"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/10/2024

Jurisprudência 2024 (25)

 
Prova documental;
apresentação de documentos; controlo judicial

 
1. O sumário de RG 15/2/2024 (4774/21.7T8GMR.B.G1) é o seguinte:

I - A tempestividade de um documento apresentado na audiência final implica a alegação e prova de que a apresentação anterior não foi possível ou de que a apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior.
 
II - A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa.
 
III - O princípio da igualdade encontra consagração no artigo 4.º do CPC, que dispõe que o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.
 
IV – A identidade de faculdades e meios de defesa processuais das partes só é exigível quando a sua posição perante o processo seja equiparável.
 
IV – O juiz não se encontra compelido a admitir a junção de um documento só porque a parte, que não o apresentou oportunamente, invoca a importância daquele para a descoberta da verdade. A não se entender assim, perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais determinados, pois restaria sempre à parte a possibilidade de invocar a sua essencialidade.
 
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A questão a apreciar insere-se no âmbito do direito à prova e oportunidade da sua apresentação.
 
O direito à prova emana da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo e de assegurar a capacidade de influenciar o conteúdo da decisão. [...]
 
Todavia, o direito à prova não é ilimitado.
 
O direito à prova não pode ser tomado por um direito absoluto na sua essência, e por isso, por vezes, terá de sofrer restrições.
 
No campo das proibições de prova, importa considerar a natureza processual ou substancial que estas revistam: tem natureza substancial quando colocada essencialmente em função dos direitos que o ordenamento reconhece aos indivíduos, independentemente do processo; está em causa uma proibição de prova processual, quando for colocada em função de interesses atinentes à lógica e à finalidade do processo [Sobre a proibição da prova, Isabel Alexandre, Provas ilícitas em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1998, pag. 48.]
 
Sem entrar na classificação conceitual de “prova proibida”, ora como uma limitação legal à produção da prova, ora como uma limitação legal a valoração da prova, importa sublinhar aqui a sua importância em termos de prova inadmissível, por referência àquela prova que, por qualquer razão legal, não pode ser admitida no processo. Neste conspecto, a inadmissibilidade corresponde à verificação de um impedimento à prática de determinado ato no processo seja porque a lei não admite in tottum ou não admite com aquela forma ou altura do processo. Com efeito, na doutrina refere-se à prova inadmissível para descrever os meios de prova que, por qualquer motivo, não podem ser inseridas nos autos.
 
Um dos limites que a lei impõe respeita, precisamente, ao momento da sua apresentação.
 
Quanto à prova por documentos, a oportunidade da sua apresentação encontra-se legalmente fundada na previsão do art. 423.º, do C.P.C.
 
O nº1 deste preceito consagra o princípio geral de proposição dos meios de prova, constituendos e pré-constituídos, com os articulados, ao dispor que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
 
Da exegese do 423.º do C.P.C., extrai-se que os documentos podem ser apresentados nos seguintes momentos: a) com o articulado respetivo; b) até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final mas, neste caso, a parte é condenada em multa, exceto se provar que não os pode oferecer com o articulado respetivo; e c) posteriormente aos mencionados 20 dias, até ao encerramento da discussão em 1ª instância mas, neste caso, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento e os que provem factos posteriores a ele ou que, provando factos anteriores, se formem posteriormente ou se tornem necessários por virtude de ocorrência posterior.
 
O art. 423º do C.P.C. regula tão só e apenas o direito que assiste às partes de fazerem juntar ao processo documentos, independentemente da sua pertinência, da sua relevância e da apreciação do seu valor probatório [---]
 
As circunstâncias que tornam admissível a apresentação de documentos depois dos 20 dias que antecedem a audiência final têm de ser alegadas e provadas pela parte que pretende a junção do documento.
 
Visou-se com a restrição contida neste preceito (que difere da anterior redação do art.º 523º, nº 2) disciplinar a produção de prova, assegurando-se o oportuno contraditório e obviando a intuitos exclusivamente dilatórios.
 
