"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/10/2024

Jurisprudência 2024 (24)

 
Pedido;
 qualificação jurídica; compropriedade*


I. O sumário de RG 15/2/2024 (4097/22.4T8GMR.G1) é o seguinte:


1 – Não pode ser afirmada a existência de um direito de propriedade sobre parcela de terreno utilizada como caminho sem que a mesma constitua uma coisa corpórea autónoma.

2 – O acordo relativo à separação desta parcela de terreno, em terra batida, que sempre foi utilizada como caminho, do prédio em que está integrada, tendo por objetivo, precisamente, assegurar a sua utilização em benefício do prédio mãe e de prédio confrontante com essa parcela, constituiu sinal visível e permanente bastante para a constituição de servidão de passagem por destinação de pai de família.

3 – Deduzida pretensão indemnizatória com base na violação de direito de propriedade, não existe pedido indemnizatório formulado pela violação de direito de servidão se o reconhecimento deste foi formulado como pedido subsidiário a todos os demais pedidos anteriormente formulados, incluindo nestes a referida pretensão indemnizatória.

4 – Não existe violação do disposto no art.º 609.º do C. P. Civil quando se reconhece a existência de um direito de compropriedade, estando peticionado [por dois autores] o reconhecimento do direito de propriedade.

5 – Viola o disposto no art.º 615.º, n.º1, alínea d), do C. P. Civil a sentença que condena no pagamento de juros de mora quando tal pretensão não foi deduzida.
 

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Alegam os réus recorrentes que o Tribunal não poderia reconhecer o direito de compropriedade dos autores sobre a parcela de terreno que identificam como caminho, pois que foi pedido o reconhecimento do direito de propriedade, sendo certo que tal decisão não foi objeto de prévio exercício do contraditório. [...]

Entendem, assim, que a sentença é nula por violação do disposto no art. 3.º, n.º1, 608.º, n.º2, 609.º e 615.º, n.º1, alínea c), do C. P. Civil.

Como referem António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, pág. 783, “as partes, através do pedido (art.3.º, n.º1) circunscrevem o thema dedidendum, isto é, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se à situação real conviria ou não providência diversa. Trata-se de uma esfera em que domina o princípio do dispositivo, o qual, em termos paralelos, também vigora em sede de sustentação fáctica da pretensão. Em ambos os casos, prevalece a estratégia assumida pelo autor, sem que nela se deva imiscuir o juiz. Consequentemente, a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido (e da causa de pedir, não podendo o juiz condenar (ou fazer a apreciação que corresponder ao tipo de ação em causa) em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”.

É muito discutida a natureza jurídica da compropriedade.

Como refere Luís A. Carvalho Fernandes, in Lições de Direitos Reais, 2ª edição revista e atualizada, pág. 322, “de acordo com a conceção clássica perfilhada na doutrina portuguesa por Manuel Rodrigues e Mota Pinto, ma compropriedade cada um dos comproprietários é titular de um direito sobre uma quota ideal ou intelectual da coisa, que constitui o seu objeto. Poderia tentar ver-se uma aplicação desta conceção nas referências que o legislador faz a quotas dos consortes, em vários preceitos, de que se podem destacar, pelo seu carácter mais significativo, o n.º 2 do art.º 1403.º e, em particular, os arts.º 1408.º e 1410.º.

A conceção que, com variantes na formulação, se pode considerar dominante na doutrina portuguesa, vê na compropriedade um conjunto de direito, coexistindo sobre toda a coisa e não sobre qualquer realidade ideal ou imaterial, como seria a quota, nem sequer sobre uma parte da coisa.

Sendo estes direitos, como a própria lei diz, qualitativamente iguais, isso implica que eles se autolimitam, pois o exercício de cada um terá de se fazer sem prejuízo de um exercício equivalente dos demais. Esta tese, perfilhada por Luís Pinto Coelho, Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, merece também o nosso apoio (…)

Nesta conceção cada um dos direitos em concurso incide sobre a coisa comum, embora não se refira a parte específica da mesma. Os direitos dos vários consortes são iguais, no que respeita à sua qualidade jurídica, mas podem ser quantitativamente diferentes, como se diz no n.º 2 do art.º 1403.º. O aspeto quantitativo não interfere com a natureza dos poderes que a cada um dos comproprietários cabem, mas projeta-se já em aspetos relevantes do seu exercício.

Esta forma de conceber a compropriedade adequa-se perfeitamente ao regime que para o instituto se estabelece no Código Civil. Assim, ela constitui, desde logo, uma tradução adequada do que se estatui no seu art.º1405º, n.º1, Na verdade, sob o ponto de vista qualitativo, o conjunto dos poderes dos comproprietários corresponde aos poderes dos proprietários singulares; mas, na atuação desses poderes interfere o aspeto quantitativo, pelo que os comproprietários só participam nas vantagens da coisa e só suportam os correspondentes encargos na proporção das suas quotas.

Por outro lado, uma vez que o direito de cada comproprietário, no aspeto quantitativo, é aferido em função de uma quota abstrata ou ideal, justifica-se o uso que da palavra se faz na linguagem legal e corrente, nomeadamente para identificar a correspondente situação jurídica”.

Decorre desta perceção da natureza jurídica da compropriedade que reconhecer o direito de compropriedade dos autores (que pressupõe a existência de outros comproprietários), como foi afirmado pelo Tribunal a quo, não é coisa diversa de reconhecer que existem dois proprietários da mesma coisa porque a adquiriram, ambos, por usucapião.

Assim, requerendo os autores o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre uma coisa, contém-se ainda no objeto dessa pretensão afirmar que tal direito de propriedade não lhes pertence apenas a eles (ainda que não se possa reconhecer o direito de propriedade desse outro titular, porque não foi peticionado), estando sempre em causa, apenas, reconhecer o direito de propriedade que foi invocado (e note-se que os autores não requereram que fossem reconhecidos como únicos proprietários da parcela de terreno que identificam como caminho).

Não existe assim uma condenação em objeto diverso do que foi peticionado, pois que o que se reconheceu – e não existe, como vimos – foi o mesmo direito de propriedade invocado, apenas não sendo exclusivo dos autores."
 
*III. [Comentário] No contexto do acórdão, a RG decidiu bem. Recorde-se que, no relatório do acórdão, se afirma que "AA e BB intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e DD, pedindo a condenação dos réus a: a) reconhecer que os autores são os legítimos proprietários do caminho [...]". Portanto, o que os autores pediram foi, realmente, o seu reconhecimento como comproprietários do caminho.

MTS