensual que “nestas situações, a admissibilidade excepcional do recurso não abarca todas as questões que incidam sobre a exceção dilatória de caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte a 'ofensa' de caso julgado já constituída" [Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 54. Cfr. ainda a doutrina e a jurisprudência citada na p. 55 (nota 71).]

Concretizando, a questão a apreciar neste recurso é, exclusivamente, a de saber se, ao decidir, na sequência de outras decisões, que devia ser dado à habilitada prazo para contestar, o Tribunal a quo incorreu em ofensa do caso julgado, nada mais – nenhuma outra questão ou argumento – se podendo apreciar. [...]

Do objecto do recurso – Da ofensa de caso julgado

[...] O caso julgado formal – que é o que está em causa nos presentes autos – tem força obrigatória apenas dentro do processo (cfr. artigo 620.º, n.º 1, do CPC), obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão anteriormente proferida5.

Já se viu que a recorrente indica três decisões cuja força de caso julgado terá sido, segundo ela, violada, quais sejam:

1.ª) a decisão (transitada em julgado) que julgou extemporânea a apresentação da contestação pela primitiva ré (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 9);

2.ª) a decisão (transitada em julgado) de indeferimento do requerimento de intervenção [espontânea] da adquirente (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 13);

3.ª) a sentença (transitada em julgado) de habilitação da adquirente (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 12).

É razoavelmente evidente que o Acórdão recorrido não comporta violação do caso julgado formado por nenhuma das decisões mencionada, não se decidindo em nenhuma das decisões mencionadas a questão que veio posteriormente a ser apreciada e decidida no Acórdão recorrido.

Recorde-se que, como se viu atrás, a questão apreciada no Acórdão recorrido respeitava a saber se, em face das circunstâncias (ilegitimidade da primitiva ré e respectiva sanação através da substituição processual pela adquirente), a sentença proferida nos autos produzia efeitos em relação à adquirente ou não, devendo ser dado, neste último caso, prazo para contestar à adquirente. E a decisão foi “Declarada sanada a ilegitimidade singular da ré H..., S.A.R.L., com a sua substituição pela recorrente, LX Investment Partner III SARL, anulado o despacho que foi proferido nos termos do artigo 567º do Código de Processo Civil, e termos posteriores, incluída a sentença, devendo ser proferido despacho a conceder ao recorrente prazo para contestar nos termos legais”.

Ora, a questão apreciada e decidida na 1.ª decisão era a de saber se a contestação apresentada pela primitiva ré havia dado ou não entrada dentro do prazo legalmente fixado e devia ser admitida ou considerada extemporânea (decidiu-se que “não se admite a contestação e os meios de prova ora apresentada, por extemporâneos, pelo que se considera a ação não contestada”); a questão apreciada e decidida na 3.ª decisão era a de saber se deveria admitir-se a intervenção da adquirente (decidiu-se que “não se admite a dedução do incidente de intervenção provocada ou de qualquer outro incidente de intervenção legalmente previsto”); por fim, a questão apreciada e decidida na 3.ª decisão era a de saber se a devia ou não haver lugar à habilitação da adquirente (decidiu-se “julga[r] habilitada a LX INVESTMENT PARTNERS III, S.A.R.L., devendo esta passar a ocupar a posição processual até aqui ocupada pela Ré, H..., S.A.R.L., e nesta qualidade”).

Por outras palavras e sinteticamente: para estarmos perante ofensa de caso julgado formal, a decisão do Tribunal recorrido teria de ter apreciado e decidido uma questão definitivamente decidida antes no processo; ora, isto, manifestamente, não acontece.

Conclui-se, assim, que não se verifica ofensa de caso julgado e que por esta via não há lugar à revogação da decisão do Tribunal a quo.
 

*3. [Comentário] A Relação recorrida fez uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal (art. 6.º, n.º 1, e 547.º CPC) e considerou que a habilitação da nova ré que se verificou na 1.ª instância sanou a situação de ilegitimidade da primeira ré que foi demandada na acção. Nada se tem a opor a esta opção da Relação, sendo certo que, como, aliás, se refere no acórdão, a ilegitimidade singular não é susceptível de sanação (coisa de que a 1.ª instância parece nunca se ter apercebido). Quer dizer: a Relação aproveitou a habilitação da nova ré para considerar que, em termos práticos, a ilegitimidade singular da primeira demandada se encontrava sanada.

A Relação também foi coerente com a sanação da ilegitimidade singular ocorrida na 1.ª instância ao considerar que a nova ré tinha a faculdade de apresentar a contestação. Não faria sentido que se promovesse a intervenção de alguém que devia ter sido demandado ab initio na acção e se lhe coarctasse a possibilidade de se defender nessa mesma acção (neste sentido, não se pode acompanhar o voto de vencida declarado no acórdão do STJ).

Nesta circunstância, realmente são se antevê em que é que o acórdão recorrido ofendeu qualquer caso julgado formal.

MTS