A falta de diligência da parte e a produção do chamado "efeito-surpresa" são incompatíveis com os parâmetros atuais do processo civil. Como o é a apresentação de um documento na audiência final com vista a provocar o seu adiamento. Um e outro estão correlacionados, pois que a diligência constitui um parâmetro de aferição da conduta da parte no desenvolvimento do processo.
 
Na indagação da admissibilidade do documento, quando invocada a impossibilidade da prévia apresentação, o seu fundamento haverá de ser apreciado segundo critérios objetivos e de acordo com padrões de normal diligência, isto é, a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias do caso (art. 487, nº2, do C.P.C.).
 
Quando invocada a necessidade da sua junção em virtude de ocorrência posterior o grau dessa necessidade não tem de ser significativo, bastando que a apresentação do documento se revele útil como meio de prova.
 
Na verdade, como se escreveu no já citado acórdão da Relação de Lisboa de 25/9/2018 [---], “da economia do preceito legal não se descortina uma especial intenção de reforçada excecionalidade; não é necessário que o documento cuja junção se pretende seja o único (ou principal) meio de prova, bastando que a apresentação do documento se revele útil como meio de prova”.
 
Seguindo ainda o entendimento considerado no referido aresto “A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa (…). E nesse conspecto haverá de ter em conta o regime legal relativamente ao apuramento dos factos relevantes. As partes apenas estão adstritas à alegação dos factos essenciais (artigos 5º, nº 1, 552º, nº 1, al. d), e 572º, al. c), do NCPC); mas o tribunal, para além desses, pode considerar os factos instrumentais e complementares ou concretizadores que resultem da discussão da causa (art.º 5º, nº 2, do NCPC). Ora será aquando da revelação desses factos decorrentes da produção de prova na audiência que poderá surgir a necessidade, no apontado sentido de utilidade, de confirmação desses factos mediante prova documental. E a essa situação se reportará, na generalidade dos casos, o conceito de ocorrência posterior”.
 
No caso vertente, estando ultrapassados os prazos previstos na lei, o Requerente justifica a razão e a finalidade da junção para que se possa aferir, ou melhor contrariar, a relevância probatória dos cheques que foram juntos pela contraparte por determinação do tribunal.
 
Apreciemos, então, a justificabilidade quer formal quer material da apresentação dos documentos.
 
Atentemos que o processo se encontra na fase de julgamento.
 
Logo, só com a invocação de ocorrência posterior relacionada com a dinâmica do processo se justificaria legalmente a junção dos documentos.
 
Ora, ressalvado o devido respeito, não se vislumbra que ocorrência posterior relacionada com a dinâmica do processo, possa justificar a junção dos documentos nesta fase, quando antes em face dos fundamentos da defesa e da alusão que já aí era feita aos cheques (que foram protestados juntar), não sentiu o autor tal necessidade.
 
Nenhuma justificação se prefigura como atendível, no sentido de ser apta ou adequada a demonstrar a impossibilidade de o autor, num quadro de normal diligência, proceder à junção do documento no momento processualmente oportuno. Não é por acaso que a propósito da impossibilidade da prévia apresentação, a terminologia usada nos art.s 423º, n.º 3 e 425º é “não ter sido possível”, implicando que o fundamento haja de ser apreciado segundo critérios objetivos e de acordo com padrões de normal diligência, isto é, a diligência de um bom de família em face das circunstâncias do caso (art.º 487, nº2, do Código Civil).
 
Por outro lado, como já referido, não se alcança nem o recorrente invoca qual tenha sido a “ocorrência posterior”, suficientemente consistente e atendível, que torne necessária a apresentação dos documentos, não decorrendo a mesma claramente dos cheques que foram juntos.
 
Acrescenta-se, em termos de pertinência, que os documentos não apresentam relevância para a decisão da causa, isto é, baseando-nos num juízo de prognose abstrato os elementos em causa não têm (potencial) relevância para prova de factos objeto do litígio, pois que dizem respeito a outros processos, que envolvem outros intervenientes e outros imóveis, não podendo extrair-se a conclusão que os aqui 2ºs réus simularam os negócios em discussão nestes autos, com base na convicção firmada naqueloutros, a pretexto de que ali se teria concluído que os mesmos incorreram em simulação."

[MTS]